Psicologia Analítica – Anima, Animus e a Coniunctio Alquímica

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Para falar de Animus e Anima é importante demonstrar que o conceito denominado hoje de masculino e feminino é algo relacionado ao longo dos milênios. Sua relação nos primórdios são com associações às Deusas e Deuses, bem como tantas figuras, masculinas e femininas, formando assim modelos, nos quais Jung denominou “arquétipos”, que podem se manifestar de diversas formas (SANFORD, 1987).

O conceito de “archetypus” só se aplica indiretamente às représentations collectives, na medida em que designar apenas aqueles conteúdos psíquicos que ainda não foram submetidos a qualquer elaboração consciente […] o arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta (JUNG, 2002, p.17).

O Animus e a Anima podem então ser manifestados através de diversas imagens arquetípicas. Jung, E. (2006, p.15) nos traz que:

Estas duas figuras uma é masculina, a outra feminina – foram denominadas de Animus e Anima por [Carl Gustav] Jung. Ele entende aí um complexo funcional que se comporta de forma compensatória em relação à personalidade externa, de certo modo uma personalidade interna que apresenta aquelas propriedades que faltam à personalidade externa, consciente e manifesta.

Há uma grande complexidade no entendimento dos conceitos de Animus e Anima, é preciso entender a forma que Jung nos mostra, porém, este tema não foi um conceito final, visto que muitas questões foram pontuadas desde os primórdios da Psicologia Analítica até aqui.

Embora este assunto possa ter parecido calmo e resolvido ao tempo de Jung, ele provoca hoje mais agitação do que em ninho de maribondo. A alguns contemporâneos parece que Jung foi um homem adiante do seu tempo, que previu e, com efeito, advogou um tipo de protofeminismo. Para outros, ele apresenta-se como um porta-vos de pontos de vista tradicionais estereotipados sobre as diferenças entre homens e mulheres. De fato, penso que ele foi um pouco de ambas as coisas (STEIN, 2006, p.116).

Fonte: encurtador.com.br/gFMVX

Mesmo Jung tendo descrito muito sobre esse assunto da Anima e do Animus, não há uma afirmação definitiva, sendo que de tempos em tempos ele apresentava sempre novas definições que complementavam aspectos diferentes dessas realidades, porém reafirma que a Anima é a personificação do elemento feminino na psique masculina enquanto que o Animus é a personificação do elemento masculino na psique feminina. Como todos os arquétipos, a Anima e o Animus tem formas de se manifestar, sendo positivas e negativas, podendo ser atraentes ou destruidores sendo comparados aos deuses e deusas que poderiam agir em prol da humanidade ou voltar-se contra ela (SANFORD, 1987).

A usual definição sintética diz que a anima é o feminino interno para um homem e o animus o masculino interno para uma mulher. Mas também se pode falar simplesmente delas como estruturas funcionais que servem um propósito específico na relação com o ego. Como estrutura psíquica, anima/us é o instrumento pelo qual homens e mulheres penetram nas partes mais profundas de suas naturezas psicológicas e se adaptam a elas. Assim como a persona está voltada para o mundo social e colabora com as necessárias adaptações externas, também a anima/us está voltada para o mundo interior da psique e ajuda uma pessoa a adaptar-se às exigências e necessidades dos pensamentos intuitivos, sentimentos, imagens e emoções com que o ego se defronta (STEIN, 2006, p. 120).

Entende-se então que quando há um domínio da anima no homem, este tende a se refugiar em sentimentos de mágoa e resignação, pois quando não está bem desenvolvida o afunda em um humor opressivo, enquanto que as mulheres sob domínio do animus tendem a trazer uma grande carga emocional nos seus pensamentos e opiniões que a controlam (SANFORD, 1987).

A Psicologia Analítica de Jung, muito aprofunda-se também nos conceitos da alquimia, pois, os processo alquímicos podem ser interpretados sob o prisma psicológico, e muito dizem sobre os conteúdos e mecanismos inconscientes.

Considerava-se a opus alquímica como um processo iniciado pela natureza, mas que exigia a arte e o esforço conscientes de um ser humano para ser completada […] A opus é, num certo sentido, contrária à Natureza, mas, em outro o alquimista auxilia esta última a fazer aquilo que ela não pode fazer por si mesma. (EDINGER, 2006, p. 28)

Sendo assim a relação Animus e Anima é muito abordado através do conceito alquímico da coniunctio (conjunção) como união dos opostos, sendo este o ponto máximo da opus. Portanto, a união dos opostos que foram separados de forma imperfeita, ou seja, não foram completamente separadas, caracterizando então a coniunctio inferior, essa fase é seguida pela morte, através do conceito de mortificatio.

Fonte: encurtador.com.br/nuvX5

Enquanto que a coniunctio superior está voltada para o conceito de “pedra filosofal” alquímica, que é o alvo da opus,  a suprema realização, resultante da união final dos opostos mas aqui, são opostos purificados e que combinados mitigam (suavizam) e retificam (harmonizam) a unilateralidade. Quando o ego se identifica com conteúdos inconscientes ele pode ficar exposto a identificações sucetivas com a Sombra, o Animus e Anima e o Si-mesmo. (EDINGER, 2006).

O casamento e/ou intercurso sexual entre Sol e a Luna ou outras personificações dos opostos. Essa imagem, nos sonhos, refere-se à coniunctio, superior ou inferior, dependendo do contexto (EDINGER, 2006). Sendo assim vemos o sol e a lua como arquétipos que se referenciam ao Animus (Sol) e Anima (Lua), sendo relacionados também ao simbolo do Yin Yang descrito no I. Ching, identificando que a figura possui dois lados, porém ambos os lados carregam com si uma parte do outro, pois ambos se complementam.

Jung (1931) fala sobre essa dinâmica em um de seus seminários, intitulado “Seminário sobre visões”, posteriormente dividido em doze partes (livros). Na parte cinco, Jung demonstra uma imagem alquímica na qual há uma mulher com uma árvore que cresce em sua cabeça, enquanto que há uma águia em cima da cabeça dessa mulher e pássaros ao seu redor, nessa figura há também o Sol do lado esquerdo e a Lua em seu lado direito.

No lado esquerdo da imagem da mulher está o símbolo do sol, no lado direito a lua referindo-se à união de masculino e feminino (na realidade, àquele processo alquímico) e o texto correspondente diz que à esquerda os pássaros do sol estão morrendo a morte branca e à direita os pássaros da lua estão morrendo a morte preta (JUNG, 1931/1964, p. 25).

A coniunctio alquímica pode apresentar duas diferentes naturezas, como por exemplo, se (a) o sonhador(a) encontra em seu sonho uma atração ou inimizade entre duas figuras, se trata de pelo menos um eco da coniunctio e quando há uma familiarização com essa imagética há uma maior facilidade em perceber um material inconsciente que até então era completamente invisível (EDINGER, 1995).

Com isso entende-se que o estudo dos processos alquímicos se mostra muito relevante para o psicoterapeuta junguiano, ao passo que a compreensão dos movimentos que ocorrem na psique presentes na alquimia, carregam consigo saberes e símbolos antigos, que se mostram em sua maioria, universais, portanto, fazem parte do inconsciente coletivo. A manifestação de Animus e Anima, será  diferente em cada indivíduo, mas o entendimento dos arquétipos e dos processos de mudança, presentes na alquimia, nos facilitam essa observação, de forma a nos familiarizar com os mesmos.

Fonte: encurtador.com.br/qsADT

Referências:

EDINGER, Edward F. Anatomia da psique. Editora Cultrix, 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (Coleção Obras completas de CG Jung, Vol. 9, ML Appy & DMRF Silva, trads.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1976), 2002.

JUNG, Emma. Animus e Anima/5º reimpressão da 1º edição de 1991–São Paulo. 2006.

The Mysterium Lectures. A Journey through C.G. Jung’s Mysterium Coniunctionis, Toronto: Inner City Books, 1995.

SANFORD, John A.. Os Parceiros Invisíveis. São Paulo: Paulus, 1987. 171 p. Tradução I.F. Leal Ferreira.

SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES” “The Visions Seminars”. Carl Gustav Jung Parte V. Seminários entre 11 de novembro e 16 de dezembro de 1931. SPRING 1964.

STEIN, Murray. O mapa da alma. 2006.

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Sobre o Animus: um apanhado sobre o Masculino Arquetípico

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Carl Gustav Jung (1875-1961) foi o idealizador da Psicologia Analítica, e com ela propôs uma série de conteúdos revolucionários acerca da psique humana. Estes diziam respeito ao inconsciente pessoal e coletivo, também a inúmeros aspectos acerca da personalidade individual de cada um, permitindo explorar com precisão a individualidade dos sujeitos, mesmo que estes imersos em instâncias psíquicas tão complexas. Dentre tantos conceitos, também postulou a ideia dos arquétipos, como sendo imagens ancestrais enraizadas no inconsciente coletivo às quais nós temos acesso e com os quais entramos em contato ao longo da vida (JUNG, 2018). 

Dentre os diversos arquétipos existem o Animus e a Anima. Esses arquétipos contrassexuais foram denominados assim por Jung com o objetivo de representar respectivamente as partes masculina e feminina dentro de cada indivíduo, sendo assim condutores da consciência feminina e masculina para o mundo interior da psique. De maneira simbólica, cada homem teria contido em si certo aspecto feminino e cada mulher um masculino.

Anima significa o componente feminino numa personalidade de homem, e o animus designa componente masculino numa personalidade de mulher. Ele tirou tais palavras do termo latino animare, que quer dizer animar, avivar, porque sentiu que a anima e animus se assemelhavam a almas ou espíritos animadores, vivificadores, para homens e mulheres (SANFORD, 1987, p.12).

Fonte: encurtador.com.br/zY346

Pensando em questões contemporâneas ligadas à experiências pessoais de quem produziu esse artigo na clínica escola, surgiu então a indagação acerca do tema, pois muitos pacientes que ingressaram na clínica no período de tempo anterior recente, encontravam em suas demandas uma raiz fortemente ligada a questões de animus e anima. Desde a maneira como esses pacientes lidavam pessoalmente com esse aspecto em si mesmos, até em questões fundamentais imagéticas ligadas a como estes concebiam os conceitos nas suas relações familiares basilares. 

A partir daqui as atenções se voltam ao arquétipo masculino e seus conceitos, implicações, mitos e histórias relacionadas a este que ajudaram a difundir no inconsciente coletivo da humanidade ao longo das eras, em uma abordagem mais presentificada em sua correlação com o cotidiano do ser humano moderno e suas implicações para a vida psíquica dos possíveis pacientes clínicos do século XXI.

