13 Reasons Why: sob a ótica da Psicologia Moral

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O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.
Martin Luther King

A série “13 Reasons Why” produto da Netflix, chegou recentemente ao Brasil e tem sido foco de muitas opiniões controversas. Trata-se da história de Hannah Backer, adolescente norte-americana, que comete suicídio após sofrer uma série de intimidações na escola que passa a frequentar, após sua família mudar de cidade em função dos negócios do pai.

Ao se matar, deixa com Tony, colega de escola, um conjunto de 13 (treze) fitas-cassete, cada uma dedicada a um dos responsáveis, segundo ela, pela sua decisão de se matar. O que representa essa atitude de Hannah? Crueldade? Morbidez? O que ela realmente está querendo dizer? Vingança, simplesmente? Chamar a atenção, como acreditam alguns dos envolvidos?

Fonte: http://zip.net/bctJhq

Quando não me sinto pertencente

Antes de tentar responder a todos esses questionamentos, vamos analisar aqui o que a história de Hannah nos conta. Em primeiro lugar, fala das dificuldades que muitos adolescentes encontram de pertencer em suas escolas – sejam eles novatos ou não. Por pertencer, queremos dizer ser aceitos e respeitados em suas particularidades, em suas diferenças e se sentirem valor em seu espaço de convivência, a escola.

Fonte: http://zip.net/bbtJfP

Em paralelo à história da protagonista, correm as de Jessica e Alex, novatos como ela, que se submetem – mesmo em desacordo, na maioria das vezes – aos populares da escola e por isso acabam se afastando de Hannah e a de Courtney, a garota com fama de boazinha, reprimida na expressão de sua opção sexual, entre outras razões, por ser filha de um casal homossexual. Ainda há a história de Clay, o amigo mais próximo da protagonista, o espectador, que já havia vivido os seus dias de alvo anteriormente.

O Bullying e Cyberbullying

O segundo ponto abordado pelo seriado é sem dúvida o Bullying/Cyberbullying, contato da perspectiva de quem o sofre, o alvo. Seu sofrimento relatado nas treze fitas provoca diferentes repercussões em quem o pratica – os autores – bem como em quem assiste, os espectadores. Evidencia aqui que, numa situação de bullying, todos sofrem – alvos, autores e espectadores.

Além disso, chama a atenção para dois outros pontos presentes sempre que situações de intimidação sistemática acontecem: o fato de ocorrer longe dos olhos das autoridades e a importância do olhar atento aos sinais de quem educam – a família e a escola.

Assim, o seriado define claramente o que entendemos por bullying, as características dos personagens envolvidos em tal fenômeno, bem como a sua inter-relação. Comecemos pela definição, e aqui optaremos pela de Dan Olweus, da Universidade de Bergem (Noruega), por ter sido ele o primeiro pesquisador a chegar a uma definição precisa deste tipo de violência, diferenciando-a das brincadeiras comuns entre pares e incidentes pessoais.

Diz o autor que um aluno torna-se alvo de bullying quando sofre ações agressivas, repetidas e intencionais ao longo do tempo, praticada por um ou mais alunos, causando um sofrimento constante, caracterizado por angústia e dor. Aponta ainda para a existência de uma relação desigual de poder, já que “[…] o (a) aluno (a) exposto (a) às ações negativas tem dificuldades para defender-se” (OLWEUS, 1993, p.139).

Fonte: http://zip.net/bptJ2H

Certamente identificamos Hannah (Alex, Jessica, Courtney, Clay e tantos outros da ficção ou reais) nesta definição, não? A tais características somam-se a presença das testemunhas, notórias na ficção aqui descrita, e o fato de que essa violência ocorre entre pares, ou seja, neste caso, entre alunos.

Passemos agora aos personagens envolvidos em uma situação de bullying e aqui, Hannah será nosso foco inicial. Começaremos então a falar do alvo de bullying, que caracterizado como frágil, se vê com tão pouco valor, a ponto de acreditar que mereça ser provocado, diminuído, não tendo força para reagir (TOGNETTA, 2013). Fala-se ainda de indefensibilidade própria e pessoal (AVILES, 2006) na medida em que não dispõe de ferramentas psicológicas de defesa para afrontar o maltrato.

