Monopólio Tecnológico e a Modelagem do Comportamento Humano: quem controla nossas escolhas?

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Nos últimos anos, as gigantes da tecnologia, como Meta, Apple e Google, têm enfrentado ondas de críticas e investigações devido ao impacto de suas práticas de mercado sobre os usuários, principalmente no que diz respeito à saúde mental, privacidade e autonomia. O caso mais recente envolve o Google, com o Departamento de Justiça dos EUA propondo que a empresa venda o navegador Chrome para reduzir seu domínio no mercado de buscas e publicidade digital. Esse episódio reforça como as BigTechs vem usando de artifícios como algoritmos, publicidade direcionada e design persuasivo para influenciar o comportamento humano, levantando questões éticas e regulatórias sobre quem, de fato, controla nossas escolhas. [1-3]

Fonte: Freepik

Os algoritmos são os pilares desse novo ecossistema tecnológico. No caso de empresas como o Google, os algoritmos são a base da abordagem de personalização de serviços. Cada consulta, vídeo assistido e anúncio clicado é processado por modelos matemáticos, refinando a capacidade corporativa de prever e até influenciar as ações dos usuários.

No entanto, essa personalização tem seu preço.  Ao moldar a experiência do usuário com base em padrões de comportamento passados, os algoritmos normalmente criam “bolhas de filtro”, que limitam visões alternativas, condicionando o internauta a se saturar daquilo que ele já consumiu. De fato, como Eli Pariser, autor de The Filter Bubble, detalhou, essas práticas podem amplificar vieses existentes ao isolar os usuários nessas realidades digitais altamente curadas.  O caso contra o Google reflete justamente uma tentativa de mitigar os impactos nocivos desse controle algorítmico sobre a tomada de decisões dos usuários. [6]

Fonte: Beware online “filter bubbles” de Eli Pariser.

A publicidade direcionada – estratégia dentro do marketing digital – é uma das áreas mais lucrativas para empresas como o Google. Ao utilizar massivas quantidades de dados pessoais coletados dos usuários, as BigTechs podem entregar anúncios altamente detalhados e personalizados, aumentando significativamente as taxas de conversão. Segundo um relatório da Statista, o Google é atualmente líder global em publicidade digital, ocupando cerca de 28,8% da participação total no mercado.[5]

Fonte: iStock

Em outra análise, essa prática  molda escolhas e comportamentos de consumo de maneira tão sutil que o usuário nem sente a influência. As preocupações sobre privacidade e manipulação nunca foram tão reais. Não é exagero dizer que, até certo ponto, o poder que o Chrome detém, juntamente com a integração que ele possui com outros produtos do Google, como Gmail e YouTube, realmente intensifica todos esses riscos, justificando os apelos por ações antitruste.

Outra estratégia importante de influência comportamental é o design persuasivo, o design de interfaces atraentes e altamente intuitivas para engajar os usuários por meio de princípios psicológicos voltados para ações específicas, como clicar em um anúncio ou permanecer mais tempo em plataformas. Por exemplo, o Chrome está repleto de serviços do Google que incentivam o uso do ecossistema da empresa.

Segundo Tristan Harris, fundador do Center for Humane Technology, esse tipo de design pode transformar plataformas em “máquinas de manipulação do comportamento humano”. A crítica é que essas técnicas não são aplicadas apenas para “melhorar a experiência do usuário”, como é argumentado a cada atualização de interface. Elas também limitam a autonomia do usuário, direcionando escolhas para beneficiar objetivos comerciais.[7]

Os casos contra o Google sinalizam preocupações globais contra os impactos dos monopólios tecnológicos. Enquanto algumas regulamentações buscam maior transparência nos algoritmos e na coleta de dados, outras, como a recente proposta de separação do Chrome, visam reduzir a concentração de poder. A União Europeia, por exemplo, lidera esforços nessa área, com legislações como o Digital Markets Act (DMA), que restringe práticas anticompetitivas. [4]

O DMA é uma iniciativa regulatória da União Europeia que busca estabelecer regras claras para limitar o poder de mercado de grandes empresas de tecnologia, conhecidas como “gatekeepers“. A partir de 7 de março de 2024, empresas como Alphabet (Google)[8] , Amazon, Apple, ByteDance (TikTok), Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) e Microsoft foi instituido que essas empresas se adequassem às normas, que somam mais de 20 serviços considerados essenciais no ambiente digital.

Fonte: Ivan Marc/Shutterstock

Principais Obrigações do DMA:

  • Proibição de autopreferência: As plataformas estão vedadas de favorecer seus próprios produtos ou serviços em detrimento de concorrentes, buscando assim assegurar maior equilíbrio no mercado.
  • Interoperabilidade: Serviços de mensagens deverão permitir comunicação entre diferentes plataformas, promovendo mais liberdade de escolha para os usuários.
  • Acesso a dados: As plataformas deverão garantir acesso aos dados gerados por suas atividades, beneficiando tanto empresas menores quanto consumidores.
  • Proibição de combinações de dados sem consentimento: Empresas não podem combinar dados obtidos de diferentes serviços sem o consentimento explícito do usuário, protegendo a privacidade.

Em termos de penalidades, o descumprimento das regras pode acarretar multas severas, chegando a 10% do faturamento global da empresa. Em casos de reincidência, essa penalidade pode aumentar para 20%.

O DMA reflete o compromisso da União Europeia em construir mercados digitais mais justos, competitivos e inovadores, restringindo práticas anticompetitivas e dando aos usuários maior controle sobre suas escolhas no ambiente digital. Nos EUA, o movimento é mais fragmentado, mas as investigações do Departamento de Justiça sinalizam um grande passo para garantir maior equilíbrio no mercado. Além disso, especialistas defendem a prioridade da educação digital, onde o usuário será capaz de entender exatamente como está sendo influenciado e assumir o controle sobre suas escolhas.

O Brasil tem feito avanços em suas iniciativas para regulamentar as BigTechs, com o objetivo de prevenir práticas monopolistas e promover uma concorrência mais equilibrada no mercado digital. Em outubro de 2024, o Ministério da Fazenda apresentou um conjunto de 12 medidas legais e infralegais para regular economicamente essas plataformas e fomentar a competição no setor.[9]

Fonte: Beautrium / Shutterstock.com

O caso do Google Chrome é apenas a ponta do iceberg em um debate muito maior sobre como os monopólios tecnológicos estabelecem nossa agenda. Em benefícios, são tecnologias convenientes e personalizadas; no entanto, as implicações éticas não devem ser ignoradas devido à inovação tecnológica. 

É ótimo desfrutar das comodidades oferecidas pelos novos recursos tecnológicos, isso é um fato. Muitas dessas ferramentas são disponibilizadas gratuitamente, e, caso não fossem úteis para nós, consumidores, a adaptação a outros serviços seria apenas uma questão de tempo e esforço. Mas é preciso salientar que o que parece “grátis” tem um custo real – e, nesse caso, os nossos direitos são a moeda de troca.

