A romantização e até mesmo a naturalização da maternidade são fatores que podem desencadear consequências que impactam diretamente no bem estar físico e psicológico das mulheres.
Ana Carla Olímpio Soares (anacarlaolimpio@rede.ulbra.br)
A concepção de amor materno costuma estar vinculado a algo natural, ao passo que encontra-se correlacionado a essência e feminilidade da mulher, podendo complementar com o que a autora Resende (2017) traz “o tema do amor materno geralmente envolve uma série de associações condicionadas a sentimentos naturalmente positivos na condição de ser mãe, muitas vezes levando a uma divinização desse estado como algo abençoado pela natureza”.
Apesar disso, em seus estudos, Resende (2017) salienta que essa concepção em relação ao papel de mãe como algo relacionado ao afeto, só se torna evidente a partir do século XVIII, em que de acordo com a autora, as palavras amor e materno se tornam sinônimos nesse contexto, trazendo à tona os sentimentos em relação a esse vínculo e consequentemente como sentido para o papel da mulher enquanto mãe. Como consequência desse novo olhar para o papel materno, a autora traz a visão de Badinter (1985), em que é expresso que após essa mudança de paradigma, se torna incumbido para as mulheres o tornarem-se mães, alimentando assim, o pensamento de que toda mulher possui o desejo de maternar e como esperado, o amor incondicional pelo filho.
Enquanto mulher na atualidade, é percebido de maneiras “suaves” as formas pelas quais a sociedade tenta impor e/ou passar que a figura feminina “aflore” o lado materno, isso é possível notar por meio dos brinquedos dados para as meninas quando criança, como por exemplo, bonecas que trocam fraldas, que precisam alimentar ou vestir, brinquedos de panelas, fogão como forma de estimular o cuidado com as tarefas domésticas. Sobre isso, as autoras Marques et al. (2022) traz em seu trabalho que as meninas/mulheres são “transformadas em corpos dóceis onde prevalece a imagem de esposas e boas mães, que sabem cozinhar e cuidar da casa”.
“(…) em determinados contextos sociais as mulheres são naturalizadas em ambientes domésticos, nos quais a maternidade é considerada como uma condição do feminino e pode estar fortemente relacionada às questões identitárias da mulher, sendo considerada um dever. Historicamente, os homens não são instruídos a serem pais, mas trabalhadores, políticos, engenheiros, jogadores, bem como a constituir diversos atributos que reafirmem a masculinidade, como força e poder. Por outro lado, as mulheres, desde o seu nascimento, são ensinadas a serem esposa e mãe, são ensinadas a cuidar de bonecas como se fossem bebês, a cozinhar com panelas em forma de brinquedos e cuidar da casa; ou seja, o papel feminino é condicionado a características como pureza, delicadeza e fragilidade” (MONTEIRO; ANDRADE, 2018, apud Marques et al., 2022).
Apesar disso, as autoras Marques et al. (2022) pontuam que mudanças ocorreram e ainda ocorrem no contexto histórico e social trazendo mudanças sob a perspectiva do papel da mulher na sociedade, dando um novo espaço para a escolha ou não de exercer o papel de mãe. Mas, em contrapartida, ainda é possível encontrar mulheres em sofrimento ou experienciando a culpa pela cobrança em “formar uma família”. Isso se dá por meio dessa romantização e tentativa de naturalizar que a vida da mulher se baseia em “nascer, crescer, casar e ter filhos, netos e assim por diante”, sendo essa, uma cobrança para aquelas que não o deseja (MARQUES et al., 2022).
Para Tourino (2006), muitas se culpam por não se sentirem ou não agirem de acordo com os modelos valorizados na sociedade, por ocasião das normas inconscientemente internalizadas que se reproduzem através das gerações, integram a subjetividade feminina e modelam papéis (apud MARQUES et al., 2022).
Quando uma mulher se recusa a viver o processo de maternar, Marques et al. (2022) evidencia a visão de alguns autores que, normalmente são aquelas mulheres que geram estranheza ou até mesmo “choque” na sociedade, pois de acordo com a autora, seria como deixar o feminino “morrer”, já que isso seria parte da essência da mulher, levando para um nível de naturalização e romantização esse processo. Referente a essa romantização da maternidade, de acordo com o ponto de vista exposto pela autora Dias et al. (2020), tanto a sociedade quanto os canais de mídias sociais auxiliam na perpetuação do amor materno, de que esse é um momento de amor genuíno, puro, pleno, sinônimo de realização da vida, gerando uma visão errônea de que é viver um momento perfeito.