No episódio 6, uma reflexão de Hannah traduz o que foi dito anteriormente: “Não pude me mover, não pude levantar ou ir embora ou gritar. Qualquer coisa teria sido melhor que sentar lá, pensando que de algum modo tinha sido minha culpa. Pensando que ficaria sozinha para sempre.” O alvo  nem sempre é tímido, calado e sensível e acaba reagindo de forma a irritar ou a provocar ainda mais os seus algozes, caracterizando um perfil que vem sendo denominado de vítima provocadora (TOGNETTA, 2013; AVILES, 2013).

Seria Hannah uma vítima provocadora? Acreditamos que não era o seu perfil. Ela era uma garota frágil, que foi aceitando todas as provocações que foram lhe sendo feitas, como se não se importasse com elas – e como se as merecesse – muito mais por não saber o que fazer e ver fracassar todos os seus pedidos de socorro, vendo no suicídio a única saída para o seu sofrimento.

Fonte: http://zip.net/brtJmQ

O que ela faz ao gravar as fitas além de buscar responsabilizar cada um dos envolvidos em sua história, é uma tentativa de sensibilizá-los com a sua dor, para que talvez eles mesmos pudessem enfrentar as suas próprias, já que todos, de uma forma ou de outra também as tinham e buscavam, na intimidação, uma forma de lidar consigo mesmos.

Falemos então do autor – ou dos autores – de bullying. No seriado, representado por Alex, Jessica, Justin e principalmente por Bryce.  Unidos na intimidação que fazem a Hannah, a protagonista, muitos deles já foram alvos de violência daqueles com os quais se associaram, como forma de se protegerem de suas próprias fragilidades e da exposição delas pelos demais.

Assim, a caracterização dos autores de bullying apontados pelas pesquisas (TOGNETTA, 2010; TOGNETTA & VINHA, 2013; TOGNETTA & ROSÁRIO, 2012) fica claramente retratada no seriado, ou seja, o autor de bullying tem uma hierarquia de valor invertida, prevalecendo os valores individuais (valentia, intimidação, etc.) sobre os morais (humildade, justiça, etc.). Além disso, carecem de sensibilidade moral, ou seja, a capacidade de se sensibilizar com a dor do outro.

Certamente, o próprio funcionamento do “High School” americano favoreceria  a prevalência dos valores não morais – força, beleza, rendimento esportivo… Clay, um dos expectadores, no episódio 13 (treze) aponta: “Acho que em nossa sociedade os valores estão invertidos”, quando Bryce é ovacionado ao chegar a escola, após seu desempenho em uma partida e todos sabiam o quanto ele era responsável pelas intimidações e outras formas de violência que ocorreram na escola.

Para completar a tríade envolvida nas situações de bullying, não podíamos deixar de falar dos expectadores, representados aqui por Clay, mas também pelos demais personagens envolvidos na trama quando não estavam à frente das intimidações. Como se viu no último episódio, nenhum dos envolvidos estava indiferente ao que acontecia com Hannah, ou seja, todos haviam presenciado – e executado – algum tipo de constrangimento sofrido pela protagonista.

A teoria mostra que grande parte dos que contemplam seus colegas sendo maltratados acredita que o que está acontecendo não lhes diz respeito, que é um assunto entre o autor e o alvo, e que eles devem resolvê-lo. Estes são os chamados espectadores indiferentes (AVILÉS, 2013). Entretanto, muitos deles acreditam que deveriam fazer algo, mas não o fazem porque não sabem exatamente como ajudar, ou ainda temem ser os próximos alvos – aqui podemos encaixar principalmente Clay, que ao longo dos 13 (treze) episódios vai tomando consciência de que a máxima “Não fazer nada já é fazer alguma coisa” se aplica a situações de bullying.

Fonte: http://zip.net/bvtJPj

Salmivalli et al (1996) realizaram estudos em que nomearam os espectadores de acordo com o seu posicionamento na situação de bullying que presenciam. Desta forma, nomeou-se assistentes e reforçadores aqueles que se juntam aos autores (idealizadores dos maus tratos) e fornecem um feedback positivo para as intimidações (por exemplo, rindo, aplaudindo, ou apenas dando audiência) – no seriado, todos os demais autores quando não estavam envolvidos diretamente na agressão.

Podem ser também espectadores propriamente ditos, os que ficam afastados das situações de bullying, como no caso da participação de Clay, na maioria das situações. Finalmente, os defensores, aqueles que tomam partido das vítimas, consolando e apoiando-as.