Fonte: imagem gerada pela IA DALL-E do Chat GPT

Autonomia, privacidade e transparência. Esses e tantos outros direitos fundamentais estão sendo silenciosamente transformados e manipulados em favor do lucro de grandes empresas que já dominam seus setores. Por isso, é preciso ter uma postura crítica diante do que consumimos, dado o modo como nossas decisões estão sendo guiadas por forças quase imperceptíveis. A questão que ainda permanece é: quem realmente está no controle?

Referências

[1]https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2024/11/21/departamento-de-justica-dos-eua-quer-que-google-venda-o-navegador-chrome.ghtml

[2]https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2024/11/21/eua-propoem-separacao-do-google-e-venda-do-chrome-para-corrigir-monopolio-de-buscas.ghtml

[3]https://www.nytimes.com/2024/11/20/technology/google-search-chrome-doj.html?searchResultPosition=1

[4]https://techcrunch.com/2024/03/07/europes-dma-rules-for-big-tech-explained/

[5]https://www.statista.com/statistics/539447/google-global-net-advertising-revenues/

[6]https://www.theverge.com/interface/2019/11/12/20959479/eli-pariser-civic-signals-filter-bubble-q-a

[7]https://www.humanetech.com/youth/persuasive-technology

[8]https://www.cnnbrasil.com.br/economia/mercado/alphabet-dona-do-google-surpreende-ao-somar-receita-de-us-847-bi-no-2o-tri/ 

[9]https://exame.com/economia/fazenda-apresenta-medidas-para-regulacao-economica-e-de-competicao-de-big-techs-no-brasil/?utm_source=chatgpt.com

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A Solidão do “Criador” em Rick and Morty

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A série animada “Rick and Morty” é conhecida por sua capacidade de abordar uma vasta gama de temas, muitas vezes com uma abordagem filosófica e crítica. Foi criada por Justin Roiland e Dan Harmon, dois criadores com trajetórias distintas, mas complementares, que se uniram para desenvolver uma das séries de animação mais influentes e populares dos últimos tempos. A série combina a estrutura da ficção científica clássica com um humor sórdido, explorando questões profundas sobre a existência, a moralidade e a condição humana. Tudo isso,  envolta em enredos aparentemente absurdos e hilários.

Uma das principais características da série é a exploração do conceito de multiverso, em que inúmeras versões de realidades alternativas coexistem. Isso permite à série explorar questões sobre identidade, livre-arbítrio e o impacto de nossas escolhas. Em vários episódios, Rick e Morty encontram versões alternativas de si mesmos e lidam com as consequências de suas ações em diferentes realidades. A série frequentemente satiriza aspectos da sociedade moderna, incluindo consumismo, religião, política e o papel da ciência. Rick, com seu cinismo extremo, frequentemente faz críticas contundentes sobre o sentido da vida, questionando valores morais e instituições sociais. Essa abordagem filosófica lembra o niilismo, Rick demonstra uma visão de mundo onde nada tem importância intrínseca, o que contrasta com a tentativa de Morty de encontrar significado e propósito.

No centro de Rick and Morty está a dinâmica disfuncional da família Smith. As interações entre Rick, Morty, Summer (a irmã de Morty), Beth (a mãe) e Jerry (o pai) são uma fonte constante de conflito e drama. A série usa essas relações para explorar abandono, auto-estima, fracasso, e o impacto de traumas geracionais. Apesar do humor sombrio, a série frequentemente revela momentos de vulnerabilidade e afeição entre os personagens, no qual surpreende as expectativas do público sobre o que significa ser uma família.

A série também mergulha em questões de psicologia e existencialismo. Rick, em particular, é um personagem complexo que luta com depressão, alcoolismo e uma visão niilista da vida. Ele é uma representação do “herói trágico” moderno, cuja genialidade é também sua maldição. A série aborda como o intelecto superior: “O Criador”. Este fato o isola dos outros e o deixa preso em um ciclo de autodestruição e vazio existencial.

Embora trate de temas significantemente pesados, Rick and Morty é, acima de tudo, uma comédia. O humor da série é frequentemente absurdo, misturando elementos de cultura pop, ciência e paródias de outros gêneros. A série não tem medo de ser provocativa ou bizarra, utilizando desde piadas simples até referências intelectuais complexas, muitas vezes desafiando o espectador a refletir sobre o significado por trás da comédia.

O que indaga muitas vezes as pessoas se identificarem com essa série, com isso é perceptível que são personagens multifacetados. Dito isso, Rick é um gênio alcoólatra com uma visão cínica da vida, enquanto Morty é um adolescente inseguro lutando para encontrar seu lugar no mundo. Essa complexidade permite que os espectadores se vejam em diferentes aspectos de suas personalidades e lutas.

Apesar do cenário e do humor, a série explora temas universais como o propósito da vida, a busca por significado e a complexidade das relações familiares. Essas questões são abordadas de uma forma que, embora muitas vezes exagerada, compartilha com as experiências e sentimentos do público. Rick and Morty, frequentemente faz comentários sobre a sociedade e a cultura de forma crítica e irônica. Essa crítica, muitas vezes disfarçada de humor, pode fazer os espectadores refletirem sobre suas próprias vidas e o mundo ao seu redor.

Rick: Entre Amor e Controle

No episódio “Auto Erotic Assimilation” de Rick and Morty, a relação entre Rick Sanchez e Unity ilustra complexas dinâmicas de controle e poder dentro dos relacionamentos. Unity, uma entidade coletiva que inicialmente parece ser a solução perfeita para as necessidades emocionais e intelectuais de Rick, acaba se tornando uma metáfora poderosa para explorar o controle narcisista e os impactos sobre a identidade pessoal.

Rick, como uma figura narcisista, utiliza seu relacionamento com Unity para atender suas próprias necessidades de validação e controle. Ele manipula Unity para moldar um mundo ao seu redor que se ajuste às suas próprias expectativas e desejos. Essa dinâmica é analisada por Daniel Martins de Barros em seu livro “O Lado Bom do Lado Ruim”, onde ele explora como situações difíceis podem revelar aspectos de crescimento pessoal e autodeterminação. Barros destaca que “a capacidade de manter a autonomia, mesmo em cenários desafiadores, é essencial para o bem-estar emocional” (Barros, 2020, p.127). Essa afirmação ecoa a luta de Unity ao tentar manter sua própria identidade, enquanto Rick tenta controlá-la.

Unity, por outro lado, enfrenta um dilema emocional significativo. Inicialmente, a assimilação de outras consciências e a adaptação ao desejo de Rick parecem oferecer uma forma de felicidade e integração. No entanto, à medida que Unity começa a recuperar sua própria identidade e questionar o controle de Rick, ela se depara com um conflito interno sobre manter sua integridade ou se submeter novamente ao controle de Rick. Segundo Barros, “a preservação da identidade em contextos de pressão emocional é fundamental para a saúde mental e para a realização pessoal” (BARROS, 2020, p. 128). A decisão de Unity de se afastar de Rick é um reflexo direto dessa necessidade de preservar sua autonomia e evitar a manipulação emocional.