O ANIMUS – A MASCULINIDADE INTRÍNSECA NA MULHER

Ao se debruçar em suas primeiras definições acerca do arquétipo de Animus, C. G. Jung afirma que “(…) a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus. Se não é simples expor o que se deve entender por anima, é quase insuperável a dificuldade de tentar descrever a psicologia do animus” (JUNG, 2011, p. 98). As descrições de animus no texto original de Jung vão ser extrapolações do conceito de anima, com o autor a todo momento mostrando ao leitor as oposições e conceitos comparativos entre a psique masculina e feminina. Segue outro exemplo: 

O homem atribui a si mesmo, ingenuamente, as reações da sua anima, sem perceber que na realidade não pode identificar-se com um complexo autônomo; o mesmo ocorre na psicologia feminina, só que de um modo muito mais intenso, se é que isto é possível. A identificação com o complexo autônomo é a razão essencial da dificuldade de compreender e descrever o problema, sem falar de sua obscuridade e estranheza (JUNG, 2011, p.98).

Em ambos os casos fica clara a mensagem intrínseca que Jung quer escrita: existe uma instância arquetípica imagética masculina dentro dos seres humanos pertencentes ao sexo feminino. E que essa imagem arquetípica compensaria determinados pontos da personalidade dessas mulheres – em um sentido pendular quase de enantiodromia – em diversos pontos da sua vida social familiar e afetiva ao longo de todo o processo de seu ciclo vital.

A mulher e o Animus – Fonte: encurtador.com.br/avG02

Emma Jung (2006), expandiu as noções de animus, ela começa descrevendo o animus e buscando referências em literatura clássica para identificar o mesmo. Aqui a autora nos aponta que o masculino é caracterizado por 4 aspectos, ou estágios: de força, ato, verbo e sentido, todos estes dependentes da consciência e cada um individualmente associado a um tipo de masculinidade e de imago masculina. Em todo o seu texto ela aponta que as mulheres em seu âmbito são movidas pelo princípio do Eros, algo que pode ser traduzido como ligação sentimental ou a estas se voltarem a relações e afetividades, enquanto o homem seria regido pelo princípio da Logos, associado a razão. Deixando claro no fim que, para consciência da mulher o que seria mais importante se consiste no que tange às relações pessoais e as nuances que costumam escapar das percepções dos homens.

“O animus serve – em seu aspecto positivo – como elo entre o ego feminino e a sua criatividade. Já  em  seu  aspecto  negativo,  o animus pode  se  expressar  por  meio  de preconceitos e ideias destrutivas nos relacionamentos que estão presentes na vida da mulher” (GONÇALVES, 2018, p.13). Se o indivíduo não consegue integrar os aspectos opostos em si de maneira saudável, se tem alguma experiência traumática durante seu desenvolvimento, ou se na tenra infância falta alguma figura de referência, isso pode gerar um Complexo futuro. Assim, podendo incorrer no chamado animus negativo, as implicações disso para a vida pessoal do paciente podem ser tremendas. Marie-Louise Von Franz disserta sobre:

Em geral, o primeiro homem que uma mulher conhece é seu pai, que portanto tem uma influência muito grande sobre a menina. Se a relação com o pai se constela de um modo negativo, a menina reagirá negativamente a ele. (…) se a relação for negativa, mais tarde ela provavelmente terá dificuldade com os homens e não descobrirá seu próprio lado masculino. No extremo, ela ficará completamente incapaz de abordar os homens. (…) Se o caso não for tão extremo, ela será o que se costuma chamar de uma mulher difícil. Discutirá com os homens, tentará sempre desafiá-los, criticá-los e pô-los para baixo. Ela esperará negatividade da parte deles, e essa expectativa naturalmente criará dificuldades para o parceiro (VON FRANZ, 1988, p.163).

Ser masculino atormentando mulher em seus sonhos – Fonte: encurtador.com.br/lwR28

Para construção de uma psique saudável, a mulher deve ter a capacidade de integrar o animus, a parte masculina, à sua consciência. Mas para que isso ocorra, ao longo da vida diversas experiências devem ser vividas de maneira adequada, para que o animus seja positivo e as características masculinas não gerem sofrimento interno a paciente, gerando um bom futuro relacionamento com as imagos do sexo oposto, e logo, relacionamentos sociais funcionais (JUNG, 2011). 

A SIMBOLOGIA EM ANIMUS

No oriente a simbologia de animus e anima pode ser constatada mais evidentemente nos conceitos Taoístas, vindos de onde hoje se localiza a China. Para o Taoísmo e sua cosmologia o conceito de Yin-Yang compõe o universo e todas as suas coisas, sendo forças de oposição que representam respectivamente a passividade, escuridão, o feminino versus a atividade, luz, o masculino (BIZERRIL, 2010). 

Gonçalves (2018) destaca que essas constatações se dão pela observação da natureza pelos camponeses, sendo que o dia (luz, Yang) fica associado a atividade e a noite (escuridão, Yin) a passividade e ao descanso. Sendo a dualidade um conceito intrínseco à visão de ser humano e reconhecendo que dentro de cada ser existe o aspecto oposto, complementar, a similaridade com o conceito de animus e anima fica claro, mais uma vez, na busca pela enantiodromia.

A alternância yin-yang nomeia uma pulsação básica do cosmo – expansão/recolhimento, ascensão/declínio, dia/noite, movimento/serenidade – descrita no Daodejing. Posteriormente, foi elaborada uma descrição mais detalhada dessas alternâncias cíclicas na dinastia Han, por meio da combinação da cosmologia yin-yang, descrita por Laozi, ao sistema de correspondências entre as coordenadas do tempo, do espaço, da experiência sensível, e os aspectos do corpo humano, e as cinco energias ou modalidades do qi que forma o mundo, conforme descritas no Huangdi Neijing Suwen, o primeiro clássico da medicina tradicional chinesa, atribuído ao mítico Imperador Amarelo, Huangdi. (BIZERRIL, 2010, p.296)

Símbolo Yin-Yang – Fonte: encurtador.com.br/bcoAG

Já no Xintoísmo japonês podemos encontrar a dualidade representada em seu mito de cosmogonia. Silva (2016) expõe o registro mais antigo xintoísta japonês, que é conhecido como Kojiki – em tradução pode ser lido como ‘Registro dos Assuntos Antigos’ – e nele constam as principais narrativas mitológicas nipônicas, incluindo a história das divindades criadoras, os irmãos Izanami e Izanagi. Eles seriam os responsáveis pela vida e pela criação do próprio Japão.

Na última geração, surgiram as entidades o “Macho que convida” e a “Fêmea que convida”, respectivamente Izanagi-no-Mikoto e Izanami-no-Mikoto. À estas duas entidades foi concebida a tarefa de “criar, consolidar e dar vida (…)” à terra que ainda estava cercada pelo oceano primordial, ainda sem forma. (SILVA, 2016, p.32)

Em diversas histórias são essas duas figuras divinas que se confluem para gerar os seres vivos. Comparativamente a outras culturas o equivalente dos pólos opostos sexuais se tratarem de seres  primordiais de criação e que movem o universo de seu estado de inércia existencial não é incomum, na xintoísta não diferente, vemos a narrativa primordial da tentativa do nipônico tentando compreender essa simbologia. Vide esse autor que coloca Izanagi e Izanami em um paralelo com o cristianismo:

Há uma lenda que ainda é contada em uma região de Okinawa: há muito tempo, as pessoas da terra não sabiam como fazer filhos. Algumas dessas pessoas viram dois botos acasalando no mar. Elas imitaram a atividade dos botos e aprenderam a fazer filhos. É a história de Adão e Eva de Okinawa, uma história com muito mais apelo do que a que temos no Kojiki, a antiga narrativa dos mitos japoneses. Lá, lemos que Izanami e Izanagi estavam circundando um pilar. Eles observam um ao outro como se estivessem observando uma máquina. Um deles diz: “Aqui há uma protuberância, aí há uma depressão; vamos encaixar um no outro e ver o que acontece”. Eles acabam tendo filhos (…) (DE ABREU, 2017, p. 207)

Izanami a esquerda e Izanagi a direita tocando a lança no mar e criando o Japão – Fonte: encurtador.com.br/jJV15

 Conclui-se então que, em se tratando especificamente da cultura oriental – pois esta foi usada de base filosófica e direcional por Jung na elaboração de sua maneira de enxergar o mundo – o masculino estar presente no feminino é um conceito que vem sendo passado no inconsciente coletivo a milênios. Os povos orientais tinham uma compreensão da psique simbolicamente falando, muito evoluída e isso se reflete em todas as suas práticas culturais, lendas e espiritualidade. Um não pode existir sem o outro e para o equilíbrio, a enantiodromia, a equivalência de yin-yang, deve existir luz na escuridão, e um pouco de masculino dentro do feminino.

REFERÊNCIAS

BIZERRIL, José. O caminho do retorno: envelhecer à maneira taoista. Horizontes Antropológicos, v. 16, n. 34, p. 287-313, 2010. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ha/a/YHHJ8YBsxTJxbhqLxhzWpZk/?lang=pt>

CHAGAS, Maria Inês Orsoni; CAMPOS, Terezinha Calil Padis. O complexo paterno na psique feminina e a sua influência nos relacionamentos heterossexuais numa perspectiva da Psicologia Analítica. 2000. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCBS/Cursos/Psicologia/boletins/1/artigos8.pdf>

DE ABREU, Lúcia Collischonn. Tawada Yôko Não Existe. Translatio, n. 14, p. 203-217, 2017. Disponível em:<https://www.seer.ufrgs.br/translatio/article/view/76739/45635>

GONÇALVES, Grazieli Aparecida; DE OLIVEIRA LOPES, Adriana Goreti. O matrimônio sagrado yin-yang. Self-Revista do Instituto Junguiano de São Paulo, v. 3, 2018. Disponível em:<https://self.ijusp.org.br/self/article/view/31> 

JUNG, Emma.  Animus e Anima. São Paulo: Cultrix. 2006

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Editora Vozes Limitada, 2011.

MENIN, Fernanda; LOUREIRO, Lilian; MORAES, Noely Montes. A maldição de Eva: a face feminina da violência contra a mulher. Psicologia Revista, v. 16, n. 1/2, p. 51-71, 2007. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/18057/13417>

SANFORD, John A. et al. Os parceiros invisíveis: O Masculino e Feminino em cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.

SILVA, Guilherme et al. Xintoísmo e produção de presença-a espiritualidade no mangá Mushishi. 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/179738>

VON FRANZ, Marie Louise. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix. 1988.

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Arquétipos e o Processo de Individuação

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Carl Gustav Jung nasceu em 26 de julho de 1875, em Kesswil, na Turgóvia (Suíça). A partir de seus estudos, Jung elaborou sua visão acerca da psique humana, a partir das observações das associações “complexas” ou emocionalmente carregadas.

Sua observação o levou a formular, ou reformular, segundo Bertrand (2019), diversos conceitos, como o inconsciente, arquétipos, complexos, persona, anima e/ou animus, compensação, sonhos, sincronicidade, criatividade, sintomas, tipos e funções psíquicas, a “numinosidade”, o self, e um sistema psíquico bem estabelecido.

