Masculinidade e Feminilidade no contexto sociocultural contemporâneo

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O homem moderno se vê defronte a um dilema quase que incompreensível aos indivíduos amarrados e emaranhados ao machismo estrutural. Ao longo de um passado não tão distante a sociedade lutou em sua tendência patriarcal contra a ascensão de qualquer tipo de manifestação enaltecedora do feminino. Isso pode ser observado, por exemplo, na maneira como o cristianismo clássico apagou diversos aspectos de religiões pagãs a partir do primeiro milênio, onde as figuras divinas eram descentralizadas e figuras femininas de poder eram enaltecidos, o mesmo as mulheres ocupavam o papel sacerdotal e espiritual proeminente (LEMOS, 2012).

O cristianismo é que citado por ser frequentemente associado com a base de valores que moldaram a sociedade moderna e pós-moderna, e também foi pivô na propagação da cultura patriarcal, com sua estrutura religiosa se organizando em uma trindade que enfatiza o papel do masculino em detrimento do feminino.

Essa característica fica imputada com mais veemência nas linhas protestantes de cristianismo; o catolicismo com sua versão modernizada do politeísmo representada nos santos dá espaço para os arquétipos representados nas imagens santas, porém ao invés de adorados como divindades, esses santos são intermediários entre o deus maior; já o protestantismo e suas variações futuras apaga essa grande variação arquetípica, eliminando os santos do dogma e tratando a maneira como os católicos recorrem a eles como adoração profana. Assim, grandes arquétipos perdem força no imaginário e na cultura cristã desse recorte populacional protestante, principalmente o da Grande Mãe, representados pela Virgem Maria, este que se apaga totalmente em detrimento da Trindade Pai, Filho e Espírito Santo. (DE AZEVEDO-MESQUITA, 2015)

Fonte: Pixabay

A Masculinidade Frágil Como Fenômeno Cultural

Esses exemplos citados anteriormente marcam alguns acontecimentos históricos que conduziram o pensamento cultural generalizado em direção a essa tendência patriarcal. Porém, há alguns anos a cultura e a indústria vem acompanhando um movimento social de rebelião contra esses preceitos muito enraizados, e dessa forma, vem trazendo o fenômeno que é o feminismo aos holofotes, demonstrando um movimento do inconsciente coletivo para ressaltar esse fenômeno cultural. As mulheres anseiam por mais visibilidade, por salários equivalentes, por mais participação ativa nas comunidades e principalmente o respeito por seus corpos e sua individualidade.

Logo, é possível observar a cultura crescendo ao redor dessa imagem feminina novamente. Nos últimos anos a quantidade de protagonistas femininas para os grandes blockbusters tem crescido de maneira vertiginosa, personagens pertencendo a outros espectros da sexualidade com grande representatividade para os LGBTQI+ também tem visto suas tramas serem escritas e contadas em detalhes por grandes produtoras de audiovisual. Tudo isso é palco para o temor daqueles que antes podiam se ver representados em todas as mídias e histórias, de repente se ver entendo que dividir espaço de tela com pessoas que no seu âmago são diferentes de um padrão estabelecido através da história ocidental.

Fonte: Pixabay

Masculinidade E Feminilidade Arquetípicas

Para compreender mais um pra mente essas dinâmicas é importante conhecer o âmago do conceito de masculinidade e feminilidade. De acordo com o psicólogo suíço Carl Gustav Jung, em sua observação da psique humana, este constata a existência de diversos arquétipos, ou seja, construtos psíquicos que constituem a personalidade humana (JUNG, 2018). Entre esses arquétipos, os que tangem o conceito de masculino e feminino são a Anima e o Animus.

Animus seria a contraparte masculina arquetípica existente dentro de cada ser humano que já habitou este planeta; de maneira semelhante a anima é a contraparte feminina que existe dentro de cada ser humano (SANFORD, 1987). Dessa forma, conclui-se que cada indivíduo está sujeito a sofrer influência da contraparte arte típica oposta, isso inclui a parcela da população que se encontra imersa no machismo estrutural (JUNG, 2006). Mas o que teria acontecido com a mulher que vive simbolicamente no interior dessas pessoas?

No desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, durante a tenra infância e juventude, a relação com esses arquetípicos é moldada, muitas vezes baseada nas figuras paterna e materna (JUNG, 2006). E qualquer disfunção durante esse período, pode acarretar casos de anima ou animus negativo. Ou seja, a imago masculina ou feminina prejudicada de alguma maneira, devido a tudo aquilo que foi absorvido e da maneira como isso se deu (MENIN at al. 2007). Poderia uma nação ou a sociedade ocidental inteira sofrer coletivamente com um quadro de Anima negativa, que levaria eles a tratarem o feminino arquetípico da maneira como foi levado durante todos esses anos?

Conclusão

Conclui-se que os conceitos de masculino e feminino vivem um conflito devido a maneira como o masculino se impôs por sobre o feminino histórica e culturalmente ao longo das décadas a partir do primeiro milênio. O ser humano é constituído de diversas partes incluindo uma parte masculina e feminina, arquetipicamente falando; logo dentro de cada um se constituem resquícios da sexualidade predominante oposta a não predominante, o que pode gerar conflitos a depender da maneira como esses aspectos foram constituídos na personalidade daquela pessoa. Logo é possível imaginar que talvez um processo coletivo de adoecimento e má digestão de simbolismos psíquicos, pode acabar por ter gerado um grande complexo da população masculina Mundial quanto ao símbolo do feminino.

REFERÊNCIAS

DE AZEVEDO MESQUITA, Fabio. A Veneração aos Santos no Catolicismo popular brasileiro–Uma aproximação histórico-teológica. Revista Eletrônica Espaço Teológico. ISSN 2177-952x, v. 9, n. 15, p. 155-174, 2015.

LEMOS, Márcia Santos. Os embates entre cristãos e pagãos no Império Romano do século IV: discurso e recepção. Dimensões, n. 28, 2012.

JUNG, Emma.  Animus e Anima. São Paulo: Cultrix. 2006

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Editora Vozes Limitada, 2011.

MENIN, Fernanda; LOUREIRO, Lilian; MORAES, Noely Montes. A maldição de Eva: a face feminina da violência contra a mulher. Psicologia Revista, v. 16, n. 1/2, p. 51-71, 2007. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/18057/13417>

SANFORD, John A. et al. Os parceiros invisíveis: O Masculino e Feminino em cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.

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Breaking Bad: a evolução do declínio humano

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O universo cinematográfico tem investido pesadamente em séries que narram histórias reais de personagens de índole, no mínimo, duvidosas. Cada vez mais as séries e filmes em que se têm os vilões como protagonistas caíram no gosto dos telespectadores.

Uma série de televisão que deixou sua marca na história, por glamourizar o estilo de vida criminoso foi Breaking Bad. Lançada em 2008, contando com 05 (cinco) temporadas, a série de Vince Gilligan narra momentos da vida de um brilhante professor de química de uma escola de Albuquerque, Novo México, que se envolve com tráfico de Metanfetamina.

Walter White (Bryan Cranston), pai de família, um brilhante químico, conhecido por seus princípios éticos profissionais, sempre trabalhou honestamente para conseguir seu sustento. No início da história, White possui uma dupla jornada de trabalho, como professor e funcionário de uma empresa de Lava Jato, para garantir a subsistências de seus familiares.

Acontece que White já não dispõe de boa saúde, descobre que possui câncer de pulmão e que teria somente 18 meses de vida. Essa descoberta o leva a ter diversas preocupações, principalmente em como ficaria a vida de seus familiares após sua partida.

Fonte: encurtador.com.br/loAKT

Consciente de sua morte iminente, White busca encontrar meios de garantir renda para sua família e, certo dia, em uma confraternização de familiares, enxerga a oportunidade de levantar uma grande quantia em um curto espaço de tempo: traficando uma droga que possui um poder destrutivo e viciante gigantesco, a metanfetamina.

Apesar de ser um brilhante químico, Walter não conhecia o submundo do crime, mas sua inexperiência não o impediu de seguir com seu plano. Com a ajuda de um ex-aluno, Jesse Pinkman (Aaron Paul), White começa a construir um império e passa a se intitular de Heisenberg – uma homenagem a Werner Karl Heisenberg, físico alemão ganhador do Nobel Física de 1932 “pela criação da mecânica quântica, cujas aplicações levaram à descoberta, entre outras, das formas alotrópicas do hidrogênio”.

Heisenberg atraiu muito dinheiro e muitos problemas. Os espectadores acompanharam a transformação de um humilde professor que tinha certeza de sua morte em um traficante extremamente perigoso que passa a ter prazer naquilo que faz.

Essa transformação do personagem pode ser observada, nos ensinos de Carl Gustav Jung (Psicologia Analítica), como uma aproximação sucessiva com o lado destrutivo da sombra. Para essa abordagem, a sombra faz parte de todos os indivíduos, faz parte dos instintos que mais desejamos controlar (raiva, medo, ódio, luxúria, inveja etc.). Pode ser interpretada como a parte obscura da psiquê, entendida como o lado negativo de cada indivíduo, algo complexo e dotado de vitalidade autônoma.

Fonte: encurtador.com.br/qFIO3

Com Heisenberg a história não é diferente, momentos decisivos de conflito interno vão dando indícios de sua personalidade oculta se aflorando. Sua ambição financeira, seu desejo pelo poder, sua arrogância e complexo de superioridade. Todas essas características são apresentadas de forma sutil, até que somos surpreendidos com um diálogo do personagem com sua esposa, Skyler White (Anna Gunn), que estava preocupada com sua segurança e de sua família:

“Não estou em perigo, Skyler, eu sou o próprio perigo. Se baterem na porta de um homem e derem um tiro nele, vocês irão pensar que eu sou este homem? Não! Eu sou o que bate na porta.” (Episódio 06, Temporada 04).

O personagem nos traz diversas reflexões sociais, algumas interpretadas de forma errônea, mas, para o estudo psicológico, percebe-se não só a mudança comportamental, mas a exposição daquilo que o próprio indivíduo ocultava de seus pares.

Na Psicologia Analítica, semelhante à psicanálise, há subdivisões do inconsciente. Entre elas, há o inconsciente coletivo, no qual pode-se afirmar que “habita” as sombras, pois essa parte representa os instintos e desejos de que todo ser humano tem e que são observados por sonhos, alucinações ou outras manifestações humanas. Esse processo culmina no termo arquétipo, no qual representa uma figura simbólica sobre um dado grupo ou comportamento humano.