O papel da educação – a família

Além de caracterizar a situação de bullying, o seriado traz pelo menos mais um ponto extremamente importante de reflexão: o papel daqueles responsáveis pela educação, nas figuras da família de cada um dos envolvidos e da escola, representados pelos professores, o diretor e mais especificamente, o orientador.

Comecemos pelo papel da família e depois da escola, ambas envolvidas e complementares na tarefa de educar. É sabido que a família tem papel importante no fortalecimento de meninos e meninas para não serem vítimas e/ou agressores de bullying. Para tanto, a educação que recebem deve direcionar crianças e jovens a admirar valores morais tão desejáveis como o respeito, a tolerância e a justiça e não o poder sobre o outro, ou a não aceitação da diferença.

Fonte: http://zip.net/bftJjP

Além disso, é primordial que a relação dentro da família seja pautada na confiança e desenvolvida através do diálogo. Agrega-se a esses fatores o olhar atento dos pais às mudanças de comportamento de seus filhos, tais como isolamento, irritação, agressividade, resistência a ir à escola, poucos amigos, entre outros.

No desenrolar dos episódios é possível observar diferentes estilos de educação parental, do negligente – notadamente a família de Bryce, sempre viajando, completamente ausente da vida do filho; passando pelo permissivo – em que o afeto é valorizado, mas pouquíssimas regras são colocadas (aqui podemos pensar em Courtney e porque não em Hannah e Clay); alguns exemplos do estilo mais autoritário, como Alex e Jessica e finalmente, a busca por uma modelo autoritativo, [1]especialmente pelos pais de Clay que vão alterando a forma de relacionamento com o filho. Contudo, seria a família a única responsável por essa formação do sujeito?

O papel da educação – a escola

A resposta à pergunta anterior de que a família seria a única responsável pela formação humana de crianças e jovens ainda parece ecoar em nossos ouvidos – não é possível mais acreditar que seja verdadeira essa resposta. Savater (2005), filósofo espanhol contemporâneo, afirma que a família e a escola têm papéis complementares na formação do indivíduo, ressaltando ainda que se houver falha na primeira – no âmbito da família – não significa que a segunda – de responsabilidade da escola – não terá êxito.

Passemos então a tratar da escola: o que cabe a ela? Além dos conteúdos das diferentes disciplinas descritas no currículo da escola, à essa instituição de educação cabe também o cuidado com as relações interpessoais, para além das campanhas puramente informativas.

Fonte: http://zip.net/bbtJfS

Na série, o posicionamento da escola, em relação à formação mais global dos alunos, acontecia sempre após um incidente em que esses estivessem envolvidos. Foi assim após a morte de Jeff, que a escola avaliou ser por embriaguez e no dia seguinte espalhou cartazes orientando a não beber e dirigir e após a morte de Hannah, quando a escola ateve-se à questão do suicídio, orientando, novamente através de cartazes, os jovens a procurar ajuda, além de promover uma palestra aos pais sobre o tema.

Nessa, quando o tema bullying é levantado por alguns dos presentes, ele é negado pelo diretor, até que a mãe de Hannah Baker entra na reunião e evidencia um problema até então não visto pela escola: o desrespeito que permeava a relação entre os alunos da instituição, pelos registros ofensivos nas paredes do banheiro.

Certamente, a escola é um espaço público, é a instituição em que o indivíduo irá aprender a viver em sociedade, o que possibilitará ao sujeito “o reconhecimento do outro e a busca por coordenar perspectivas distintas, administrar conflitos de uma maneira dialógica e justa, estabelecer relações e perceber a necessidade das regras para se viver bem” (VINHA & TOGNETTA, 2013, p. 4).

Fonte: http://zip.net/bltHSy

As cenas marcadas pelo desrespeito que foram o foco da trama revelaram que as relações entre os alunos eram pautadas no individualismo e na competitividade. O outro, que não fosse considerado amigo, era visto, na melhor das hipóteses, com indiferença e, na pior delas, com inimigo e por isso passível de ofensas, intimidações e outras tantas formas de desrespeito. A forma com a escola lidava com os conflitos interpessoais só reforçava esse panorama.

Indubitavelmente já sabemos muito a esse respeito: a perspectiva construtivista, que tem em Piaget uma das suas mais fortes referências teóricas, considera os conflitos interpessoais como uma possibilidade de aprendizagem e fundamentais para o trabalho com valores e regras. Assim, as intervenções pautadas no diálogo têm como finalidade maior, auxiliar os envolvidos a reconhecer os pontos de vista dos outros e a resolver seus problemas de forma mais assertiva (YOON et al., 2011).

