O espírito é como um jardim

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A afirmação do título é extraída da monumental obra de Victor Hugo, os Miseráveis – leitura obrigatória para quem deseja ultrapassar certas literaturas meramente comerciais de hoje em dia.

O bispo Muriel, personagem extraordinário e de breve passagem no livro, quando se coloca diante do protagonista, o jovem Jean Villejean, compreende que todas as contradições experimentadas pelo jovem são resultado do que foi “cultivado”, nele e por ele, ao longo de sua existência. Muriel conclui que, de fato, o espírito é como um jardim.

Embora seja uma afirmação saída da boca de um personagem que é bispo católico, a palavra espírito não está num contexto exclusivamente religioso. Ela significa, antes de tudo, aquele núcleo humano onde residem a delicadeza, a sensibilidade, a cortesia, a generosidade, a capacidade de apreciar o belo, de amar, enfim.

A afirmação, ontem como hoje, é acertada. Cultivar um jardim exige maestrias. É preciso estar atento a detalhes e alimentar paciências. Não se pode esperar que um jardim surja de um acaso, e nem que fique bonito de um dia para o outro. E, principalmente, não se pode esperar gerânios ou rosas, onde lançamos sementes de cravos ou jasmim.

O belo da vida é que somos permanentes jardins cultiváveis. Sempre há tempo. Mas cuido de chamar atenção aqui, especialmente, do nosso papel de jardineiros.

Como esperar que meu filho se interesse por leitura, se eu nunca plantei um livro em sua vida? Como pedir a ele fineza no trato com os mais velhos, se não consigo apreciar alguns minutos de convivência com meus pais? Como esperar uma vizinhança solidária, se eu jamais saí à calçada da minha casa? Por que reclamar da violência do trânsito, se eu me aproveito de qualquer chance para deixar o carro do lado para trás? A queixa pela corrupção faz sentido se eu sequer respeito a vaga reservada às pessoas com deficiência?

Jardins não nascem espontaneamente. Eles são cultivados. As belezas surgirão na medida em que as plantarmos, porque o espírito humano, como disse Muriel, é um jardim. Cultivemo-lo.

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Publicitária investe em projeto social no Jardim Taquari

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Iniciativa idealizada por  Neyla Rodrigues ganhou nome de “Meninas de Deus” – Foto: Divulgação

Neyla Rodrigues não acredita em preconceito racial, e sim, em preconceito com pessoas menos favorecidas economicamente. Diante de injustiças e até do abandono deste grupo social, por parte dos governos e da própria sociedade, a publicitária decidiu dedicar grande parte do tempo para atender necessidades de crianças carentes que passam por abuso sexual e, em alguns casos, a indiferença da própria família.

 O En(Cena) entrevistou a publicitária Neyla Rodrigues, 35, empresária e idealizadora do Projeto Social “Meninas de Deus”, no setor Taquari, bairro da cidade de Palmas-TO. A iniciativa nasceu de um apelo social, mas também de uma visão prática de que é possível fazer mais, cobrando ação:  “Se puder ajudar uma criança hoje, não terá que restaurar um adulto amanhã”, alerta o slogan do projeto.

Há mais de 10 anos o trabalho voluntário entrou na agenda de Neyla Rodrigues. Mas um episódio, em 2013, fez uma reviravolta na vida dela. O caso de estupro ocorrido no setor Taquari, envolvendo uma adolescente, lhe deixou comovida e a fez tomar decisão de se dedicar ainda mais, para ajudar famílias e, principalmente, crianças e adolescentes em situação de risco social. Neyla estava na sala de espera de um consultório médico quando ficou sabendo da história de uma menina de 12 anos que foi estuprada, esfaqueada e deixada como morta no local do crime. “Quando fiquei sabendo dessa história, imediatamente procurei informações e descobri que, até mesmo a equipe médica do Hospital Geral de Palmas, chorou quando recebeu a adolescente para atendimento de urgência”. A publicitária relembra que, a menina chegou a ficar 90 dias em coma.  “Atualmente, mesmo com as marcas de agressões no rosto, ela já está estudando e fico orgulhosa, pois, ela busca referências minhas para o futuro”, diz.

Com visitas de rotina ao setor Taquari, a publicitária conheceu de perto a realidade de cerca de 400 famílias no bairro.  “Eu uso método individual para cada caso, não tenho uma formula mágica, minha fórmula não é dar cesta básica”.  Neyla acredita que cesta básica é apenas uma tentativa para distrair a pessoa da situação em que ela vive. “Confronto as meninas para tentarem mudar a situação de suas vidas, ensino a não dependerem de ninguém e a terem o controle de suas ações”, explica.