Fonte: br.pinterest.com

Esse episódio demonstra como o controle narcisista pode corromper a autenticidade e a saúde emocional dos relacionamentos, ilustrando a importância de manter a integridade pessoal e a autonomia, mesmo em face de uma conexão emocional intensa. A luta de Unity para manter sua identidade é um exemplo claro da necessidade de proteger a própria autonomia em qualquer relação que envolva controle e manipulação.

O episódio “Auto Erotic Assimilation” também ilustra o conceito de ciclo de abuso, conforme discutido pela psiquiatra brasileira Ana Beatriz Barbosa Silva em seu livro “Mentes Perigosas: O Psicopata Mora ao Lado”. Silva descreve como, em muitos relacionamentos abusivos, existe um padrão recorrente de tensão crescente, seguido por um incidente de abuso, e posteriormente uma fase de reconciliação ou “lua de mel”, onde o abusador promete mudar ou se arrepende (Silva, 2008).

No episódio, vemos uma variação desse ciclo. A presença de Rick inicialmente “liberta” Unity, levando-a a excessos que desestabilizam o equilíbrio da entidade. Enquanto Unity se entrega a festas e indulgências sob a influência de Rick, ela começa a perceber o impacto negativo que ele exerce sobre sua vida. Silva explica que “o ciclo de abuso é marcado por uma repetição de padrões que reforçam a dependência e a destruição emocional”. Ao perceber isso, Unity decide romper o relacionamento para preservar sua integridade, uma decisão difícil, mas necessária para interromper o ciclo de destruição.

Unity representa a vítima que reconhece o ciclo de abuso e, ao tomar a difícil decisão de sair do relacionamento, preserva sua própria saúde emocional e mental. Como Silva afirma, “o reconhecimento do ciclo é essencial para que a vítima possa tomar as rédeas de sua vida e interromper a sequência de abuso”. Ao decidir deixar Rick, Unity dá um passo crucial em direção à sua autonomia e bem-estar.

Rick Sanchez, o protagonista de Rick and Morty, frequentemente demonstra traços de narcisismo exacerbado. Ele é apresentado como uma pessoa que possui uma confiança inabalável em sua própria inteligência e habilidades, mas que simultaneamente exibe uma profunda falta de consideração pelos sentimentos e necessidades das outras pessoas. Este comportamento é típico de indivíduos com traços narcisistas, que frequentemente acreditam que são superiores aos outros e merecem tratamento especial.

César Souza, em seu livro “Você é o Líder da Sua Vida”, explora como o narcisismo pode influenciar negativamente tanto o próprio indivíduo quanto as pessoas ao seu redor. Souza discute como a busca incessante por validação e superioridade pode levar ao isolamento emocional e a relacionamentos destrutivos, características que são claramente observáveis em Rick. Segundo Souza, “um líder narcisista frequentemente aliena aqueles ao seu redor ao priorizar suas próprias necessidades e desejos acima dos outros” (Souza, 2016). Essa alienação é evidente na vida de Rick, onde sua incapacidade de se conectar emocionalmente com os outros o deixa profundamente isolado, apesar de suas realizações intelectuais.

No episódio “Auto Erotic Assimilation”, vemos como o narcisismo de Rick o leva a interações disfuncionais com Unity, uma entidade coletiva que, inicialmente, atende às suas necessidades emocionais e físicas. Contudo, quando Unity começa a recuperar sua autonomia e questiona o relacionamento, Rick tenta buscar novamente o controle, resultando em um colapso emocional. A tentativa de Rick de dominar Unity espelha o que Souza descreve como “a tendência dos narcisistas de manipular os outros para manter sua autoimagem e controle” (Souza, 2016).

Essa dinâmica ilustra como o narcisismo pode destruir relacionamentos, corroendo tanto o narcisista quanto as pessoas ao seu redor. Rick é incapaz de manter relações saudáveis porque sua necessidade de controle e validação supera sua capacidade de genuinamente se conectar com os outros. A decisão de Unity de deixar Rick, apesar de sua conexão, reflete a importância de preservar a autonomia emocional e evitar relações onde o narcisismo domina.

Unity, como uma entidade que controla mentalmente uma sociedade inteira, levanta questões profundas sobre identidade e livre-arbítrio. Rossandro Klinjey, em seu livro “Help: Me Eduque!”, aborda como a perda de identidade individual pode ser uma consequência de uma dependência excessiva em outra pessoa ou em uma entidade maior. Klinjey discute como, em relações onde há uma fusão excessiva de identidades, a individualidade de cada parceiro tende a se diluir, resultando em uma forma extrema de codependência.

No episódio, Unity representa essa perda de identidade ao assimilar outros seres e suprimir suas individualidades em favor de uma mente coletiva. Klinjey explica que, quando uma pessoa se anula em prol de outra, seja em uma relação amorosa ou em um contexto mais amplo, ela corre o risco de perder sua essência e, com isso, sua capacidade de tomar decisões autônomas (Klinjey, 2017).

Além disso, Unity enfrenta um dilema interno: continuar com Rick e arriscar perder sua estabilidade, ou se separar dele para preservar sua integridade. Esse dilema reflete a luta de muitas pessoas em relacionamentos tóxicos, que, apesar de reconhecerem o impacto negativo da relação, encontram dificuldade em sair dela devido à intensa conexão emocional. Klinjey afirma que a capacidade de preservar a própria identidade dentro de um relacionamento é essencial para a saúde emocional, e que o livre-arbítrio deve ser exercido para evitar que uma pessoa se perca completamente na outra (Klinjey, 2017).

Assim, a decisão de Unity de deixar Rick para manter sua integridade é um passo crucial para romper com a codependência e preservar sua individualidade. Essa narrativa ressoa com as reflexões de Klinjey sobre a importância de manter a autonomia e a identidade pessoal, mesmo dentro de relacionamentos íntimos, onde o equilíbrio entre conexão emocional e independência é fundamental para a saúde psicológica de ambos os parceiros.

As referências a autores brasileiros contemporâneos, como Daniel Martins de Barros, Ana Beatriz Barbosa Silva, César Souza e Rossandro Klinjey, acrescentam uma camada de profundidade à análise desses temas. Barros, explora como o controle emocional e a manipulação podem desestabilizar a saúde psicológica, um conceito que se aplica à relação entre Rick e Unity, Silva discute como o ciclo de abuso emocional pode prender indivíduos em padrões destrutivos, enquanto Souza ilustra os efeitos corrosivos do narcisismo de Rick sobre seus relacionamentos. Klinjey, por sua vez, destaca a importância de manter a autonomia emocional e a identidade pessoal em face de relações que ameaçam a individualidade.