Ao falarmos tomamos consciência de nossos atos e os elaboramos. Aquilo que vira palavra é passível de intervenção, de mudança. Nada disso ocorria na escola de Hannah. Os alunos não eram ouvidos – e quando o eram, de forma superficial – e os conflitos resolvidos de forma punitiva, sem reflexão. É evidente que em um contexto em que falta a intervenção ou o olhar cuidadoso daqueles que educam a intensidade das agressões tende a aumentar (YOON et al., 2011).

Fonte: http://zip.net/bbtJfX

Numa escola em que a convivência ética fosse um valor (COWIE, 2005), certamente o sofrimento de Hannah não passaria despercebido, fosse ele produto das relações estabelecidas, fosse ele fruto de um estado depressivo, ou uma combinação dos dois. Sabemos que o suicídio destacado na série evidencia também uma espécie de eufemismo moderno que torna o suicida, um herói. Desvencilhar –se  dessa ideia seria então possível no mundo adolescente de hoje?

É possível quando se tem um clima de “pertencimento” na família e na escola cujos espaços de diálogo assegurem a certeza de que o jovem que tanto deseja ser valor, realmente o seja podendo dizer o que pensa, tendo espaços para expressar o que sente. Isso posto, há evidências deste feito na literatura: quando os relatos são desacreditados ou minimizados pelos adultos que não intervêm, há um  aumento da sensação de desamparo nas vítimas (CRAIG et al., 2011).

Em resposta às primeiras perguntas

O que representa essa atitude de Hannah? Crueldade? Morbidez? O que ela realmente está querendo dizer? Vingança, simplesmente? Chamar a atenção, como acreditam alguns dos envolvidos?

As respostas a esse conjunto de perguntas devem ter sido percebidas pelo leitor ao longo do texto quando caracterizamos os pontos envolvidos na trama pós-moderna que confunde pais e professores se devem ou não permitir que seus filhos ou alunos a assistam.

Em outras palavras: a série gera uma crise. E a cada crise, um desequilíbrio cuja volta ao equilíbrio é um desejo. Equilibrar-se novamente, nesse sentido, é fazer valer a ideia de que os alertas estão dados; resta-nos a esperança de que pais e professores possam, pelo estudo e pelo diálogo, se inteirar sobre as novas perspectivas que existem. E a questão da convivência e como fazer com que ela seja ética na escola e fora dela, de uma vez por todas, ser repensada também em nossos cursos de licenciaturas.

Fonte: http://zip.net/bttJ4b

 

REFERÊNCIAS:

AVILÉS, J. M. (2013) Bullying: Guia para educadores. Campinas (SP): Mercado das Letras.

COWIE, H. “El problema de la violencia escolar: trabajando las relaciones”. In: Sanmartín, J. (Coord.) Violencia y escuela.. Valencia: Centro Reina Sofía para el estudio de la violencia. pp. 183-187, 2005.

CRAIG, K., BELL, D., & LESCHIED, A. (2011). Pre-service teachers’ knowledge and attitudes regarding school-based bullying. Canadian Journal of Education, 34(2), 21-33.

OLWEUS, D. Bullying at school: what we know and what we can do. Blackwell: Oxford, 1993.

SAVATER, F. O valor de educar. São Paulo: Planeta do Brasil, 2005.

TOGNETTA, L. R. P. (2010) Bullying e intervenção no Brasil: um problema ainda sem solução  In: Actas do 8º. Congresso Nacional de Psicologia da Saúde: Saúde, Sexualidade e gênero. ISPA – Instituto Universitário. Lisboa, Portugal. Anais eletrônicos. ISBN 978-972-8400-97-2

TOGNETTA, L.R.P.; VINHA, T. Reconhecimento de situações de bullying por gestores brasileiros e as intervenções proporcionadas. In: LINARES, J. J. G. et al. Investigación en el ámbito escolar: un acercamiento multidimensional a las variables psicológicas y educacionales. Almeria/Espanha: Editorial GEU, p. 227-232, 2013.

TOGNETTA, L.R.P.; ROSÁRIO, P. Bullying: dimensões psicológicas no desenvolvimento moral. Revista Estudos em Avaliação Educacional, 24(56), 106-137, 2013.

