Temperar é dar gosto a um alimento. Sem tempero, não há gosto. Sem tempero, diminui a atração. Sem tempero, sem sabor, sem graça. Um dos temperos básicos da gastronomia é o sal. Mas são milhares de temperos conforme a região, país, costume, cultura. Azeite de oliva, alho, açafrão, manteiga, vinho, azeite de dendê, leite de côco, pimentas, gengibre, gergelim, hortelã, absinto, louro, manjericão, erva cidreira, salsão, endro, cebola, canela, azeitona, Artemísia, alecrim, alcaparra. São alguns que podemos mencionar. Porque os temperos dão sabor. Os temperos fazem as misturas melhores, mais atraentes.
Foto: Flávia Kitty
E assim são as virtudes, rapidamente associadas à cultura cristã, equivocadamente. Antes mesmo do advento do Messias, Aristóteles, o pensador grego, já conceituava a virtude, como disposição adquirida de fazer o bem, que se aperfeiçoa com o hábito. Ou seja, como tempero, fazendo uma analogia aristotélica (à medida do possível) a virtude precisa ser aplicada, inserida no alimento que é a vida, testando, provando, consumindo. “Tudo é conhecimento, inclusive a justiça, a temperança e a coragem – o que tende a demonstrar que certamente é possível ensinar a virtude” (citado por Shattuck R. Conhecimento Proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998:20).
Foi na Grécia Antiga a origem da palavra arete, traduzida como excelência. No latim, Arete ganhou tradução de virtus. Na cultura oriental, dois mil anos antes de Cristo já se associava a virtude com a capacidade de realizar ou oferecer vida.
Disso, à vista inicial, depreende-se que as virtudes são úteis à essência da vida. Porque lhe dão tempero, sabor, utilidade. No Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, André Comte-Sponville, ao conceituar virtude também exemplifica,
O que é uma virtude? É uma força que age, ou que pode agir. Assim a virtude de uma planta e de um remédio, que é tratar, de uma faca, que é cortar, ou de um homem, que é querer e agir humanamente. Esses exemplos, que vêm dos gregos, dizem suficientemente o essencial: virtude é poder, mas poder específico. A virtude do heléboro não é a da cicuta, a virtude dafaca não é a da enxada, a virtude do homem não é a do tigre ou da cobra. A virtude de um ser é o que constitui seu valor, em outras palavras, sua excelência própria: a boa faca é a que corta bem, o bom remédio é o que cura bem, o bom veneno é o que mata bem… (1999, p.2)
Ironicamente, o mesmo autor, ainda no preâmbulo, indica que a utilidade do seu modesto Tratado seria maior para os que não detinham as virtudes, “público vastíssimo” segundo ele. Daí, questiono, seremos nós, da atualidade, seres mais pecaminosos que virtuosos? E já respondo. Creio que não. Se não houvesse pessoas dispostas a fazer o bem, não mais existiríamos enquanto raça humana. Sem as luzes virtuosas da bondade, já seriamos classificados de ‘inumanos’, como menciona Comte-Sponville.
A virtude nos humaniza. Para Aristóteles, a virtude é uma maneira de ser. Desta forma, questiono: Um ser sem virtude é humano? Para alcançar esta humanidade, é imprescindível o tempero da virtude? Por fim, quais serão as virtudes que podemos habitualmente praticar e tornar a vida mais ‘humana’?
Interrogações que serão respondidas ao longo desta nova série de elocubrações. Como temperos que dão sabor à vida, as virtudes apresentadas nos levarão a percorrer culturas, costumes, reflexões, amores, como um pedaço da humanidade que cada um tem em si.
Dentro de nós, há castidade. Na pureza de raciocínio, que filtra, que preserva a própria intimidade, sem a necessidade narcisista de exibição, de divulgação nas redes sociais. Na caridade, na generosidade, temperos que podem mudar o século novo de indiferenças e egoísmo. Na diligência, não há indolência, nem negligência. Há preparação, cuidado. Como na elaboração de uma iguaria gastronômica.
Com humildade se mede a si mesmo. Tem-se a vasta noção de um grão de areia numa praia gigantesca. Somos parte de um todo, que é todo, mas é parte. Na paciência, a virtude da espera. Na temperança, a moderação.
Como temperos, devem ser usados com equilíbrio. Porque até nisso, há virtude.
Referências:
COMTE-SPONVILLE, A. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999.
SHATTUCK R. Conhecimento Proíbido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.