“De encontro com a vida” e os desafios de um quase cego

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O filme alemão “De Encontro com a Vida” conta a história de Saliya (Kostja Ullmann), o qual recebeu um terrível diagnóstico quando estava prestes a terminar os estudos. Certo dia, ao se deparar com a percepção de manchas em seu campo visual que foram aparecendo progressivamente, o jovem precisou buscar ajuda para entender o que estava atrapalhando sua visão e por que enxergava tudo embaçado.

Após vários exames, Saliya descobriu que sofria uma doença hereditária grave a qual causou um descolamento da sua retina em um curto período e que perdeu 80% da sua capacidade visual. Além disso, seu nervo óptico sofreu danos e ficou impossibilitado de transmitir impulsos. A única alternativa foi fazer uma cirurgia, a qual não lhe garantia a cura, mas era a opção mais viável para que ele não ficasse totalmente cego. Feito o procedimento cirúrgico, o rapaz pôde enxergar com apenas 5% da capacidade total.

Desde o início Saliya teve o apoio da mãe e da irmã, a qual lhe ajudou a dar os primeiros passos no enfrentamento dos novos obstáculos. O pai de Saliya sempre demonstrou menosprezo em relação ao filho e agora ainda mais, diante do factível fracasso por não conseguir enxergar, pois “há uma tendência cultural da pessoa vidente considerar este indivíduo como limitado, e, consequentemente, incapaz ou deficiente” (LIRA; SCHILINDWEIN, p.176, 2009). Dessa forma, propôs que o jovem mudasse para uma escola especial, já que ele não era mais uma pessoa “normal”, todavia Saliya estava determinado a continuar, pelo pouco tempo que restava e em razão do sonho de posteriormente estudar gerenciamento de hotéis.

Fonte: encurtador.com.br/luz19

Como a visão de Saliya estava comprometida e considerando que “o organismo dispõe de outras vias que podem suprir ou complementar a via visual” (LIRA; SCHLINDWEIN, p. 173, 2008), ele buscou aprimorar outros sentidos. Todavia, vale ressaltar que para Vigotski (1997, p. 107) a pessoa com deficiência visual não tem sua fonte compensatória no “desenvolvimento do tato ou a maior sutileza do ouvido, mas a linguagem, quer dizer, a utilização da experiência social, a comunicação com os videntes”, o que contraria a perspectiva permeada pelo senso comum. Talvez a dificuldade de Saliya seria muito maior se ele não pudesse contar com sua notável capacidade de memorização, a qual lhe permitia aprender mais facilmente por lembrar-se dos sons, das texturas dos objetos, das falas que ele repetia para si e do cheiro das coisas.

Felizmente o jovem conseguiu a aprovação com exímios resultados e então começou a se candidatar para vagas de aprendiz nos vários hotéis da região, no entanto não era admitido devido à sua deficiência, o que corrobora com a ideia de Lira e Schlindwein (2008), de que ao longo da história, pessoas consideradas “deficientes” e com diferenças visuais como a cegueira, viveram um árduo processo marcado por desvalorização e exclusão social, mas é possível perceber que apesar dos progressos, ainda há muito preconceito. As pessoas duvidavam da sua capacidade. E quando já não havia mais oportunidades, Saliya resolveu tentar novamente, só que dessa vez ele não contou que era praticamente cego e a vaga era em um dos maiores hotéis em Munique.

A irmã de Saliya treinou o rapaz para enfrentar a entrevista de seleção e dava dicas para que seu problema não ficasse tão evidente. Umas das táticas utilizadas era contar os passos e memorizar as direções (direita/esquerda), isso evitava que ele se perdesse ou se acidentasse.

Fonte: encurtador.com.br/kyFMO

No dia de sua entrevista, o rapaz encontrou Max (Jacob Matschenz), o qual se tornou seu parceiro e grande amigo. Max parecia ser de classe média/alta, buscava emprego porque havia reprovado na faculdade duas vezes e seu pai retirou sua mesada. Ele percebeu que havia algo de errado com Saliya, mas só depois descobriu qual era o problema.