Jung fundou a psicologia analítica, cuja base fundamental é os arquétipos e o inconsciente coletivo, a energia psíquica, os complexos e o processo de individuação. A partir desses temas derivam inúmeros outros que complementam seu modelo de psique humano. Jung publicou muitas obras durante sua vida, e suas ideias frutificaram para muito além do campo da psiquiatria, estendendo-se também à arte, literatura, religião física, quântica, biologia (BERTRAND, 2019).

A Psicologia Analítica, como qualquer teoria científica, surgiu e se desenvolveu em um determinado contexto histórico e cultural, a partir do qual deve ser compreendida. Jung situa a sua teoria em um longo processo histórico que teve início com a ativação do inconsciente coletivo no período da Revolução Francesa (SANT’ANNA, 2019).

O termo arquétipo, pauta principal deste trabalho, segundo Pieri (2002, p. 44), “é tirado da filosofia, onde ocorre para indicar o modelo, o exemplar originário ou, simplesmente, o original de uma série qualquer”. Etimologicamente, a palavra arquétipo é formada pela raiz arché, cujo significado é arcaico, antigo; e typos, que significa impressão, marca.

Fonte: encurtador.com.br/brOWY

A palavra arquétipo, para Hall; Nordby (2014, p. 33), “significa um modelo original que conforma outras coisas do mesmo tipo”, são os conteúdos do consciente coletivo e acrescentam (2014, p. 34): para uma correta compreensão da teoria junguiana dos arquétipos, “é muito importante que eles não sejam considerados como representações plenamente desenvolvidas na mente, como as imagens de lembranças de experiências passadas em nossa existência”.

Os arquétipos são universais, ou seja, herdam as mesmas imagens arquetípicas básicas e agindo como centro de um complexo, funcionam (os arquétipos) como um imã, atraindo para si as experiências significativas a fim de formar um complexo (HALL; NORDBY, 2014). Os arquétipos são dados à estrutura psíquica na forma de possibilidades latentes como fatores biológicos e/ou fatores histórico culturais. São prontidões psíquicas, tendências inatas à realização de determinadas ações e/ou imagens, que são resultado do processo evolutivo da espécie humana. Estão, portanto, limitados às experiências universais como nascer, morrer, a maternidade, a paternidade, a infância, a velhice, o desenvolvimento, a sobrevivência etc. (SANT’ANNA, 2019).

Apresentam uma condição estrutural da psique que, sob determinada constelação, interna ou externa, são capazes de produzir as mesmas formações, o que não tem a ver com a transmissão hereditária de imagens. As imagens têm semelhanças porque se baseiam no mesmo princípio formador e enquanto conjunto de prontidões vazias de conteúdo, o arquétipo em si se situa na esfera psicoide, ou seja, anterior à psique (SANT’ANNA, 2019).

Para que seja reconhecido e integrado à consciência, o arquétipo precisa ganhar apresentabilidade por meio de uma imagem (imagem arquetípica) cuja forma se constitui por meio de elementos oriundos da experiência do indivíduo e podem se manifestar simultaneamente em vários planos, fisiológico (emoção, comportamento), no plano psicológico (imagem) e no plano social (cultura) devido ao fenômeno da sincronicidade (SANT’ANNA, 2019).

Do ponto de vista do desenvolvimento humano, à medida que os processos maturacionais passam a exercer menor influência no comportamento e no funcionamento mental no final da adolescência, os processos de natureza psíquica e social passam a ser elementos reguladores mais importantes.

Sendo o arquétipo em si uma possibilidade e não uma manifestação, para que ele seja ativado e presentificado na psique são necessárias duas condições: um fator ativador, que pode ser de diversas naturezas (biológica, intrapsíquica, interpsíquica, histórica e cultural), e uma forma correspondente à sua dinâmica e ao seu campo de experiência. Por isto, não é possível pensar no desenvolvimento psicológico como um desdobramento natural da matriz arquetípica no plano intrapsíquico.

Alguns arquétipos têm importância grande na formação da nossa personalidade e do nosso comportamento, aos quais Jung dedicou especial atenção. Estes serão descritos a seguir.

Fonte: encurtador.com.br/tBDPU

 A Persona

A palavra persona, segundo Hall; Nordby (2014), significava originalmente uma máscara usada por um ator e que lhe permitia compor uma determinada personagem numa peça. Na psicologia junguiana, o arquétipo de persona atende a um objetivo semelhante, isto é, dá ao indivíduo a possibilidade de compor uma personagem que necessariamente não seja ele mesmo. Por ser compreendida como a máscara ostentada publicamente com a intenção de provocar a impressão favorável a fim de que a sociedade o aceite, ela também pode ser denominada de arquétipo da conformidade.

Ainda nas palavras de Hall; Nordby (2014, p. 36), “A persona é imprescindível à sobrevivência. Ela nos torna capazes de conviver com as pessoas, […]. Pode levar ao lucro ou a realização pessoal. É a base da vida social e comunitária”. E mais, “O papel da persona na personalidade, tanto pode ser prejudicial como benéfico”.

A Anima e o Animus

Enquanto a persona é qualificada por Jung como a “face externa” da psiquê, por ser vista pelo mundo, segundo Hall; Nordby (2014), a “face interna” recebeu o nome de anima nos homens e animus nas mulheres. Assim, “O arquétipo de anima constitui o lado feminino da psiquê masculina; o arquétipo de animus compõe o lado masculino da psiquê feminina” (p. 38).

Para Jung, de acordo com Hall; Nordby (2014), os arquétipos anima e animus tem valor importante para a sobrevivência e foram desenvolvidos no convívio e interação com o sexo oposto, ou seja, o homem desenvolveu seu arquétipo no relacionamento continuado com mulheres durante muitas gerações, e a mulher desenvolveu o seu arquétipo pelo relacionamento com os homens.

Por fim, cabe destacar que para que a personalidade seja bem ajustada e harmonicamente equilibrada, “o lado feminino da personalidade do homem e o lado masculino da personalidade da mulher devem poder expressar-se na consciência e no comportamento”, assevera Hall; Nordby (2014, p. 38).

Fonte: encurtador.com.br/dqsD2
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Jung: os arquétipos regem o psiquismo humano

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Carl Gustav Jung nasceu em uma pequena vila na Suíça, em 26 de julho de 1875. Estudou psiquiatria, mas, após conhecer Sigmund Freud em 1907, tornou-se psicanalista e natural herdeiro de Freud. Contudo, devido a divergências teóricas eles se afastaram e nunca mais se viram. Jung fundou a Psicologia Analítica e desenvolveu os conceitos de personalidade extrovertida e introvertida, arquétipo e inconsciente coletivo.

De acordo com Jung, os arquétipos são camadas de memória herdada e compõem a totalidade da experiência humana. Para ele, os arquétipos são memórias das experiências dos primeiros ancestrais atuando como moldes no interior da psique. Utilizamos os arquétipos de forma inconsciente para organizar e compreender nossas próprias experiências, embora podemos também preencher as lacunas com detalhes de nossas vidas. É essa a subestrutura preexistente no inconsciente que permite que nós possamos compreender o que vivenciamos.

Esses arquétipos podem se misturar e imitar uns aos outros em diferentes culturas, porém cada ser possui dentro de si o modelo de cada um dos diversos arquétipos adequando-os para a sua realidade. A existência de mitos e símbolos, por exemplo, era a prova de que parte da psique humana contém ideias preservadas em uma estrutura atemporal que age como uma espécie de memória coletiva. De acordo com essa ideia, cada um de nós nasce com uma tendência inata para usar esses arquétipos para entender o mundo.

Fluxograma do pensamento de Carl Jung (MASSARO, 2012, p.104)

Jung considera a Persona como um dos arquétipos mais importantes, pois desde cedo percebeu em si a tendência de mostrar apenas uma parte de sua personalidade ao mundo exterior. Identificou também o mesmo traço em outras pessoas e notou que os seres humanos dividem suas personalidades em componentes e mostram apenas alguns deles de acordo com o meio e a situação.

O Self que apresentamos ao mundo (nossa imagem pública) é um arquétipo que Jung chamou de “Persona”. Ele acredita que o Self tem partes masculinas e femininas e é moldado para ser masculino ou feminino em sua totalidade tanto pela sociedade quanto pela biologia. Quando nos tornamos inteiramente homem ou mulher, deixamos de considerar metade de nosso potencial, embora ele ainda possa ser acessado através de arquétipos.

O Animus é o componente masculino da personalidade feminina e a Anima, os atributos femininos da psique masculina. Refere-se então a uma metade do ser que foi suprimida em nossa construção de homens e mulheres. Esses arquétipos nos ajudam a compreender a natureza do sexo oposto e por conterem um depósito de todas as impressões já produzidas por um homem ou mulher, refletem necessariamente as ideias tradicionais de masculino e feminino. O Animus representa em nossa cultura o “homem real”, que consiste em um ser musculoso, comandante e sangue frio. Já Anima aparece como uma ninfa da floresta, uma virgem e sedutora mulher.

Como existem em nosso inconsciente, os arquétipos podem afetar nosso estado de humor e nossas relações, manifestando-se como declarações sentimentais e proféticas (Anima) ou uma rígida racionalidade (Animus). Há também um arquétipo que representa a parte que não desejamos mostrar ao mundo chamada Sombra, que é o oposto da Persona. A Sombra simboliza todos os nossos pensamentos secretos ou reprimidos e os aspectos negativos de nossa personalidade. Em outras palavras, Sombra é o nosso lado negligenciado que projetamos sobre os outros, porém não necessariamente ruim. Pode simplesmente representar aspectos que optamos por suprimir por serem inaceitáveis em determinada situação.

De todos os arquétipos, o mais importante é o Verdadeiro Self. É um arquétipo central e organizador, que tenta trazer o equilíbrio dos aspectos com fim de formar um Self unificado. Para Jung, o verdadeiro objetivo da existência humana é atingir o ápice psicológico, que ele denomina de “autorrealização” através do Verdadeiro Self. Quando inteiramente compreendido, esse arquétipo é fonte de sabedoria e verdade, capaz de conectar o Self ao espiritual.

Fonte: http://twixar.me/73bK

Os arquétipos tem uma fundamental importância na interpretação dos sonhos. Jung acreditava que os sonhos constituem um diálogo entre o self consciente e o eterno (o ego e o inconsciente coletivo) e que os arquétipos atuam como símbolos dentro do sonho, facilitando o diálogo. Esses arquétipos tem significados específicos no contexto dos sonhos. Por exemplo, o arquétipo do(a) Velho(a) Sábio(a) pode ser representado no sonho pela figura de um pai, professor ou um líder espiritual, indicando aqueles que oferecem conselho, orientação e sabedoria. O arquétipo A Grande Mãe, pode aparecer na figura da mãe ou avó, representando a criadora que oferece confiança, cuidado e reconhecimento. A Criança Divina, arquétipo representante do Verdadeiro Self em sua forma mais pura, simbolizando pureza e inocência, aparecendo como um bebê ou uma criança.

REFERÊNCIA
MASSARO, Evelyn Kay. O Livro Da Psicologia. [s. L.]: Globo, 2012.