Neyla Rodrigues – Foto: Arquivo Pessoal

Para tornar de conhecimento público, sensibilizar e conscientizar sociedade, a publicitária criou uma página na rede social Facebook, para as postagens diárias. O conteúdo publicado conta com vídeos, imagens e textos contando um pouco da realidade e histórias que acontecem no Taquari. Neyla dá detalhes do projeto na entrevista para o En(Cena).

En(Cena) – O que a motivou começar o projeto “Meninas de Deus”, no Taquari?

Neyla Rodrigues – O caso de uma menina de 12 anos que foi estuprada e deixada como morta. Por já desenvolver um projeto social há dez anos, os piores casos sempre chegam até mim. Os moradores de Taquari já estavam há algum tempo pedindo que eu começasse o meu trabalho lá com as crianças e adolescentes, principalmente porque é grande o uso de crack em Taquari.

En(Cena) – Quais os principais problemas que você atende no Taquari?

Neyla Rodrigues – O meu foco são as crianças e adolescentes, não trabalho muito com adultos (risos…), eu gosto da espontaneidade e verdade das crianças. São casos de miséria, drogas, violência e prostituição, tento resolver qualquer coisa, não posso me prender a uma fórmula.As pessoas confundem muito, pedem pra visitar achando que é um abrigo, mas se fosse, eu estaria presa a resolver apenas um tipo de problema. Em certos casos, para ajudar uma criança eu procuro a fundo pesquisar todo o problema familiar, até que, tudo esteja resolvido e essa família tenha condições de ter uma vida digna sem precisar de ajuda. Eles confiam em mim e não gostam de receber visitas como se eles fossem atração de um circo, e eu respeito isso. Enfim, busco evitar que as crianças se envolvam com as drogas ou a criminalidade, temos encontros semanais em praças, quadras, casas emprestadas. Além disso, buscamos internações para usuários e empregos para os pais, todo mundo tem um talento para fazer algo bem feito, buscamos isso nas pessoas, capacitamos, fazemos “vaquinhas”, enfrentamos a burocracia. Não é tudo lindo como nas redes sociais, (página do facebook criada para buscar apoio voluntário), tem todo um desgaste burocrático e que toma muito tempo. Por exemplo, temos casos de meninas com tendências a prostituição, devido a mãe ser prostituta e influenciar a elas que também fossem. Diante disso tudo,não sou a favor de enviar alguém para abrigo, pois, penso eu, gera uma situação de abandono.


Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação

En(Cena) – Você teve que abandonar projetos da sua vida para se dedicar a outras pessoas?

Neyla Rodrigues – Sim. Os piores problemas chegam até mim 24h, tenho que acordar de madrugada todos os dias, ou trabalhar até tarde pra conseguir conciliar tudo. Mas, estou acostumada, sempre trabalhei sem horário de almoço, sem final de semana ou férias. Fico infeliz se não estou ajudando, é mais forte do que eu.

En(Cena)  –  Amigos e familiares, qual a opinião sobre sua dedicação com o Projeto?

Neyla Rodrigues – A minha filha entende bem, ela sabe que na verdade é a vontade de Deus e então ela me apoia. O resto da família tem medo porque envolve estupro, pedofilia, drogas, criminosos.

En(Cena)  – O contato com usuários de drogas, você teme pela sua segurança?

Neyla Rodrigues – Não temo pelo contato com os usuários em si, eles me veem como a última esperança deles, eles temem por mim mais do que eu mesma, eles se preocupam comigo. Mas, já recebi muitas ameaças. Trabalhar com projetos voluntários requer cuidados e critérios de segurança pessoal. Já estive em situações que me ofereceram riscos de morte. Eu enfrento problemas com pedofilia, pessoas usuárias de crack, tento tirar essas pessoas dessa vida e já aconteceu de eu ser ameaçada.

Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação

En(Cena) – No seu pensamento, qual seria a formula para melhorar a qualidade de vida dos menos favorecidos?

Neyla Rodrigues – Eu costumo dizer que se você puder ajudar uma criança hoje você não terá que restaurar um adulto amanhã. Tudo começa na infância, ensinar a criança a seguir princípios, ser correta, ensinar a sonhar, porque se você pode sonhar você pode realizar. A maioria cresce sem a companhia das mães, os pais têm que trabalhar e não têm tempo pra educar, esses pais, estão sempre preocupados com a fome, então, não sabem nem o que ensinar. Eles precisam conhecer Deus, saber que são amados e que podem ser quem eles quiserem ser. Trabalho! Trabalho bem remunerado melhora a vida das pessoas. Sempre que damos presentes pra crianças pobres acreditamos que pode ser qualquer coisa. Mas, quando o presente é para pessoas de classe rica, sempre procuramos o melhor, sendo que, os ricos já tem contato com o que é de melhor, devemos mudar essa forma de pensar na sociedade.