Unity, ao reconhecer o impacto negativo de Rick sobre sua coesão e decidir se afastar, exemplifica a luta por preservação da identidade e exercício do livre-arbítrio em situações de codependência. A decisão de Unity de romper com Rick para manter sua integridade emocional reflete o que Klinjey descreve como essencial para a saúde emocional: a capacidade de preservar a própria identidade e exercer o livre-arbítrio em relacionamentos.

Essa narrativa reforça a mensagem de que, para alcançar relacionamentos saudáveis, é crucial reconhecer e interromper ciclos de abuso, resistir ao narcisismo que desumaniza o outro e preservar a autonomia emocional. Rick and Morty nos lembra que a verdadeira conexão, deve ser construída sobre a base do respeito mútuo e da independência, sem comprometer a integridade de nenhum dos parceiros envolvidos.

No final, o episódio serve como um poderoso lembrete dos altos custos emocionais associados a relacionamentos disfuncionais e da importância de proteger a própria integridade emocional. Rick and Morty demonstra, através da narrativa de Rick e Unity, que a busca por controle e poder nas relações não só prejudica os outros, mas também desintegra quem exerce esse controle. Por isso, preservar a própria identidade e autonomia é essencial para o bem-estar emocional em qualquer relacionamento.

Referências: 

BARROS, Daniel Martins. O Lado Bom do Lado Ruim. São Paulo: Planeta do Brasil, 2014.

KLINJEY, Rossandro. Help: Me Eduque! São Paulo: Academia, 2017.

RICK and Morty. Auto Erotic Assimilation. Direção de Bryan Newton. Roteiro de Dan Harmon e Justin Roiland. EUA: Adult Swim, 9 ago. 2015. Disponível em: <link>. Acesso em: 22 ago. 2024

SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes Perigosas: O Psicopata Mora ao Lado. 6. ed. Rio de Janeiro: Fontanar, 2018.

SOUZA, César. Você é o Líder da Sua Vida: E Se Você Não Lidar Bem Consigo, Como Vai Lidar com os Outros? Rio de Janeiro: Alta Books, 2016.

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Uma criança controla minha vida

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Todas as atividades básicas desenvolvidas por um adulto foram aprendidas ainda na sua primeira infância, como a alfabetização, caminhar, falar, tudo é aprendido ainda criança e somente aperfeiçoado com o decorrer dos anos. Esta é uma das razões pela qual a criança tem uma percepção de tempo distinta de um adulto, nessa fase da vida, tudo é novidade, tudo tem um impacto extremamente significativo e que irá definir sua vida como pessoa. Quanto mais complexa for uma habilidade, mais difícil será para a criança absorvê-la a ponto de entender todas as suas etapas e executá-la de forma eficiente.

Tal situação também se repete em outros aspectos da vida do indivíduo, a forma como o homem ou a mulher se porta na sociedade dependerá principalmente de como se deu a sua criação e desenvolvimento infantil. Assim como no campo das habilidades funcionais, no campo psicológico a percepção do infante sobre os eventos e a forma com que este lida (com ou sem o auxílio de seus guardiões), influenciará diretamente em sua personalidade, hobbies, vieses sociais, preferências musicais e literárias, definindo, literalmente os rumos de sua vida.

Literalmente, o adulto, na grande maioria das vezes, é o resultado das somas de suas experiências de vida, porém, no mais íntimo dos aspectos, suas reações sociais serão determinadas pelo seu inconsciente.

Leandro Karnal, assim como outros estudiosos defendem que o ser humano sempre terá traumas em sua vida que guiarão seu futuro. Partindo da premissa de que todo novo evento para uma criança é algo desconhecido por esta, pode ser entendido como um episódio traumático que está experimentando. A principal diferença será a intensidade e as consequências que estas situações irão representar posteriormente.

Fonte: Imagem de wayhomestudio no Freepik

O indivíduo que vivenciou episódios de abusos sexuais e psicológicos terá sua vida amorosa e, muitas vezes até social, determinadas pelo seu inconsciente que está ferido e se encontra em sofrimento, a criança interior pede socorro e, caso negligenciada, conduzirá o adulto por um campo emocionalmente deturpado e sem conexões lógicas.

Mas, ainda que a mulher ou o homem tenha tido uma infância saudável, irá agir de acordo com as percepções de sua versão infantil pois foi neste período de sua vida que adquiriu a base dos seus gostos e interesses pessoais. Para que ocorra uma mudança desta perspectiva é necessário grande esforço do indivíduo e suporte profissional para lhe auxiliar no processo de transformação.

REFERÊNCIAS

KARNAL, Leandro. O dilema do porco-espinho: como encarar a solidão. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.

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O poder dos homens sobre a sexualidade das mulheres

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Um conceito derivado do machismo que durante muitos anos foi ensinado a sociedade fortalecido desde os tempos antigos, é de que a mulher deve ser vista como um suporte ao homem, que deve sempre lhe dar apoio, e que ao mesmo tempo se torna menos que o mesmo.  Tal característica é apresentada desde a Idade Antiga quando houve início a sociedade patriarcal, que tem como forte aspecto a supremacia do homem, no poder, na política, nas decisões etc. As decisões e escolhas das mulheres eram negadas a elas, e o poder sobre o seguimento de suas vidas era hora destinado ao pai que decidia com quem a filha iria se casar, hora ao marido que lhe dava a casa e filhos para que ela pudesse cuidar e hora a igreja que falava sobre o que era certo e o que era errado (CARELLI, 2017).

Como forma de exercer poder sobre as mulheres e sobre a legitimidade dos filhos, o sexo era pregado pela igreja durante a Idade Antiga e a Idade Média, como pecado. Para a mulher casada era visto como algo sujo e errado, já para os homens, um pecado que podia ser cometido com mulheres em prostíbulos, para assim manterem suas esposas puras. Existiam nessa época diferentes tipos de acompanhantes, inclusive mulheres que tinham acesso ao estudo e ao aprendizado sobre música e arte para que pudessem entreter seus acompanhantes (LINS, 2012).

Durante a Idade Moderna, a ideia de amor romântico surge, e a mulher é levada a crer desde a sua infância na existência de príncipes encantados, que iriam conquista-las, e a quem deviam seu amor fervoroso e lealdade. A virgindade da mulher passa a ser vista como um presente que deve ser dado a uma pessoa especial. Já aos homens a ideia de conquista desse presente guardado a sete chaves, era visto como um ato de virilidade, e que a conquista de vários e o desejo das mulheres sobre esse homem, relacionava a ideia de certo poder (LINS, 2017).

Nos dias atuais, falar sobre sexualidade ainda é de certa forma um tabu. Não é permitida a educação sexual nas escolas, embora possam ser encontradas facilmente notícias sobre abuso sexual. Em alguns meios religiosos, ainda são apontados como pecado a procura do prazer sexual, ou a masturbação. E a mulher ainda sofre muitos preconceitos e pode ser considerada uma mulher sem valor, por querer exercer sua sexualidade da forma que deseja.