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O Corvo – Conto dos irmãos Grimm

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Retirado de: drunkwookieblog.wordpress.com

Houve, uma vez, uma rainha cuja filhinha pequena, ainda de colo, era impertinente até não se aguentar. Certo dia, a menina estava tão mal humorada que era impossível aturá-la; a mãe lançou meio de todos os recursos para acalmá-la, mas em vão.

Querendo distraí-la, a rainha abriu a janela e, vendo alguns corvos esvoaçando em volta do castelo, disse, num assomo de impaciência:

– Gostaria que fosses um corvo, pelo menos estarias voando e brincando lá com os outros e me deixarias em paz.

Mal acabou de pronunciar essas palavras, eis que a menina se transformou, subitamente, num corvo e saiu dos braços da mãe pondo-se a voar pela janela fora. Foi voando diretamente para a floresta, onde ficou durante muito tempo e seus pais nada mais souberam dela.

Passados alguns anos, certo dia um jovem atravessava a floresta e, de repente, ouviu uma voz; olhou para todos os lados sem descobrir ninguém. A voz tornou a fazer-se ouvir, então olhando naquela direção, viu, pouco distante, um corvo e compreendeu que era ele quem estava falando.

– Escuta, meu jovem, – dizia o corvo; – eu sou filha de um rei e alguém me encantou, transformando-me em corvo. Tu, se quisesses, poderias libertar-me!

– E que devo fazer para isso? – perguntou o jovem.

– Continua andando sempre para diante na floresta; lá ao longe, encontrarás uma casinha habitada por uma velha. Ao chegares lá, ela te virá ao encontro e te oferecerá de comer e beber, mas nada aceites; pois, se comeres ou beberes alguma coisa, cairás em sono profundo e perderás a oportunidade de me libertar. No jardim atrás da casa, há um montículo de tufo, senta-te lá em cima e fica esperando por mim. Durante três dias, às duas horas da tarde, chegarei numa carruagem. No primeiro dia, a carruagem virá puxada por quatro cavalos brancos; no segundo dia, por quatro cavalos alazões, e no terceiro dia, por quatro cavalos negros. Porém, se não estiverdes acordado e eu te encontrar dormindo, não me poderei libertar.

O jovem prometeu fazer tudo quanto ela lhe pedia, mas, ao despedir-se, o corvo disse, suspirando:

– Prevejo que não me libertarás; acabarás por aceitar qualquer coisa da velha e cairás em sono pesado!

O jovem protestou, dizendo que nada aceitaria e, mais uma vez, reiterou promessa de ajudá-la. Mas quando chegou à casa indicada, saiu de dentro a velhinha, dizendo:

– Ah, pobre homem! Como estás esfalfado! Descansa um pouco e come alguma coisa para refazer as forças.

– Não, – disse o homem, – não quero comer nem beber nada.

A velha, porém, insistiu com muita habilidade até que, sem jeito de continuar recusando, o homem aceitou um gole de bebida. Depois agradeceu e foi postar-se no monte de tufo a fim de aguardar a chegada do corvo. Assim que sentou, foi tomado de tal canseira que teve de deitar-se um pouco para descansar, mas com a firme intenção de não se deixar vencer pelo sono. Os olhos, porém, logo se lhe fecharam e ele caiu em sono tão pesado que nada deste mundo conseguiria acordá-lo. Às duas horas em ponto, chegou o corvo, na bela carruagem puxada por quatro cavalos brancos, mas vinha muito triste, dizendo para si mesmo: eu sei que o encontrarei dormindo! De fato, quando chegou ao jardim viu que ele estava dormindo realmente. Então, desceu da carruagem e, aproximando-se dele, sacudiu-o várias vezes, chamando-o em voz alta, mas em vão; o homem não acordou.

No dia seguinte, ao meio-dia, a velha foi levar-lhe comida e bebida mas ele não queria aceitar nada; contudo, a velha tanto fez e tanto disse que ele acabou por beber um pouco do copo que ela lhe apresentava. Por volta das duas horas, ele dirigiu-se ao monte de tufo no jardim a fim de aguardar o corvo; mas, também dessa vez, a canseira era tão grande que não conseguia ficar de pé, obrigando-o a deitar-se. Imediatamente, ferrou em sono profundo. As duas horas, chegou o corvo na carruagem puxada por quatro cavalos alazões; vinha tristonho, pois sabia que o encontraria dormindo. Desceu da carruagem e tentou despertá-lo; chamou-o, sacudiu-o, em vão; nada o despertava.

No dia seguinte, a velha censurou-o porque não queria comer nem beber, dizendo:

– Onde já se viu, passar tanto tempo sem comer nem beber! Quer por acaso morrer?

O homem continuava a recusar tudo; a velha, porém, colocou em frente um prato bem cheio de comida e um copo de vinho; ao sentir aroma tão apetitoso, o homem não resistiu e bebeu um gole de vinho. Em seguida, foi ao jardim a fim de aguardar a princesa encantada; mas sentiu ainda maior cansaço que nos dias precedentes; então, deitou-se um pouco e não tardou a adormecer como uma pedra. As duas horas, chegou o corvo na carruagem puxada por quatro cavalos pretos; desceu dela e fez o impossível para despertá-lo; sacudiu-o, chamou-o, inutilmente. Então, colocou junto dele um pão, um pedaço de carne e uma garrafa de vinho, que tinham a propriedade de nunca acabar. Depois, enfiou-lhe no dedo um anel, dentro do qual havia o seu nome gravado e, por último, deixou-lhe uma carta, explicando direitinho tudo o que lhe deixava e tudo o que havia acontecido, dizendo mais: “vejo bem que aqui não és capaz de me libertar; contudo, se desejas realmente fazê-lo, vem ter comigo no castelo de ouro de Stromberg. Podes bem fazê-lo, eu sei com toda a certeza.” Em seguida, voltou para a carruagem coberta de luto e rumou, velozmente, para o castelo de ouro de Stromberg. Assim que acordou, percebendo que dormira bastante, o jovem ficou extremamente aflito e murmurou:

– Certamente ela já passou por aqui e deve ter ficado aborrecida, pois não a libertei!

Nisso, caiu-lhe sob o olhar as coisas aí deixadas; pegou imediatamente na carta e leu o que continha; assim ficou sabendo o que acontecera e, também, o que ainda podia fazer. Levantou-se depressa e pôs-se a caminho em procura do castelo de ouro, embora não sabendo onde o mesmo se situasse. Já havia corrido mundo a valer, quando chegou a uma floresta muito densa; vagueou por ela durante quinze dias sem encontrar o caminho de saída. Uma tarde, em que as sombras da noite baixavam muito rapidamente, deixou-se cair junto de uns arbustos, para descansar, pois já não podia mais de tão cansado, e não tardou a adormecer. Pela manhã do dia seguinte, continuou a perambular e, ao anoitecer, quis novamente deitar-se ao pé de uma moita para descansar e dali a pouco ouviu gemidos e lamentos tão altos que o impediram de dormir. Na hora em que é costume acenderem-se as luzes, ele viu uma luzinha brilhando não muito distante; levantou-se depressa e dirigiu-se em sua direção. Andou um pouco e chegou a uma grande casa que, de longe, porém, parecia pequena, porque estava meio escondida atrás de um gigante. O jovem estacou, pensando: “Se entras e o gigante te descobre, és um homem liquidado!” Todavia, armando-se de coragem, foi-se aproximando. Assim que o gigante o viu, gritou:

– Oh, chegas em boa hora; já faz muito tempo que não como nada! Vou engulir-te já como jantar.

– Deixa disso, – respondeu o jovem, – não gosto de ser engolido; se queres comer tenho aqui o bastante para te satisfazer o apetite.

– Se é verdade o que dizes, então podes ficar sossegado que não te comerei; falei em engolir-te porque estou com muita fome e nada tenho para comer.

Sentaram-se à mesa e o homem pôs-se a servir pão, carne e vinho até não acabar mais.

– Gosto muito disto, – disse o gigante, e comeu à vontade.

Daí a pouco o jovem perguntou:

– Podes indicar-me onde fica o castelo de ouro de Stromberg?

– Vou procurar no mapa que tem todas as cidades, aldeias e casas. Foi ao quarto buscar o mapa e procurou o castelo, mas não constava.

– Não importa, – disse o gigante, – tenho outros mapas mais completos lá no armário; talvez encontremos o que procuras.

Procuraram inutilmente, o castelo não constava. O homem queria continuar o caminho, mas o gigante pediu- lhe que esperasse ainda alguns dias, até seu irmão voltar; não demoraria, fora aí por perto em busca de víveres.

Quando o irmão do gigante voltou, perguntaram-lhe se sabia onde ficava o tal castelo; ele respondeu:

– Depois do almoço, quando matar a fome, procurarei no mapa.

Mais tarde subiram os três ao quarto do segundo gigante e procuraram em todos os mapas aí existentes, em todos os velhos papéis, e tanto procuraram que acabaram por descobrir o castelo de Stromberg. Mas ficava a muitas e muitas milhas de distância.

– Ah, – disse tristemente o jovem, – como poderei chegar lá?

– Eu tenho duas horas de tempo disponíveis, – disse o gigante, – posso levar-te só até às vizinhanças, porque preciso estar de volta logo para amamentar o menino que temos.

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Retirado de: ultradownloads.com.br

Assim fizeram. O gigante levou-o até um lugar que ficava a duzentas horas do castelo, dizendo que o resto do caminho podia fazê-lo sozinho. Com isso voltou, e o homem continuou a andar dia e noite até que por fim chegou ao castelo de ouro de Stromberg. O castelo porém, fora construído sobre uma montanha toda de vidro. A princesa encantada tivera de percorrer, em volta, toda a montanha até poder entrar. O homem ficou muito contente vendo-a lá e queria subir até ela, mas, cada vez que tentava subir, tornava a deslizar pelo vidro abaixo. E, vendo que não o conseguia, pensou consigo mesmo: “ficarei esperando por ela aqui em baixo.” Então, construiu uma pequena cabana e ficou aí um ano inteiro; todos os dias avistava a princesa passeando de carruagem no alto da montanha, mas ele não podia ir ter com ela. Certo dia, estando na choupana, viu três bandidos brigando e se esmurrando; então gritou-lhes:

– Deus esteja convosco!

Ao ouvir esse grito os bandidos estacaram, olhando de um lado para outro, mas, não vendo ninguém, recomeçaram a esmurrar-se com mais vigor. O homem gritou pela segunda vez:

– Deus esteja convosco!

Os bandidos tornaram a olhar em volta, mas, não vendo ninguém, voltaram à luta. O homem gritou pela terceira vez:

Deus esteja convosco! – pensando: “vou lá ver por que é que estão se esmurrando.”

Foi e perguntou aos bandidos a razão daquela luta; então um deles disse que tinha achado um pau que tinha o poder de abrir qualquer porta em que batesse. O segundo disse que tinha achado um capote e quem o vestisse se tornaria invisível, e o terceiro disse que tinha achado um cavalo com o qual era possível ir a qualquer lugar, mesmo ao cimo da montanha de vidro. E agora estavam brigando porque não chegavam a um acordo: não sabiam se ficar com os objetos em comum, ou reparti-los e cada qual ir-se com o seu achado. O homem então propôs:

– Eu quero fazer uma troca com esses objetos; dinheiro, na verdade, não tenho; mas possuo algo que vale muito mais. Antes porém, quero experimentar se o que dissestes é realmente certo.