En(Cena) – Conta com parcerias e ajuda de classes sociais e do governo?

Neyla Rodrigues – Não tenho ajuda do governo, algumas pessoas tem nos ajudado com doações de roupas, alimentos e brinquedos. Pouquíssimas pessoas ajudam financeiramente. Temos muitas crianças com problemas graves de saúde, que precisam viajar para tratamento, uma delas morreu semana passada de leucemia, pois, necessitava de atendimento em Goiânia. As pessoas, em certos casos, querem doar amor, mas, entendemos que, amor sem obras, não chega a solucionar o problema. Enfim, casos como esses dependem de investimentos, até mesmo para as internações dos usuários de drogas. Enfim, recebo mais ajuda das pessoas que quase nada tem e que moram em Taquari, do que pessoas que possuem recursos para investimentos voluntários.

Neyla Rodrigues em atividade do Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação

En(Cena) – O que pretende fazer para o Natal dessas famílias nesse final de ano?

Neyla Rodrigues – Vou fazer só para uma parte deles, cerca de 1.000 crianças. São mais de 4.000. Haverá entrega de brinquedos e lanches, pretendo conseguir chocotone, pois eles comentam muito e sonham com isso, mas acho que esse ano não vai dar.

En(Cena) – Como você resumiria sua historia de vida?

Neyla Rodrigues – É parecida com a deles! Claro, em contextos diferentes. Eu já me vi assim desamparada, sem ter com quem contar, e eu sou uma pessoa dedicada e perfeccionista, não tenho preguiça de trabalhar, mas qualquer pessoa pode passar por momentos assim onde tudo pode dar errado. Deus sempre realizou muitos milagres na minha vida, e por incrível que pareça Ele (Deus), sempre usou desconhecidos para me oferecer oportunidades, e eu aproveitei todas elas. Eu tento repetir isso com as pessoas que estão em contato comigo, e funciona, já são vários os casos “perdidos” que agora são casos de sucesso.

Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação

Tenho testemunho de muitas meninas fazendo faculdade, ou trabalhando e ajudando os pais. Eu não suporto ver ninguém sofrendo, porque eu já sofri demais, ver a alegria das pessoas me faz feliz. Saber que as crianças estão seguras, alimentadas, brincando, que não será um futuro marginal.. Ver usuários de drogas restabelecidos, trabalhando, me ajudando a ensinar contra o uso de drogas… isso me realiza!

Quem tiver interesse em ajudar, podem entrar em contato pela página do facebook –https://www.facebook.com/meninasdedeus12?ref=ts&fref=ts

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Sentidos Teóricos da Humanização e seus desafios concretos no cotidiano

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Os múltiplos entendimentos trazidos pela palavra humanização apontam atributos de vários sentidos, tanto teóricos como práticos levando em consideração os desafios sociais, econômicos e políticos para sua efetivação no SUS. Existe imprecisão e até mesmo confusão, que se expressam em várias ações ditas humanizantes ou humanizadoras.

Inicia-se o assunto sobre humanização a partir do reconhecimento da desumanização, trazendo o questionamento humano sobre a viabilidade da primeira a partir da constatação da segunda. Conforme explicita Paulo Freire (2005, p. 32), “ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscrevem (os homens enquanto seres humanos) num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão”. Para Freire, a humanização é uma vocação do ser humano, embora uma vocação negada e afirmada na própria vocação. É negada na existência da injustiça, da exploração, da opressão, da violência, da dominação dos que oprimem e dominam. É afirmada no exercício da liberdade, da justiça, da luta daqueles que sofrem a opressão e a dominação, ao recuperarem a “humanidade roubada” (FREIRE, 2005).

Por se tratar de uma realidade concreta e contraditória instaurada na necessidade da existência da humanização a partir do conceito de desumanização, Freire (2005) também aponta a superação desta contradição de maneira objetiva. Existe a exigência da superação, da transformação da situação concreta geradora da opressão, neste caso, da desumanização (repetido).

A transformação objetiva da situação desumanizadora é combatente da imobilidade subjetivista que espera pacientemente que um dia a opressão desapareça.