De acordo com Castro (2009), é perceptível entre os jovens ainda a ideia de que a meninas que exercem sua sexualidade, ou demonstram seus interesses afetivos e sexuais, são vistas pelos meninos, como sem valor e vulgares. Os jovens ainda apontam que essas meninas apenas servem para relacionamentos passageiros ou ficadas. Apesar disso, meninos da mesma idade, apresentando os mesmos comportamentos são vistos como conquistadores, e recebem certo conhecimento por terem muitos relacionamentos.

Leal (2003) coloca que há uma preocupação entre as jovens mesmo nos dias atuais, a relacionarem sua primeira relação sexual a um relacionamento afetivo, ou sentimentos de paixão e amor. Isso pode ocorrer devido a ainda nos dias atuais, a mulher ser levada a crer também desde a infância na ideia de que a mulher que exerce sua sexualidade ser mal vista.

Segundo Francisca e Luis (2008), é possível notar que a mulher quando exerce os mesmos comportamentos esperados do homem, como na normalização do adultério, ou a busca pela satisfação conjugal quando insatisfeita na relação em que se situa, pode ser ainda mal vista pela sociedade em que se encontra, e questionada ou influenciada a retomar uma relação que decidiu pôr um fim.

É apontado ainda, segundo Rodrigues (2008), que as mulheres nos dias atuais podem exercer maior controle sobre as finanças, e conquistam a estabilidade financeira antes de seus cônjuges. Apesar disso, podem ser percebidos sentimentos de baixa autoestima por parte dos homens que se sentem como se não tivessem obtido sucesso ou das mulheres sobre como se sentem estando ao lado de homens que dependem financeiramente dela, isso pode ocorrer devido a busca de papéis em que o homem é colocado como detentor do poder, o que pode influenciar na intimidade do casal.

Sendo assim, é percebido que as mulheres apesar de conquistarem muitos direitos, e poderem escolher sobre seus desejos e vontade, acabam por serem influenciadas a conceitos antigos que colocam a mulher como uma figura pura, e que será levada a sério se manter-se recatada. As mulheres acabam por cobrarem e vigiarem seus comportamentos com receio de serem julgadas, ou cobram de si mesmas, retorno a papéis em que o homem seja o detentor do poder.

REFERÊNCIAS

CASTRO, R.J.S. Violência no namoro entre adolescentes do Recife: em busca de sentidos. 2009. 119 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2009. Disponível em:<https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/13609> Acesso em 23 de setembro de 2021.

DIEHL, A. VIEIRA, D. L. Sexualidade – do prazer ao sofrer. 2. ed. São Paulo: Roca, 2017.

FRANCISCA, L.A.; LUIS, F.R.N. Homens cornos e mulheres gaieiras: infidelidade conjugal, honra, humor e fofoca num bairro popular de Recife/Pe. 2008. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. Disponível em:<https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/471> Acesso em 23 de setembro de 2021.

LEAL, A.F.. Uma antropologia da experiência amorosa: estudo de representações sociais sobre sexualidade. 2003. Disponível em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/2098/000364088.pdf?sequence=1>. Acesso em 16 maio de 2021.

LINS, R.N., 1948. O livro do amor, volume 1 [recurso eletrônico] : da Pré-história à Renascença / Regina Navarro Lins. Rio de Janeiro: Best Seller, 2012.

LINS, R.N. Novas formas de amar / Regina Navarro Lins. São Paulo: Planeta do Brasil, 2017.

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Referências Nietzscheanas em “Onde está segunda?”

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O filme “Onde está segunda?” é original da Netflix e a história se passa no ano de 2073 onde a população mundial cresceu mais do que o planeta terra pode suportar, então para controlar o crescimento populacional e para que todos tenham qualidade de vida, o governo estabelece um limite para os casais onde cada casal só por ter um filho, entretanto uma mulher chamada Karen Settman teve sete filhas e faleceu no parto, e seu esposo Dr. Settman, começa a trabalhar em mecanismos para burlar a lei e esconder suas sete filhas.

A vida desmedida e fora da lei está completamente fora dos planos de toda a população, e quem burla o sistema de filhos tem os filhos congelados numa máquina para que sejam descongelados no futuro quando houver estabilidade. Essa briga de forças nos remete ao dionisíaco e apolíneo trazidos por Nietzsche.

Fonte: encurtador.com.br/frNO4

A obra a origem da tragédia ou nascimento da tragédia, helenismo e pessimismo, foi a primeira obra de Nietzsche, (CASTRO, 2008). De acordo com Vieira (2012), esta obra de Nietzsche foi publicada em 1872 quando ele ainda era professor universitário no curso de filologia, e é considerada por algum autores uma das principais obras da filosofia moderna. Neste livro, Nietzsche aborda sobre a tragédia que era segundo Vasconsellos (2001) um coro composto por doze homens e era cantada por um ator denominado Hipocritas que representava deuses ou seres legendários vivos ou mortos, sobretudo a tragédia era aberta ao público e o público participava livremente e se comovia com os coros e entravam em uma catarse.

A tragédia de Nietzsche aborda a dialética entre o deus Apolo e o deus Dionísio, onde Apolo representava as artes plásticas, o sonho, perfeição, luz, beleza, razão, sonho e Dionísio representava o vinho, a embriaguez, os prazeres carnais, a falta de limites e regras, pois para Nietzsche (2006) a vida se dava entre essa dialética apolínea e dionisíaca, entre o equilíbrio das duas forças, contrariando as ideias socráticas e discorrendo sobre o helenismo que foi o período onde o apolíneo e o dionisíaco viviam em perfeita harmonia, e o autor também traz a tragédia ática que resgata o dionisíaco e é a manifestação artística, é o equilíbrio do espírito dionisíaco e por meio desse processo o grego consegue manter-se diante da vida rodeado por essas duas forças, na tragédia ática o espirito dionisíaco prevalece. A tragédia nasceria na Grécia a partir do espírito da música e renasceria na modernidade a partir do espírito wagneriano. O nascimento da tragédia proveniente do espírito da música (NIETSZCHE, 2008).

Fonte: encurtador.com.br/egTV7

As sete filhas recebem o nome de dias da semana, sendo Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado e Domingo, e ridiculamente todas as filhas possuem personalidades que remetem a esses dias da semana. Elas são treinadas desde criança a terem uma personalidade igual, e a cada dia da semana que corresponde ao seu nome, uma delas pode sair e viver a identidade de Karen Settman. Tudo o que acontece naquele dia é registrado visto que possuem grande tecnologia de registro de dados e imagens, porém mesmo assim é necessário que ela se reúna com todas as irmãs e conte detalhadamente tudo o que houve durante o seu dia.