Eles precisaram passar por vários módulos nos mais diferentes setores do hotel: serviço de quarto, recepção, cozinha e bar. Apesar de contar com a ajuda do amigo, Saliya passou por alguns constrangimentos e até acidentes no trabalho. Na ocasião, ele estava atuando como auxiliar de cozinha e sofreu um corte no dedo ao manusear uma máquina.

Aos poucos, as pessoas iam percebendo e ao ser interrogado, Saliya confessava sua deficiência. A cada dia aumentava o número de pessoas que davam suporte nas dificuldades do rapaz e o ajudavam a desempenhar um trabalho de qualidade, que tanto era cobrado naquele hotel. Nesse período, o rapaz conheceu Laura (Anna Maria Muhe) uma mulher loira por quem apaixonou-se. Os dois tiveram um romance, mas para ela, Saliya ainda mantinha o segredo.

Fonte: encurtador.com.br/efMQX

Em dado momento, ao visitar a família, foi informado de que seu pai havia lhes abandonado e tirou todo o dinheiro que sua mãe e irmã ainda possuíam. Dessa forma, o rapaz se sentiu-se mais pressionado a cuidar delas e suprir as necessidades enquanto sua mãe procurava emprego. Para aguentar a responsabilidade que assumira e as pressões que sofria durante seu treinamento no hotel, o jovem passou a usar drogas e fazer uso de bebidas alcoólicas o que afetou o seu desempenho nas atividades pois ele tornou-se mais impulsivo e perdia o controle daquilo que estava fazendo.

Certo dia, Saliya se propôs a cuidar do filho de Laura no parque enquanto ela resolvia alguma coisa, mas o menino havia saído de perto do jovem e já não respondia mais quando ele chamava. Saliya entrou em desespero quando percebeu que o menino de 5 anos havia desaparecido. Ao chegar, a mãe do menino pediu que ele ajudasse a procurar, foi então que ele confessou que não podia enxergar. A moça ficou inconformada por ter deixado seu filho sob os cuidados de uma pessoa “cega” e principalmente por não ter tido conhecimento disto antes.

O auge do descontrole se deu porque Saliya havia esquecido que estava escalado para trabalhar em um casamento que ocorreu no restaurante do hotel, mas a sua sorte foi que o atraso não foi notado pelo supervisor. Durante a festa, ao se direcionar para servir os convidados, Saliya tropeçou e derrubou a bandeja quebrando todas as taças ao cair no chão e foi duramente repreendido.

Fonte: encurtador.com.br/BGIOV

Mesmo com o pedido de Max para que ele se ausentasse do serviço e não causasse mais estrago porque estava sob efeito da droga Saliya resolveu continuar, até que pior aconteceu: o jovem esbarrou no bolo e o destruiu por completo causando o maior transtorno na festa. Como resultado, ele seria impedido de fazer o teste final para receber o diploma. Diante do fracasso, Saliya resolveu sair e ficou bêbado a ponto de ser expulso da casa de shows. No caminho de casa caiu de uma escada, ficou ferido e foi socorrido por pessoas que passavam pelo local sendo levado ao hospital.

No hospital, o jovem soube que sua mãe conseguiu emprego e não corria mais risco de perder a casa. Apesar da boa notícia, Saliya estava muito decepcionado com tudo o que lhe ocorrera chegando à conclusão de que não poderia mais lutar contra sua deficiência, e se os hotéis não lhe quisessem, ele iria trabalhar com outra coisa que estivesse dentro de suas condições especiais. O rapaz chegou a visitar uma empresa que oferecia benefícios às pessoas nessa condição, mas não era o que ele gostaria de fazer.

Max encontrou uma maneira de encorajar Saliya, o qual decidiu tentar mais uma vez ao falar com os responsáveis que fariam o teste e pedir que lhes dessem uma última chance de alcançar aquilo que tanto almejava: “A partir de agora vou assumir quem eu sou: um cara que não consegue nada sem os amigos, um cara que está sempre precisando de ajuda por que não consegue enxergar quase nada”. Os supervisores ainda sem acreditar que seria possível, concedeu o direito do jovem de participar do teste.