Fonte: encurtador.com.br/zEVX1

Walter White, nos primeiros momentos da série, demonstra e apresenta controle emocional e um contato mínimo do self, como um cidadão americano exemplar em todos os aspectos.

Contudo, no decorrer dos episódios, percebe-se que ele estava aos poucos dominado pela Sombra, apenas vivia a mercê de seus desejos, sem controle ou algum tipo de critério regulador. Isso culminou na manifestação de contravenções, fruto de comportamentos muitas vezes reprimidos e guardados no inconsciente que desafiam leis moras e que perturbam o indivíduo.

Nesse contexto, é possível inferir também que o protagonista vivenciou vários complexos, pois no decorrer da série foi possível observar profundos conflitos entre dilemas morais e desejos reprimidos do inconsciente.

REFERÊNCIAS

NORONHA, Heloisa. Todos temos um “lado sombra” da personalidade: o que é e como lidar com ele. Portal de Divulgação Científica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Publicado em 15 set 2020. Disponível em: < https://sites.usp.br/psicousp/todos-temos-um-lado-sombra-da-personalidade-o-que-e-e-como-lidar-com-ele/>, Acesso em 22 ago 2021.

LEVY Edna G. Sombra. Disponível em: < https://www.jogodeareia.com.br/psicologia-analitica/sombra/>, Acesso Em: 22 ago 2021.

LUIS, Alexandre Fernandes Ogasawara. A sombra na contemporaneidade: o impacto dos conteúdos sombrios no processo criativo na disciplina de Projeto de Produto do curso de Design. São Paulo, 2014. 43p. Monografia (Especialização em Psicologia Junguiana). Faculdade de Ciências da Saúde- FACIS.

PERIPOLLI, Monica Silveira. A química de Walter White: construção do anti-herói na narrativa de Breaking Bad. Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Ciências Sociais e Humanas. Departamento de Comunicação Social. 2015. Disponível em < https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/1778/Peripolli_Monica_Silveira.pdf?sequence=1&isAllowed=y>, Acesso em 22 ago 2021.

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Psicologia Analítica – Anima, Animus e a Coniunctio Alquímica

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Para falar de Animus e Anima é importante demonstrar que o conceito denominado hoje de masculino e feminino é algo relacionado ao longo dos milênios. Sua relação nos primórdios são com associações às Deusas e Deuses, bem como tantas figuras, masculinas e femininas, formando assim modelos, nos quais Jung denominou “arquétipos”, que podem se manifestar de diversas formas (SANFORD, 1987).

O conceito de “archetypus” só se aplica indiretamente às représentations collectives, na medida em que designar apenas aqueles conteúdos psíquicos que ainda não foram submetidos a qualquer elaboração consciente […] o arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta (JUNG, 2002, p.17).

O Animus e a Anima podem então ser manifestados através de diversas imagens arquetípicas. Jung, E. (2006, p.15) nos traz que:

Estas duas figuras uma é masculina, a outra feminina – foram denominadas de Animus e Anima por [Carl Gustav] Jung. Ele entende aí um complexo funcional que se comporta de forma compensatória em relação à personalidade externa, de certo modo uma personalidade interna que apresenta aquelas propriedades que faltam à personalidade externa, consciente e manifesta.

Há uma grande complexidade no entendimento dos conceitos de Animus e Anima, é preciso entender a forma que Jung nos mostra, porém, este tema não foi um conceito final, visto que muitas questões foram pontuadas desde os primórdios da Psicologia Analítica até aqui.

Embora este assunto possa ter parecido calmo e resolvido ao tempo de Jung, ele provoca hoje mais agitação do que em ninho de maribondo. A alguns contemporâneos parece que Jung foi um homem adiante do seu tempo, que previu e, com efeito, advogou um tipo de protofeminismo. Para outros, ele apresenta-se como um porta-vos de pontos de vista tradicionais estereotipados sobre as diferenças entre homens e mulheres. De fato, penso que ele foi um pouco de ambas as coisas (STEIN, 2006, p.116).

Fonte: encurtador.com.br/gFMVX

Mesmo Jung tendo descrito muito sobre esse assunto da Anima e do Animus, não há uma afirmação definitiva, sendo que de tempos em tempos ele apresentava sempre novas definições que complementavam aspectos diferentes dessas realidades, porém reafirma que a Anima é a personificação do elemento feminino na psique masculina enquanto que o Animus é a personificação do elemento masculino na psique feminina. Como todos os arquétipos, a Anima e o Animus tem formas de se manifestar, sendo positivas e negativas, podendo ser atraentes ou destruidores sendo comparados aos deuses e deusas que poderiam agir em prol da humanidade ou voltar-se contra ela (SANFORD, 1987).

A usual definição sintética diz que a anima é o feminino interno para um homem e o animus o masculino interno para uma mulher. Mas também se pode falar simplesmente delas como estruturas funcionais que servem um propósito específico na relação com o ego. Como estrutura psíquica, anima/us é o instrumento pelo qual homens e mulheres penetram nas partes mais profundas de suas naturezas psicológicas e se adaptam a elas. Assim como a persona está voltada para o mundo social e colabora com as necessárias adaptações externas, também a anima/us está voltada para o mundo interior da psique e ajuda uma pessoa a adaptar-se às exigências e necessidades dos pensamentos intuitivos, sentimentos, imagens e emoções com que o ego se defronta (STEIN, 2006, p. 120).

Entende-se então que quando há um domínio da anima no homem, este tende a se refugiar em sentimentos de mágoa e resignação, pois quando não está bem desenvolvida o afunda em um humor opressivo, enquanto que as mulheres sob domínio do animus tendem a trazer uma grande carga emocional nos seus pensamentos e opiniões que a controlam (SANFORD, 1987).

A Psicologia Analítica de Jung, muito aprofunda-se também nos conceitos da alquimia, pois, os processo alquímicos podem ser interpretados sob o prisma psicológico, e muito dizem sobre os conteúdos e mecanismos inconscientes.

Considerava-se a opus alquímica como um processo iniciado pela natureza, mas que exigia a arte e o esforço conscientes de um ser humano para ser completada […] A opus é, num certo sentido, contrária à Natureza, mas, em outro o alquimista auxilia esta última a fazer aquilo que ela não pode fazer por si mesma. (EDINGER, 2006, p. 28)

Sendo assim a relação Animus e Anima é muito abordado através do conceito alquímico da coniunctio (conjunção) como união dos opostos, sendo este o ponto máximo da opus. Portanto, a união dos opostos que foram separados de forma imperfeita, ou seja, não foram completamente separadas, caracterizando então a coniunctio inferior, essa fase é seguida pela morte, através do conceito de mortificatio.

Fonte: encurtador.com.br/nuvX5

Enquanto que a coniunctio superior está voltada para o conceito de “pedra filosofal” alquímica, que é o alvo da opus,  a suprema realização, resultante da união final dos opostos mas aqui, são opostos purificados e que combinados mitigam (suavizam) e retificam (harmonizam) a unilateralidade. Quando o ego se identifica com conteúdos inconscientes ele pode ficar exposto a identificações sucetivas com a Sombra, o Animus e Anima e o Si-mesmo. (EDINGER, 2006).

O casamento e/ou intercurso sexual entre Sol e a Luna ou outras personificações dos opostos. Essa imagem, nos sonhos, refere-se à coniunctio, superior ou inferior, dependendo do contexto (EDINGER, 2006). Sendo assim vemos o sol e a lua como arquétipos que se referenciam ao Animus (Sol) e Anima (Lua), sendo relacionados também ao simbolo do Yin Yang descrito no I. Ching, identificando que a figura possui dois lados, porém ambos os lados carregam com si uma parte do outro, pois ambos se complementam.

Jung (1931) fala sobre essa dinâmica em um de seus seminários, intitulado “Seminário sobre visões”, posteriormente dividido em doze partes (livros). Na parte cinco, Jung demonstra uma imagem alquímica na qual há uma mulher com uma árvore que cresce em sua cabeça, enquanto que há uma águia em cima da cabeça dessa mulher e pássaros ao seu redor, nessa figura há também o Sol do lado esquerdo e a Lua em seu lado direito.

No lado esquerdo da imagem da mulher está o símbolo do sol, no lado direito a lua referindo-se à união de masculino e feminino (na realidade, àquele processo alquímico) e o texto correspondente diz que à esquerda os pássaros do sol estão morrendo a morte branca e à direita os pássaros da lua estão morrendo a morte preta (JUNG, 1931/1964, p. 25).

A coniunctio alquímica pode apresentar duas diferentes naturezas, como por exemplo, se (a) o sonhador(a) encontra em seu sonho uma atração ou inimizade entre duas figuras, se trata de pelo menos um eco da coniunctio e quando há uma familiarização com essa imagética há uma maior facilidade em perceber um material inconsciente que até então era completamente invisível (EDINGER, 1995).

Com isso entende-se que o estudo dos processos alquímicos se mostra muito relevante para o psicoterapeuta junguiano, ao passo que a compreensão dos movimentos que ocorrem na psique presentes na alquimia, carregam consigo saberes e símbolos antigos, que se mostram em sua maioria, universais, portanto, fazem parte do inconsciente coletivo. A manifestação de Animus e Anima, será  diferente em cada indivíduo, mas o entendimento dos arquétipos e dos processos de mudança, presentes na alquimia, nos facilitam essa observação, de forma a nos familiarizar com os mesmos.

Fonte: encurtador.com.br/qsADT

Referências:

EDINGER, Edward F. Anatomia da psique. Editora Cultrix, 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (Coleção Obras completas de CG Jung, Vol. 9, ML Appy & DMRF Silva, trads.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1976), 2002.

JUNG, Emma. Animus e Anima/5º reimpressão da 1º edição de 1991–São Paulo. 2006.

The Mysterium Lectures. A Journey through C.G. Jung’s Mysterium Coniunctionis, Toronto: Inner City Books, 1995.

SANFORD, John A.. Os Parceiros Invisíveis. São Paulo: Paulus, 1987. 171 p. Tradução I.F. Leal Ferreira.

SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES” “The Visions Seminars”. Carl Gustav Jung Parte V. Seminários entre 11 de novembro e 16 de dezembro de 1931. SPRING 1964.

STEIN, Murray. O mapa da alma. 2006.

