O elemento central de The Room é que o horror provém não do sobrenatural, mas de uma máquina cuja tecnologia é desconhecida – lembra até a máquina do físico Nikola Tesla no filme de Christopher Nolan O Grande Truque
O gênero Gótico tem suas origens no Velho Mundo europeu com seus castelos e masmorras de sociedades que desapareceram. Já o gótico norte-americano é um interessante subgênero originado numa sociedade puritana que produziu ficções em torno de culpa, pecado original, abominações humanas decorrentes da miscigenação racial, incesto etc. E ainda mais interessante quando um filme desse subgênero é escrito e dirigido por um olhar europeu. Esse é o filme franco-belga “The Room” (2019): cansado de viver em Nova York, um jovem casal muda-se para um casarão vitoriano no interior de New Hampshire. Lá encontrarão não o sobrenatural, mas o horror produzido por uma misteriosa tecnologia por trás das paredes daquele casarão, capaz de materializar qualquer desejo que for dito. Mas, como em todo conto fantástico há um alerta: “A única coisa mais perigosa do que alguém que não consegue o que quer, é uma pessoa que possa ter tudo o que quiser”. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.
O gótico é um gênero europeu, intimamente relacionado com o movimento do Romantismo nos séculos XVIII-XIX: castelos, masmorras, grandes corredores labirínticos através dos quais transitam pessoas ou personagens sobrenaturais e acontecimentos que transitam entre o fantástico e o estranho, apagando as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Essencialmente, é um gênero que explora o medo do desconhecido.
Portanto, é no mínimo curioso ver uma co-produção franco-belga, The Room (2019), dirigido e escrito pelo francês Christian Volcker fazer uma incursão pela ficção gótica norte-americana sobre um casal que se muda de Nova York para um velho casarão vitoriano no interior do Estado de New Hampshire.
A ficção gótica norte-americana é um subgênero do Gótico. Suas raízes estão em nomes de escritores como Edgar Allan Poe, Washington Irving e Herman Melville, até chegarmos ao século XX com H.P. Lovercraft e Stephen King.
O subgênero norte-americano se distingue do Gótico do Velho Mundo principalmente por ter surgido em uma sociedade puritana – culpa, pecado original, abominações humanas decorrentes da miscigenação racial, incesto, abjeção doméstica. O Fantástico e o medo do desconhecido se confundem com dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado (sadomasoquista), a percepção corpo fragmentado do corpo pela infante pré-formação do ego (daí o porquê do fascínio pelos corpos despedaçados, vísceras e sangue no cinema de terror) etc.
O Mal e o Estranho se confundem com os nossos próprios impulsos aos quais deveremos renunciar na resolução do Édipo e na entrada ao mundo da Cultura. Os filmes de terror dramatizariam a nossa própria luta interna em ter que renunciar a Natureza (prazer, impulso, gratificação imediata) em nome da Cultura (renúncia e sublimação). Mas o diretor Christian Volckman é um europeu com o olhar do Velho Mundo para um filme gótico ambientado na América. Para um europeu, o que funda a América como um país continental distinto da cultura europeia? Essencialmente, a inovação tecnológica.
Numa sociedade puritana como a norte-americana, a tecnologia é a quintessência da pureza porque produto do engenho humano: é moralmente boa. O horror só pode vir da corrupção de algo essencialmente tão bom.
The Room reúne todos esses elementos do gótico norte-americano com o Estranho e o Fantástico que irrompem de um pecado original: a utilização abusiva de uma estranha invenção que nos confronta com outro pecado original – o Édipo e o incesto.
O Filme
Nas primeiras sequências vemos os protagonistas Kate (Olga Kurylenko, Quantum of Solace) e Matt (Kevin Janssens, Revenge) contemplando sua nova propriedade, um velho casarão no campo. O casal acaba de se mudar de Nova York, desejando escapar da agitação da metrópole.
Kate está cansada de trabalhar como tradutora em um grande escritório de advocacia e concorda em se tornar uma dona-de-casa comum. E Matt quer se tornar um grande pintor, e busca no campo a paz necessária para criar obras de arte genuínas.
O casal pretende restaurar o casarão e começa a desmontar e jogar fora os velhos móveis. Até Matt se deparar com uma rachadura no papel de parede, atrás da qual encontra-se uma câmara escondida.
Ele acaba descobrindo que no interior daquelas quatro paredes envoltas pelas sombras há uma força misteriosa e surpreendente capaz de materializar, diante de seus olhos, qualquer coisa que ele peça.
Momentaneamente, o típico sonho americano de tornar a nova propriedade aconchegante para a formação de uma nova família é deixado de lado. Matt fica curioso com o funcionamento daquele misterioso quarto. Junto com um eletricista descobre no porão um estranho gerador elétrico do qual parte uma complexa fiação que parece passar pelas paredes de todos os cômodos do casarão.
Para aumentar ainda mais o mistério, Matt e Kate descobrem um fato sobre o qual o corretor do imóvel ficou calado: há várias décadas um brutal assassinato de um casal ocorreu naquela casa. E o assassino está preso em um hospital psiquiátrico onde ninguém o visita, exceto repórteres que ocasionalmente pretendem investigar os mistérios daquela história.