“O mito do amor materno afirma que a maternidade e o amor acompanham a mulher desde toda a eternidade e faz parte da natureza feminina. Porém, Badinter (1984) questiona a ideia do amor materno como algo inerente a todas as mulheres, pois ao se percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção de que o instinto materno é um mito. Não existe nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, o que constata-se é a extrema variabilidade de sentimentos maternos, ambições ou frustrações, segundo cada cultura. Dessa forma, a autora afirma que o instinto materno é um mito, pois é um sentimento que pode existir ou não, ser e desaparecer. Tudo depende da mãe e da história, sendo que não há uma lei universal nessa matéria. Destarte, a autora conclui que o amor materno não é inerente às mulheres, e sim adicional” (Damaceno et al. 2021).
Além de que, ao esperar por um momento “mágico” e repleto de boas experiências/vivências no papel materno ser um grande perigo, o período gestacional também acarreta consequências na vida da mulher, pois é o momento em que a mulher começa a lidar com mudanças das quais poderia não estar preparada para lidar de fato, como a transformação rápida e visível que ocorre no corpo, por exemplo, ganho de peso, surgimento de estrias, manchas na pele, inchaços pelo corpo, algumas podem até desenvolver alguns problemas de saúde como a Diabetes Mellitus Gestacional, hipertensão e outras complicações. Se constitui como “alterações físicas e psicológicas que vão resultar em mudanças que impactarão, significativamente, as experiências vividas pela gestante” (Facco; Kruel, 2014), fatores esses que ocasionarão mudanças no modo de viver dessa mulher com ela mesma, assim como com o parceiro e até mesmo a relação mãe e filho.
Quando uma mulher vivencia esse período de maneira saudável, contando com apoio familiar ou de amigos, que possuem uma renda financeira estável e que permite viver bem, pode-se dizer que ela conseguirá aproveitar a maternidade e saberá lidar com as dificuldades que surgirem, mas quando a mulher não conta com nenhuma dessas alternativas ou até mesmo quando cria a ilusão do processo da gravidez, do que é ser mãe e de como será esse momento, pode ser algo que trará como resultados frustração, sofrimento e até mesmo sentimento de culpa, pois é passado para a mulher/mãe, que ela consiga dar conta de tudo, ao passo que deve cuidar bem da criança, deve também cuidar de si e às vezes até do outro, ocasionando ainda, exaustão física e mental.
Trazendo à tona o que Dias et al. (2020) evidencia no sentido de que quando esses papéis que esperam que a mulher ocupe mas não é como fora idealizado, traz sofrimento quando não conseguem alcançar o esperado para elas socialmente, podendo trazer como consequência prejuízos psicológicos, situações de estresse, experienciando situações de tristeza e para aquelas que se tornam mães, mas não é como no conceito ilusório de maternidade que é exposto o tempo todo, podem ocasionar depressão pós-parto, crises ansiosas, entre outras situações.
“Sentimentos como ansiedade, incertezas, além do medo pelo aumento da responsabilidade frente à vinda da criança podem emergir. Esses fatores emocionais desencadeados pela maternidade, podem despertar a depressão pós-parto ou baby blues, conhecido também como tristeza pós-parto ou melancolia da maternidade, esse distúrbio pode ser caracterizado pela alteração de humor das puérperas entre o terceiro e o quinto dia após o parto, mas que geralmente, some com o tempo. Contudo, outras mulheres podem apresentar quadros depressivos mais graves, podendo implicar na capacidade diminuída para o autocuidado e para o cuidado com os filhos” (KROB et al., 2016; JORENTI, 2018 apud Dias et al. 2020).
No processo de maternar, algumas ilusões podem ser quebradas como, há mulheres que não conseguem realizar o aleitamento materno e com isso sentem-se incapazes, já que sempre é propagado a importância da amamentação para os bebês. Há também o mito do amor incondicional ao estar com o filho no colo e em algumas situações as mães, devidos a problemas pós-gestação como é no caso de depressão pós-parto, podem não sentir esse amor com o filho ou simplesmente não conseguirem sentir vontade de cuidar de si e da criança também e como consequência disso, podem viverem dias de culpa e mal-estar, principalmente quando enfrentam essas situações sem o amparo de uma rede de apoio.
“Outro ponto importante, é o enfoque dos sentimentos como anseios e incertezas, além dos fatores emocionais como estresse e frustração. Isso polemiza o que a mídia e sociedade mostram, através de uma visão romantizada, que difunde uma realidade apenas de amor e carinho, que nem toda mulher consegue alcançar” (Dias et al. 2022).
“(…) percebe-se uma dualidade do idealizado e o enfrentado à maternidade real, ocorre um abalo que pode gerar angústias nas mães ao não terem suas expectativas atendidas com a maternidade. Segundo Borsa, Feil e Paniagua (2007), a ruptura da personificação ideal da maternidade pode ser acompanhada por sentimentos de desapontamento, desânimo e desencantamento, além da sensação de incapacidade frente à maternidade. Em concordância, Rapoport e Piccinini (2018) apontam que é normal neste período as mães se depararem com sentimentos ambivalentes, ao mesmo tempo que elas doam tudo de si para o bebê, elas vivenciam a angústia de pouca ou quase nenhuma retribuição, sempre exigindo-se mais cuidados e atenção” (Marques et al. 2022).