YOON, J., BAUMAN, S., CHOI, T., & HUTCHINSON, A. S. (2011). How South Korean teachers handle an incident of school bullying. School Psychology International, 32(3), 312-329. doi: 10.1177/0143034311402311

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Os 13 Porquês (13 Reasons Why): o passo atrás

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(Este texto traz spoilers da série)

A adolescência não detém o monopólio sobre a angústia, mas é certamente dona da maior parte do estoque. É um período que combina opostos de tal maneira que às vezes chega a soar como uma pegadinha maldosa e sádica da Evolução: ao mesmo tempo em que a sexualidade aflora, o corpo se altera radicalmente, trazendo insegurança e vergonha; ao lado da necessidade de aceitação vem, provocado pela imaturidade, o receio constante do embaraço; simultaneamente à descoberta dos próprios interesses vem a obrigação de definir o caminho profissional a seguir pelo resto da vida; e, claro, junto ao primeiro amor vem o primeiro coração partido e a constatação de que ainda não temos todas as ferramentas para lidar com estes. (Algo que, infelizmente, seguirá faltando a uma parcela considerável de adultos.)

13 Reasons Why, série produzida pela Netflix a partir de um livro do norte-americano Jay Asher, sem dúvida alguma compreende isto: acompanhando os estudantes de um colégio secundário, o projeto é estruturado em torno de sete fitas cassete deixadas pela jovem Hannah Baker (Langford), que, divididas em 14 lados (o último encontra-se em branco), trazem a voz da garota explicando os motivos que a levaram a se matar, atribuindo responsabilidades a vários de seus colegas – todos recebendo as gravações completas em um momento ou outro e, portanto, tornando-se conscientes não só do que fizeram, mas também das ações dos demais. Aliás, é ao lado do mais recente destinatário das fitas, Clay Jensen (Minnette), que somos conduzidos pela narração de Hannah à medida que o rapaz, apaixonado pela amiga, revive suas experiências e descobre as feridas emocionais e psicológicas de Hannah.

Fonte: http://zip.net/bgtHx9

Com isso, 13 Reasons aborda questões como bullying, assédio sexual e solidão (além de diversos outros; discutirei isto mais adiante) – temas inquestionavelmente relevantes e sérios que devem ser debatidos franca e frequentemente em uma sociedade na qual o suicídio entre adolescentes atinge números assustadores. Infelizmente, na maior parte do tempo a série esconde-se atrás da importância destes tópicos para justificar uma dramaturgia pobre, maniqueísta e irresponsável, apresentando-se como um Malhação com melhor acabamento.

Mas o pior é perceber como a série assume um caráter perigoso ao alimentar uma fantasia adolescente tragicamente comum: a do suicídio como forma de vingança, como recurso para “punir” aqueles que nos injustiçaram (como já descrevia Karl Menninger em 1933). Através de suas fitas, Hannah torna-se, em essência, a protagonista da vida de todos nelas mencionados, transformando-se no foco absoluto de suas conversas e pensamentos – e, considerando o público-alvo do livro e da série, comprovadamente mais susceptível ao efeito Werther (suicídios cometidos sob inspiração de exemplos famosos), a irresponsabilidade dos realizadores torna-se ainda mais reprovável.

Pois o que muitos dos espectadores mais jovens terão dificuldade de perceber é que por trás da “justiça” de Hannah há uma pesada manipulação narrativa: os propósitos da garota são alcançados porque o roteiro precisa que sejam. Além disso, como as “razões” enumeradas vão se acumulando ao longo dos episódios, este empilhamento de cicatrizes acaba por ocultar as feridas reais, misturando arranhados e cortes profundos sem qualquer cuidado e igualando ações que nada têm de similares (e, assim, a publicação não-autorizada de um poema escrito pela moça – sem identificá-la – é empurrada para uma lista que inclui estupro e stalking, por mais que pontualmente algum personagem tente apontar a discrepância).

Como se não bastasse, como o espectador sabe que o que Hannah descreveu é basicamente verídico, a série não deixa espaço para a interpretação e a subjetividade – e a afirmação da veracidade nem seria necessária, já que o que deveria importar é que para Hannah os incidentes e as dores eram reais. Ora, uma obra que se propõe a discutir um tema tão complexo deveria ser mais honesta ao fazê-lo, abordando o debate sem simplificações dramáticas e, principalmente, sem o cinismo de aqui e ali questionar pontos menores (Zach, afinal, não jogou o bilhete fora) enquanto reafirma a verdade objetiva de todos os maiores.

