“Aquele que tem caridade no coração tem sempre
qualquer coisa para dar”
Santo Agostinho
“Caridade faz das mãos prato, do corpo cobertor e
de cada palavra um ato de amor”
Karl Marx
“Virtude sem caridade não passa de nome”.
Isaac Newton
Antes de iniciar uma discussão sobre a caridade, gostaria de trazer um texto com uma história centrada em dois personagens: o ladrão e o bispo.
O ladrão passou dezenove anos em uma prisão. Lá, após inúmeras violências percebeu que se existia um culpado pela sua situação: a sociedade. Ele sabe que é culpado por ter roubado, em seu ensaio mental sobre o crime ele percebe que roubar não é uma situação adequada para sair da situação em que se encontrava – a fome. Eis então que ele se considera culpado do primeiro crime, que lhe deu uma porção menor de sua sentença. Mas dos anos impostos por tentar fugir da prisão, maior parte da pena, a culpa recaia sobre a sociedade.
O pão que havia roubado poderia ter sido dado em uma ação caridosa do padeiro, caso ele tivesse pedido, roubar foi errado portanto. Mas a situação de fome, se nos permitimos pensá-la como ela realmente é, um crime, não é um crime pelo qual o ladrão se sentisse culpado, ele percebe então que criminosa é uma sociedade em que se depende da boa vontade do padeiro. Jean amaldiçoa a sociedade, e sai da prisão dedicado a devolver a ela o mal que sofreu.
Vagando pelas ruas como um proscrito, sem emprego por sua condição, sem dinheiro por não ter emprego e sem alimento por não ter dinheiro, o ladrão vê se repetir a condição inicial de sua penitência, a fome. Mas, diferente do passado de 19 anos, ele encontra a mão caridosa de um bispo, que o abriga, dá-lhe comida e permite que durma em uma cama depois de anos de sofrimento.
A noite, o ladrão furta a prataria do bispo e foge, voltando a cometer seu erro inicial, pecando novamente um pecado repetido.
Preso, levado pela polícia à presença do religioso, o ladrão vê na face do bispo não a repulsa, ou ódio, ou qualquer sentimento fácil que dirigimos a quem nos causou mal.
Mas sim a dúvida, que vem seguida da pergunta. “Ó amigo, tudo isso lhe dei, mas esqueceste do melhor.Não deseja levar também os castiçais que havia lhe dado?”. Eis a dádiva da caridade.
O texto acima resume, em uma síntese minha e livre de alguns rigores de reprodução, a parte inicial da trajetória de Jean Valjean, um dos personagens do romance Os Miseráveis do francês Victor Hugo, que, sendo uma das obras mais reproduzidas de toda a história, acabou por gerar adaptações para o teatro e cinema, como o filme Les Miserables (2013). A cena da caridade promovida pelo bispo, Dom Bievenu também. Aqui no Portal (En)Cena, pode-se encontrar na seção Em Cartaz, uma visão geral sobre o filme. Recomendo o filme, não só pela lição de caridade, mas por seu teor altamente humanista.
Deus caritas Est
A perspectiva da caridade como amor, completando a tríade junto a Eros e Agaphe, tem no cristianismo sua máxima “Amar ao próximo como a si mesmo”, esse ensinamento, atribuído a Jesus Cristo, serve para qualificar o ato de caridade como uma atitude antes de tudo, altruísta. O papa Bento XVI, em sua primeira encíclica, texto aberto a toda Igreja Católica pelo mundo, explicou que
O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda.
Para o papa, a ação da caridade, não é, necessariamente, uma ação de entrega material. É antes disso a demonstração de que o amor entre pares, a irmandade, é uma condição sinequa non para a existência da própria humanidade, essa reconhecida não só como um ajuntamento de seres humanos, mas como a sublimação de nossa condição existencial, a nossa utopia de comunidade.
A elevação disso ao amor de Deus é um exercício de fé. Mas, a despeito da Teologia, a caridade é parte integrante do conjunto de ações humanas e merece ser observada também sob o prisma agnóstico e ateísta. Afinal de contas, não sendo Deus, ainda é possível amar ao próximo?