Fonte: encurtador.com.br/lnwOW

Saliya estava diante da sua maior dificuldade que era pôr a mesa num tempo hábil, com talheres, copos taças e pratos bem posicionados. Com a ajuda de Max, eles estudaram e treinaram bastante e finalmente conseguiram a tão esperada aprovação e o diploma. É importante compreender que “ao assumirem papéis sociais mais visíveis, mais atuantes, a marca da diferença deixa de ser negativa e passa a ser uma característica que define espaços de atuação e valoração” (LIRA; SCHLINDWEIN, p.188, 2008), assim, o jovem fez as pazes com Laura e recebeu uma proposta de emprego no restaurante do seu supervisor, o qual o elogiou por ter um excelente “nariz” para os vinhos.

A ideia do filme foi muito clara e coerente na lição que quis transmitir: de superação, determinação e coragem. Também, percebe-se que para Saliya, o aprendizado mais significativo foi a importância da amizade quando disse: “Se quiser ir rápido, ande sozinho! Mas se quiser ir longe, vá bem acompanhado! E Eu sempre gostei de distância…”.

Estar disposto a ir atrás de seus sonhos não é uma tarefa fácil para a maioria das pessoas, mas Saliya mostrou que mesmo diante do preconceito e de todas as dificuldades inerentes à vida, é possível alcançar aquilo que você deseja. Para isso é importante que você realmente queira e faça acontecer.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

DE ENCONTRO COM A VIDA

Título original: Mit Dem Leben
Direção: Marc Rothemund
Elenco: Kostja Ullmann, Jacob Matschenz, Anna Maria Mühe
País: Alemanha
Ano: 2018
Gênero: Comédia, Romance

REFERÊNCIAS

LIRA, M. C. F de; SCHLINDWEIN, L. M. A Pessoa Cega e a Inclusão: Um Olhar a Partir da Psicologia Histórico-Cultural. Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 171-190, maio/ago. 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v28n75/v28n75a03.pdf. Acesso em 01 de maio de 2019.

VYGOTSKI, L.S. Obras escogidas: V. Fundamentos de Defectologia. Madrid: Visor, 1997.

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Esplendor é um filme que toca pelos silêncios

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“Existem momentos na vida da gente, em que as palavras perdem o sentido ou parecem inúteis, e por mais que a gente pense numa forma de empregá-las elas parecem não servir. Então, a gente não diz, apenas sente.”

Sigmund Freud

Parece que, para algumas pessoas, é necessário passar por uma desconstrução conceitual, para que possam alcançar uma proximidade de algo que esteja mais conectado a um sentir-se vivo. E, por esse tipo de processo ou, da perda daquilo que se tem como visível, daquilo que o olhar capturou, é que se poderia usufruir de um necessário processo de individuação.

Assim como outros filmes da diretora Naomi Kawase, “Esplendor” é repleto de imagens muito sensíveis e repleta de muitos sois, conseguindo levar o espectador a imaginação sem trechos de muitas conversas entre seus personagens. De modo irônico ou proposital a diretora consegue mostrar o significado do sentido, subjetivação e ressignificação do simbólico e da linguagem para o espectador, que é exatamente tudo o que os personagens cegos de sua obra vivenciam no filme através de audiodescrição.

Fonte: https://goo.gl/8fDwmz

Perder aquilo que se diz “mais amar” poderia ser então uma possibilidade de reorganização interior. Reestabelecer uma ordem perdida, uma ordem primária, que se daria antes de qualquer tipo de criação e nomenclatura de imagens. Um período anterior ao excedente destas que passaram a se reproduzir de forma incessante, sem equilíbrio algum e, o que é pior, controladas por algo que está fora.

O filme mostra Misako, uma jovem audiodescritora responsável por traduzir os filmes para deficientes visuais, incluindo o fotografo Masaya Nakamori que possui visão parcial e entra em conflito com Misako. A partir daí, os dois passam a se aproximar e a jovem enfrenta traumas de seu passado após se deparar com fotografias na casa de Nakamori, o que fará com que ela assim como ele tenha que ressignificar a constelação significante presente em sua vida, enquanto paralelamente o fotógrafo tem de criar estratégias de enfrentamento para o novo cenário, que inclui a cegueira.