Fonte: http://zip.net/bhtHHp

E, vale repetir, 13 Reasons não precisava deste maniqueísmo: a depressão e o suicídio são problemas complexos exatamente por envolverem a subjetividade do paciente/vítima – assim como são reais os traumas que o autoextermínio provoca em quem ficou para trás e que não têm necessariamente a ver com “responsabilidade” (embora responsabilizar-se seja parte da natureza humana), mas com empatia pela dor alheia e com o sofrimento da perda de alguém amado ou a pura constatação do desperdício representado por uma morte precoce.

Aliás, a obsessão da série por “culpa” é igualmente problemática. Tomemos, como exemplo, o sr. Porter (Luke), responsável pelo aconselhamento psicológico oferecido aos alunos do colégio: incluído na lista de Hannah por não conseguir restaurar nesta o ímpeto de viver (e por não tê-la seguido quando deixou a sala), ele obviamente faz o possível para extrair da moça as informações necessárias para ajudá-la, acreditando em seu relato e oferecendo-se para apoiá-la caso resolvesse denunciar o estupro cometido por Bryce (Prentice) – e o potencial destrutivo da fita acarreta, no mínimo, em chances consideráveis de que o sujeito seja prejudicado injustamente. E o que dizer de Sheri (Alexus), citada nas fitas por ter derrubado uma placa de “Pare” e se recusado a informar à polícia imediatamente? Sim, é uma atitude irresponsável, mas como isto poderia ser visto como uma das razões para o suicídio de Hannah? Culpa pela morte de Jess (Larracuente)? Como, se Sheri não a impediu de relatar o ocorrido (algo que Hannah fez logo em seguida)?

E não há sequer como sugerir que os realizadores não culpam figuras como o Sr. Porter e Sheri, já que, além de Hannah, o protagonista da série, Clay, claramente o faz. (E que tal discutirmos como a produção encarrega um homem de defender os interesses da jovem suicida, incorrendo no velho roubo de protagonismo mesmo se passando por uma narrativa “inclusiva”?)

Fonte: http://zip.net/bmtHrl

Por falar em Clay, é preciso reconhecer como  Dylan Minnette, um ator talentoso e carismático, quase nos faz ignorar como está vivendo o que é fundamentalmente um fantoche narrativo, agindo de maneira errática apenas para atender às necessidades dos roteiristas – e por mais que a série tente justificar a demora do rapaz para ouvir as fitas, há um ponto a partir do qual se torna ridículo vê-lo atirar os fones de ouvido para o lado e repetir que não consegue mais prosseguir na tarefa, não tendo sequer o impulso de buscar a fita na qual é mencionado. Ainda mais ridículo, porém, é perceber como ele começa a se vingar dos demais citados sem sequer chegar ao fim do relato – por mais que seja alertado de que sua percepção será alterada depois que descobrir o que Hannah disse a seu respeito.

O que nos traz à desonestidade dos responsáveis pela série, que criam um falso pretexto para prender a atenção do espectador: a presença do protagonista nas fitas. O que Clay teria feito para merecer figurar na lista? Por que Tony (Navarro) afirma tão categoricamente que o jovem levou Hannah a se matar quando sabe que esta diz que Clay não merecia estar na lista? (Para obrigá-lo a ouvir o resto? Por favor.) E como o rapaz pode declarar “tudo é culpa minha!” ao descobrir que está nas gravações por sua gentileza ou, no máximo, por não ter insistido em permanecer no quarto depois que Hannah o expulsou várias vezes aos gritos? Não, a verdade é que 13 Reasons não tem coragem de pintar seu personagem principal com cores sombrias (e, sim, Clay é o protagonista da série, não Hannah), mas não hesita em sugerir falsamente para o público que ele talvez tenha um lado desconhecido apenas para manter nosso interesse na narrativa até estarmos praticamente no último episódio.

E prefiro nem discutir como Tony, depois de insistir para que Clay escute as fitas, chegando a levá-lo para uma escalada – um dos momentos mais ridículos da narrativa -, passa a adiar o instante no qual o amigo ouvirá o que foi dito ao seu respeito, afirmando que ele precisa estar num “espaço mental” adequado, o que envolve jantar e, então, levá-lo para um despenhadeiro (querem lugar melhor para alguém que possivelmente descobrirá algo traumático?).