Karen Settman trabalha num banco e em uma segunda-feira quando Segunda foi trabalhar no seu lugar, misteriosamente Kate some e as irmãs tentam localiza-la por seu sistema moderno, porém não conseguem, então na terça-feira, a Terça sai para tentar desvendar o que houve e reencontrar a irmã, entretanto ela também é pega e descobre que o governo já está sabendo sobre a falta identidade delas. Homens que trabalham para o governo invadem a casa e há confronto e luta. Toda a tecnologia do filme e todos os apetrechos mostrados, são extremamente belos e bem feitos, tudo muito perfeito e bem estruturado.

Fonte: encurtador.com.br/INP58

O espírito apolíneo criava ao redor da forma uma cortina estética perfeita e bela, criando também uma ilusão utilizando da arte para os gregos mostrando apenas o lado belo da existência, e o espirito apolíneo foi reforçado pelo cristianismo, pois mantem a ideia de submissão do homem. O espírito apolíneo representa as artes plásticas e o espírito dionisíaco representa a música e Nietzsche (2008), em sua obra busca o equilíbrio das duas forças, visto que os gregos moldavam o mundo com formas e arte: apolínea e dionisíaca, duplo caráter, teatro e música. E Nietzsche (2008) também retrata sua enorme influência proveniente de Schopenhauer, onde aborda a vida como sendo essencialmente sofrimento e acontecimentos negativos de forma nua e crua, de maneira transparente e fiel a estes relatos de sofrimento e desprazer, rasgando o véu ilusório criado por Sócrates e por Apolo. E Nietzsche (2008) retrata Hegel como o processo de conhecimento do mundo é dialético, tese e antítese, na obra Nietzsche traz uma tese apolínea e uma antítese dionisíaca, resultado disso é a tragédia ática.

De acordo com o que é trazido e apresentado na obra de Nietzsche, o principium individuationis é o processo onde o indivíduo se constrói quanto individuo, uma armadilha da natureza para nos fazer acreditar que somos únicos e podemos vencer a morte e escapar do destino trágico.

FICHA TÉCNICA

Fonte: encurtador.com.br/fozY2

Título: Onde está segunda?

Título original: Seven Sisters

Diretor: Tommy Wirkola
Elenco: Noomi Rapace, Glenn Close, Willem Dafoe, Marwan Kenzari
Pais: EUA  
Ano: 2017
Classificação: 16

REFERÊNCIAS

CASTRO, M.C. , A inversão da verdade. Notas sobre o nascimento da tragédia 2008: Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732005000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 de novembro de 2020.

NIETZSCHE, Friedrich. A ORIGEM DA TRAGÉDIA. Rio de Janeiro: Cupolo Ed, 2008.

SILVA, L. A. Tragédia 2012. Disponível em: < http://www.infoescola.com/artes/tragedia/>  Acesso em: 11 de novembro de 2020.

VIEIRA, M.V. Para ler O nascimento da tragédia de Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2012..

TRINDADE, Rafael. Nietzsche e o Dionisio. Disponivel em: https://razaoinadequada.com/2017/08/23/nietzsche-e-dionisio/ Acesso em: 12 novembro de 2020.

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Onde está Segunda? X Recursos para um bom adestramento

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O filme ‘Onde está segunda?’ – disponível no Netflix, apesar de ser uma ficção, nos mostra que este panorama talvez não esteja assim tão distante; na verdade, salta aos olhos de quem atenta para os fatos, de que não cabe a nós decidir sobre como vamos transformar nosso mundo, apesar de sermos a força motora para isso. Como no filme, nos vemos alienados a uma sociedade controlada por suas mídias e sua tecnologia sem ética. Pessoas com medo, trancadas em seus mundos internos. O estado controlando seus cidadãos, mundo este onde a obediência às leis é um dever supremo.

Cada vez mais os filósofos do passado nos mostram o quanto eram visionários em relação ao nosso mundo contemporâneo. Os escritos de Michel Focault, com propriedade, fala que “a disciplina fabrica indivíduos; ela é técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exército”.

Foi exatamente isso que o filme nos mostra, indivíduos fabricados para obedecer, meros objetos, sem privacidade e sem liberdade até de expressão. Instrumentos nas mãos esmagadoras de um poder superior. Sobre isso, Focault diz que “a plena luz o olhar de um vigia capta melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha”.

No filme, irmãs se viram obrigadas a ter uma identidade coletiva para sobreviverem, já que o governo não permitia mais de uma criança por família. Foi negada a elas sua individualidade e tiveram que lutar bravamente por suas vidas. Eram sete, sobraram apenas duas, porém conseguiram desmascarar as mentiras cruéis do poder corrupto que limitava o povo.

Essa parte, sim, acho que podemos considerar uma ficção, não temos heróis desse nível, e por mais que tentem derrubar a máquina que nos oprime, mais ela nos manipula. A todo o momento nos vemos bombardeados por mensagens subliminares que chegam de todos os lados, nos dopando de falsas verdades.

Ironicamente Michel Focault antevia isso quando lemos seus escritos e nos deparamos com essa verdade que ele escreveu: “O poder disciplinar é, com efeito, um poder, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”.

Nenhuma citação caberia melhor para ilustrar o filme como essa, é exatamente isso que acontece tanto na ficção como nos dias atuais. Esta ficção está cada dia mais real. Observamos claramente tudo isso acontecendo, população adestrada para ser retirada dela o que era de interesse das camadas superiores. Uma verdadeira apropriação do outro.

Ficamos atônitos quando nos deparamos com essa “ficção” onde o poder tem uma lente de trezentos graus. “Para exercer esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível”, diz Focault.

A situação em que as irmãs viviam é aterradora. Tamanha tensão diária, que as levava a ter uma série de problemas emocionais e psicológicos. O medo foi um mestre vigilante e disciplinador apontando o dedo em riste a todo o momento. É um filme intrigante, assustador e extremamente atual, onde podemos encontrar bastante similaridade com as citações de Michel Focault.

Nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilâncias: sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstração de troca, processa-se o treinamento minucioso e concreto das forças úteis; o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos. (Focault, 2017, pag. 82)

Pessoas constantemente vigiadas, constrangidas em sua individualidade. Porém, não sabem quem as vigia e nem de onde, mas têm a plena certeza de que o fazem. A trama nos mostra que todos os direitos dos cidadãos são castrados e totalmente sem autonomia sobre suas vidas, seguem como autômatos. O poder sobre eles foi estabelecido através do controle de suas mentes. Porém, apesar das tragédias para se chegar a um fim, tivemos um final nem tão ruim assim, restou uma esperança para um mundo melhor. 

Referências

FOCAULT, Michel. Recursos para o bom adestramento. Disponível em: https://razaoinadequada.com/filosofos-essenciais/foucault/. Acesso em: 8. Out. 2017.

 ONDE ESTÁ SEGUNDA. Disponível em:< https://www.netflix.com/title/80146805>   Acesso em: 8. Out. 2017.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

ONDE ESTÁ SEGUNDA?