Os três bandidos aceitaram a proposta. Deixaram- no montar no cavalo, vestiram-lhe o capote e puseram-lhe na mão o pau; de posse de tudo isso, o homem tornou-se invisível; então pegou no pau e espancou valentemente os três bandidos, gritando: – Ai tendes o que mereceis, seus vagabundos! Estais satisfeitos?

E saiu a correr pela montanha acima; quando chegou ao alto, encontrou o portão do castelo fechado; bateu-lhe com o pau e logo ele se escancarou. Entrou e subiu as escudas indo até onde se encontrava a princesa, que estava sentada numa sala, tendo em frente uma taça de ouro cheia de vinho. Como, porém, ele estivesse com o capote mágico que o tornava invisível, ela não podia vê-lo; por isso, chegando à sua presença, o homem tirou do dedo o anel que ela lhe dera e atirou-o dentro da taça, que tilintou. A princesa exclamou alegremente:

– O meu anel!… O jovem que me vem libertar deve estar aí!

Correu a procurá-lo por todo o castelo sem conseguir encontrá-lo. Ele saíra do castelo e, montando no cavalo, despira o capote. Quando a princesa foi lá fora deu com ele e ficou radiante de alegria.

Descendo do cavalo, o jovem tomou a princesa nos braços e ela beijou-o muito feliz, dizendo:

– Agora me libertaste do encanto; amanhã realizaremos nosso casamento.

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Retirado de: fairytalelandstories.wordpress.com

Esse conto mostra o motivo de redenção da princesa de sua forma animal, mostra o tema do sono paralisante, mas sendo aqui o masculino que dorme e como atua o complexo materno negativo na psique feminina e masculina.

Vou iniciar a análise do conto com a questão do complexo materno negativo. Conforme Jung (2008) o arquétipo materno é a base do chamado complexo materno. Nos contos de fadas vemos os arquétipos em sua forma mais concisa e pura (VON FRANZ, 2005). Por essa razão temos nas bruxas, madrastas e mães terríveis o lado negativo do arquétipo materno.

No inicio do conto é a própria mãe que usa enfeitiça a filha. A mãe profere as palavras e a transformação ocorre. Em termos pessoais, vemos manifesto na psique da mulher um complexo materno negativo. Essa mulher então desenvolverá uma defesa muito forte contra tudo o que é materno.

Confome Jung (2008):

“Todos os processos e necessidades instintivos encontram dificuldades inesperadas; a sexualidade não funciona ou os filhos não são bem-vindos, ou os deveres maternos lhe parecem insuportáveis, ou ainda as exigências da vida conjugal são recebidas com irritação e impaciência.”

Vê-se no inicio do conto que a rainha tem dificuldade na questão maternal. Ela não consegue aguentar impertinência infantil. Seu instinto materno é ferido. E a mulher com esse lado ferido irá passar isso para sua filhinha, como forma de maldição. Ela não reconhece seu valor enquanto mulher e acaba transmitindo isso para a filha. A maldição é que esse tipo de mulher precisa de uma grande quantidade de calor e atenção, que não encontraram como convinham em suas mães. Elas são suscetíveis e se sentem e constante estado de estarem sendo abandonadas.

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Retirado de: cadernodepoesiaseafins.blogspot.com

A maior dificuldade está em superar a ferida e o ressentimento. Carl Jung (2008) ressalta que ela casar-se por acaso, seu casamento serve apenas para livrar-se da mãe ou então o destino lhe impinge um marido com traços de caráter semelhantes ao da mãe.

O conto então mostra como a mulher com complexo materno negativo pode atravessar uma jornada iniciática e desenvolver sua personalidade entrar em um relacionamento de forma mais plena e inteira. Esse aspecto negativo do arquétipo materno irá reaparecer no conto na forma da velha que lança o feitiço do sono no rapaz.

Rainha e velha mostram o aspecto sombrio do feminino. O aspecto imperfeito da mãe natureza negligenciado pela consciência coletiva e que refletem nas mães pessoais. O rapaz também possui um complexo materno que o deixa paralisado em sua masculinidade e ação.

Esse conto então mostra uma iniciação dupla, pois ambos caem em maldição. A princesa que procurou seu salvador também terá de salvá-lo. Esse conto mostra tanto uma jornada feminina, quanto uma masculina que também está amaldiçoada. Aqui anima e animus se encontram também sob os domínios do arquétipo sombrio da mãe.

Sobre o corvo é interessante ressaltar que se trata de um animal que simboliza a morte, a solidão, o azar, o mau presságio. Mas, pode simbolizar a astúcia, a cura, a sabedoria, a fertilidade, a esperança. Essa ave está associada ao profano, à magia, à bruxaria e à metamorfose.

Vemos aqui um simbolismo profano e pagão que foi reprimido pelo cristianismo. A bruxaria e a magia na verdade se tratavam de um conhecimento da terra e não do alto; o conhecimento das ervas e dos elementos. Na verdade o corvo sempre teve uma conotação positiva para as tradições da antiguidade. O cristianismo foi um dos propulsores da acepção negativa atribuída ao corvo e, atualmente, espalhada pelo mundo. Desde então, para esse animal necrófago (que se alimenta de carne putrefata) é considerado como mensageiro da morte e então associado ao mal.

Isso mostra a maturidade do Ocidental cristão diante da morte. Na Mitologia Grega, o corvo era consagrado a Apolo, e para eles essas aves desempenhavam o papel de mensageiro dos deuses visto que possuíam funções proféticas. Por esse motivo, esse animal simbolizava a luz uma vez que para os gregos, o corvo era capaz de conjurar a má sorte.

Na Mitologia Nórdica, encontramos o corvo como o companheiro de Odin (Wotan), deus da sabedoria, da poesia, da magia, da guerra e da morte. Na Mitologia Escandinava, dois corvos aparecem empoleirados no Trono de Odin: “Hugin” que simboliza o espírito, enquanto “Munnin” representa a memória; e juntos simbolizam o princípio da criação.

Toda essa sabedoria foi perdida com o desenvolvimento de nosso lado racional, intelectual, pois com o advento do Cristianismo o homem moderno passou a ter uma atitude bastante infantil diante do mal, do feminino e da morte. Reprimimos nossa intuição e passamos a desconhecer os ciclos da vida, onde a morte e a putrefação o corpo ocorrem.

Além disso, na Índia, a caça ao corvo é proibida, já que essa ave representa a alma dos mortos, e dar de comer a um corvo significa alimentar os antepassados (Paz, 1995). Sozinha então a princesa, carrega em si a alma de seus antepassados, fazendo não apenas uma redenção pessoal, mas uma coletiva e familiar.

Ela pede ajuda a um jovem (animus) que enfrenta a velha (arquétipo materno negativo). Pois, bem para ajudar a princesa ele deve ir à casa da velha e não comer nada durante a estadia lá. Mas ele falha e por três vezes a princesa parece e ele está dormindo. Ela prevê que isso iria ocorrer e mesmo assim continua sua jornada, sabendo que a falha dele faz parte de sua iniciação e redenção.

Essa é uma compreensão difícil para um ego imaturo. Queremos resultados rápidos e instantâneos e temos pouca consideração pela falha, principalmente quando se trata de relacionamentos. Saber que se está no caminho certo, mesmo diante de obstáculos e desafios e mesmo assim manter a integridade e a certeza é um empreendimento para poucos.

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Retirado de: themaskofgod.blogspot.com

Ela chega a primeira vez com uma carruagem com quatro cavalos brancos, depois com cavalos alazões (avermelhado) e por fim com cavalos pretos. Temos aqui alusões a uma transformação alquímica que ocorre com o sono do jovem. O número quatro para Jung está associado a totalidade. O cavalo está associado ao instinto sexual, libido. Suas acepções simbólicas são provenientes de figuras lunares, em que associa a Terra ao seu papel de mãe suprema, e à Lua, por isso relaciona-se com a vegetação, as renovações cíclicas, a sexualidade, os sonhos e as adivinhações.

O branco, o vermelho e o preto fazem uma alusão as fases alquímicas denominadas: albedo, rubedo e nigredo. A Albedo é um estado de paz, paradisíaco, de inocência. Simboliza a purificação. No entanto, esse estado não é passível de durar, pois é irreal. Representa a brancura, o clareamento, o entendimento, o conhecimento, a tranqüilidade. Mas essa fase não deve durar para sempre, ela deve ser colorida por outra cor, para incitar vida.

A Rubedo é a fase do vermelho, que significa vida, paixão e fogo. É a libido em atuação plena. Simboliza a iluminação, pois passar pelo fogo é deixar queimar as escórias que ainda existem. A Nigredo significa a ignorância e o acordar, bem como as fases críticas, como nascimento e morte, ou as transformações que o corpo sofre na transição entre a infância e a adolescência e, ou deste a jovem e daí à clássica crise dos quarenta ou à velhice. Psicologicamente está associada à morte, mas a morte das ilusões egóicas.

Durante vidas nos identificamos a uma infinidade de conceitos e costumamos tomá-los como verdade absoluta; rígida e estática. Na Nigredo há a morte desses apegos ilusórios e padrões que já não nos servem mais. Isso significa que a consciência entra então na Nigredo, na noite escura da alma. A moça deixa para o rapaz uma garrafa de vinho, um pedaço de pão e carne. E lhe escreve dizendo que esse alimento era inesgotável. Esta parece ser uma alusão ao mito de Cristo e a Santa Ceia, onde comemos o pão e a carne, que simbolizam a carne e o sangue de Cristo. E assim foi instituída a eucaristia.

Aqui então temos uma alusão ao alimento espiritual, onde se alimenta do próprio Deus. Além do Cristianismo, nos Mistérios Eleusinos, os adeptos consumiam o pão, alimento associado à Deméter (a deusa arquetípica do poder materno da terra), e o vinho – associado a Dioniso – a bebida divina que eleva a pessoa, mediante a embriaguez extática, a um estado de júbilo que a destacava de sua condição comum do cotidiano, ou, em outras palavras, a eleva a uma fusão com o divino; tal experiência sagrada seria proporcionada pela ação dionisíaca.

Isso representa a assimilação da potência simbólica da divindade. Em termos psicológicos é o contato com o Self. O rapaz ao se alimentar anteriormente cai no sono, pois aquele alimento não o satisfaz. Isso significa que enquanto a consciência se alimenta de algo transitório, como os desejos egóicos, ela cai no sono da inconsciência e se sente constantemente insatisfeita. O propósito advém desse centro da totalidade.