Fonte: http://zip.net/bgtHx9

Já de um ponto de vista puramente de linguagem audiovisual, 13 Reasons oscila entre o óbvio e o equivocado: por um lado, as mudanças na temperatura da cor, saltando dos flashbacks quentes às cenas frias do presente, são um lugar-comum, mas até compreensíveis; por outro, os efeitos sonoros de “shuuuuush”, inspirados em Lost e que marcam as mudanças no tempo da narrativa, já se tornaram clichê… bom, em Lost. E se a ideia de manter um ferimento/curativo na testa de Clay para separar as épocas é eficaz, isto é sabotado pela distração provocada por uma maquiagem no mínimo pedestre.

Além disso, a série ignora a evolução de linguagem trazida pelo binge-watching (e pela qual a plataforma que a exibe, a Netflix, é co-responsável) ao ocasionalmente mencionar, no primeiro ato de certos episódios, incidentes ocorridos no desfecho dos anteriores, o que soa como pura encheção de linguiça (afinal, como converter 255 páginas do livro em 13 horas de material?). Para completar, o recurso de trazer Clay “enxergando” incidentes passados ou “escutando” acusações a seu respeito acabam funcionando menos como maneira de introduzir flashbacks e mais como sintomas de uma doença psiquiátrica, já que os roteiristas parecem confundir ato falho auditivo com alucinação provocada por algo que só posso identificar como esquizofrenia (não, não estou brincando; em certo momento, cheguei mesmo a achar que a série revelaria que Clay tinha a doença, já que não podia acreditar que todas aquelas transições fossem apenas firula dramatúrgica).

Mas talvez eu não devesse ter duvidado da preguiça dos roteiristas (contem quantas vezes os personagens dizem “Seriously?!” ao longo da temporada), já que não conseguem sequer manter uma consistência mínima da trama em apenas treze episódios: em certo instante, por exemplo, Hannah diz que ninguém jamais percebeu que as garotas da foto eram Courtney (Ang) e ela, mas, momentos depois, ao menos duas pessoas as abordam afirmando tê-las reconhecido; já em outro episódio, a moça diz que você não pode mudar as outras pessoas, “mas pode mudar a si mesmo”, contradizendo-se minutos depois ao afirmar que “ninguém muda de fato”.

Fonte: http://zip.net/bmtHrl

Além disso, é ridículo que a série sugira que cabe a Clay, movido por Hannah, trazer paz para os pais de Jeff ao revelar que ele não estava bêbado durante o acidente, já que identificar o nível alcoólico do rapaz seria uma das primeiras preocupações de qualquer médico-legista. E como aceitar a estupidez de praticamente todos os adultos retratados em 13 Reasons, que se mostram incapazes de perceber até mesmo o subtexto – nada sutil – de uma conversa mantida à sua frente (como na cena em que Tony e Clay trocam provocações diante do pai deste último)? Para finalizar, nenhum pai minimamente responsável ouviria o filho abordar questões como abuso sexual e agressão sem insistir até ouvir a história completa – especialmente uma mãe tão controladora quanto a de Clay (Hargreaves), que, no entanto, apenas observa o filho se afastar sob a justificativa de “Mãe, preciso ir agora; depois te conto” segundos depois de sugerir estar a par de um crime.

A verdade, porém, é que a série se mostra mais preocupada em manter o espectador interessado do que em discutir com honestidade as questões que apresenta. Não é acaso, portanto, que constantemente assuma artificialmente a estrutura de thriller para gerar um suspense desonesto – como, por exemplo, ao revelar que alguém levou um tiro no final do penúltimo episódio depois de estabelecer que ao menos três personagens estavam armados, sacrificando as revelações feitas sobre o estupro de Hannah ao tentar levar o público a ficar curioso acerca da identidade não só de quem atirou, mas também de quem foi alvejado. Aliás, 13 Reasons não é, em sua essência, o drama que finge ser, mas sim um whodunit que promete, desde o princípio, revelações surpreendentes ao longo do caminho – e isto não seria tão reprovável caso estas revelações não comprometessem qualquer tentativa de debate sobre depressão e suicídio.