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A importância da Sombra para a clínica junguiana

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Apropriadamente, o fenômeno psicológico chamado sombra é tão complexo que mesmo as melhores definições dele são frequentemente por padrão: nós definimos o que a sombra não é para ter uma noção do que ela pode ser porque, sendo sombra, é difícil de olhar diretamente. Então aqui vai uma tentativa. “Sombra”, que significa nossa sombra psicológica ou pessoal, é composta por qualidades, impulsos e emoções que não podemos suportar para que os outros vejam e, portanto, lançamos no domínio oculto de nós mesmos.

A sombra tem muitos rostos: ganancioso, zangado, egoísta, medroso, ressentido, manipulador, fraco, crítico, controlador, hostil – continuamente. Este lado escuro de nós mesmos atua como um local de armazenamento para todas as coisas que consideramos inaceitáveis ​​em nós mesmos: coisas que nos envergonhamos e fingimos que não somos, aspectos que não queremos permitir que o mundo veja, e que nós muitas vezes não nos permitimos ver. Ele fica oculto, logo abaixo da nossa superfície, mascarado por nossos eus mais “próprios”, permanecendo um território indomado e inexplorado para a maioria de nós (CAETANO, 2018).

A sombra se desenvolve naturalmente em todos nós, quando crianças. A primeira vez que desenvolvemos um senso de identidade suficiente para registrar o perigo da desaprovação de nossa mãe é provavelmente a primeira vez que fazemos um “depósito das sombras” em nossa psique. “Divida os biscoitos com seu irmão, querido”, ela diz. Mas os biscoitos são poucos e poucos; nós queremos todos eles. Esperamos até que mamãe vire as costas e, avidamente, engolimos os biscoitos do irmãozinho e os nossos: um feito que devemos esconder porque sabemos instintivamente, mesmo que não possamos expressar bem, que fizemos algo inaceitável ou “errado”, e que o ato – e a parte de nós que foi impelida a praticá-lo – deve ser escondida, para não pôr em perigo a nossa existência continuada em nossa tribo: nossa família.

Ao mesmo tempo, nos identificamos com as características ideais de personalidade, como polidez, inteligência ou habilidade nos esportes, que recebem a aprovação de nosso ambiente. W. Brugh Joy chama essas qualidades de Auto Resolução de Ano Novo (GUIRADO, 2015); eles passam a fazer parte da persona que gostaríamos de ser e como desejamos ser vistos pelo mundo. Nossa persona é nossa roupa psicológica, mediando entre nosso “verdadeiro” (mais profundo) eu e nosso ambiente, assim como a roupa física apresenta uma imagem para aqueles que encontramos. Essas partes de nós mesmos que somos e sobre as quais conhecemos conscientemente chamamos de “ego”; a sombra é aquela parte de nós que deixamos de ver ou conhecer (QUILICI, 2017).

O que, você pode perguntar, determina quais partes de nós mesmos passam a ser ego (aproveitando a luz do dia) e quais são relegadas aos reinos nebulosos das sombras? Essa é uma boa pergunta, e uma que você, como terapeuta, pode estar envolvido em ajudar seus clientes que confrontam a sombra a averiguar. Muitas forças desempenham um papel na formação de nossa sombra e são essas que determinam, em última análise, o que expressamos em nossas vidas e o que não. Pais, professores, irmãos, amigos, instituições sociais e outros criam um ambiente complexo no qual aprendemos o que compreende comportamento moral, “bom” e apropriado e o que é mesquinho, vergonhoso ou totalmente pecaminoso.

A sombra tem sido chamada de nosso “sistema imunológico psíquico” (MONTEIRO, 2008), porque define o que é “eu” e o que é “não-eu” (p xvii). Mas aqui está o aspecto realmente interessante: o sistema imunológico é determinado em todos os níveis: intrapessoal, familiar, comunitário, nacional e internacional. O que é permitido em uma família ou cultura é desaprovado em outra, se não totalmente proibido.

Fonte: encurtador.com.br/ySVZ8

Arquétipos

Arquétipos são modelos universais e inatos de pessoas, comportamentos ou personalidades que desempenham um papel na influência do comportamento humano. Eles foram apresentados pelo psiquiatra suíço Carl Jung, que sugeriu que esses arquétipos eram formas arcaicas de conhecimento humano inato transmitido por nossos ancestrais (JUNG, 2016).

Na psicologia junguiana, os arquétipos representam padrões e imagens universais que fazem parte do inconsciente coletivo. Jung acreditava que herdamos esses arquétipos da mesma forma que herdamos padrões instintivos de comportamento (COELHO, 2006).

Jung foi originalmente um apoiador de seu mentor Sigmund Freud. A relação acabou se fragmentando com as críticas de Jung à ênfase de Freud na sexualidade durante o desenvolvimento, o que levou Jung a desenvolver sua própria abordagem psicanalítica conhecida como psicologia analítica  (MURRAY, 2019)

Embora Jung concordasse com Freud em que o inconsciente desempenhava um papel importante na personalidade e no comportamento, ele expandiu a ideia de Freud do inconsciente pessoal para incluir o que Jung chamou de inconsciente coletivo (QUILICI, 2017).

Jung acreditava que a psique humana era composta de três componentes: o ego, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. De acordo com Jung, o ego representa a mente consciente, enquanto o inconsciente pessoal contém memórias, incluindo aquelas que foram suprimidas. O inconsciente coletivo é um componente único, pois Jung acreditava que essa parte da psique servia como uma forma de herança psicológica. Continha todo o conhecimento e experiências que os humanos compartilham como espécie (JUNG, 2016).

O inconsciente coletivo, acreditava Jung, era onde esses arquétipos existem. Ele sugeriu que esses modelos são inatos, universais e hereditários. Os arquétipos não são aprendidos e funcionam para organizar a forma como experimentamos certas coisas. “Todas as ideias mais poderosas da história remontam aos arquétipos”, explicou Jung em seu livro “The Structure of the Psyche”.

“Isso é particularmente verdadeiro para as ideias religiosas, mas os conceitos centrais de ciência, filosofia e ética não são exceção a essa regra. Em sua forma atual, são variantes de ideias arquetípicas criadas pela aplicação consciente e adaptação dessas ideias à realidade. É função da consciência, não só reconhecer e assimilar o mundo externo através do portal dos sentidos, mas traduzir em realidade visível o mundo dentro de nós ”, sugeriu Jung (MURRAY, 2019).

Fonte: encurtador.com.br/ySVZ8

Jung rejeitou o conceito de tabula rasa ou a noção de que a mente humana é uma lousa em branco no nascimento, a ser escrita apenas pela experiência. Ele acreditava que a mente humana retém aspectos biológicos fundamentais, inconscientes, de nossos ancestrais. Essas “imagens primordiais”, como ele inicialmente as apelidou, servem como fundamento básico de como ser humano. Esses personagens arcaicos e míticos que compõem os arquétipos residem com todas as pessoas de todo o mundo, acreditava Jung. São esses arquétipos que simbolizam motivações, valores e personalidades humanas básicas (GUIRADO, 2015).

Jung acreditava que cada arquétipo desempenhava um papel na personalidade, mas sentia que a maioria das pessoas era dominada por um arquétipo específico. De acordo com Jung, a maneira real pela qual um arquétipo é expresso ou realizado depende de uma série de fatores, incluindo as influências culturais de um indivíduo e experiências pessoais únicas, não podendo ser negligenciadas (JUNG, 2016).

Jung identificou quatro arquétipos principais, mas também acreditava que não havia limite para o número que pode existir. A existência desses arquétipos não pode ser observada diretamente, mas pode ser inferida observando-se a religião, os sonhos, a arte e a literatura (MURRAY, 2019).

Os quatro arquétipos principais descritos por Jung, bem como alguns outros que são frequentemente identificados, incluem o seguinte. persona é como nos apresentamos ao mundo. A palavra “persona” é derivada de uma palavra latina que significa literalmente “máscara”. Não é uma máscara literal, no entanto (GUIRADO, 2015).

A persona representa todas as diferentes máscaras sociais que usamos entre os vários grupos e situações. Atua para proteger o ego de imagens negativas. De acordo com Jung, a persona pode aparecer em sonhos e assumir diferentes formas (CAETANO, 2018).

Ao longo do desenvolvimento, as crianças aprendem que devem se comportar de certas maneiras para se adequar às expectativas e normas da sociedade. A persona se desenvolve como uma máscara social para conter todos os desejos, impulsos e emoções primitivos que não são considerados socialmente aceitáveis.

Fonte: encurtador.com.br/kK237

Conclusão

A sombra existe como parte da mente inconsciente e é composta de ideias reprimidas, fraquezas, desejos, instintos e deficiências.

A sombra se forma a partir de nossas tentativas de nos adaptarmos às normas e expectativas culturais. É esse arquétipo que contém todas as coisas que são inaceitáveis ​​não apenas para a sociedade, mas também para a própria moral e valores pessoais. Pode incluir coisas como inveja, ganância, preconceito, ódio e agressão.

Jung sugeriu que a sombra pode aparecer em sonhos ou visões e pode assumir uma variedade de formas. Pode aparecer como uma cobra, um monstro, um demônio, um dragão ou alguma outra figura escura, selvagem ou exótica.

Esse arquétipo é frequentemente descrito como o lado mais sombrio da psique, representando a selvageria, o caos e o desconhecido. Essas disposições latentes estão presentes em todos nós, acreditava Jung, embora as pessoas às vezes neguem esse elemento de sua própria psique e, em vez disso, o projetem nos outros.

Neste tocante, na área da psicologia, os clientes vêm até você por vários motivos: relacionamentos fracassados ​​ou fracassados, problemas no trabalho, dificuldade em lidar com vícios, sentimentos de inadequação e muito mais. Se tivermos que citar um fator que destrói relacionamentos, mata o espírito de uma pessoa e impede a realização dos sonhos, é certamente a presença de sombra em nossas vidas. Pois é no lugar escuro dentro de nós que enfiamos as muitas mensagens – muitas vezes inconscientes no momento em que o cliente chega à sua porta – que nos dizem que não estamos bem; não somos amáveis; não somos merecedores ou dignos.

O problema é que acreditamos nas mensagens e não podemos desafiar o que não sabemos conscientemente. No entanto, sentimos medo ao pensar em seguir na estrada para uma consciência maior. Tememos o que podemos descobrir se realmente olharmos para dentro de nós mesmos. Suspeitamos que não seremos capazes de lidar com a situação, ou pelo menos não gostaremos do que encontraremos. Assim, nossa “bolsa” fica pendurada em nosso pescoço cada vez mais pesada, cada vez mais pesada, até que decidamos que devemos fazer algo. Então – na melhor das hipóteses – entramos na terapia.