Ela lhe da um anel com seu nome. O anel também é um símbolo do Self e simboliza o casamento, o compromisso que ele precisa estabelecer com a anima. Após isso ele sai em busca dela e segue em direção ao castelo de ouro de Stromberg. Aqui temos um caso de redenção dupla. A princesa enfeitiçada precisa libertar seu salvador, para que ele possa cumprir sua missão. O herói nesse caso precisa antes da ajuda da anima, pois ele ainda se encontra preso a um complexo materno, onde a anciã lhe oferece prazer. Esse prazer infantil o deixa na preguiça e na inconsciência.

Ele então encontra um gigante que quer devorá-lo. Ele lhe dá a comida e o gigante lhe indica o caminho até a princesa. Os gigantes representam a natureza em estado selvagem, em seu estado primitivo antes de ter sido anexada à civilização. É a força da natureza que pode ser destrutiva, pois gigantes são muitas vezes desajeitados e mal-intencionados. Representa então a força da nossa própria natureza que foi reprimida e renegada. Nossa parte destrutiva, devoradora, desajeitada, mas que possui muita força.

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Retirado de: maiconttamps.blogspot.com

E o herói faz dessa parte de sua natureza sua amiga, pois o gigante não comia, ou seja, a consciência parou de alimentar esses aspectos e assim ele se tornou perigoso. Então o gigante lhe indica o caminho do castelo. Ele passa a viver ao sopé da montanha a espera do momento certo, e aguarda por um ano. Até que ele engana três ladrões e adquire um cajado que abre as portas, capa que o torna invisível e o cavalo que vai a qualquer lugar. E assim culmina na libertação e casamento.

O número três se repete nesse conto, e em outros contos também é bem recorrente. O três é o número da salvação, resolução harmônica do conflito da queda, é o desdobramento do Uno em trindade. Isso significa que em cada alma humana, existe a possibilidade de salvação. Aqui Logos – animus e Eros – anima se encontram em conflito. O Logos preso no complexo materno e imaturo e Eros amaldiçoado pelo mesmo complexo materno disfuncional.

Um ano – tempo que o salvador aguarda – simboliza os 12 meses do ano. Na Astrologia, o tempo que o Sol leva para passar pelas 12 casas zodiacais. Isso significa passar por uma iniciação e realizar um ciclo de conhecimento da vida. O amadurecimento que antes não havia. Apenas após aprender os mistérios da vida nos 12 meses, ele está apto a agir.

REFERÊNCIAS:

EDINGER, E.F. – Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

PAZ, N. Mitos e ritos de iniciação nos contos de fadas. Cultrix – Pensamento. São Paulo: 1995.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

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Carl Gustav Jung – Anima e Animus

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 Os termos anima e animus são amplamente conhecidos por aqueles que estudam, ou apreciam, a teoria de Carl Jung.

Para entendermos esses termos é importante lembrar que todos nós carregamos uma quantidade pequena de hormônios do sexo oposto em nosso organismo.

Consciente disso, Carl Jung teve a percepção de que todos nós também carregamos em nossa psique nossa contraparte sexual, e nelas estão encerradas as qualidades inerentes ao sexo oposto, mas que não são conscientes. Jung percebeu também que conforme os traços psicológicos de cada indivíduo, as tendências do sexo oposto vão sendo reprimidos e se acumulando no inconsciente.

Anima e animus foram então definidos para designar essas partes reprimidas do sexo oposto em nossa psique. Sendo a anima a contraparte feminina da psique do homem e animus a contraparte masculina na psique da mulher.

Jung (o eu e o inconsciente) diz que a anima, sendo feminina, é a figura que compensa a consciência masculina. Na mulher, a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus.

As palavras anima e animus vêm do latim animare, que significa animar, avivar. Pois tanto a anima quanto o animus se assemelham a espíritos e alma vivificadores para homens e mulheres.

Entramos em contato com a anima e o animus com a projeção sobre uma pessoa do sexo oposto. São eles os responsáveis pela paixão súbita e a sensação de destino que isso acarreta. Por essa razão, o ato de se apaixonar é tão vivificante para as pessoas.

A anima está ligada à emotividade e a capacidade para proximidade e receptividade do homem. Já o animus está ligado às convicções, opiniões e princípios da mulher. Ela é responsável pelo Eros e ele pelo Logos.

Anima e animus precisam ser desenvolvidos, pois eles são personificações o inconsciente. E quando afloram à consciência suscitam no homem e mulher qualidades irritantes e desagradáveis. Não que o inconsciente tenha essas características, mas quando eles começam a influenciar a consciência se apresentam ainda como uma personalidade parcial e ainda não refinada e primitiva. O animus se apresenta como um homem inferior e primitivo, e a anima como uma mulher inferior.

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Retirado de: unusmunduspsicologia.blogspot.com

Assim como a sombra eles precisam ser compreendidos, reconhecidos e integrados.

No homem a anima suscita caprichos ilógicos e humores intoxicantes. Ele se torna hiper sensível.

O animus negativo na mulher suscita opiniões ilógicas. Ela se torna arrogante e prepotente, mesmo que ela não queira transparecer isso. Ela fica cheia de opiniões insensatas e obstinadas. Suas opiniões não exprimem o essencial, só conceitos vazios e destituídos de sentido. É como se estivesse tomada por um juiz arbitrário, e tentar convencê-la de que suas opiniões não possuem fundamento é apenas dar murro em ponta de faca.

No entanto, esses aspectos psíquicos precisam ser desenvolvidos. Eles precisam se tornar guias interiores para o desenvolvimento psíquico do ego humano.

Esse outro interior, esse “não eu”, simboliza a nossa alma, aquilo que de mais profundo temos em nós, por isso são tão inspiradores. Essas imagens internas precisam ser integradas e compreendidas, a fim e que se tornem parceiros invisíveis e apoiadores de nossa jornada e não

O animus quando se apropria de uma mulher, age como um demônio e a anima ao se apropriar do homem se comporta como uma bruxa manipuladora, ou como uma sereia sedutora, mas destruidora.

O animus destrói os relacionamentos e os valores do Eros. A anima destrói a auto-estima do homem, sua virilidade, objetividade e poder de decisão. Ele se torna extremamente sensível e perturbado.

Essas más disposições podem levar o homem a vícios, como alcoolismo e drogas, ou a depressão profunda. E em casos mais graves ao suicídio.

Espiral da Vida II

Isso acontece devido à falta de percepção e desvalorização do homem em relação ao feminino, e do desconhecimento da mulher do seu lado masculino. Atualmente observo também, uma supervalorização do aspecto masculino que leva a mulher a uma identificação igualmente perigosa com ele.

Uma das formas de conhecer a anima e o animus para que eles possam se desenvolver é através do relacionamento com a mulher e o homem reais.

O relacionamento com pessoas reais podem apontar essas disposições negativas, como os humores opressivos do homem e a falta de calor e afeto da mulher.

A mulher interior e o homem interior podem mostrar que não estão gostando da forma como o homem e a mulher estão levando suas vidas. Eles podem estar sendo lesados e assim as pessoas se distanciam de sua alma.

Ambos precisam de manifestação, precisam se manifestar na vida humana. E a única maneira de isso acontecer é por meio do tipo de vida do homem e da mulher exterior.

Portanto anima e animus podem mudar completamente o rumo de nossas vidas. Se nos dispusermos a escutá-los e nos abrirmos a esses ensinamentos, podemos ter uma vida mais plena de sentido.

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Os cisnes selvagens e o animus feminino

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Os cisnes selvagens é um conte de Hans Christian Andersen, autor de O Patinho feio, Polegarzinha, A pequena sereia, entre outros. No começo do conto temos os seguintes personagens: O rei, onze filhos e uma filha. A rainha já está morta. Ou seja, temos doze personagens sendo que apenas uma delas é feminina. Temos masculinos demais! Podemos com isso supor, que a heroína, Elisa, precisa resgatar o elemento feminino faltante e equilibrar as energias.

Logo em seguida, surge a figura da madrasta, que de início odeia os enteados. Bem, a figura da madrasta é recorrente em contos de fadas. Símbolo da Mãe Terrível é ela quem desencadeia a ação e impele a heroína no processo de individuação.

Já que falamos do feminino, sabe-se que uma das suas características é se vingar da prole da concorrente. Vemos isso na Mitologia, a deusa Hera, quando traída, se vingava de Zeus não diretamente, mas atingindo a outra ou os filhos da relação extraconjugal. Aqui não há adultério, mas sabemos que quando alguém morre se torna divinizado e santificado. E com um ser divino a nova mulher não consegue competir.

Além disso, com ela passamos a ter 13 personagens. Bem, o número 13 corresponde no taro de Marselha ao trunfo da Morte. Em muitas sociedades primitivas, todos os anos, o velho rei é simbolicamente morto, desmembrado e ritualmente “comido” para assegurar a fertilidade das novas colheitas e a revitalização do reino (NICHOLLS, 2007). No caso do conto, temos um rei fraco que não defende os filhos e não se coloca contra os atos da nova mulher. Ou seja, a morte representada pela madrasta-bruxa vem para uma renovação do símbolo do Self na consciência coletiva representado pelo rei.

Revitalização e renovação. O reino precisa de um novo rei que aceita e acata o feminino e o traz sempre ao seu lado.

O lado masculino da mulher, o animus aparece muitas vezes, simbolizado por um grupo de homens. Ele representa um elemento mais coletivo que pessoal. Devido a este caráter coletivo, as mulheres referem-se habitualmente (quando o animus se expressa por seu intermédio) a “nós” ou a “eles” ou a “todos” e, em tais circunstâncias, empregam na sua conversa palavras como “sempre“, “devíamos“, “precisamos” etc (JUNG, 2002).

É uma imagem que emerge em uma quantidade de homens, um bando de pais, um conselho ou um tribunal ou ainda uma assembleia de homens sábios, ou então um artista transformista que pode assumir qualquer forma e que faz uso abundante dessa capacidade (JUNG, 2006).

Podemos supor que os irmãos, a um nível pessoal, formam a imagem do animus de Elisa, mostrando que a menina possui uma quantidade enorme de opiniões e pensamentos que precisam ser elaborados. O fato de não possuir uma figura feminina positiva no conto, indica que ela terá de construir a sua própria imagem do feminino. E terá de enfrentar esse animus na forma de um tribunal.

A bruxa-madrasta transforma os irmãos em onze belos cisnes brancos. O cisne branco é um animal associado à pureza e à luz. Na antiga Grécia, o cisne macho era o acompanhante permanente de Apolo, o deus da beleza, da música e da poesia, cujo carro celeste era puxado por cisnes. No mito de Leda, o cisne tem também uma simbologia masculina já que Zeus se transforma em cisne para perseguir Leda, que lhe foge transformada em ganso, simbolicamente semelhante ao cisne fêmea.

No Oriente, o cisne é símbolo da música e da poesia, para além de representar a coragem, a nobreza, a prudência e a elegância. Na Índia, o cisne é montado pelo deus Brama, e simboliza a elevação espiritual. Na tradição celta, os espíritos do outro mundo regressam ao mundo dos vivos sob a forma de cisne. São os cisnes também os responsáveis por trazer as crianças ao mundo em muitas tradições. Os cisnes, enquanto casal é um símbolo de fidelidade eterna, já que se unem para toda a vida e nunca substituem o companheiro morto. O canto dos cisnes é associado às juras de amor eterno e imortal.