Trata-se de um daqueles filmes em que somos absorvidos pela tela branca que, aos poucos, vai se transformando, se distorcendo por meio de luzes coloridas, na representação de figuras e fissuras, próprias de uma vida humana. Nakamori, seu personagem principal, um fotógrafo que está perdendo a visão, nos incomoda. Provavelmente pelo fato de que não concebemos a ideia de ficarmos por muito tempo sem um parâmetro imagético exterior, mesmo que de forma confusa.

Jacques Lacan propõe que como somos sujeitos de linguagem toda estrutura de ser está sempre aberta a possibilidades. Outras, de subjetivação, desde que o individuo entre em processo de abertura para o Outro. A construção do Eu segundo Lacan, ocorre à imagem do semelhante e primeiramente da imagem que é devolvida pelo espelho, sendo este o meu eu. A partir desta compreensão pensamos que tudo o que outrora um sujeito como ele foi, ele foi devido a linguagem empregada pelas instituições de poder, o meio social vigente, as pessoas que lhe rodeavam, o trabalho, a família, o desejo do semelhante, as constituições dos dispositivos mais próximos à ele de modo geral. Mudando de modo radical a sua condição biológica (no caso, a visão), um processo volumoso para o qual se volta esse indivíduo que também se modifica, transformando o seu Eu em um Outro. Um Outro do qual ele não tem certeza de quem será e como será. O que sem sombra de dúvidas gera muitas crises no indivíduo.

Fonte: https://goo.gl/8nPRaa

Apenas o fato de saber que o personagem é um fotógrafo e que está perdendo sua visão poderá nos levar a uma série de digressões, pois com sua vertiginosa perda da visão ele é lançado em um cenário do vazio, da ausência das cores. Foi por meio de uma vida passada em torno de imagens, reais ou idealizadas, e, tendo seu trabalho carregado de reconhecimento, que ele e os outros passaram o localizar-se no mundo. As imagens parecem que se tornaram absolutas em sua forma de entender e de construir os significados.

Algo que chama muita atenção nas narrativas do filme, é que na vida de Nakamori o seu trabalho de fotógrafo foi o seu objeto de investimento (o gozo), podendo ser notado quando diz que a sua câmera é o seu coração e pelas diversas fotografias espalhadas por sua casa. Nessa perspectiva, pensando em Lacan que trabalha com uma visão também antropológica, podemos pensar que Nakamori vem tornando-se então um indivíduo em crise de identidade devido à impossibilidade de fotografar – logo um sujeito desinvestido.  Sujeito que advém em sua separação simbólica do Outro. Um Outro que até pouco tempo atrás, enquanto tinha toda a sua visão, era ele mesmo.

No entanto, a grande tacada genial do filme dar-se por mostrar o quanto nós humanos produzimos nossa identidade por reflexo. Sendo através deste reflexo, que sei quem sou, e em um jogo narcisista, vamos nos constituindo a partir de fora. Nakamori a todo instante mostra-se bastante resistente às interpretações de Misako e chega a ser ríspido com ela, retirando-se dos encontros de audiodescrições do qual participava. As cenas que se sucedem adiante levam o espectador a sentir/imaginar que ele vê a importância da descrição paciente e serena que Misako lhe proporcionava, tornando-o mais aberto ao seu encontro com ela.

Nakamori segue um caminho para a construção das relações com a jovem, passando então a ficar aberto a uma nova estrutura de sujeito, esvaziando-se do seu antigo discurso de “aquela câmera é o meu coração” através de um ato simbólico que é retratada em meio a uma bela paisagem frente ao mar no qual joga a sua câmera para muito longe e em seguida beija Misako. A cena fazendo paralelo a visão Lacaniana até lembra sua velha afirmação feita aos seus discípulos de que inconsciente se revela nos vazios dos discursos.