Fonte: encurtador.com.br/dMTW5

REFERÊNCIAS

CAETANO, Aurea Afonso M. O erro na psicologia analítica: sombra ou luz?. Junguiana, v. 36, n. 2, p. 39-46, 2018.

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: Símbolos, mitos, arquétipos. Editora Paulinas, 2012.

GUIRADO, Marlene. Clínica e transferência na sombra do discurso: uma analítica da subjetividade. Psicologia USP, v. 26, n. 1, p. 108-117, 2015.

JUNG, C. G. Ao encontro da sombra. São Paulo: cultrix,

JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. HarperCollins Brasil, 2016.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

MONTEIRO, Carolina Antunes et al. A inversão da sombra: um conto sob a perspectiva da psicologia analítica. 2008.

STEIN, Murray. Psicanálise Junguiana: Trabalhando no espírito de CG Jung. Editora Vozes, 2019.

QUILICI, Marcia Alves Iorio. Dramatização espontânea e psicologia analítica de Jung: consideração da sombra em um grupo de psico-sociodrama. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2017.

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Falcão e o Soldado Invernal: o sonho americano pode ser transmitido?

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É curiosa a trajetória do Capitão América como um símbolo norte-americano. Concebido por Joe Simon (1913-2011) e Jack Kirby (1917-1994), a primeira encarnação do herói vem na pele de Steve Rogers. Sua origem nos quadrinhos, em The Avengers #4 (1964) é similar a apresentada no filme Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), um jovem franzino, frágil e debilitado, com muito amor por sua pátria deseja adentrar o exército norte-americano para combater as forças do Eixo em plena 2ª Guerra Mundial, um clássico herói da era de ouro dos quadrinhos.

Sem aptidão física, mas com muita determinação, um membro de alta patente enxerga potencial no garoto e o transforma em voluntário para o projeto do Soro de Supersoldado, isso tudo leva o personagem a se transformar no super humano conhecido como Capitão América. Isso, no entanto, não quer dizer que ele foi o primeiro a vestir esse manto. No mundo entroncado das editoras de quadrinhos onde os roteiristas vêm e vão, modificando as histórias e o passado dos personagens com frequência, era de se esperar que isso fosse acontecer e antes de Steve Rogers outro homem vestiu as roupas e o escudo icônico do herói – mas mantenha esse fato em suspensão.

Fonte: encurtador.com.br/qzKU4

Anos após a criação de Rogers, em Captain America #117 (1969), um dos primeiros heróis negros seria apresentado ao mundo, este era Sam Wilson, de alterego Falcão. No universo cinematográfico Marvel contemporâneo, Wilson seria apresentado no filme Capitão América 2: o Soldado Invernal (2014), um militar de carreira, que fazia missões aéreas arriscadas. A partir daí eles construíram uma relação de amizade e companheirismo, culminando no fim do filme Vingadores: Ultimato (2019), onde Steve decide – após viver longos anos de uma aposentadoria e um casamento feliz que envolve uma viagem no tempo e muito roteiro complexo – passar o manto de Capitão América para Wilson.

Esse ato simbólico, que na cena em questão é muito característico por um Capitão, em forma de idoso, longevo e sábio, passando o escudo, um item poderoso e significativo carregado de significados para um Sam jovem e relativamente inexperiente; o Mestre que passa o item chave e seus conhecimentos para o aprendiz. Esse fato culmina na trama do seriado Falcão e o Soldado Invernal, que vai tratar da recusa de Sam Wilson ao chamado a Jornada do Herói.

Fonte: encurtador.com.br/dxAW1

 

O Arquétipo do Herói e a Recusa ao Chamado de Sam

Joseph Campbell (1904-1987) trabalha e disserta meticulosamente acerca do arquétipo do herói em seu livro “O Herói de Mil Faces” (1949). Neste livro, que antecede porém converge com as idéias de Carl Gustav Jung em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1959), o autor discorre acerca do monomito (jornada do herói), sendo esta uma narrativa plural e universalmente presente em todas as culturas, de maneiras diferentes de acordo com as influências de cada local. A jornada se dá em doze passos, fundamentais para o desenvolvimento do personagem, e crescimento individual, culminando na conclusão heróica de sua jornada.

Os passos dessa jornada, descrita por Campbell (2004) seriam em um primeiro ato: o Mundo Comum, o Chamado à Aventura, a Recusa do Chamado, o Encontro com o Mentor e a Travessia do Primeiro Limiar. A ordem dos fatores pode variar de acordo com as histórias, mas sem a alteração do produto. No caso de Sam Wilson vemos sua jornada como herói ser estabelecida em sua atuação como Falcão, porém ao ser defrontado com o manto de Capitão América, a responsabilidade e o significado do escudo o desmotivam a prosseguir.

No seriado Falcão e o Soldado Invernal (2021) é possível observar a continuidade desse processo, pois a série trata das consequências dessa fuga de Sam. Toda uma conjuntura é estabelecida, com a série tomando ponto de partida diretamente após a cena final de Vingadores: Ultimato (2019). Sam recebe o escudo, mas a única frase que consegue pronunciar acerca dele é “Parece que pertence a outra pessoa”.

Ricón (2006) descreve o processo da recusa como “o herói reluta em empreender a jornada”; Sam não somente recusa o manto de Capitão América como entrega o escudo, item emblemático, ao governo americano, ato que vai mover sua história ao longo dos episódios, pois vai sempre ser lembrado pelos personagens coadjuvantes que Steve Rogers o escolheu por bons motivos.

Fonte: encurtador.com.br/eAMR1

O Capitão que a América precisa

Nos capítulos finais da série, Sam Wilson deve lidar com seus demônios. A situação familiar na casa mundana do herói é uma analogia bonita para toda a narrativa complexa envolvendo super seres e política fantasiosa. Em sua casa no estado de Louisiana, uma problemática com o barco que pertenceu a seus pais, que está estragado e precisa ser vendido por sua irmã, é um dilema complexo.

Ao investigar mais a fundo o legado do Capitão América, descobre a trágica história de Isaiah Bradley, o primeiro a testar o soro de Supersoldado e a vestir o manto de Capitão América, um homem negro, que foi usado, injustiçado e logo após apagado da história como muitos outros semelhantes. Teria ele o ímpeto, como um homem negro que também é, de vestir o manto que representa um país que causou tanto sofrimento a seus semelhantes? Bradley revela a ele as atrocidades da guerra e impõe mais peso nos ombros de Sam.

 

Fonte: encurtador.com.br/ltyGJ

 

“O percurso padrão estabelecido por Campbell para a aventura mitológica é representado nos rituais de passagem: separação, iniciação e retorno. Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais, onde encontra forças e obtém uma vitória decisiva, o herói volta de sua aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. O herói composto do monomito é uma personagem dotada de dons excepcionais, frequentemente honrado pela sociedade de que faz parte, costuma também não receber reconhecimento ou ser objeto de desdém.” (GOMES, 2009, p.5)

O sofrimento do povo negro representado em Bradley, sua relação de amizade com Bucky Barnes e observar o mau uso que o governo fez do legado de Steve Rogers, o motivam a retomar sua jornada pessoal de heroísmo e o impulsionam a assumir outra Persona. Morre o Falcão e nasce um novo Capitão América. Sam finalmente é capaz de se libertar da fixação na fuga da jornada.

 

Fonte: encurtador.com.br/cejpx

 

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.

GOMES, Vinícius Romagnolli Rodrigues; ANDRADE, Solange Ramos de. Um retorno aos mitos: Campbell, Eliade e Jung. Revista Brasileira de História das Religiões-ANPUH-Maringá (PR) v, v. 1, 2009.

RICÓN, Luiz Eduardo. A jornada do herói mitológico. In: SIMPÓSIO DE RPG & EDUCAÇÃO. 2006. p. 2-4.

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A Criança Sagrada no Superman de Zack Snyder

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O Superman, como é conhecido hoje, foi a público pela primeira vez na publicação Action Comics (1938) concebido por Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992). Surge então da primeira leva de super heróis nos quadrinhos norte-americanos; o personagem é criado como um alienígena que haveria caído na terra vindo de um mundo distante, chamado Krypto.

Em sua terra natal, é conhecido como Kal-El, no planeta terra, ao ser adotado por um casal de idosos do Kansas recebe o nome de Clark Kent. Aqui este desenvolveria poderes sobre humanos e passaria a vestir as cores do país que o acolheu, combatendo o crime.

Outro fato importante acerca da criação de Superman é a origem étnica do mesmo, não aquela postulada nas páginas das histórias em quadrinhos; mas a origem de quem o concebeu e a carga cultural implícita na representação do personagem. O contexto histórico era o da ascensão do facismo e nazismo na Europa e as Américas eram por muitas vezes um refúgio para quem se movia para longe do caos europeu.

Siegel e Shuster, de batismo Jerome e Joseph respectivamente, eram judeus, e todo o contexto conturbado vivido por eles na década de 1940 iria influenciar imensamente na concepção das histórias e na visão de mundo dos personagens.

Superman no Cinema e a Visão de Heroísmo de Snyder

Ao longo das últimas décadas, diversas adaptações cinematográficas foram feitas da origem do Superman, ou mesmo tentativas de adaptação de novelas gráficas clássicas do herói. A filmografia se inicia na virada da década de 50 com Superman (1948), Atom Man vs. Superman (1950), Superman And The Mole Men (1951).

Na década de 70 surge o filme dirigido por Richard Donner e protagonizado por Christopher Reeves, Superman – O filme (1978), este que resultaria em três continuações com o mesmo ator, aclamado por fãs. Após longo hiato, somente em Superman – O Retorno (2006) é que o herói veria as telas cinematográficas novamente, através da visão do diretor Bryan Singer (Bohemian Rhapsody, 2018). Mas é em Man of Steel (2013), que o diretor Zack Snyder (Watchmen, 2009; 300, 2006) traz a adaptação mais recente do personagem e com ela algumas particularidades.

Acerca das adaptações cinematográficas de Snyder, vale salientar sua preferência por adaptar uma visão bem específica acerca do arquétipo do herói. Ao traduzir para as grandes telas o filme 300 (2006) – este derivado de uma graphic novel concebida pelo autor Frank Miller de nome “Os 300 de Esparta” (1998) – que é uma releitura da trajetória do mítico rei Leônidas, o diretor deixa mensagens claras acerca do lado humano do rei, seus erros e sua personalidade que em essência não eram divinas e imaculadas, mas humanas e passíveis de erro; Sua derradeira queda nas mãos do rei Persa Xerxes solidifica essa narrativa.