Diretor: Tommy Wirkola
Elenco: Noomi Rapace, Glenn Close, Willem Dafoe, Marwan Kenzari
Pais: EUA  
Ano: 2017
Classificação: 16

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Controle dos corpos num mundo pré-apocalíptico em “Onde Está Segunda”

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O filme “Onde Está Segunda?”, dirigido por Tommy Wirkola, traz uma narrativa de um planeta “pré-apocalíptico” – 2073, com seus recursos fragilizados pela superpopulação, onde o sistema político impõem duras regras às famílias que desobedecerem a política do filho único.

Em meio a toda essa perturbação – com o regime vigente – uma mãe Karen Settman, dá a luz a sete crianças do sexo feminino e vindo a falecer logo após o parto. O avô Terrence Settman (Willem Dafoe), – que não via a filha há anos, veio ao hospital visitá-la. Todavia, em decorrência do fato ocorrido se encarrega de garantir a sobrevivência das sete netas. Contrariando a decisão política, ao acreditar que suas netas possam viver sem fragilizar os recursos escassos, e consequentemente evitar a criogenia – sistema que mantém os irmãos adormecidos até que haja uma adequação econômica do planeta.

Assim, o avô decide utilizar-se de um plano inusitado, colocando o nome de cada criança de acordo com os dias da semana. Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado e Domingo. Como são bebês considerados ilegais, ele precisa manter sigilo e certificar-se de que ninguém notará as crianças. Para isso, ele busca trabalhar que cada irmã adote uma única identidade para todas. Embora, cada irmã apresentasse uma personalidade diferente. Passando-se  por Karen Settman (Noomi Rapace). Com um rigoroso esquema: cada menina poderia sair às ruas somente no seu dia da semana. E elas obedecem metodicamente os ensinamentos do avô.

O plano simples funcionando perfeitamente, só que em um dado dia, uma das irmãs desaparece sem deixar vestígios. Segunda foi pega pelos policiais que muito assustada, foi levada até Nicollete Dime – a presidente, a qual se refere à moça, de estar pasma pelo fato da família ter ido tão longe, em desobediência ao sistema. “Sete filhas… o que seu avô estava pensando… faz ideia de quanta comida e água foram tiradas das outras pessoas? … se todos fôssemos egoístas, o mundo terminaria amanhã!”.

Após a prisão da irmã Segunda, o pavor toma conta das demais irmãs, ao temerem ser descobertas pela polícia, que trava uma guerra na tentativa de capturá-las, para puni-las com a hibernação, como determina o sistema vigente.

Sabendo-se que o filme “Onde Está Segunda?” utiliza-se de um sistema político que tenta a qualquer custo controlar a taxa de natalidade, evitando uma superpopulação do planeta, na tentativa de preservar os poucos recursos. Todavia, faz uso de um sistema ditatorial. Pois o casal que desobedecer as regras impostas, sofre punição com a criogenia.

O filme em questão aborda sobre as questões do controle e a vigilância. Foucault havia postulado sobre esse tipo de sociedade, na qual ele traz o conceito de Sociedade Disciplinar para levantar uma análise sobre os processos de disciplina que operam sobre as instituições e para isso ele toma como modelo o panóptico, para demonstrar o uso do espaço e do tempo.

Em seguida, Deleuze também teoriza sobre as formas de controle, mas levando em consideração que essa vigilância ocorre na sociedade como um todo, operando sobre os corpos dos indivíduos e não mais através de delimitações marcadas. Nas palavras de Lauro (2017), “o Controle marca por processos de Desterritorialização”, operando não mais externamente, mas internamente.

Esse poder pode ser visto de forma bastante direta na trama do filme, onde o controle passa a determinar os modos de vida, escolhas, enfim, dita os padrões que objetivam integrar as singularidades e controlar a diferença.O filme mostra que apenas um tipo de família era aceito nessa sociedade, e quando ocorria o desvio, como no caso da família da personagem Segunda, era imediatamente regulado através das regras disciplinares.

Afirma-nos Deleuze, que a Disciplina é uma forma de estabelecer o Poder interferindo no mecanismo fundamental de todos os corpos, funcionando como um filtro: o que passa para a realidade deve ser filtrado, numa perspectiva de manter uma sociedade sob controle. Todavia, não podemos nos habituar com uma vida mergulhada na angústia, onde a obediência já não é mais questão de disciplina, mas de hábito.

Assegurando-nos, que se faz necessário, tomarmos medidas para combatê-lo. Visto que, com sistemas ditatoriais, conseguiram camuflar os verdadeiros problemas, introduzindo uma Axiomática em nossas cabeças. Precisamos recuperar o plano de flexibilidade que dá sentido aos problemas. Sendo necessário lutarmos por novas estratégias. Deixando-nos a reflexão: que “o que é inquestionável é a necessidade de questionar! Posicionar-se é a primeira manobra de resistência”, segundo DELEUZE (1990), apud LAURO (2017).

Portanto, ao invés de se estabelecer controles rígidos sobre o crescimento populacional, é possível utilizar-se de medidas mais flexíveis, para o controle da taxa de natalidade, constituído a partir de políticas públicas, visando adotar ações de educação com campanhas de orientação à população e incentivo com a distribuição gratuita de contraceptivos, preservativos, dentre outros métodos, para uma prática efetiva de planejamento familiar, afirma SILVA (2014).

Sabendo-se que medidas de implantação de controle da taxa de natalidade pode ser o alicerce para a solução de vários problemas que assolam o planeta, todavia deve ser bem elaborado, visto que pode afetar as economias de uma nação (SILVA, 2014), como por exemplo, nas fases de transição demográfica, uma vez que, reduzindo o nascimento de indivíduos, reduzirá consequentemente o número de pessoas ativas para o trabalho, que implicará numa menor arrecadação governamental, e sobretudo a sustentação dos benefícios da faixa etária idosa.

 Referências:

DELEUZE, G. Sociedade de Controle. (1990). Disponível em: <https://razaoinadequada.com> Acesso em: 06/11/201/deleuze-sociedade-de-controle/

FILME. Onde Está Segunda? (EUA). Direção: Tommy Wirkola. 2017. Netflix. 123 minutos.

SILVA, W. S. Controle de natalidade. (2014). Disponível em: <https://razaoinadequada.com> Acesso em: 06/11/2017

FICHA TÉCNICA DO FILME:

ONDE ESTÁ SEGUNDA?

Diretor: Tommy Wirkola
Elenco: Noomi Rapace, Glenn Close, Willem Dafoe, Marwan Kenzari
Pais: EUA  
Ano: 2017
Classificação: 16

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A família como instituição de controle e disparador do comportamento suicida

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O suicídio pode ser conceituado como uma morte resultante de um ato voluntário da vítima para si. Emile Durkheim faz desse fenômeno seu objeto de estudo em sua renomada obra “O Suicídio” (2000), livro que serve de base para esse ensaio acadêmico, e chega a conclusão de que, apesar de aparentar ser um ato privado, as causas do suicídio podem ser encontradas em fatores sociais.

