“É obrigação sua ter relações sexuais com seu marido”: Estupro marital; o inimigo dorme ao lado

“Eu tinha falado que não queria, e que estava cansada aquela noite, mas ele já foi tirando minha roupa e tudo bem, né!? Temos que fazer sacrifícios no casamento.”

Vitória Cardoso Figueira – vitoriacardoso@rede.ulbra.br

 

Segundo Oxford Languages, marital é um adjetivo relativo ao marido, ao que se refere o estado matrimonial. No passado, muitas sociedades consideravam o casamento como uma forma de consentimento permanente para o sexo, onde as mulheres eram consideradas propriedade dos maridos. Nesse contexto, a ideia de estupro marital não era reconhecida, uma vez que se acreditava que o consentimento para o sexo era implícito no casamento. A representação da figura feminina ao longo da história frequentemente refletiu dinâmicas de poder que resultaram em um contexto de controle e submissão da mulher em relação à figura masculina.

Ao longo das antigas civilizações, observa-se um padrão no qual os homens ocupavam papéis de destaque no cenário político, social e até mesmo nas relações familiares, enquanto as mulheres eram frequentemente relegadas ao âmbito familiar. Essa dinâmica patriarcal contribuiu significativamente para a disseminação de preconceitos contra as mulheres, que ainda persistem nos dias atuais. Essa cultura do estupro, presente no imaginário de indivíduos que cometem esse ato perverso, reflete a visão distorcida de que a vítima deve ser subjugada aos desejos insidiosos do agressor, servindo como alimento para sua libido e satisfação pessoal (ROSA, 2019).

O estupro marital entende-se como o ato de violar a dignidade sexual da esposa, em que ela é submetida a um ato sexual não consensual, sendo forçada ou coagida pelo seu marido a realizá-lo contra sua vontade. Nesse contexto, a esposa tem seu direito de escolha negado, resultando na violação de sua dignidade sexual (BOTELHO; DE REZENDE, 2023). Um exemplo disso é uma cena na novela Vai na Fé, produzida pela rede Globo, onde Theo, um dos personagens principais, tem relações sexuais com sua esposa, Clara, mesmo ela não estando confortável e dizendo “não”, e mesmo assim ele continua o ato. O estupro marital é presente em várias formas, na insistência, na tentativa de convencer após o “não” e todos os atos feitos sem consentimento.

As mulheres, especialmente as esposas, desempenham diversos papéis na sociedade moderna. Além de cuidar do lar, elas também são incentivadas a serem boas esposas, a trabalhar fora, buscar qualificação através do estudo e, ao mesmo tempo, serem mães. No entanto, a sociedade em que vivemos também as objetifica sexualmente, colocando-as como meros objetos de desejo, procriação e funcionalidade, e aquelas que não se encaixam em certos padrões são marginalizadas. Todo esse conflito de papéis resulta em colocá-las em situação de vulnerabilidade e tirando sua subjetividade (CARNUT & FAQUIM, 2014.)

Ao longo da história, o crime de violação tem sido uma realidade constante sempre que a sociedade o reconheceu como tal. Durante diferentes períodos, houve diversas formas de punir aqueles que o praticavam. No entanto, uma forma de estupro que ocorria de maneira mais dissimulada era a modalidade de estupro que ocorria dentro dos relacionamentos (TAVARES, 2020). Agressão como essa aniquila a dignidade, humanidade, a sua afetividade e saúde mental de uma mulher,  pondo em risco sua saúde mental e ameaçando sua própria existência. (SANTANA, 2022).

Fonte:  M. /Unsplash

Muitas mulheres não reconhecem o abuso sofrido dentro do relacionamento

Dar lugar a esse discurso, é legitimar a violência sexual dentro dos relacionamentos, normalizando o estupro conjugal como algo aceitável ou até mesmo esperado, podendo impedir o reconhecimento da violência e, inclusive, desencorajar a vitíma a procurar rede de apoio. Outra problemática enfrentada, é o fato do estupro marital não ser tipificado por lei.