A desumanização (situação opressora) não se vê exclusivamente em quem tem a humanidade roubada, mas também nos que roubam, como uma imagem disforme da vocação original. É distorcida historicamente, mas não é histórica. Se a aceitássemos como sendo vocação histórica do ser humano, seria aceitar cinicamente ou desesperadamente essa realidade sem mais nada ter a fazer, além disso. A busca pela humanização, pela liberdade, pela desalienação, pela condição do ser humano como pessoa para si, seria sem sentido. Essa busca parte do reconhecimento da desumanização, embora seja concreta na história, não é um “destino dado”, mas resultado da ordem social injusta geradora da violência dos que oprimem e dominam. A humanização é o ser mais enquanto a desumanização é o ser menos no pensamento de Paulo Freire. A humanização se faz necessária num mundo onde o ser humanose encontra afastado de sua humanidade objetiva e subjetiva. Suas ações se encontram normatizadas de proibições e valorações, simbologias e mitos e ritos que ditam o que e como fazer (PAIM, 2009).

Com isso, não se está negando a subjetividade, mas o subjetivismo. Não se pode pensar em objetividade sem considerar a subjetividade. Uma está imbricada na outra e não existe uma sem a outra. Portanto, não há dicotomia. Há contradição, ou seja, uma e outra ocupam seu lugar na realidade.

A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade (FREIRE, 2005, p. 41).

A compreensão confusa entre o conceito de subjetividade com subjetivismo, seria a negação da importância deste conceito, seria a decadência para um simplismo pautado na ingenuidade. O pensamento freireano, aponta para a necessidade de uma humanização por haver uma desumanização histórica. Neste sentido, o SUS, por meio da política de humanização reconhece esse processo amplo em que se constitui a desumanização na sociedade brasileira. No entanto há que se observar que

o SUS é apenas uma das respostas sociais aos problemas e necessidades de saúde da população brasileira. Ao lado dele, políticas econômicas, sociais, ambientais são fundamentais para a promoção da saúde e da redução dos riscos e agravos. Reformas Sociais como a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Reforma Educacional, a Reforma Política e Tributária constituem, intervenções de amplo alcance, que ultrapassam as possibilidades do SUS (PAIM, 2009, p.75).

O significado de humanização para a o campo da saúde, uma área em que suas práticas se fazem essencialmente necessárias, sob vários olhares, pode ser compreendida como um princípio de conduta de base humanista e ética; um movimento contra a violência institucional na área da Saúde; uma política pública para a atenção e gestão no SUS; uma metodologia auxiliar para a gestão participativa; uma tecnologia do cuidado na assistência à saúde (RIOS, 2009). No entanto, “os esforços para a humanização da atenção com práticas de acolhimento nas unidades ainda não foram suficientes para a mudança do modelo de desatenção vigente” (PAIM, 2009, p.90). Pode-se verificar que o SUS incluindo a PNH, está em um terreno de tensões e de desafios, no sentido do enfrentamento do modelo privatista neoliberal na saúde, em contraponto à visão biopsicossocial, uma das possíveis respostas gestadas pela ala do modelo sanitarista da saúde.

Na sociedade capitalista o modelo médico-assistencial privatista é o mais (re) conhecido mesmo não contemplando o conjunto dos problemas de saúde em sua totalidade na sociedade brasileira. Voltado à concepção individual, em que o usuário da saúde é dividido em dois grupos: os que podem comprar a mercadoria saúde através dos planos e seguros de saúde e aqueles que não podem comprar, os pobres. “No Brasil, o modelo médico-assistencial privatista tem origens na assistência filantrópica e na medicina liberal, é fortalecido com a expansão da previdência social e consolida-se com a capitalização da medicina nas últimas décadas. Entretanto, esse modelo assistencial que caracteriza a assistência médica individual não é exclusivo do setor privado” (PAIM, In ROUQUAYROL & ALMEIDA FILHO, 2003, p. 569), mas também se vê nas OSS (Organizações Sociais de Saúde), que assumem (terceirizam) o serviço de saúde de norte a sul do Brasil.

Atualmente percebe-se a necessidade de um modelo que não somente altere o modelo pelo modelo, mas o modo de se produzir saúde, ou seja, num movimento contra-hegemônico de quebra de paradigma (COELHO, 2008). Assim, tanto objetivamente quanto subjetivamente, a humanização na saúde é mais que uma proposta de um modelo, mas um novo modo de fazer. Não numa receita perfeita, um caminho em construção no próprio ato de caminhar, enquanto se caminha (CAMPOS, 2007), ou seja, no processo de trabalho nos serviços de saúde.