E é justamente isso que os roteiristas fazem ao identificar um Vilão (sim, com “V” maiúsculo) responsável pelo Ato que realmente destrói Hannah – um vilão tão estúpido e caricatural que cai até mesmo no velho clichê de confessar tudo para o mocinho enquanto é gravado secretamente. Para piorar, o que Bryce faz é tão repugnante que todos os outros elementos presentes na lista de Hannah empalidecem completamente: afinal, como aceitar que Ryan (Dorfman), Sheri, Courtney e Alex (Heizer) sejam sequer comparados, direta ou indiretamente, a um estuprador serial? E como Hannah encontra coragem para incluir Jessica, igualmente vítima de estupro, apenas por um desentendimento acerca de Alex? (Além disso, permitam-me um breve segundo para apontar como a garota encontra tempo para gravar seis fitas e meia, mas não para deixar cinco linhas para os pais – os únicos personagens retratados com algum grau de complexidade ao longo dos episódios.)

Fonte: http://zip.net/bhtHHp

Para encerrar, é impossível deixar de observar o surpreendente moralismo de 13 Reasons, que basicamente pune Jessica (Boe, uma das melhores revelações do projeto) por ser sexualmente ativa, levando-a ao alcoolismo e a ser vítima de um estupro, ao mesmo tempo em que traz Hannah comentando acerca do próprio estupro: “Graças a você, (Bryce), fiz jus à minha reputação” – uma referência incrivelmente machista ao fato de ser chamada de “fácil” na escola. Sim, é admirável que a série mostre Hannah se sentindo ofendida ao ser listada como “melhor traseiro” do colégio em vez de sugerir que ela deveria se magoar apenas se fosse objetificada negativamente, mas para cada acerto como este há outros tropeços como o fato de a série trazer vários personagens gays, mas um único beijo entre duas pessoas do mesmo sexo: duas garotas, claro, já que beijo entre mulheres é encarado como algo sensual, não “repulsivo” como aquele entre dois homens. Ou seja: retratar estupro e suicídio graficamente é algo aceitável, mas trazer dois rapazes se beijando, não.

O curioso é que, em sua superfície, 13 Reasons toma iniciativas corretas: escala um elenco diversificado e inclusivo, traz personagens com diferentes orientações sexuais e inclui alertas de “gatilho” no início dos episódios mais pesados. Contudo, basta mergulharmos um pouco em sua execução e as iniciativas se encolhem diante das abordagens desastrosas com que são desenvolvidas. Como se não bastasse, há o puro excesso da trama, digna de algo como Barrados no Baile: ao longo dos treze episódios, testemunhamos bullying, dois estupros, misoginia, alcoolismo, abuso doméstico, uso de drogas e negligência parental – além, obviamente, do suicídio de Hannah e das consequências das fitas, que envolvem ao menos mais três tentativas de suicídio (Justin, Clay e Alex). Ah, sim: também testemunhamos a história de origem de um destes adolescentes que certo dia invadem a escola e metralham colegas e professores (estou falando, claro, de Tyler e seu baú de armas).

Aqui o problema é bem simples: uma série que quer falar sobre tudo acaba não conseguindo falar direito sobre nada.

Fonte: http://zip.net/bltG2P

Até entendo que alguns prefiram interpretar que 13 Reasons não é uma série sobre um suicídio, mas sim sobre a necessidade de tratarmos melhor uns aos outros; infelizmente, do título à trama, passando pelo desenvolvimento dos personagens, esta é uma interpretação difícil de sustentar. Afinal, uma coisa é apontar como frequentemente deixamos de prestar atenção ao sofrimento alheio; outra é responsabilizar todos que deixam de fazê-lo pelo suicídio de alguém (e digo isso como alguém que tem relativa experiência tanto com a depressão quanto com o impulso suicida).

Meu receio, porém, é que aqueles que extrairão da série a “mensagem” de que devem se solidarizar com os que os cercam já o fariam por si mesmos, sem a necessidade de uma lembrança em forma de capítulos; por outro lado, há um risco infinitamente maior de que aqueles que se encontram emocional e psicologicamente vulneráveis acabem vendo, na tela, um modelo perigosamente fácil de emular.

Seriously.

Observação: se me permitem indicar algumas obras que tratam de forma consideravelmente mais sensível e responsável as questões abordadas em 13 Reasons, sugiro Para Sempre na Memória, Depois de Lúcia, o documentário Bullying, Atração Mortal, As Virgens Suicidas e As Vantagens de Ser Invisível.

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