Fonte: https://bit.ly/2HL6Ymm

O drama passa em uma atmosfera de sombras e de tons de uma luz própria do crepúsculo vespertino. Nuances de alaranjado dão uma cor às despedidas. Mas, ao mesmo tempo tudo vai se construindo como uma promessa, algo que pode ser engendrado naquele espaço entre a luz e a escuridão. Talvez seja exatamente o que representa a personagem de Misako, a mulher jovem que narra filmes para pessoas cegas. Mas, suas palavras parecem não dizer muito em um mundo em que imagens são construídas totalmente descompromissadas com as referências externas. É como se, para aqueles cegos, essas referências visuais fossem dadas de dentro, o que poderia justificar as falhas sentidas nas suas descrições auditivas. O que parece “visível” nessa história, que trata de cegueira, é esse descompasso entre a imagem visível e sua narrativa. Pois aqui, no mundo dos videntes, parece que construímos uma série de simulacros para distorcer imagens, em função de uma adequação a definições preconcebidas, ou idealizadas.

Enfim, esse filme parece representar um processo de passagem estranho, pois se dá como o contrário daquilo que é experimentado fisicamente pelo seu personagem principal, que sofre a difícil perda de seu pretenso controle e poder do olhar. No entanto, é como que em uma outra instância, ele se permitisse ver algo que até então era evitado, como um ir em direção da luz, o que nos leva a observar com mais atenção ao título original do filme que está em francês, Vers la lumière, que pode ser traduzido como “para a luz”. Eis aí um filme em que com os personagens podemos nos experimentar em um campo sensitivo mais amplo, além de nos possibilitar a beleza da poética de suas imagens.

Fonte: https://bit.ly/2l5SJQb

FICHA TÉCNICA: 

Diretor: Naomi Kawase
Elenco:
 Ayame Misaki, Masatoshi Nagase, Tatsuya Fuji;
Gênero: Romance/Drama
Ano: 
2017

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A cegueira em mim: modos de (re)ver o mundo

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Dentre os obstáculos mais complexos de se enfrentar acerca das deficiências, curiosamente, pode-se destacar a falta de informação da sociedade em geral, que, mesmo nas suas melhores intenções, geralmente estão carregadas de preconceitos.

A partir dessa percepção e, estimulada pela Semana da Acessibilidade, evento ocorrido entre os dias 21 e 27 de agosto no CEULP/ULBRA, decidi compartilhar minhas experiências sobre um tema que, para mim, nunca foi muito fácil abordar.

Foto: Arquivo Pessoal

Tenho 25 anos, sou acadêmica do 10º período do curso de Psicologia. Aos 18 anos, mais especificamente no segundo dia de aula na universidade, perdi a visão. Resultado de um descolamento de retina.

Até então, a percepção visual que eu tinha, apesar de pequena (devido a um glaucoma congênito), era suficiente para que eu reconhecesse as cores e o que mais estivesse próximo, embora sem muitos detalhes.

Sempre que relato este fato, todos me questionam sobre como consegui superar tamanha mudança principalmente em uma fase tão complexa e repleta de expectativas, como é o início da vida acadêmica e da juventude.

Mas, abandonar tudo para trancar-me em casa para lamentar-me, nunca foi uma opção.

Antes de falar sobre a tecnologia que atravessa todo esse universo da acessibilidade, é fundamental, ao menos para mim, abordar outro ponto, que, quando se trata de uma pessoa com algum tipo de deficiência, muitas vezes é deixado de lado.

Estou falando do ser humano que, quase sempre, fica escondido por de trás do rótulo do “deficiente”, “coitadinho” e “incapaz”.

Somos TODOS seres humanos que: ficam tristes, choram, alegram-se, sentem, desejam, tocam, sonham, sentem fome, sono, frio, calor, raiva, tomam seus porres, mas que, principalmente, não são criaturas assexuadas como muitos imaginam. Todos nós somos capazes de amar ou não; de frequentar festas; de praticar esportes, e nas mais variadas modalidades.