O processo de trabalho é um espaço interseçor[1] atravessado por distintas lógicas que se apresentam em atos traduzidos na forma atual hegemônica da medicina neoliberal, na forma da atenção gerenciada, nos modelos que se propõem a seguir o eixo das necessidades dos usuários. Têm-se aqui dois lados bem definidos refletidos no interior e no exterior da saúde: o próprio capital articulado ao financeiro, que aparece como atenção gerenciada e o lado anti-hegemônico dos projetos que apontam a saúde como um bem público, patrimônio de toda a sociedade, propriedade coletiva (MERHY, 2002), englobando, gestores, trabalhadores e usuários da saúde como agentes transformadores da realidade através do empoderamento e da emancipação enquanto seres sociais.

Para o autor, o espaço interseçor dos atos de saúde liga o trabalhador (e a gestão) com o usuário de maneira complexa. Não como dois conjuntos separados, mas como dois conjuntos interligados. Ambos estão num espaço comum de interseção entre dois conjuntos num processo de trabalho. No caso do trabalho em saúde, do ato de cuidar depreendido do trabalhador em saúde para o usuário, resulta numa interseção partilhada.

No processo de trabalho em saúde há um encontro do agente produtor (trabalhador/gestão da saúde), com suas ferramentas e conhecimentos e o produto final, que resulta no cuidado em saúde. Para o usuário (agente consumidor), a saúde em si é um valor de uso, algo útil que lhe permite estar no mundo e vivê-lo. As necessidades, do trabalhador e do usuário, as quais fazem parte do mesmo campo de atuação, os colocam como, agentes e consumidores portadores de necessidades macro e micro politicamente constituídas (MERHY, 2002).  O trabalho em saúde é, portanto, um trabalho que reflete um ato vivo, numa relação interseçora entre o trabalhador e o usuário, tendo a gestão como interferência nesta relação.

A humanização, desdobrada no espaço interseçor existente na relação trabalhador, gestor, usuário, é fundamentada no respeito e na valorização da pessoa humana, constituindo um processo que pretende a transformação da cultura institucional, conduzida por uma construção coletiva de compromissos éticos e de métodos para as ações de atenção à Saúde e de gestão dos serviços (RIOS, 2009). Humanizar a atenção à saúde é valorizar o trabalhador e o usuário, considerando o mundo do trabalho como co-gestão e corresponsabilização (PAIM, 2009, p.90). Tanto o trabalhador como o usuário são co-gestores da saúde. São corresponsáveis pelo sistema de saúde e seus serviços. Não se separa a gestão do trabalhador e tampouco do usuário. São sujeitos transformadores da realidade e de seus resultados.

A humanização agrega esses sujeitos e aponta para um entendimento que configuram um núcleo conceitual de humanização, dando ênfase à ética relacional entre usuários e profissionais de saúde. Apresenta-se também a ligada aos direitos humanos, como o direito à privacidade, à confidencialidade à informação, ao consentimento do usuário nos procedimentos médicos e o atendimento respeitoso por parte dos profissionais[2].

A história, marcada por desrespeitos e maus tratos à saúde demonstra que a conquista por direitos sociais, embora iniciada com a Revolução Francesa de 1789, somente se consolida no Brasil no final do século XX, refletido na conquista do direito à saúde, de forma gratuita e universal inaugurada pelo SUS. As teorizações deram lugar às práticas de saúde que entendem o direito à saúde não somente como direito às ações e serviços de saúde, mas como direito ao estado vital saudável (estado de saúde) (PAIM, 2009, p.115). O conceito de saúde atual adotado pela OMS, Organização Mundial de Saúde, extrapola o sentido da ausência de doenças e traz o ideário do pleno bem-estar físico, mental e social, ou seja, não se pode pensar em saúde descontextualizada dos aspectos sociais e psíquicos.

Dessa forma, humanização na saúde implica uma mudança de atitude na gestão dos sistemas de saúde e nos serviços, significando alterar o modo como usuários e trabalhadores da área se integram entre si. Um de seus principais objetivos é fornecer um melhor atendimento aos usuários e melhores condições de trabalho aos trabalhadores.

Humanizar a saúde também significa mudanças nas mentalidades dos indivíduos, mudanças estas criadoras de novos profissionais mais capacitados, que melhoram o sistema de saúde e inauguram novos paradigmas. Pode-se dizer, portanto, que se trata de uma “estratégia de interferência no processo de produção de saúde, através do investimento em um novo tipo de interação entre sujeitos, qualificando vínculos interprofissionais e destes com os usuários do sistema e sustentando a construção de novos dispositivos institucionais nesta lógica” (DESLANDES, 2004, p. 11). Quanto ao fator interativo, transdiciplinar e complexo, busca-se trabalhar pela transdiciplinaridade, sendo a horizontalização das relações de poder entre os diversos saberes, sem descartar a clínica, na o que indica que em saúde se faz sempre necessário não separar, nem dissociar a questão clínica das normas de organização do trabalho e sua gestão (ONOCKO CAMPOS, 2005).