Podemos fazer uma associação da relação de Elisa com os irmãos, muito próxima com a relação Artemis-Apolo. Apolo, irmão gêmeo de Artemis era a única relação significativa que a deusa tinha com um homem. O irmão é uma das manifestações da imagem arquetípica do animus. Enquanto a imagem do animus feminino está associada ao irmão a relação com os homens ficam comprometida, uma vez que com o irmão existe afetividade e companheirismo, mas não existe a relação erótica, que simbolicamente leva a coniunctio.

 

Sua relação com o masculino é fraternal, porém distante e destituída de Eros.

O cisne enquanto símbolo da fidelidade eterna mostra que Elisa está em um compromisso de fidelidade e devoção com o seu animus. E ele ainda se apresenta de uma forma instintiva, mesmo sendo um animal nobre como o cisne. Bem, Elisa possui um complexo materno negativo. A mulher com complexo materno negativo desenvolve uma defesa contra tudo o que é materno e feminino e a faz se aproximar do mundo masculino.

O propósito é quebrar o poder da mãe através da crítica intelectual e cultura superior, de modo a mostrar-lhe toda a sua estupidez, seus erros lógicos e formação deficiente, O desenvolvimento intelectual é acompanhado de uma emergência de traços masculinos em geral (JUNG, 2008). Por isso ela vê a mãe como madrasta e bruxa que a quer afastar dos irmãos e do pai que ela tanto ama.

Jung (2008) ainda nos fala sobre o complexo materno negativo:

De todas as formas de complexo materno é na segunda metade da vida que ela tem as possibilidades de ser bem-sucedida no casamento, mas isso só depois de sair vencedora do inferno do apenas-feminino, do caos do útero materno que (devido ao complexo negativo) é sua maior ameaça.

Portanto para que Elisa se case com o rei – animus positivo – deve passar pelo caos materno, e enfrentar e assimilar essa imago feminina negativa que foi construída em seu inconsciente.

Em termos coletivos, nossa sociedade ocidental pautada pela religião judaico-cristã, definiu uma imagem feminina bastante unilateral. A igreja admitiu o culto a Virgem Maria, mas essa imagem sofre de sérias restrições. Ela é uma imagem unilateral do feminino destituída de sua sombra. Aliás, como cita Von Franz (2010), a igreja acolheu a imagem da deusa-mãe, mas apenas na medida em que se submetia à aprovação do homem e se comportava “adequadamente”.

Tudo o que não se encaixava nesse papel adequado do feminino puro, submisso e virginal foi projetado na figura da bruxa. Portanto, nos contos de fadas a figura da bruxa-madrasta, é a projeção da sombra do feminino que foi desprezada e reprimida. Por essa razão os contos de fadas veem compensar essa atitude unilateral trazendo a solução do conflito para a consciência coletiva.

A bruxa não transforma Elisa em cisne, mas apenas os príncipes, uma vez que é o patriarcado que a transformou em uma figura sombria. E esse resgate do animus positivo é também um resgate do feminino, como veremos agora.

Os irmãos cisnes de Elisa a levam para uma terra distante e nessa viagem e ela entra em contato por meio de um sonho com a fada Morgana. Morgana é uma personagem muito conhecida da lenda do Rei Arthur. Ela é sua meia irmã, sacerdotisa da Grande Deusa e foi pelo patriarcado alçada a qualidade de bruxa.

Entretanto é essa figura que dá a Elisa a solução para trazer a forma humana seus irmãos.

Elisa deve fiar 11 túnicas em urtiga e não deve pronunciar uma palavra sequer durante esse tempo, mesmo com as mãos sangrando. O ato de fiar, tecer, costurar é uma atividade extremamente masculina. Nela deve-se ter muita paciência e permanecer em uma atitude de mobilidade durante um bom tempo. Para mulheres com um animus muito forte chega a ser desesperador ter que desacelerar o ritmo frenético e calar seus pensamentos. Vemos muitos exemplos nos contos de fadas onde a heroína se encontra com a atividade de fiar e tecer, como em A Bela Adormecida e Rumpelstilsequim.

O fato de não poder falar significa que ela deve calar as opiniões e generalizações de seu animus negativo. Sua atitude deve ser concentrada e totalmente voltada para o ato de fiar e costurar para assim poder colocá-lo em seu devido lugar e resgatar seu feminino. Aqui uma atitude unilateral para compensar a unilateralidade da atitude anterior é necessária para assim poder chegara um meio termo.

A urtiga é uma planta que começou a ser utilizada pelo Homo sapiens, desde 4000 a.C. Suas fibras eram utilizadas na fabricação de tecidos e mais tarde na produção de papel. A urtiga é conhecida por uma propriedade em suas folhas que se encostadas na pele, podem irritá-la, deixando uma sensação de que a pele fora queimada. Antes de serem descobertas as propriedades medicinais da planta o uso dela na indústria têxtil se manteve em alta até o século XX, mesmo já tendo sido descoberto o linho para fabricação de roupas e demais tecidos.

A urtiga apesar de queimar como fogo, vestia o homem dando caimento as roupas e melhorando sua aparência. O que significa que o fogo que queima e traz dor também ajuda a talhar e dar um aspecto mais humano aos príncipes. Isso se mostra quando os irmãos sentem compaixão pelo esforço dela e choram.

Elisa precisa permanecer mulher enquanto integra as qualidades de seu animus. E isso é uma tarefa árdua e dolorosa. O feminino é visto de uma forma negativa por isso a machuca e a fere, mas é nesse trabalho que se encontra a sua redenção. A princesa vai ao castelo com o rei que pretende se casar com ela, mas o arcebispo tenta envenenar o rei contra ela, dizendo que se trata de uma bruxa. O arcebispo representa o lado sombrio de seu animus – rei.

O rei permite que ela continue costurando as túnicas, pois trouxe suas coisas ao castelo, mas chega um momento que a urtiga acaba e ela deve buscar mais no cemitério. Ao ir ao cemitério encontra um grupo de bruxas que comem cadáveres humanos.

Essas bruxas representam o feminino ctónico, ligado a terra. Não se houve mais falar da madrasta, entretanto podemos supor que as bruxas e ela representam a mesma imagem, pois mais uma vez temos a morte presente. Elas representam uma face do feminino, justamente aquela suprimida pelo patriarcado. Elas são a face da anciã, da Grande Mãe, possuindo ligação com Hécate. As bruxas mostram um grande segredo do feminino, ao comer os cadáveres, elas nos dizem que todos nós voltaremos para o útero da Mãe Terra e seremos devorados por ela. Esse é o segredo da Morte. Viemos da mãe e voltaremos a ela!

Elisa deve passar por elas e não foi incomodada. Ela enfrentou a face da mãe terrível e devoradora e fez uma prece, ou seja, ela lhe prestou sua homenagem e respeito. Isso desperta a sombra do rei que passa a enxergá-la como bruxa e a entrega a julgamento.

A corte, o julgamento, o tribunal, geralmente aparecem nos sonhos femininos como uma manifestação do animus. Aqui Elisa deve enfrentar seus próprios julgamentos contra sua feminilidade. Ela transgrediu uma regra imposta ao comportamento feminino e acessou seu lado sombrio e toda transgressão gera culpa. Mas, infelizmente, sem esse lado sombra reprimido a mulher fica incompleta.

Elisa então é condenada a fogueira. E mesmo na prisão continuou tecendo as túnicas e não disse uma palavra. Ser fiel ao seu processo é uma questão importante no processo de individuação. Muitas vezes quem está de fora não entenderá o que se está fazendo. Uma pessoa que está em seu processo de individuação e não atende as normas do coletivo será muitas vezes julgada por seus atos. Um exemplo disso foi Cristo, que permaneceu sem reclamar durante todo seu calvário.

Aqui Elisa precisa mesmo sendo julgada pelo externo e interno ser leal ao seu processo senão tudo irá por água abaixo. Seus esforços em transformar seu animus e resgatar seu feminino não darão em nada. A verborragia do animus ainda deve ser contida para que no momento certo, a mulher possa colocar sue ponto de vista com assertividade.

Durante o caminho até a fogueira Elisa permanece em silencio e tecendo, até que aparecem seus irmãos na forma de cisnes e ela joga a túnica sobre eles, transformando-os em belos príncipes. Elisa desmaia de cansaço e dor e os irmãos explicam tudo ao rei.

Após seu exaustivo trabalho o feminino pode deixar seu masculino se expressar. Mas agora houve uma transformação, Elisa não é mais dominada pelo animus, mas é uma mulher feminina que assimilou as qualidades de assertividade e objetividade de se seu lado masculino. E assim ocorre o casamento sagrado, a coniunctio com seu masculino positivo e suas qualidades femininas e maternas podem ser expressas sem desvalorização.

Referências

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

JUNG, E. Animus e Anima, São Paulo, Cultrix, 2006.

NICHOLS, S. Jung e o Tarot – Uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 2007.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

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“Cinderela” e o processo de individuação nos contos de fadas

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Concorre ao OSCAR de Melhor Figurino

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Era uma vez uma bela menina chamada Ella que vivia com seus pais em um paraíso idílico,
até a morte de sua boa mãe… 

Assim começa a nova adaptação do famoso conto de fadas Cinderela, com a morte da boa mãe e a subsequente substituição pela madrasta má. Antes de analisar essa substituição da figura materna, é importante observarmos alguns pontos do começo da história, bem como a quantidade de personagens.

No início então temos apenas três personagens: Ella, sua mãe e seu pai, ou seja, uma tríade. Para Carl Jung (1979), o número quatro representa a totalidade (as quatro estações do ano, os quatro evangelistas, os quatro rios que saem do Paraíso, as quatro funções da consciência etc).

No filme começamos com apenas três personagens. Isso significa que falta um elemento para a totalidade. Esse quarto elemento é o que está mais próximo ao inconsciente e vem trazer aquilo que está faltando para a consciência, e costuma ser o depositário das projeções dos aspectos sombrio da consciência. Essa trindade inicial então é destruída com a morte da mãe da menina. Nos contos de fadas é comum a heroína perder a mãe e aparecer uma substituta má.

A morte da boa mãe simboliza um momento crítico na vida da criança, onde há a perda do paraíso e da identificação com as figuras parentais. Ela ocorre justamente na passagem da infância para a adolescência, quando os pais são vistos com seres imperfeitos e iniciando nesse instante a criação do ego, por meio do choque e do conflito.

De acordo Von Franz (2010):

“A morte da mãe significa, pois, simbolicamente, que a menina toma consciência de que não pode mais se identificar a ela, ainda que a relação positiva essencial e afetiva permaneça. A morte da mãe é, portanto, o início do processo de individuação.”