Ao mesmo tempo em que a sociedade nos subestima, também nos encarrega de expectativas. O que parece um eterno julgo desigual. O portador de deficiência, comumente é comparado ao anjo puro e inocente, quando na verdade não somos e nem queremos ser nada disso. Queremos sim, errar para  posteriormente acertar, e ainda, queremos o direito de poder aprender com nossos erros, como qualquer outra pessoa faz.

Esse discurso do “pobre coitado” é carregado de uma pena e dolo subjetivo que nada mais é que o mais puro e arraigado preconceito que encontra vazão de uma forma menos grotesca. Então, somos elogiados pelas “façanhas” mais triviais, e nos dizem que somos extremamente inteligentes por conseguirmos somar 2 + 2, por sabermos de cor o telefone e o endereço de nossas residências. Por subirmos e descermos escadas com agilidade, como se uma pessoa cega não pensasse e nem tivesse braços e pernas.

Foto: Arquivo Pessoal

Claro, há muitas limitações, principalmente quando você não pode contar com a visão para as tarefas mais básicas do dia a dia. Mas, falando agora um pouco sobre como a tecnologia transformou a minha vida, há muito pouco tempo atrás era quase impensável que eu pudesse usar todos os recursos que um celular oferecia.

Parece inacreditável, mas para realizar uma simples chamada, eu tinha de saber todos os números da agenda decorados, ou então, pedir que alguém os olhasse para mim. Sem contar o desafio que era enviar um SMS, que sempre tinham de ser lidos por terceiros.

Apesar de digitar mais rápido do que a maioria das pessoas – lembrando que isso não me faz uma super heroína, pois esta não é uma habilidade sobre-humana especifica da cegueira – eu ainda tinha que consultar alguém para conferir se tudo estava escrito da forma correta. O que era um problema por dois motivos: ninguém é obrigado a ficar lendo o que eu escrevo, e minha privacidade deixava de existir.

São nas coisas mais simples que a deficiência vai complicando a vida, e realizar uma tarefa ou outra, não faz de você um ser humano extraordinário, por executá-la mesmo em meio à limitação. Realizar a tal tarefa é condição básica de quem quer seguir em frente. De quem quer voltar a ter autonomia para gerir sua própria vida.

A tecnologia surge para diminuir a complexidade de todas essas limitações. Com o aplicativotalks, por exemplo, tarefas como fazer uma ligação ou enviar um SMS tornaram-se possíveis sem auxílio de outra pessoa.

Para quem não sabe, o talkes é um dos vários leitores de telas existentes para aparelhos tecnológicos como celulares, computadores etc. A dificuldade é que, além de ter que comprar um celular com sistema operacional android compatível – o que não era tão barato – você ainda precisava adquirir o aplicativo, que custava tanto ou quase quanto o celular.

Esse é o outro lado menos positivo da tecnologia: os lançamentos assim que chegam ao mercado são inacessíveis para a maioria das pessoas que realmente precisam daquele instrumento.

No meu caso, apesar de todo esse avanço que o talkes trouxe no manuseio dos aparelhos de telefone celular, eu jamais poderia imaginar que eu pudesse utilizar um celular touch scream e usufruir todas as suas facilidades pelo preço de mercado.

Com o passar do tempo, empresas como a Apple e a Samsung inovaram agregando o conceito da acessibilidade a seus produtos. Agora, aparelhos acessíveis a todos os públicos deixaram de ser uma mera vantagem de um público seleto para se tornar uma característica da fabricante, tanto quanto qualquer outra de suas funções.

O uso de aplicativos como estes foi o diferencial para a minha vida acadêmica e para que eu pudesse continuar com minha graduação. Pouco a pouco, como subir um degrau de cada vez, vou driblando cada nova adversidade que surge.

Estou prestes a me formar, nesse período tive grande apoio e ajuda da família, amigos, mestres… Pessoas a quem sou muito grata. Mas não considero minha formação uma vitória por eu ser cega, e sim porque a cada nova limitação que surgia, eu dava um jeito de continuar, nunca pensando em desistir.

Aos poucos fui criando um novo modo de aprender, de conseguir meu espaço no mundo.

Minha fórmula? Apenas não desistir!

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