O Bom Samaritano
A caridade como elevação da condição humana
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade.
– Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Frequentemente nos esquecemos da brevidade da vida, e de como nossas realizações pessoais são pequenas quando observadas seguindo a escala universal. Individualmente, cada um de nós representa um ser vivo, dentre os bilhões de seres vivos da mesma espécie, contidos no grande grupo de bilhões de bilhões de seres vivos do planeta Terra. Após isso, nos damos conta que nosso planeta é só um de um sistema estelar que se repete ad infinitum pelo cosmo.
Nos constituímos como sociedade, buscando a sobrevivência. Foi assim quando os humanos deixaram as cavernas e passaram a vagar pela Terra em busca de alimento, segurança e meios para perpetuar a espécie. Bem, o grande número populacional mostra que fomos bem sucedidos na tarefa, até demais, de acordo com algumas demonstrações populacionais que apontam para o colapso dos recursos naturais em menos de um século graças ao aumento desenfreado da população.
Mas, diferente de uma espécie puramente replicante, o ser humano buscou realizar seu desejo de expansão escorado por outros objetivos, digamos, mais humanísticos, como a necessidade de pertença local, que gerou as nações e posteriormente os países, e também a aspiração de permanência mesmo a após a morte, dando origem a história. O ser humano quis, portanto, ser, se reconhecer sendo e permanecer sendo.
Na perspectiva humana, de um ponto de vista alheio das muitas religiões, a vida é uma jornada, iniciada no nascimento e findada na morte. O meio do caminho, nossa existência, é o tempo que temos para demonstrar qual nossa missão, qual será nossa pegada e a que devemos nossa vida. A aventura humana é descobrir-se sendo.
Frente a isso, um dos fenômenos mais interessantes, e aí faço um juízo de valor dada à liberdade exclusiva deste texto, é perceber no outro as mesmas vicissitudes e características vividas por nós nessa trajetória. A beleza da vida é perceber que a dor, o amor, o sofrimento, a glória e todos os demais sentimentos abstratos só existem em uma perspectiva divida. Tudo isto é em mim aquilo que eu percebo nos outros.
Lembro me da primeira vez que quis ajudar alguém, entrando agora na seara da caridade, recordo-me que por volta da idade de cinco anos, passava de mãos dadas com minha mãe no regresso à nossa casa, quando um grupo de crianças, do lado de dentro de um muro gradeado, estenderam as mãos e pediram. “Moça, dá uma comida para gente”. Dizendo não ter nada para oferecer, minha mãe apertou um pouco mais minha mão a fim de me fazer desviar o olhar das crianças e seguimos andando.
Mais a frente eu perguntei a ela, porque as crianças não haviam pedido comida para a mãe delas na casa, que ficava no terreno cercado pelo muro gradeado. Minha mãe me disse então que ali existia um orfanato e que, as crianças que pediam comida eram órfãs, não tinham mãe nem pai.
A culpa, sentimento muitas vezes motor da caridade, agora em um julgamento desprovido de mérito, me assolou como uma flecha. Eu tinha uma mãe, eu tinha comida em casa, mas eu não sabia até aquele momento que existiam pessoas sem mãe ou sem comida em casa, eu me percebi humano, ser comunitário e ínfimo pela primeira vez. O tempo, e os mecanismos psíquicos que sejam, fizeram questão de apagar os rostos das crianças famintas de minha mente, mas eu ainda lembro do pedido por comida, e fantasio que depois de minha mãe e eu, alguém, voltando da padaria ofereceu às crianças um pão quente.
A caridade é mais que uma virtude, tal qual a disposição das outras seis nos faz acreditar. É mais do que uma medida da nossa capacidade de dar coisas.
Foto: Sebastião Salgado
É parte da natureza inata do ser humano, é a percepção de que o outro, sofrendo, reproduz a nossa miséria, e nosso ato ajuda a aplacar a nossa finitude.