Na versão de Cinderela escrita pelos irmãos Grimm, a boa mãe morre e sobre seu tumulo cresce uma árvore onde pousa uma pomba branca que aconselha a menina. Segundo Von Franz (2010), algo sobrenatural sobrevive à morte da figura materna positiva e a substitui; uma espécie de fetiche a qual encarna o espírito da mãe. O filme segue a versão de Charles Perrault onde – ao invés da árvore – temos uma Fada Madrinha que vem ajudar a menina. Ela também simboliza o espírito da boa mãe e também da velha sábia, como veremos a seguir.

A trindade inicial se transforma em um quatérnio feminino, formado por Ella, a madrasta e as filhas dela. Mas, antes de nos aprofundarmos nesse quatérnio é importante mencionar que no começo do filme é salientado o fato de Ella não ser uma princesa, mas alguém do povo. Isso é incomum nos contos de fadas, onde geralmente a heroína é alguém da família real.

Essa mudança vai trazer algumas repercussões interessantes para o filme. Repercussões essas não exploradas no conto original, mas que trazem uma dimensão interessante para a história, e para a compreensão de algumas mudanças na consciência coletiva.

No processo de individuação da mulher, a identificação com a mãe boa constitui um sério risco, pois é mais comum a mulher seguir padrões instituídos pela sociedade e pela família (não é à toa que a moda é esmagadoramente voltada para o público feminino). Assim, ter uma mãe boa demais pode ser muito prejudicial à individuação da mulher, pois ela terá muita dificuldade em se desligar dos padrões impostos pela mãe, e se tornará uma simples cópia.

Vemos isso claramente nas irmãs postiças de Cinderela, elas não possuem personalidade própria, se vestem igual e seguem exatamente o que a mãe diz.  A mulher precisa ter um comportamento feminino autentico e não um modelo feminino típico. Dessa forma ela poderá mostrar a sua individualidade e a sua diferença no mundo. Nesse contexto, a madrasta simboliza a boa mãe, num pólo ambivalente, que deixou de ser boa, e devorou a personalidade de suas filhas, tornando-se também: a madrasta.

Em nossa sociedade ocidental a figura da mãe é permeada apenas pelo lado luminoso. Os aspectos sombrios da figura da Grande Mãe foram suprimidos em nossa sociedade, isso afetou diretamente as mães pessoais, que se sentem no dever de serem perfeitamente boas. No filme, a mãe de Cinderela aconselha sua filha a ser sempre gentil e corajosa, ou seja: sempre bondosa! A madrasta surge na história para trazer outra dimensão à personalidade de Cinderela. A figura da madrasta vem para complementar a ingenuidade e a doçura sem limites da moça.

Cinderela é aquela que busca a sua individualidade, por isso é a heroína e também por isso sofre perseguições. Se observarmos grupos de meninas podemos ver que elas se comportam e se vestem de forma igual para se sentirem aceitas e pertencentes. Aquelas que de certa forma não se encaixam nesses padrões são postas de lado e perseguidas.

Ser aceita é parte do comportamento e busca do feminino, e não ser traz muito sofrimento a mulher, como vemos em Cinderela. No entanto, esse sofrimento é compensado com uma personalidade mais sólida e mais individuada. Vemos que Cinderela busca a individuação quando ela pede ao pai um galho de árvore e não o mesmo que suas irmãs. A árvore é símbolo do processo de individuação, simbolizando o crescimento natural da personalidade.

Agora se observarmos do ponto de vista da madrasta (que aqui possui uma dimensão mais humana que no conto), ela faz de tudo para ser aceita e inclusa. Seus atos são validados pela dor de competir com a esposa morta pelo amor do marido. É bem notório que quando alguém morre passa a ocupar um status de alguém impecável e sem defeitos. Pois bem, a madrasta é humana e sofre pelo fato de competir com uma “deusa”, por essa razão ela passa a perseguir a filha dessa mulher, uma vez que ela lembra a esposa morta.

Ella então se torna uma serviçal e passa a dormir entre as cinzas.  As cinzas representam a humilhação, descida de classe social, bem como a contrição e a humildade. Elas podem ser associadas a operação alquímica da mortificatio, que representa a experiência da morte e da transformação do corpo em cinzas por meio da queima no fogo das emoções. É uma derrota para o ego, um encontro com seus aspectos sombrios.

Isso significa que o aspecto ingênuo e infantil da psique de Cinderela deve morrer, antes que ela possa entrar contato com o masculino. Ella passa então a se chamar Cinderela, ou Gata Borralheira. Houve uma iniciação e agora ela não é mais a mesma pessoa. A garota indignada foge para a floresta e encontra o príncipe que está em uma caçada a um cervo.

Nesse ponto há uma mudança significativa em relação ao conto: passamos a ver o dilema do príncipe! Coisa que no conto original não há. Descobrimos então que o príncipe, não tem mãe e está com seu pai doente. Sendo necessário que ele encontre uma esposa para que possa assumir o posto de rei. Mas essa esposa deve ser uma princesa. Nos contos de fadas clássicos é comum termos um rei que está doente, ou velho demais e que precisa ser substituído.

O rei que simboliza a manifestação do Self na consciência coletiva precisa se renovar. Isso significa que os símbolos coletivos do Self se desgastam. As religiões, as convicções e as verdades, tudo envelhece e precisa ser renovado. Tudo o que dirigiu uma sociedade por determinado tempo é deficiente, no sentido que envelhece (VON FRANZ, 2011). E o rei doente é justamente esse símbolo e o príncipe é aquele que trará essa renovação.

No filme vemos que o reino é composto apenas por figuras masculinas. Isso significa que a consciência coletiva está se dirigindo unilateralmente e sendo pautada apenas pelo princípio masculino. Há carência de Eros nas relações e tudo deve ser seguido conforme as normas e as regras estipuladas, e elas devem ser mantidas. Von Franz (2011) aponta que o feminino é muito mais subjetivo e voltado para a exceção. A mulher rompe as regras em função dos sentimentos. O feminino traz a flexibilidade.

Portanto há uma ênfase exagerada na consciência coletiva para os princípios masculinos. E todo exagero é prejudicial. É extremamente importante que busquemos o equilíbrio desses aspectos complementares uma vez que temos que conviver com eles tanto interna quanto externamente.

O príncipe ao encontrar Cinderela desiste de caçar a corça, pois percebe que isso era algo que ele fazia de forma automática, apenas porque todos faziam. Ele se apaixona por ela, uma simples camponesa, e não desiste de fazer dela sua esposa. Ou seja, ele abre a exceção em função do seu sentimento. Podemos então dizer que ele possui uma relação mais saudável com o feminino e com sua função sentimento. Ele está apto então a trazer esse equilíbrio para a consciência.

O rei nos contos deve ser fértil para que o reino também seja, e ele não pode ser fértil sem sua contraparte feminina. Assim como a mulher também não se torna fértil sem sua contraparte masculina. Ao encontrar Cinderela e se volta para uma nova dimensão de sua alma, a da exceção em favor do sentimento, e ela se volta para uma coragem e uma força interior desconhecida. Acontece então o famoso baile e Cinderela é proibida de ir pela madrasta. E nesse instante aparece a famosa fada madrinha.

A fada como interpretamos anteriormente simboliza o espírito da boa mãe que permanece na heroína e no filme ela também aparece com o aspecto de velha sabia. Como no conto ela usa de magia para transformar os animais em cocheiros, a abóbora em carruagem e o vestido rasgado em um novo. O ato de usar magia nos contos de fadas para escapar de um perigo ou conseguir algo, significa que não se está pronto para enfrentar um conflito diretamente e para isso se usa um subterfúgio para contornar a situação.

Psicologicamente significa que, por vezes, não podemos enfrentar diretamente um conflito e precisamos aguardar o momento certo para isso. Esses conflitos muito difíceis não devem ser enfrentados apenas pelo ego, eles precisam da ajuda do Self. No filme, então, Cinderela não enfrenta a sociedade com sua identidade real. Ela precisou da magia para fingir quem não era e assim poder ser aos poucos conhecida pela sua beleza interna.

É interessante observar que a única coisa que a Fada Madrinha não transformou foi o sapato. Esse ela criou “do nada”! Os sapatos, assim como a roupa, estão ligados a persona. Com eles mantemos os pés na terra, simbolizando a atitude da realidade. Com ele podemos seguir um caminho e também pisar em alguém, mostrando o aspecto de poder do indivíduo (VON FRANZ, 2002). No filme e no conto eles mostram a classe social da pessoa.

Cinderela então está em busca de uma realidade própria, sua autoafirmação na sociedade e no mundo exterior sem seguir as convenções e padrões. O sapato no filme é de cristal.  Cristal em grego krystallos, significa “gelo” e simboliza tudo o que é puro, espiritual, se assemelhando ao diamante. Ele seria uma indicação da luz divina. O diamante é uma pedra de uma dureza imensa, sendo capaz de cortar até o ferro. Em contos de fadas é comum o herói ao final de sua jornada encontrar um diamante ou outra pedra preciosa, simbolizando a meta da individuação.

O cristal então assim como o diamante, então são símbolos da pedra filosofal. Ou seja, da meta da individuação, do Self. Ele simboliza a individualidade mais profunda do indivíduo e que não pode ser destruída. O sapato de cristal é a única coisa que sobrevive após o término da magia e é a única coisa que realmente pertence à Cinderela e que vai mostrar a sua verdadeira identidade ao príncipe. Ele é o símbolo da realidade única da personalidade de Cinderela, seu valor mais profundo diante da aparente pobreza. Ela pode se tornar rainha agora e enfrentar as irmãs e a madrasta, pois encontrou a sua meta.

Para Jung, é a anima no homem e o animus na mulher que indicam a meta da individuação. Ou seja, o amor pelo príncipe a fez seguir algo que ela nem sabia bem ao certo o que era e se era possível de alcançar, mas ela já não conseguia mais ficar parada sem agir. O príncipe então já rei, devido à morte do pai, vai ao encontro de Cinderela com o sapato perdido. E assim como no conto o sapato só cabe no pé da verdadeira dona.

No conto original as irmãs chegam a mutilar os pés para poder colocar o sapato, o que foi suprimido no filme para que não chocasse o público. Mas mutilar os pés significa que ninguém pode viver a vida de outro sem mutilar uma parte de sua própria personalidade. O Self nos manda sempre aquilo que devemos viver. A porção que nos cabe e que é só nossa.

Cinderela então se torna rainha e o reino encontra a renovação e o equilíbrio temporários, pois em breve uma nova aventura aparecerá, uma vez que esse reino uma hora precisará de outra renovação. Outros aspectos inconscientes deverão ser encarados. E é assim com a nossa vida também, constantemente somos forçados a olhar para outros aspectos desconhecidos de nós mesmos.

Referências:

EDINGER, E. F. – Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. A Interpretação Psicológica do dogma da Trindade. Vozes. Petrópolis: 1979.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 1999.

VON FRANZ, M. L. O gato – Um conto da redenção feminina. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2011.

 

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FICHA TÉCNICA DO FILME

Título Original (EUA): Cinderella
Direção: Kenneth Branagh
Música composta por: Patrick Doyle
Duração: 112 minutos
Ano: 2015

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