É crucial estabelecer leis e políticas que reconheçam o estupro conjugal como um crime, independentemente do estado civil das pessoas envolvidas. Isso implica garantir que as leis sejam claras e abrangentes, permitindo que as vítimas denunciem o crime e obtenham justiça diante dessa forma de violência doméstica. Embora a Lei Maria da Penha tenha sido um avanço importante na proteção das mulheres contra a violência doméstica, o estupro marital não é tipificado no Código Penal, o que gera dificuldades para a efetivação da responsabilização dos agressores e até mesmo o reconhecimento deste tipo de violência (SERQUEIRA et al., 2022).

O estupro conjugal é uma violação dos direitos humanos e da liberdade das mulheres, negando-lhes a autonomia sobre seus próprios corpos e sua capacidade de consentir ou recusar relações sexuais. A ideologia patriarcal, que sustenta a noção de poder absoluto do homem dentro do casamento, contribui para a perpetuação dessa forma de violência. A desconstrução do patriarcalismo requer uma mudança profunda na mentalidade e nas normas sociais que perpetuam a supremacia masculina (TAVARES, 2020).

Fonte: Volkan Olmez/Unsplash

Quando seu corpo é invadido, sua alma é roubada

É fundamental romper com paradigmas culturais que dificultam a identificação do estupro conjugal, a fim de que esse crime seja denunciado de forma efetiva pela vítima e para que a sociedade compreenda que o marido pode ser o agressor nessa situação (JUNIOR et al., 2019). Em suma, o discurso patriarcal que impõe a obrigação da mulher de fazer sexo com um homem tem um impacto significativo na sociedade, perpetuando desigualdades de gênero e violação dos direitos sexuais das mulheres, é fundamental desafiar e desmantelar essas ideias.

 

REFERÊNCIAS:

BOTELHO, Nara Vitoria Dias; DE REZENDE, Ricardo Ferreira. ESTUPRO MARITAL: VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE SEXUAL DA MULHER DENTRO DO CASAMENTO. Facit Business and Technology Journal, v. 3, n. 40, 2023. Disponível em: <https://jnt1.websiteseguro.com/index.php/JNT/article/view/2035> Acesso em 03, de junho, 2023.

CARNUT, Leonardo; FAQUIM, Juliana Pereira Silva. Conceitos de família e a tipologia familiar: aspectos teóricos para o trabalho da equipe de saúde bucal na estratégia de saúde da família. JMPHC| Journal of Management & Primary Health Care| ISSN 2179-6750, v. 5, n. 1, p. 62-70, 2014. Disponível em: <https://jmphc.com.br/jmphc/article/view/198> Acesso em, 03, de junho, 2023.

JUNIOR, Jacintho Jairo Granado Santos et al. Estupro Marital: A violação da dignidade sexual da mulher no casamento. FIBRA Lex, n. 6, 2019. Disponível em: <https://fibrapara.edu.br/periodicos/index.php/fibralex/article/view/116> Acesso em 05, de junho, 2023.

ROSA, Luana Mesquita da. A configuração do crime de estupro marital nas violências sexuais em relações conjugais. Direito-Araranguá, 2019. Disponível em: <https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/7599> Acesso em 03, de junho, 2023.

SANTANA, Annanda Elen Silva. Estupro marital? A mulher, as relações conjugais e o direito ao corpo. 2022. Disponível em: <https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/23584> Acesso em 03, de junho, 2023.

SERQUEIRA, Dielly Silva et al. ESTUPRO MARITAL: Uma violência ainda sem tipificação no Código Penal. In: Anais Colóquio Estadual de Pesquisa Multidisciplinar (ISSN-2527-2500) & Congresso Nacional de Pesquisa Multidisciplinar. 2022. Disponível em <http://publicacoes.unifimes.edu.br/index.php/coloquio/article/view/1653> Acesso em 05, de junho

TAVARES, Rosane Gomes. Estupro marital: a violência que se oculta no amor. Brasília. 2020.  Disponível em: <https://repositorio.uniceub.br/jspui/handle/prefix/14137> Acesso em 05, de junho, 2023.