Entendendo que se trata de uma proposta inovadora, pode-se compreender também que, como proposta política que dá sustentação e retorno a tantas ações e sentidos, foi criada em 2003, pela Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, a Política Nacional Humanização (PNH), a qual implica em modos diferentes de operar no campo da saúde. A partir dessa compreensão, é relevante o estudo da humanização como produto da PNH, que orienta uma conduta humanizada por parte dos trabalhadores de saúde na relação trabalhador-trabalhador, trabalhador-trabalho, trabalhador-gestor e trabalhador-usuário.

Buscar conhecer o sentido da humanização numavisão defensora de que os indivíduos e a sociedade concebem e entendem a realidade como uma criação da interação social de indivíduos e grupos, é não apostar numa explicação pronta da realidade, pois “explicar” a realidade social seria menosprezar os processos pelos quais a realidade é construída.

Quanto à operacionalização da humanização enquanto política pública é necessário atentar para que o uso dos dispositivos não se torne impositivo e para que a PNH não se torne uma política de linha dura, implantada de cima para baixo, como determinações políticas dos gestores por meio da co-gestão e fomento de redes.

É importante manter à vista também o princípio da indissociabilidade entre a atenção e a gestão e buscar efetivar na prática esta indissociabilidade por meio da co-gestão e fomento de redes. A busca pela construção do empoderamento dos sujeitos é o maior desafio de qualquer política pública ou realidade social.

 

Notas:

[1] Preservada a grafia original da obra Saúde: a cartografia do trabalho vivo. (MERHY, 2002).

[2] Dicionário da Educação Profissional em Saúde, FIOCRUZ, disponível emhttp://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/hum.html, acessado em 16 de janeiro, às 9h e 58 min.

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Resiliência: da muleta para o triathlon

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Acidentes acontecem e quando acompanhados de sequelas físicas podem acarretar problemas de saúde mental, seja pela inatividade, por não aceitar a situação ou por outros motivos. No período pós-acidente, onde o paciente está em fase de recuperação, muitos deles precisam trocar sua rotina agitada por descanso e repouso. Nesse período, é fundamental que o paciente ocupe sua mente com outras atividades. Isso garante o bom funcionamento do cérebro e contribui para a preservação da saúde mental do indivíduo. Ser resiliente é importante.

A psicologia define a palavra resiliência como a capacidade de uma pessoa lidar com os seus próprios problemas, vencer obstáculos e não ceder à pressão, independente da situação. Em termos gerais, a resiliência é a capacidade de voltar ao seu estado natural, principalmente após alguma situação crítica e fora do comum.

Para mostrar que é possível mostrar resiliência em situações difíceis, o (En)Cena entrevistou Rafael Felipe, Analista de Comunicação, estudante de Publicidade e Propaganda e praticante de triathlon nas horas vagas. Em 2005 vivendo a plena juventude, Rafael sofreu um acidente jogando bola e depois de muitas complicações cirúrgicas ficou dois anos andando de muletas. Durante esse período, Rafael teve que abandonar todas suas atividades como trabalhar, estudar e praticar esportes, mesmo assim conseguiu manter sua saúde mental em perfeito estado.

Foto: arquivo pessoal

(En)Cena – Como era sua vida e suas atividades antes do acidente?

Rafael Felipe – Eu sempre pratiquei esporte como lazer. Jogava futebol, futsal, vôlei, tênis de mesa e nadava, mas nada com fins de rendimento ou algo parecido, apenas como lazer e diversão

(En)Cena – Em que ano foi o acidente e quantos anos você tinha? Como o acidente aconteceu?

Rafael Felipe – Foi em dezembro de 2005. Eu tinha 22 anos. O acidente aconteceu em uma noite de terça-feira, como era de praxe, fui jogar futebol society com meu irmão e amigos. Nos primeiros 10 minutos um rapaz que não conheço, por falta de perícia (habilidade mesmo), somado com a grama molhada da chuva, pulou em meu joelho. A pancada foi tão grande que o barulho foi gigante. Fiquei alguns minutos gemendo de dor. Meu primo chamou a SAMU, mas como o atendimento em Palmas é complicado, meu primo entrou com meu carro dentro do campo e me carregou para o hospital. Fui para o HGP que é bem complicado.