Em Watchmen (2006), o diretor já deixa pistas de como interpreta o papel dos super heróis perante a sociedade, adaptando mais uma obra de Miller e retratando um mundo onde os vigilantes são temidos de muitas maneiras, por sua imprevisibilidade e por serem não deuses, mas seres humanos usando máscaras. Essa mescla entre a visão de Frank Miller e a de Snyder pavimentaram uma estrada narrativa que o cineasta abordaria em seu filme que contaria a origem do herói, faria então um recorte quase pessoal de sua visão sobre o mito do Superman.

O desenvolvimento se dá ao longo de três filmes: Homem de Aço (2013), Batman V Superman (2016) e Liga da Justiça (2021). Nessa jornada você acompanha uma versão diferente da origem do Superman, muito semelhante a original dos quadrinhos porém com diferenças pontuais no que se diz respeito à personalidade do herói.

O Clark Kent mostrado no primeiro filme é um homem que desconhece seu potencial e mesmo ganhando habilidades especiais, toma atitude de herói tardiamente em sua vida, nesse caso após o conturbado final de Homem de Aço. Aquele final também guarda um fato que impõe diferença entre esse Superman do filme para o das histórias em quadrinhos, que é a despreocupação do personagem com a cidade a sua volta, sendo que este acaba por passionalmente destruir o ambiente a seu redor – a cidade inteira sucumbe desastrosamente, enquanto em uma cena de gosto duvidoso, Clark beija sua amada após quebrar o pescoço do antagonista.

É uma cena forte, e com certeza destoa do tom otimista geralmente adotado no retrato deste personagem. Snyder muda o status quo do Superman, o transfigura em um novo produto, diferente daquele já inserido na coletividade mudando o arquétipo pelo qual o ele era mais frequentemente apresentado ao público. A partir disso, diversas questões imperam acerca desta mudança e essa realocação arquetípica faz parte da narrativa desse novo personagem.

Fonte: encurtador.com.br/acG38

A Criança Sagrada

Primeiramente um breve apanhado acerca dos arquétipos. Para Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua publicação “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1957-2018), pode-se definir arquétipo como uma espécie de tendência instintiva que reside na psique dos seres humanos transmitida ao longo das gerações; como um instinto biológico que perpassa os ancestrais de uma espécie – o autor exemplifica com a tendência dos pássaros de fazerem ninhos ou viajarem para determinados locais em determinadas épocas do ano – assim também seria psicologicamente falando. Os humanos transmitem essas tendências a seus herdeiros e esses fenômenos são acessados através do inconsciente coletivo.  Um desses arquétipos é conhecido como a Criança Sagrada.

Como Jesus para os cristãos, ou o Imperador de Jade em algumas narrativas ancestrais chinesas, é a representação de uma criança que vem carregada de expectativas, imaculada, de futuro promissor. Jung, ao falar acerca desse arquétipo, nos diz:

Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial. Por isto, a ocorrência do motivo da criança na psicologia do indivíduo significa em regra geral uma antecipação de desenvolvimentos futuros, mesmo que pareça tratar-se à primeira vista de uma configuração retrospectiva. (…) Não admira portanto que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às experiências da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a “criança” prepara uma futura transformação da personalidade. (JUNG, 1957-2018, p.165)

Logo, relacionar a Criança Sagrada com a narrativa do Superman, tendo como ponto de partida a cultura judaico-crisã, não é difícil e na verdade esse se demonstra um arquétipo recorrente. Como Moisés que é colocado em um cesto no Nilo – rio esse carregado de simbologias e mitos pelos Egípcios – e enviado a um futuro profético destinado a salvar os Hebreus, Kal-El é colocado por seus pais em uma nave e enviado a Terra a partir de seu planeta natal Krypton, com um destino heróico a sua frente. Esse paralelo deve ser aqui estabelecido para demonstrar o poder da simbologia judaica do Superman clássico e seus criadores fizeram ali impressão da ancestralidade de sua cultura.

Conclusão

A versão do Superman de Snyder trilha o começo do caminho da criança sagrada, mas por ser criado por seres humanos isso implica diretamente na maneira como este vê o mundo, ele está longe de ser o ser divino retratado em outras mídias onde ele paira sobre a humanidade como um ser protetor, muito pelo contrário.

Este Clark Kent voa longe para se isolar, pois se sente um pária, deslocado. E o peso do heroísmo cobra duras penas, pois no início de sua jornada, este se vê não aclamado por salvar o mundo dos invasores, mas temido por suas habilidades excepcionais e olhado com desconfiança por todos à sua volta. A promessa da criança sagrada não se cumpre, restando apenas um ser em meio a uma jornada heróica que passa pelo vale mais obscuro.

Fonte: encurtador.com.br/dgsvA

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.

JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. 1964.

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Luís Paulo Lopes: “É preciso passar pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis”

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“O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir”, diz terapeuta junguiano

Falar de Psicologia Analítica geralmente é um fascínio, pois é uma abordagem que nos remete ao estudo dos símbolos, mitologias, arquétipos e da própria psique humana, temas esses que ao longo da humanidade sempre estiveram em alta e que trazem consigo uma forma de entendimento através dos seus significados e a importância dos mesmos para nossa vida.

Nessa entrevista o psicólogo, professor e terapeuta junguiano Luis Paulo Lopes destaca algumas perspectiva da abordagem, bem como suas percepções acerca do cenário atual e o contexto histórico de construção da Psicologia Analítica no Mundo e no Brasil. Também comenta de forma clara sobre vários mal entendidos e pré-conceitos acerca da abordagem e do seu fundador, Carl Gustav Jung, bem como sobre a sua ruptura com Sigmund Freud, pai da psicanálise.

(En)Cena – Por que você trilhou esse percurso? O que foi que te interessou nessa área?

Luís Paulo Lopes – Cheguei em Jung quando era ainda bastante jovem. Após o segundo grau, entrei para a faculdade de biologia, quando tive uma crise psicológica muito intensa e desagregadora que eu não saberia nomear através da psiquiatria, e nem acho que seria o caso. Nessa ocasião, fiquei muito invadido por conteúdos do inconsciente que me tiraram completamente a liberdade; o que me levou a uma reclusão de praticamente um ano em casa, e em meio à muitas questões; certamente aquelas grandes questões da humanidade. Este momento, talvez tenha sido o mais difícil da minha vida até hoje; era um desafio tremendo sair de casa e me relacionar com outras pessoas. Eu vivia aprisionado num mundo de imagens difíceis; era como se eu tivesse sido dilacerado, como Osíris, quando Seth o desmembra e espalha seu corpo pelo Egito. No mito, Isis é quem faz o trabalho de reunir, aos poucos, os pedaços do corpo de Osíris para poder reconstituí-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo nesta época, e aí começa então, uma busca que definiria meus caminhos.

Inicialmente, era uma busca para sair daquela condição aterradora, como se um forte instinto de sobrevivência tivesse despertado em mim e me dizia para encontrar um caminho; do contrário eu ficaria para sempre preso naquela condição. Vida ou morte, esta era a minha sensação. Comecei a me interessar pela psicologia transpessoal, e encontrei um autor muito interessante chamado Stanislav Grof. Naquela época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos. Grof mencionava Jung, e fiquei interessado em conhecer o que o sábio de Zurique dizia. Comecei a ler alguma coisa de Jung; no início comprei o “fundamentos de psicologia analítica”, que hoje integra “a vida simbólica vol.1”; são os 5 primeiros capítulos (as conferências de Tavistock). Eu não conseguia entender nada do que estava escrito ali, mesmo sendo um texto onde Jung tem uma linguagem um pouco mais acessível. Eu lia e não conseguia entender, mas fiquei com uma “pulga atrás da orelha” e então comecei a ler livros de comentadores, introdutórios, como “introdução à psicologia junguiana” e coisas do tipo. Assim, fui começando a entender um pouquinho melhor aquela teoria difícil, estranha e fascinante. Após estes estudos introdutórios, consegui começar a ler alguma coisa de Jung nas “Obras Completas”; embora meu entendimento não fosse muito bom, continuava estudando mesmo sem conseguir compreender totalmente. Minha sensação era a de que havia encontrado um grande tesouro, e foi isso que me manteve insistente apesar das dificuldades que tive inicialmente para compreender a teoria junguiana.

Com o tempo, fui me apropriando deste olhar e conseguindo compreender melhor; até que chegou um momento da minha trajetória em que precisei fazer uma escolha. Até então, cursava a faculdade de biologia e estudava psicologia por conta própria; e finalmente decidi começar a cursar psicologia. Durante um tempo, fiz os dois cursos ao mesmo tempo; cursava biologia a noite e psicologia de dia; e foi um ano dessa forma, até me formar em biologia e, alguns anos depois, em psicologia.

Quando me formei em biologia, comecei uma pós-graduação em psicologia junguiana, e cursei junto com a graduação em psicologia. Cerca de um ano após concluir a pós-graduação, fui chamado para ser professor no mesmo curso, que era na Universidade Veiga de Almeida, na época. Como professor, as coisas começaram a ficar mais sérias e precisei estudar ainda mais para poder ensinar, e, com certeza me ajudou a aprofundar muito mais na teoria junguiana. Ainda nesta época, tive algumas experiências muito significativas que, no entanto, mantinha em total sigilo em relação às pessoas que estavam a minha volta. Estas experiências me exigiam elaborar algumas questões muito fundamentais, como por exemplo “o que é a realidade?” ou “o que é a consciência?”. Minhas elaborações sobre essas questões eram bastante incomuns e cheias de paradoxos; o que me levantou a suspeita de que talvez estivesse enlouquecendo, pois não encontrava nada parecido com as minhas conclusões em lugar nenhum. Entretanto, tive um grande alívio quando, por acaso, descobri o advaita vedanta, ou vedanta não-dual, de Shankaracharya. Encontrei aí, com muita surpresa, elaborações sobre a realidade muito semelhantes as minhas próprias e pude respirar tranquilo; pois alguma outra pessoa já havia visto as coisas que eu também estava vendo. Esse momento marcou o início do meu interesse pelas tradições espirituais e a mitologia; que são muito importantes para mim até hoje.