Mas toda a racionalidade é suspensa diante da tentação de realizar qualquer desejo. Por alguns dias, o casal se entrega a mais louca alegria, desfrutando de todo bem material materializado – comidas exóticas e caras, bebidas, montanhas de dinheiro, joias, obras de arte originais dos grandes gênios da pintura.
Porém, depois de toda orgia, Kate cai em si e pede a única coisa que realmente anseia: com dificuldades para engravidar, pede um filho. E como num passe de mágica, um bebê se materializa diante dela. Ela vai chama-lo de Shane.
Se há uma coisa que os contos de fada nos ensinam é que para tudo que é realizado magicamente, há um preço caro para pagar. Sempre há um lado sombrio da moeda – muitas vezes o que é obtido está longe de ser alcançado.
Todos os produtos têm uma natureza “efêmera”, isto é, eles só podem existir dentro daquele casarão. Ultrapassado os limites das portas e janelas, o objeto rapidamente envelhece até se reduzir a cinzas.
Em resumo, temos todos elementos de um conto gótico norte-americano: um casarão sinistro que abriga uma tecnologia que contraria as leis da Física, a utilização abusiva dessa estranha máquina para a realização dos desejos do casal e a produção de um “recém-nascido”.
A morte dos proprietários anteriores em circunstâncias pouco claras, assassinados por um jovem cuja identidade está envolvida em mistério, nos prepara para a descoberta de uma verdade da pior maneira possível para Kate e Matt.
The Room é um filme freudiano – Alerta de Spoilers à frente
O elemento central de The Room é que o horror provém não do sobrenatural, mas de uma máquina cuja tecnologia é desconhecida – lembra até a máquina do físico Nikola Tesla no filme de Christopher Nolan O Grande Truque (The Prestige, 2006): uma espécie de teletransporte construído por encomenda para o número de um mágico, mas com alguns efeitos colaterais.
Certamente a máquina do casarão é de natureza quântica mas que, apesar de cientificamente revolucionária, materializa o demasiado humano dentro de nós: o drama edipiano que nos faz cruzar da Natureza para a Civilização.
A tensão do filme é o triângulo edipiano do filme formado por Shane, Kate e Matt – Shane (Joshua Wilson) cresce a testemunha aquilo que Freud chamava de “cena primitiva”: os pais no ato sexual. O drama edipiano criado a partir desse ponto criará a outra cena seminal da civilização: o parricídio, o crime primeiro da humanidade.
O mito diz que o patriarca possuía todas as mulheres e os filhos com raiva mataram o pai, surgindo assim o sentimento de culpa. Dessa forma, o incesto passou a ser considerado um tabu em todas as sociedades. O tabu que nos separou da Natureza e nos fez ingressar no reino do simbólico: a Cultura.
Só que enquanto em Freud esse drama é resolvido no campo do psiquismo e do simbólico, em The Room vira o horror real: Shane é uma abominação, um “produto”, como se refere Matt. Ele quer assassinar o “pai” para possuir sexualmente Kate, a “mãe”.
Porém, The Room segue à risca a tese de Freud construída em “Totem e Tabu”: a única forma de poder sair daquele casarão sem se desintegrar e virar cinzas é matando os pais, isto é, dissolvendo literalmente o drama edípico.
Como uma abominação humana (tema caro ao gótico norte-americano), produzida e não nascida, certamente enlouquecerá. Assim como o “produto” anterior que acabou sendo internado num manicômio após o parricídio.
A ironia (e toda narrativa do gênero gótico possui uma ironia fundamental) é como aqui a racionalidade e a ciência não apenas contrariam as leis da Física como transforma aquele casarão num caos, trazendo à tona a cena primeira criadora do primeiro tabu que nos tirou do mundo selvagem e nos colocou na civilização. Mas em The Room, as coisas não terminam tão satisfatórias como em Freud: não há a sublimação dos impulsos que construirá uma ordem civilizatória.
“A única coisa mais perigosa do que alguém que não consegue o que quer, é uma pessoa que possa ter tudo o que quiser”, vaticina Matt à certa altura do filme. O problema em The Room é que o casal e Shane revivem um drama edipiano essencialmente corrompido: tudo foi um constructo tecnológico criado para ser uma espécie de armadilha – quem não se seduziria por um mecanismo capaz de materializar qualquer desejo mais recôndito nosso?
Nesse horror gótico em que o sobrenatural é substituído pela tecnologia, é impossível não lembrar da “Dialética do Esclarecimento” de Adorno e Horkheimer – a longa viagem da civilização do Mito à Razão nos trouxe a Ciência e a Tecnologia que não conseguiu instaurar uma sociedade racional e esclarecida. Ao contrário, trouxe de volta o Mito e a dominação potencializados por gadgets tecnológicos que realizam na literalidade o pior do psiquismo humano.
Ficha Técnica
Título: The Room
Criador: Christian Volckman
Elenco: Olga Kurylenko, Kevin Janssens, Joshua Wilson
Ano: 2019
País: França, Bélgica