(En)Cena – Foi atendido no mesmo dia? Qual foi o diagnóstico?

Rafael Felipe – Fui atendido depois de muito tempo e minha mãe querer entrar com medicamento para dor. Fiquei algumas horas em uma cadeira de rodas. O primeiro diagnóstico falava que poderia ser uma ruptura ligamentar, mas fiz um raio-x que apenas mostrou que havia quebrado o fêmur bem na ponta, coisa pouca. Aí tive que fazer uma ressonância. Na época em Palmas não tinha, então dia 26/12 fui pra Goiânia e fiz a tal ressonância que confirmou a ruptura do Ligamento Cruzado Posterior e derrame da articulação devido a pancada e quebra do fêmur.

(En)Cena – Quais foram as consequências?

Rafael Felipe – Então, aí começam as complicações. Com a ruptura, deve-se de imediato fazer a cirurgia. Mas o médico ficou me enrolando por mais de 6 meses e eu fazendo fisioterapia. Por dois meses pela dor me locomovia com cadeira de rodas e depois sempre de muletas com um imobilizador de joelho que é de neopreme com barras de alumínio. Até que busquei uma segunda opinião.

(En)Cena – E a segunda opinião que você buscou constatou a mesma coisa?

Rafael Felipe –Não. Graças ao meu bom Deus o médico era bom e consciente. Falou que se ele fosse meu médico me operaria dias depois da lesão. Aí mudei pra ele. Ele foi muito ético, falou que eu tinha um médico e não podia ir direto pra ele. Eu falei “eu assumo e preciso resolver meu problema”. Fiz diversos exames até fazer as cirurgias.

(En)Cena – E ocorreu tudo bem nas cirurgias? Quais foram os resultados?

Rafael Felipe – Três dias antes da primeira cirurgia eu estava gripado e fui ao SAU. Falei pra uma médica e ela me receitou um medicamento forte. Tomei. Fiz os exames normalmente. Aí na primeira cirurgia a anestesia raquidiana deu rejeição com o medicamento que eu estava tomando. Então durante as 7h30 de cirurgia, todos os meus batimentos cardíacos ficaram acima de 175 por minuto. Só na hora da cirurgia que apareceu o problema. Acordei com aquele monte de aparelhos em volta de mim, caso meu coração parasse. Eu poderia ter morrido.  Mas como sempre falo, acho que bati na porta lá em cima e falaram: “putz, é o Rafael, ele é chato demais, manda de volta”. (risos)

(En)Cena – Deu tudo certo nessa cirurgia?

Rafael Felipe – Sim. No outro dia ainda internado foi feito novos exames que constaram que um dos pinos que foi colocado na minha perna, na verdade o tendão usado para ser o ligamento, rasgou. Ou seja, teria que fazer mais uma cirurgia. Porém isso era sexta à noite. O médico, devido ao problema no coração, só faria a outra cirurgia após a avaliação de um cardiologista. E pra variar aqui em Palmas tem uma máfia dos cardiologistas. Só tem um lugar que faz todos os exames e não funciona no sábado. Precisava dos exames para fazer a cirurgia no domingo cedo. Uma médica amiga conseguiu abrir o Cardiocenter no sábado pra me atender. Fiz os exames e não deu nada de errado. Foi apenas o medicamento que eu tinha tomado antes para gripe que causou o problema na cirurgia. Meu coração estava 100%. Aí fiz a cirurgia no domingo.

(En)Cena –  E como foi essa segunda cirurgia?

Rafael Felipe – Foi tudo beleza. Na segunda cedo o médico disse que eu estava há muitos dias no hospital e eu podia ir pra casa e ficar muito quieto. Mas é complicado. Chegando em casa, milhões de visitas e eu “quase não falo”. No mesmo dia à noite, em casa, comecei a sentir falta de ar e tive uma parada respiratória proveniente de uma embolia pulmonar. Na hora que minha mãe ligou pro meu médico, ele na hora mandou a esposa dele, pois pra minha sorte ela é pneumologista. E ele sacou na hora que deveria ser isso. Meu pai foi muito rápido também. Na hora que minha esposa falou pra ele que eu estava mudando de cor (risos), ele deu umas “porradas” em mim pra eu continuar respirando. Ele e minha mãe voaram para o hospital. Fiquei na UTI uma madrugada e parte do dia todo entubado. Fiquei uns dias no hospital e por 25 dias fiquei tomando anti-coagulante, uma injeção desagradável que dá na barriga. Aí depois disso foram mais 4 cirurgias mais tranquilas, mas todas com a tal anestesia chata.