Voltando a Jung… seu pensamento me chamava atenção pela grande profundidade. A sensação que eu tinha era de que Jung possuía uma vivência muito profunda e autêntica naquilo que ele ensinava. Ele não olhava o fenômeno a partir de fora, mas falava de dentro. Possuía uma vivência do inconsciente; o que ficou claro posteriormente com a publicação do “Livro Vermelho” e, agora dos “Livros Negros”, que trazem registros das vivências mais íntimas de Jung neste vasto e misterioso campo chamado inconsciente.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Luis, você falou uma coisa, que foi um diferencial do Jung em relação a psicanálise, ele não nega a análise redutiva do Freud principalmente no que se refere às neuroses, mas aí ele aposta também na perspectiva teleológica, que é para onde aponta esses sintomas. Nesse momento que ele fez a ruptura com Freud parece que ele inaugurou uma psicologia bastante moderna, ele dizia que para ser analista tem que ser analisando também, o analista tem que se submeter ao seu próprio processo de análise também, por um colega. Você acha que a psicologia se perdeu muito nesse processo? Isso é mais uma regra da psicologia analítica, da psicanálise por exemplo? Porque ele (Jung) diz que você não pode pedir para o seu cliente/paciente ir além do que você mesmo foi. Como você vê isso? E foi ele que inaugurou isso, o Jung?

Luís Paulo Lopes – Eu gosto do termo terapeuta, prefiro até do que analista. Me vejo como um terapeuta que pode estar como analista se a situação assim exigir. Jung coloca como sendo uma questão ética de grande importância que o terapeuta viva a própria vida com seriedade. Estou me referindo à vida com V maiúsculo; com a participação do inconsciente. Portanto, não me refiro à vida estéril de sentido como nos é ensinada pelo espírito desta época; onde temos como único objetivo tornamo-nos boas engrenagens de uma máquina cega. Me refiro à Vida que realiza o seu próprio sentido, isto é, que realiza quem realmente somos; e que para tal, exige que passemos pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis e, também, pelo terrível desamparo que faz nascer um sentido a partir de nosso centro interior; nos forjando, gradualmente e na medida do nosso ato, em um individuum. Penso que é justamente isso que Jung quer dizer quando afirma que “ser normal é a meta dos fracassados”; isto é, a individuação me parece uma condição indispensável para que se realize com qualidade o ofício de terapeuta. É a questão do curador ferido. Aquilo que realmente somos está profundamente mergulhado no inconsciente e como que anseia ardentemente ser realizado conscientemente. Perceba que me refiro a um inconsciente bastante distinto daquele preconizado por Freud, ou o inconsciente do recalque; mas a um inconsciente criativo, como algo vivo, que intenta a construção de um caminho no sentido de sua própria realização e que, para isso, precisa da colaboração do ego. Esta é uma gigantesca diferença entre Freud e Jung. Note que não se trata mais de curar um problema específico, tal qual o pensamento médico tradicional preconiza e que está presente também em Freud (embora a psicanálise o tenha superado atualmente). A cura, em nosso caso, é como que um processo vivo, com um curso que lhe é próprio, que nasce a partir do inconsciente e é catalisada, por assim dizer, pela relação com o terapeuta e o trabalho clínico. Não se trata, absolutamente, de acessar conteúdos sexuais reprimidos, embora possa também envolver isso.

Se analisarmos os famosos casos clínicos discutidos por Freud, veremos se tratar de neuroses que foram supostamente curadas a partir da técnica psicanalítica. Havia a ideia de um procedimento quase médico – a psicanálise –, que prometia a cura das enfermidades psíquicas através de seu método quase infalível. Não deixo de notar o caráter de propaganda que está implícito nas discussões dos casos clínicos de Freud; o que pode ser perfeitamente compreendido se considerarmos o contexto histórico em que Freud se esforçava para mostrar o valor científico da psicanálise. O método freudiano, era focado na anamnese e, na redução das fantasias transferenciais a suas causas biográficas, comumente associadas ao complexo de Édipo. Entretanto, o inconsciente vivo ou criativo formulado por Jung muda a forma como se entendia o processo analítico; pois, não se trata mais de voltar ao passado para encontrar a origem do problema no conteúdo recalcado (análise redutiva), mas, além disso, em nos indagarmos sobre a finalidade do processo inconsciente; isto é, a análise deixa de apontar unicamente para o passado e passa a apontar para o futuro; quer dizer, para a construção de um caminho em colaboração com o inconsciente, no sentido da realização da finalidade deste último em colaboração com o ego. É isso o que Jung chamava de cura da cisão neurótica da personalidade.

O foco não é mais eliminar um problema, mas (em muitos casos) atravessar estados psíquicos difíceis e, assim, produzir uma renovação da personalidade. Jung traz várias definições sobre a neurose, a partir de vários ângulos distintos, por isso, não há como definir de uma forma simples a neurose na perspectiva junguiana. Apesar disso, Jung nos permite pensar a neurose como uma espécie de doença sagrada; nesse sentido, uma experiência iniciática criada pelo inconsciente com a finalidade de produzir uma passagem; isto é, que aponta para um fim específico. Essa é uma diferença importante entre Jung e Freud; o inconsciente junguiano, por assim dizer, abarca o inconsciente do recalque freudiano e vai além, pois é também um inconsciente criativo que aponta para uma finalidade e busca produzir uma totalidade, quer dizer, uma nova atitude que una a consciência e o inconsciente.

Jung traz inovações que são absolutamente relevantes e tornam a psicologia junguiana bastante distinta em relação à psicanálise freudiana. Em grande medida isso ocorreu pelo fato de Jung ter tido uma grande influência do romantismo alemão, por suas experiências do inconsciente (como as descritas no livro vermelho), e por ter bebido das tradições espirituais do mundo inteiro e, especialmente do esoterismo ocidental. Jung conhecia mitologia, conhecia os textos sagrados e esotéricos das principais religiões do mundo. Existe uma busca milenar muito mais antiga do que a psicologia contemporânea por isso que os antigos sintetizavam no símbolo da ressurreição, da salvação, da iluminação, do ouro filosófico dos alquimistas ou outros símbolos análogos. A mentalidade contemporânea, impregnada de racionalismo e materialismo, entende esses símbolos de forma extremamente concreta e poderíamos até dizer, ingênua. Jung permite um novo olhar, simbólico, sobre toda essa literatura; e assim, podemos extrair uma espécie de tintura extremamente valiosa para o campo psicológico. Há elaborações riquíssimas em outras tradições que são absolutamente úteis para a psicologia contemporânea. Penso que nossos esforços devem considerar tudo isso que já foi produzido no campo do espírito e não vejo sentido em querer inventar novamente a roda. Toda árvore precisa ter as raízes saudáveis e Jung tinha excelentes referências em sua biblioteca particular. A psicologia junguiana está afinada com esse material muito mais antigo e podemos ver essas fontes citadas pelo próprio Jung ao longo de sua obra; principalmente em seus escritos sobre a alquimia, que mostram um Jung mais maduro e com um conhecimento enciclopédico sobre essas tradições. Apesar de considerar Jung como fazendo parte de uma tradição mais antiga, acho que seu grande trunfo foi ter desenvolvido uma ciência psicológica moderna e com bases epistemológicas extremamente sólidas. Ele traz uma bagagem importante de milênios de experiências acumuladas; apesar disso, não aborda nenhuma dessas tradições a partir de uma perspectiva metafísica, mas, aplicando com rigor uma perspectiva simbólica, observa todo esse material como imagens psíquicas; isto é, como um fenômeno estritamente psicológico.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Você concorda que a resistência que o Jung obteve, parece que agora vem diminuindo, de certa forma? Há a ampliação de espaços de diálogo com a psicologia analítica, principalmente na academia, nas universidades, talvez de forma tardia em relação a psicanálise freudiana… Você acredita que o Jung ainda hoje é incompreendido? Pois em artigos científicos é muito comum ver as pessoas se referindo à psicologia analítica como uma espécie de misticismo, elas aparentam não entender o sentido mais profundo inclusive do que seria o Místico e de que forma isso pode ser analisado pelo prisma psicológico.

Luís Paulo Lopes – Com certeza. Jung é não somente mal compreendido, mas, também utilizado para justificar formas de pensar que são absolutamente distintas da dele. Podemos ver isso com clareza na apropriação da teoria junguiana pelo movimento new age; o que somente acentua o preconceito em relação à psicologia junguiana e dificulta sua inserção nas universidades. Sou supervisor clínico em uma universidade e quando inicio uma turma nova, costumo perguntar: “o que vocês pensam sobre Jung?”. Já escutei algumas lendas, no mal sentido do termo, como uma ideia de que Jung aborda coisas mágicas ou metafísicas. Uma ideia de que a psicologia junguiana não é tanto psicologia assim e, por isso, não deveria ser tomada com seriedade. Esse mal entendido normalmente é desfeito com facilidade depois da primeira aula. Quando os alunos conhecem um pouco da teoria junguiana, costumam se interessar bastante e, não tenho dúvidas, começam a levar a sério como qualquer outra abordagem psicológica. Acho que isso em parte se dá por uma campanha difamatória que se iniciou no passado e, até hoje, ainda se estende. Quando houve a ruptura da sociedade psicanalítica de Zurique (Jung) com a de Viena (Freud), iniciou-se uma verdadeira guerra difamatória abastecida por calúnias. Jung não foi o único que sofreu por isso; poderíamos trazer outros autores que foram alvos de campanhas difamatórias como Ferenczi, Adler, Reich e vários outros. Inclusive há um livro do Shamdasani, “Os arquivos Freud”, onde o autor faz uma maravilhosa pesquisa historiográfica utilizando principalmente cartas escritas pelos psicanalistas do Círculo de Viena e de Zurique da época; e você percebe este falatório. Predominavam os argumentos a partir de falácias, “ad hominen”.; tentava-se desacreditar o homem, a pessoa, a personalidade, para descreditar toda sua obra. Freud tinha a pretensão de que sua psicanálise fosse considerada como única possibilidade de psicologia profunda e sentia-se profundamente incomodado com as dissidências de seus antigos colaboradores.