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Normalmente quando uma mulher torna-se mãe, costuma esperar que ela se dedique à maternidade, enquanto o homem, apesar de avanços na sociedade, ainda ocupa a posição de exercer a função de proteção e principalmente, prover a renda financeira como forma de “manter” essa família, “(…) Essa perspectiva equivocada de divisão de papéis faz muitas vezes com que as mulheres vivenciem uma sobrecarga, o que pode gerar uma gama de sentimentos, como angústia, tristeza, desamparo, frustração, entre outros” (Dias et al. 2022).
Os efeitos da cobrança em maternar e dessa romantização acerca desse papel, perpassa até as mulheres que decidem não se tornarem mães, mulheres que decidem focar em sua carreira profissional, aproveitar a vida e em até alguns casos, decidem não ter filhos para não “estragarem” seus corpos, mas, como a sociedade lida com esse desejo dessa mulher? Oliveira e Pereira (2023), traz em seu estudo que quando mulheres optam por não gestar uma nova vida, tornam-se pessoas excluídas de grupos ou experienciam o julgamento da sociedade. Isso acontece, pois de acordo com as autoras, a visão romantizada da maternidade não permite observar e compreender o lado das mulheres que escolhem não ter filhos e complementam com o estudo de Colores e Martins (2016), que não existe o “dom” de ser mãe, não é algo inato na mulher, mas sim, algo que deve ser considerado a subjetividade e o desejo do indivíduo. Já em mulheres que lidam com problemas de saúde que não permite engravidar, como em casos de infertilidade, as autoras Oliveira e Pereira (2023) expõem a visão de outras autores que dizem que essas mulheres costumam sentirem-se tristes e incompletas, experienciando a pressão social e até mesmo sentimentos de inferioridade.
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O fato de viver em uma sociedade em que ainda cobra o papel de ser mãe e que ainda impõe “a maneira correta de ser mãe” (por meio de como deve agir, sentir ou até mesmo o querer), se torna exaustivo tanto para quem possui o desejo quanto para quem não deseja tornar-se mãe. Independente da escolha de cada mulher, é algo deve ser respeitado e acolhido, pois é algo que muda por completo a vida da mulher, onde ela precisaria, em algumas vezes, precisaria renunciar planos e sonhos. Assim como há grandes dúvidas, medos, angústias sobre a criação de uma outra pessoa. Se faz necessário o acolhimento tanto familiar, social e até mesmo dos profissionais que acompanham essa mulher, independentemente de sua escolha, pois de acordo com Moraes (2016), citado por Dias et al. (2020), “(…) enfatiza que os fatores negativos podem ser minimizados através de uma atenção acolhedora e esclarecedora dos profissionais que acompanham a mulher (…)”.
Referências:
DAMACENO, Nara Siqueira; MARCIANO, Rafaela Paula; DI MENEZES, Nayara Ruben Calaça. As Representações Sociais da Maternidade e o Mito do Amor Materno. Perspectivas em Psicologia, Uberlândia, v. 25, n. 1, p. 199-224, 2021.
DIAS, Tamires Alves; MENDES, Stéffane Costa; GOMES, Samara Calixto. Maternidade Romantizada: Expectativas e Consequências do Papel Social Esperado de Mãe. 2020.
FEITOSA, Fernanda Soares et al. Opressão Social de Mulheres Que Não Desejam a Maternidade: Estudo Bibliográfico Sob a Ótica da Psicologia. OPEN SCIENCE RESEARCH X, v. 10, n. 1, p. 1222-1240, 2023.
FACCO, Daiana; KRUEL, Cristina Saling. “O meu corpo mudou tão depressa”: as repercussões da gravidez na sexualidade feminina. Disciplinarum Scientia| Ciências Humanas, v. 14, n. 2, p. 141-155, 2013.
MARQUES, Christiane Jussara de Carvalho; SANTOS, Kassia Cintia dos; DANIEL, Natasha Saney Silva. A romantização da maternidade e seus impactos psicológicos. 2022.
PEREIRA TAVARES DE ALCANTARA, P.; ALVES DIAS, T. .; DE CASTRO MORAIS, K.; DA SILVA SANTOS, Y. C. .; MARTINS DA SILVA, J. W. .; BASTOS FERREIRA TAVARES, N. .; CALIXTO GOMES, S. .; DE SOUSA MORAIS, A. B. Maternidade Romantizada: Expectativas do Papel Social Feminino Pós-Concepção. Revista Enfermagem Atual In Derme, [S. l.], v. 96, n. 40, p. e–021313, 2022. DOI: 10.31011/reaid-2022-v.96-n.40-art.1508.
RESENDE, D. K. Maternidade: Uma Construção Histórica e Social. Pretextos – Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas, v. 2, n. 4, p. 175 – 191, 5 jun. 2017.