(En)Cena – E depois de tudo isso, o que aconteceu que você ficou dois anos sem andar?

Rafael Felipe – Devido ter demorado a fazer a primeira cirurgia, o joelho criou um monte de coisas. Foram 6 cirurgias e cerca de 380 sessões de fisioterapia.

(En)Cena – Mas nesses dois anos você se locomovia de cadeiras de rodas, muleta ou de que forma?

Rafael Felipe – De muletas. Eu não conseguia andar pela dor e também porque perdi o movimento das pernas.

(En)Cena – O que mudou na sua rotina após o acidente?

Rafael Felipe – Tudo. Eu tinha uma vida bem ativa. Trabalhava, fazia faculdade. Vida bem agitada. Aí do nada, tinha que ficar paradão. Dependia dos outros pra fazer tudo. Nos primeiros dias, até banho era difícil.

(En)Cena – Como foi o desafio de viver com limitações durante o período pós-acidente? Quais eram suas principais dificuldades durante esse tempo?

Rafael Felipe – Nossa, eu que não parava, ficar na inércia em casa era bem complicado. Eu passei a maior parte do tempo em casa. E antes eu quase não ficava em casa.

(En)Cena – Psicologicamente, como você reagiu ao saber que ficaria sem andar por um tempo e não poderia ter a vida ativa que você sempre teve?

Rafael Felipe – A princípio parecia tranquilo. Mas com o tempo começou a pesar. Era um sentimento de impotência, de não poder fazer tudo que fazia normalmente.

(En)Cena – Você desenvolveu sentimentos como raiva, medo, angústia, tristeza, essas coisas?

Rafael Felipe – Eu sou muito zen. Fiquei sempre ansioso, isso sim.

(En)Cena – Em algum momento passou pela sua cabeça que você jamais poderia voltar a fazer suas atividades, como praticar esportes?

Rafael Felipe – Sim

(En)Cena – E quando você pensava nisso, o que imaginava? Que sentimentos você alimentava?

Rafael Felipe – Como te falei sou zen e sempre tive Deus comigo. Então sentimentos ruins foram poucos.

(En)Cena – E quais eram as expectativas médicas e as suas próprias expectativas?

Rafael Felipe – Então, depois de um ano que voltei ao normal, acabei virando amigo do médico e ele comentou comigo que não esperava que eu fosse voltar a ficar quase 100% como fiquei. E dei muito trabalho pra ele.

(En)Cena – Nesse período que você ficou inativo, você parou tudo? Inclusive faculdade e trabalho?

Rafael Felipe – Sim. Mas abre aspas, fiz minha filha (risos). Mas não podia trabalhar nem estudar. De manhã e tarde fisioterapia, mas na empresa eu não podia ir. Fiquei encostado pelo INSS.

(En)Cena – E o que você fez para passar o tempo, já que não podia fazer esforço físico?

Rafael Felipe – Comia e assistia filme (risos). Por isso cheguei a pesar 100kg.

(En)Cena – Estudos científicos revelam que para uma boa conservação mental, o indivíduo deve ocupar sua mente, para que ela esteja sempre trabalhando. Você não fez mais nada além de comer e assistir filme?

Rafael Felipe – Fiz sim. Como trabalho com computador, fiz vários projetos pela empresa do meu pai. Alguns freelas de publicidade mais voltados para web. Li alguns livros também.

(En)Cena – Qual foi o papel da sua família em sua reabilitação física e conservação da sua saúde mental?

Rafael Felipe – Fundamental. Apoio mais que 100%. Sem eles eu nem sei o que seria de mim.

(En)Cena – Após sua completa recuperação, que atividades você voltou a fazer? Começou algo novo?

Rafael Felipe – Em maio de 2007 fui pra Floripa assistir uma prova de triathlon e me apaixonei por aquilo. Mas com mais de 92kg era difícil. Aí comecei a nadar, pedalar e correr.

(En)Cena – Foi assim que emagreceu novamente e voltou ao peso normal?

Rafael Felipe – Exato.

(En)Cena – E hoje você pratica triathlon apenas por lazer ou profissionalmente?

Rafael Felipe – Por hobby, isso vicia. Profissionalmente nunca. (risos)

Fotos: arquivo pessoal

(En)Cena – Que dica você pode dar para os internautas no sentido de manterem sua saúde mental em perfeito estado, mesmo em situações semelhantes a que você passou?

Rafael Felipe – Ter fé e confiar no cara lá de cima, e buscar preencher a mente com algo.

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