Entretanto, parte da fama de Jung como místico provinha do próprio Jung; precisamos reconhecer isso. Depois da publicação do “Livro Vermelho” tivemos acesso a uma série de experiências místicas do próprio Jung e pudemos perceber o quanto essas experiências foram cruciais para a criação de sua psicologia. Agora, com o lançamento dos “Livros Negros”, este debate certamente será novamente aquecido no campo junguiano. Hoje, está muito claro que o interesse de Jung pelo esoterismo e por místicos de várias épocas e tradições não era somente uma curiosidade intelectual, visto que ele mesmo viveu uma série de experiências extraordinárias que poderíamos muito bem denominar como experiências místicas. Entretanto, este é um fato absolutamente rodeado por preconceitos, mesmo dentro do campo junguiano. Alguns chegam a chamar as experiências de Jung de psicóticas, o que é uma flagrante falta de compreensão sobre a natureza da experiência mística; muito embora, ambas sejam experiências do inconsciente coletivo, por assim dizer. A questão, portanto, não é negar as experiências místicas de Jung, mas de considerar a experiência mística a partir da perspectiva psicológica do próprio Jung. Ele nos permite considerar estas experiências a partir de uma perspectiva que não é nem psicopatológica, nem metafísica. Jung considerou com seriedade estas experiências e, inclusive, reconheceu a importância delas para o campo da saúde mental. Quando passou a utilizar o método da imaginação ativa, na prática, introduziu a experiência mística no setting analítico a partir de uma perspectiva absolutamente psicológica. Os antigos gregos utilizavam a palavra “gnose” para designar um tipo de conhecimento que, poder-se-ia dizer, provém diretamente do inconsciente coletivo e que teria um efeito absolutamente transformador. A “gnose” se refere a um conhecimento que não cabe nas palavras e que, embora seja anterior à própria imagem, só pode ser exprimido e ampliado através das imagens. Penso que deveríamos levar isso muito mais a sério, pois o próprio campo junguiano contemporâneo passou a ver com preconceito este aspecto do pensamento de Jung, por pura ignorância. E, na tentativa de proteger Jung das acusações de místico, passou a minimizar a importância da experiência mística na vida e na obra de Jung; jogando, quase que literalmente, a criança fora junto com a água do banho.

Fonte: encurtador.com.br/adlG6

(En) Cena – Já havia, naquela época, uma política de cancelamento, sim?

Luís Paulo Lopes – Havia sim. Freud tinha pretensão de criar uma psicologia que oferecesse uma resposta única para o problema da psique. Hoje sabemos o quanto essa pretensão era fantasiosa. A pluralidade do campo psicológico contemporâneo está aí para provar. Freud, por exemplo, considerava a libido como tendo uma qualidade fundamentalmente sexual, e não estava disposto a aceitar qualquer outra possibilidade de olhar que dissesse o contrário. Este tipo de posição de Freud fez com que Jung, várias vezes, o acusasse de dogmatismo. A questão da libido é um bom exemplo de um ponto de divergência radical entre Freud e Jung que acabaria colaborando decisivamente para a ruptura entre ambos. Jung afirmava, por exemplo, que o instinto de nutrição era anterior ao instinto sexual e, além disso, que outros instintos eram igualmente importantes, inclusive o que chamou de instinto religioso. Jung traz o inconsciente coletivo com sua multiplicidade de formas arquetípicas como sendo o fundamento psíquico mais radical e a libido como energia pura e simples em seu movimento de progressão, represamento e regressão; impulsionando a transformação das imagens em um processo que parte de uma causa e busca uma finalidade específica. Para Freud, isso era uma ameaça sem precedentes, pois questionaria toda a sua psicanálise. Imagine este fato em um contexto onde a psicanálise sofria constantes ataques e tentativas de desqualificação; e, ainda lutava para se estabelecer como um campo que gozasse de algum prestígio social.

(En)Cena – E como fica a Psicologia analítica, neste ínterim? E no Brasil, qual o perfil acadêmico dos adeptos da teoria?

Luís Paulo Lopes: Podemos pensar na chegada da psicologia junguiana aqui no Brasil com a Dra. Nise da Silveira. Ela organizou grupos de estudos em sua casa que atraíram muitas pessoas interessadas em estudar Jung; e isso, muito antes da tradução das obras completas de Jung para o português. Meus principais professores de psicologia junguiana estudaram com a Dra. Nise, que foi a grande ponte para a chegada da psicologia junguiana no Brasil. Graças a ela e à importância do trabalho que ela desenvolveu com a psicose no antigo Hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a obra junguiana passou a ser estudada com seriedade no Brasil. Não fosse isso, talvez não estaríamos tendo esta conversa aqui hoje.

A psicologia junguiana teve uma difusão lenta no Brasil. Os junguianos sempre foram pouco numerosos e somente alguns se dedicaram a seguir uma carreira acadêmica. Hoje em dia, não é fácil pensar no mestrado em psicologia junguiana, principalmente a depender do estado em que resida; pois, são poucos os professores que orientam pesquisas neste campo. Mas, esse cenário vem mudando muito rapidamente. Cada vez mais, há professores junguianos nas universidades. Os cursos de pós-graduação em psicologia junguiana se alastram por todo o país, assim como muitos institutos junguianos que não têm ligação com alguma universidade. Percebo que a possibilidade do virtual e das plataformas online, herança da pandemia do coronavírus, tem permitido uma expansão ainda maior do campo junguiano. Muitos eventos importantes como palestras, grupos de estudos, aulas pelo youtube, lives, seminários e congressos têm acontecido através destes novos recursos. Hoje, é muito fácil para o estudante encontrar algum grupo ou curso para iniciar os estudos na teoria junguiana; basta procurar pelo facebook. Entretanto, advirto para que procurem analistas ou professores sérios, pois não é incomum encontrarmos coisas pela internet que não são de qualidade. Veremos como isso vai caminhar. Mas, tudo aponta para um grande crescimento do pensamento junguiano no campo da psicologia brasileira. Há um programa de pós-graduação em psicologia junguiana na PUC-SP, por exemplo. Creio que isso é algo muito significativo sobre a penetração da teoria junguiana nas universidades brasileiras.

(En)Cena –  Tem um pela Universidade Federal do Paraná, tem também pela Universidade Federal do ABC Paulista, há também algo na UNIP, mas são poucos em relação a quantidade de programas de Mestrado, porque Doutorado é mais difícil ainda… pois bem, Luís, mudando um pouco de assunto, aparentemente há uma disputa muito grande dentro do próprio Brasil entre as diferentes formas de fazer a leitura do Jung. Qual sua opinião sobre isso?

Luís Paulo Lopes – Acho que as diferentes abordagens são inevitáveis, pois, em psicologia, o objeto de estudo é também o sujeito do mesmo estudo. Temos essa interessante peculiaridade em relação às demais ciências, o que torna a psicologia algo extremamente plural e complexo. É possível olhar para a alma a partir de diferentes perspectivas e, apesar da possibilidade da objetividade, o componente subjetivo, ou equação pessoal (como chamou Jung), tem grande importância na elaboração da teoria. Por isso, ao falar sobre psicologia, precisamos falar sempre no plural – psicologias. O psicólogo, devido a essa pluralidade, costuma estar à vontade para lidar com diferentes epistemologias; com diferentes pontos de vista. Podemos considerar que embora todas as abordagens psicológicas tenham uma validade relativa, nenhuma jamais terá validade absoluta. No campo junguiano não é diferente. Jung fez um trabalho definitivamente monumental; o que permitiu diferentes linhas de desenvolvimento teórico a partir deste ponto inicial. Podemos considerar três principais correntes de pensamento dentro do campo junguiano: a psicologia junguiana clássica (principalmente os autores que estiveram mais próximos de Jung), a psicologia junguiana desenvolvimentista (que produziu mais diálogos com a psicanálise) e a psicologia arquetípica (de James Hillman). Há, atualmente, um grande autor chamado Wolfgang Giegerich, que traz uma abordagem distinta em relação às outras três e parece ter força para criar uma quarta corrente de pensamento no campo junguiano; veremos. Essa pluralidade dentro de um mesmo campo não é sem tensões, como seria de se esperar. De qualquer forma, as disputas e alfinetadas mútuas entre os diferentes autores são sinal de saúde; pois, significa que a psicologia junguiana está bastante viva e pulsante, produzindo novos conceitos e ideias. Isso quer dizer que a psicologia junguiana não se enrijeceu em um dogmatismo e, é exatamente isso que garante que nosso campo prospere e avance para o futuro.

É importante avançar, pois estamos no século XXI e não mais na primeira metade do século XX. Quais são os problemas da nossa época? O quanto nós, hoje, conseguimos enxergar e que o próprio Jung não podia, devido ao limite imposto por sua época? Por exemplo, hoje, temos um pensamento feminista dentro da psicologia junguiana que não seria possível na época de Jung. Essa corrente traz algumas críticas importantes em relação ao machismo do próprio Jung. As críticas internas são sempre mais poderosas do que as críticas que vem de fora e, pelo mesmo motivo, são potencialmente mais transformadoras. As críticas de psicanalistas em relação a Jung, por exemplo, costumam ser risíveis; sem fundamento e baseadas em lendas criadas pelas campanhas difamatórias do passado. Coisas do tipo que não se deve nem perder tempo para responder. Mas, as críticas internas são diferentes, pois vem de quem realmente conhece a teoria junguiana. São estes autores que podem fazer críticas bem fundamentadas e, pelo mesmo motivo, criar desdobramentos teóricos.

Fonte: encurtador.com.br/xCIN3

(En)Cena – Em termos de produção de literatura junguiana no Brasil, como você considera que está no momento?

Luís Paulo Lopes – Acho muito importante que haja uma produção robusta de literatura junguiana nacional; e, principalmente que considere as especificidades da psique brasileira. Todo povo tem uma história que influencia radicalmente a psicologia do indivíduo. Quais são os fantasmas que habitam esta terra chamada Brasil e que ainda hoje nos assombram a todos de uma maneira ou de outra? Vivemos, por exemplo, numa terra que, há não muito tempo, foi palco de uma brutal de escravidão. A tortura pública e a brutalidade eram banais nestas terras há não muito tempo atrás e permanecem bastante vivas nas periferias e presídios, por exemplo. Seria mais fácil se esquecer de tudo isso e continuar como se nada estivesse acontecendo; não à toa dizem que o brasileiro tem pouca memória. Entretanto, o inconsciente se recusa a esquecer aquilo que a consciência preferiria fingir que nunca existiu. Quais são os nossos traumas culturais? E como eles nos influenciam ainda hoje? Tenho visto um esforço significativo entre alguns junguianos brasileiros no sentido de produzir pesquisa e literatura exatamente nesta área tão importante. Destaco Walter Boechat e Roberto Gambini. É bastante animador perceber este movimento na psicologia junguiana nacional. As editoras Vozes e Paulus são grandes colaboradoras na difusão do pensamento junguiano, nacional ou internacional; e temos revistas de psicologia junguiana ligadas a SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e a AJB (Associação Junguiana do Brasil). Mas, apesar disso, em termos gerais, penso que ainda escrevemos pouco no Brasil e, ainda estamos longe de poder ostentar uma produção de literatura junguiana significativa e capaz de dialogar com os principais autores internacionais.

(En)Cena – Em relação à Anima Mundi, como é que você vê esse resgate da alma do mundo?

Luís Paulo Lopes – O conceito junguiano denominado como processo de individuação me parece um caminho para pensar esta questão, muito embora seja um conceito que levante certas polêmicas e divergências no pensamento pós-junguiano. Particularmente, considero que para uma correta compreensão sobre o que Jung chamou de processo de individuação é preciso mergulhar no pensamento dos antigos alquimistas; e nesta área, somente a experiência em seu próprio e privado laboratório e a gnose que daí pode nascer, poderia trazer alguma elucidação. Por exemplo, considero o conceito de “cultivo da alma”, em Hillman, como algo absolutamente distinto em relação ao que Jung chamava de processo de individuação. Tenho pensado, embora ainda não tenha chegado a uma conclusão definitiva, se não poderíamos considerar “o cultivo da alma” hillmaniano e a individuação junguiana como formas distintas de subjetivação, válidas para diferentes tipos de pessoas. Isso teria importantes desdobramentos clínicos.

O mito da queda de Sophia trazido pelos antigos gnósticos nos ajuda a pensar essa questão. Sophia teria gerado filhos sem o consentimento do Pai e sem a participação de seu consorte, o Cristo. Sophia e Cristo como uma sizígia, refere-se ao tema largamente desenvolvido pelos alquimistas da união entre a Alma e o Espírito. A Alma, portanto, originalmente estaria indissociavelmente unida ao Espírito, porém, quando decidiu gerar filhos sem a participação deste último, deu à luz aos Arcontes, seres ignorantes em relação aos desígnios do Pai. Os Arcontes, por sua vez, são comumente representados pelos sete planetas que estão associados aos metais que o alquimista deveria transmutar para a produção do ouro. O mito narra como Sophia foi aprisionada na matéria e como é violentada e oprimida pelos Arcontes que a impedem de retornar à sua morada eterna; até que não podendo mais encontrar consolo nas ilusões da matéria, em estado de profunda privação, Sophia se arrepende de seu erro e implora por seu consorte e salvador, o Cristo. Somente após esta união da Alma com o Espírito, Sophia é gradualmente liberta da submissão em relação aos Arcontes e se aproxima de seu verdadeiro fundamento. Esta é a Sophia discutida por Jung como sendo o quarto grau de desdobramento da anima e associada ao Eterno Feminino ou à Sabedoria Divina. Embora as imagens sejam muito mais enigmáticas do que os conceitos, penso que exprimem muito melhor uma ideia universal.

(En)Cena – Isso é o próprio processo de individuação?

Luís Paulo Lopes – Certamente. O processo de individuação não tem nenhuma relação com o que o senso comum chama de “auto realização”. Pelo contrário, o que se entende hoje como “auto realização” seria equivalente a estar totalmente perdido e definido pelo espírito da época; por isso, está longe de ser uma solução, mas, na verdade é um sintoma do problema que desafia a humanidade, a ignorância. O processo de individuação, ao contrário, fala sobre a transformação do homem no sentido de seu próprio centro e que só pode ser realizada a partir do indivíduo. Me lembro de uma passagem em que Jung diz que o maior trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é integrar a nossa própria sombra e, assim, parar de projetá-la nos outros. Tendo a concordar com esse ponto de vista. Nossa cultura dominou a técnica como nunca na história da humanidade, entretanto, espiritualmente somos como crianças birrentas disputando pelos melhores brinquedos. Veja o perigo desta situação se considerarmos a existência da bomba atômica.

É preciso mergulhar profundamente no passado para que as raízes de nossa cosmovisão se estabeleçam na terra fértil dos grandes espíritos da humanidade. Nos tempos atuais, é preciso ter muito cuidado com a novidade, que tenta vislumbrar o homem a se perder na superficialidade; tornando-o ainda mais escravo da ignorância. Assim como a flor arrancada logo perece por ser privada de suas raízes, também o homem contemporâneo adoece quando é desligado de seu passado e privado da sabedoria dos antigos sábios. Precisamos de uma nova pedagogia, não somente para as crianças, mas sobretudo aos adultos. Uma pedagogia enraizada na tintura dos grandes espíritos que passaram por este mundo; para que a tão importante novidade de que tanto necessitamos hoje seja um novo ramo nesta antiga árvore da sabedoria. Mas, a pretensão pueril do homem moderno olha para o passado com desdém, afirmando se tratar de um tempo obscuro de superstição e ignorância; e assim, vangloria-se com suas próprias invenções como se fossem tremendamente superiores. Entretanto, a maioria não passa de vãs distrações que fazem com que o homem se perca cada vez mais no lodo escuro da ignorância; e assim, segue destruindo o mundo. O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir (normalmente a problemática da segunda metade da vida). Se a cosmovisão não tiver longas raízes que penetrem profundamente no passado, na terra dos grandes espíritos da humanidade, ficará restrita à superfície desta época. O homem permanecerá como uma criança mimada, a doença mental crescerá como erva daninha e o mundo continuará a ser destruído. Esta é a minha definição para a miséria espiritual da nossa época.

(En)Cena – Aos 63 a 64 anos, Jung falava continuamente que o que diferencia muito ele – inclusive de Freud  – é que ele era um homem ambivalente, imperfeito. Como você enxerga isso?

Luís Paulo Lopes – Ele e todos nós; sem dúvida nenhuma. Jung deixa claro que a individuação não é um caminho para a perfeição, mas para uma maior integridade. Integridade implica ter consciência da própria escuridão, das próprias imperfeições; e conviver com elas de forma consciente. Entretanto, ao tentarmos ser perfeitos, fechamos os olhos para tudo aquilo que não se encaixa na perfeição que imaginamos e, por isso, nos alienamos de nós mesmos; precisamente, a definição de neurose para Jung. Mas, convenhamos, admitir nosso lado sombrio é algo tremendamente difícil e nós joga em conflitos penosos e no desamparo arquetípico. Entretanto, este mesmo desamparo pode ser muito bem o início de um processo (penoso, é verdade) de nascimento de um individuum; isto é, fala sobre a possibilidade da cura de cisão neurótica da personalidade. Esta cisão neurótica faz com que a mão direita haja sem saber como a mão esquerda está agindo, como Jung certa vez afirmou; entretanto, mesmo com a superação da cisão neurótica, o homem continua tendo uma mão direita e outra esquerda, muito embora, agora elas possam estabelecer uma relação. Esta é a nossa ambiguidade fundamental e insuperável. Há uma boa passagem bíblica atribuída a Jesus que serve bem como imagem simbólica para essa verdade psicológica: “Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17). Quem conhece as discussões de Jung sobre a relação simbólica entre Cristo, o conceito de Self e o processo de individuação, compreende essa analogia sem nenhuma dificuldade.

Fonte: encurtador.com.br/frvAI

(En)Cena – Pode ser que alguns terapeutas junguianos tenham um sistema pré-moldado, pré-definido, um sistema cognitivo, do ponto de vista da compreensão dele do mundo, e ele não consegue fazer essa separação, fora do espectro da autoridade, e as vezes ele passa a impressão de que o processo de individuação se aproxima daquele “Ideal Asceta” que o Nietzsche criticava dentro do Cristianismo. Você enxerga dessa forma? Como é que se pode desmistificar isso, ou como o paciente pode perceber isso?

Luís Paulo Lopes – Quanto mais o homem se aproximar de um ideal, mais distante estará de si mesmo. Por isso, os ideais de perfeição necessariamente produzirão uma sombra de igual intensidade que tenta compensar o ideal sobre o qual a consciência está identificada. Veja o exemplo do nazismo na Alemanha; o ideal de perfeição, beleza e pureza ariana carregava de forma subterrânea o horror, a feiura e a sujeira da sombra alemã. Enquanto o povo alemão estava possuído por este ideal de pureza, era incapaz de perceber que ele mesmo era o monstro repugnante que tentava derrotar, e  assim, o perseguia projetado em seus inimigos. Vivemos algo muito semelhante hoje em dia no Brasil com o ideal do cidadão de bem, por exemplo. Veja o quanto é sedutor um ideal como esse; pois afirma que aquele que se identifica com ele é uma pessoa perfeita, como se estivesse salva do diabo que habita a sua própria casa. Qualquer ideal deste tipo, não importa se é político, religioso, ou de qualquer outra natureza, produz este mesmo efeito. A integração da sombra, para Jung, significa tornar-se humano, ou seja, um pecador. Veja como poderia ter sido salutar se o povo alemão tivesse tomado consciência do pecado que carregava, mas que era incapaz de reconhecer. Nesse sentido, a individuação não significa “subir no pódio” como o espírito desta época gastaria de pensar, mas ao contrário, é “cair do cavalo”. É levar um tombo do alto de sua inflação. A identificação com esta persona heroica ou santa é desfeita e o ego precisa confrontar a natureza sombria da alma. É necessário manter a tensão entre os opostos para que a integração aconteça; nesse sentido é exigida coragem para encarar a verdade de que somos todos pecadores.

(En)Cena – Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre o “necessário manter a tensão” para, a partir disso, integrar…

Luís Paulo Lopes – Manter a tensão, suportar a tensão… Jung discute o conceito de função transcendente, como uma função que unifica a consciência e o inconsciente, os opostos, em um terceiro termo, uma nova atitude. Quando o ego finalmente encara os aspectos sombrios da alma, um conflito irrompe. O conflito tende a ser uma experiência aflitiva e, por isso, a tendência natural é que o oposto inconsciente que está incomodando as pretensões unilaterais da consciência, seja reprimido novamente; e assim, o conflito cessa sem qualquer resolução. Não quero dizer com isso que os conflitos devam ser solucionados, pois como Jung nos ensina, os grandes conflitos humanos são contradições insolúveis. Tentar encontrar uma solução para eles é impossível, pois a consciência é naturalmente unilateral e, portanto, incapaz de considerar uma solução que inclua ambos os opostos. Tudo o que a consciência pode fazer é suprimir o conflito. Este é o motivo pelo qual é preciso sustentar ou suportar o conflito; pois se não podemos solucioná-lo, só nos resta suportá-lo para que não nos alienemos de nosso lado sombrio. Se o conflito for sustentado tempo suficiente, da tensão entre os opostos surge um terceiro elemento que unifica os opostos, a função transcendente. Há uma ampliação da consciência devido a integração do inconsciente e, a partir desta nova perspectiva da consciência, agora ampliada, o antigo conflito perde a importância; e mesmo que não tenha sido definitivamente solucionado, realizou o seu propósito.

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