Ao estudar as relações entre indivíduo e sociedade, Durkheim percebe que deve existir certo equilíbrio nas relações entre ambos. Quando os limites são atendidos, ou seja, quando o indivíduo possui um nível de integração com os seus grupos, essa relação se torna benéfica a ele, servindo até como um potencial controlador do comportamento suicida. Mas quando seus níveis de integração social saem do eixo, se tornando muito altos ou muito baixos, essa relação leva para o aumento de taxas de suicídios.

Para ele, toda sociedade oferece em seus elementos constituintes um contingente de suicídios que não age isoladamente, mas sobre grupos sociais. Porém, aquilo que oferece imunidade aos indivíduos, também pode servir de disparador do comportamento suicida, isso dependerá das relações indivíduo-sociedade e dos diferentes contextos sociais nos quais essas mortes voluntárias emergem.

Fonte: encurtador.com.br/dguQ0

Observando que a instituição familiar é uma das maiores e mais importantes constituintes da estrutura social, e levando em consideração a alta imunidade dos casados em relação ao suicídio em comparação aos solteiros, esse ensaio acadêmico propõe um enfoque na família e seus níveis de influência sobre o indivíduo enquanto desempenha o papel de instituição de controle do comportamento suicida, e também considerando as situações na qual ela faz o caminho inverso, sendo produtora do fenômeno.

Faz parte do senso comum a ideia de que pessoas casadas vivem uma vida mais difícil que as pessoas solteiras, pois um grande número de responsabilidades e privações que acompanham o casamento e a vida familiar atinge somente os primeiros e não os segundos. Seguindo essa lógica, a vida conjugal e familiar deveria favorecer a disposição do indivíduo.

No entanto, Durkheim desfaz esse ponto de vista em sua obra O Suicídio, através de uma detalhada comparação entre as taxas de suicídios de pessoas solteiras e casadas. Por meio dos dados expostos, torna-se claro que os casados não só se matam menos que os solteiros como obtém uma grande vantagem em relação a estes, ou seja, o matrimônio diminui consideravelmente o perigo de suicídio. E é esse curioso dado que irá direcionar o seguinte ensaio acadêmico. Além de discutir as causas dessa imunidade obtida pelos indivíduos casados, queremos saber em que situações ela também se faz perder dentro da vida conjugal e familiar.

Uma observação mais profunda da conjugalidade nos leva a perceber que existem dois diferentes elementos que compõem o meio doméstico: o cônjuge e os filhos. Conforme Durkheim (2000, p. 224-225): “Uma deriva de um contrato e de afinidades eletivas, a outra de um fenômeno natural, a consaguinidade”. Vendo que ambas têm diferentes naturezas, pode-se afirmar que elas também podem produzir diferentes efeitos e, por esta razão, Durkheim separa dois grupos: os casais com filhos e os casais sem filhos. Esse ato foi realizado justamente para medir a influência do casamento sobre o suicídio e descobrir de onde surge a imunidade observada no primeiro dado apresentado: se a pequena disposição ao suicídio é resultado apenas da relação conjugal, ou se ela está ligada a algum outro fator que a vida doméstica traz consigo.

Fonte: encurtador.com.br/jsuBG

Antes de expor as informações obtidas com a análise, é necessário explicar o significado da expressão coeficiente de preservação que irá aparecer com frequência no decorrer desse ensaio. Trata-se de um termo que indica quantas vezes um determinado grupo se mata menos que outro. Ou seja, quanto maior for o número do coeficiente, maior é a vantagem do grupo, pois seu número de suicídios em relação ao outro é muito menor.

A análise confirmou que o coeficiente de preservação dos homens casados sem filhos era maior do que os solteiros da mesma idade, porém o coeficiente chegava a dobrar quando se tratava dos homens casados com filhos. Outra informação importante obtida é a de que os homens viúvos com filhos apresentam uma imunidade maior ao suicídio que os homens casados sem filhos. É claro que a tendência ao suicídio aumenta após a morte do cônjuge, pois, independente da intensidade, instala-se uma crise no sujeito. Mas quando a morte do cônjuge não tem fortes repercussões nesses números, como notou na pesquisa, é correto afirmar que o matrimônio em si, apesar de ter uma influência positiva sobre os homens casados, não é quem contém a tendência ao suicídio.

Mas é no sexo feminino que a pouca eficácia do casamento se torna evidente quando não há a presença dos filhos. Na França, as mulheres casadas sem filhos se matam mais que a metade das mulheres solteiras de mesma idade. A mulher é, na maioria das culturas, desprivilegiada no casamento e o matrimônio pode até agravar sua tendência ao suicídio, mas é um fato que será discutido posteriormente. O que nos interessa agora é que os casamentos com presença de filhos amenizam esse mau efeito do casamento para as mulheres.

Fonte: encurtador.com.br/dfk37

Percebe-se então que a imunidade dos indivíduos casados em relação aos solteiros se deve não à sociedade conjugal e sim à sociedade familiar, pois a presença de filhos no casamento aumenta o coeficiente de preservação consideravelmente. No entanto, vale lembrar que o matrimônio também tem sua influência sobre a imunidade dos indivíduos casados, porém ela é muito restrita ao sexo, mostrando-se mais influente no sexo masculino, já que as mulheres sofrem um agravamento nas taxas de suicídio quando não têm filhos.

Os cônjuges detêm desse privilégio não por desempenharem o papel de marido e mulher, e sim de pais e mães. Por isso a morte de um cônjuge aumenta a tendência do outro ao suicídio, pois a ausência de um resulta numa crise no meio familiar que se torna difícil adaptação. Ou seja, a sociedade doméstica é um potente preservativo contra o suicídio. E essa preservação é mais completa quanto mais densa é a família, e quando se fala de densidade não se refere somente ao grande número de filhos, mas também da participação regular deles na vida familiar. Esse fato contradiz completamente com o que foi dito inicialmente, pois a propensão ao suicídio diminui à medida que estes encargos na vida doméstica aumentam.

Uma família fortemente integrada possui uma energia particular difícil de dissipar, pois todas as consciências individuais que compõem a família experimentam os sentimentos coletivos, sentimentos esses que repercutem um sobre os outros. É por essa razão que a intensidade dessa energia torna-se mais forte quando número de consciências que estão compartilhando e reforçando os sentimentos, lembranças, experiências, tradições dentro desse grupo.

Fonte: encurtador.com.br/rzKRW

Essa imunidade relacionada a uma forte integração que compreende a sociedade doméstica não é exclusiva dela, mas também compreende outros grupos sociais como a religião e a política. O indivíduo fortemente integrado, seja na família ou em outras esferas, está menos propenso ao suicídio, pois uma sociedade fortemente integrada mantém os indivíduos sob sua dependência. Ou seja, quando o indivíduo está engajado e a serviço de tais grupos sociais, o “eu” pessoal não está acima do “eu” coletivo, portanto não colocam os seus fins acima dos fins comuns. É isso o que justifica a pequena tendência dos casados com filhos ao suicídio. A sociedade familiar tem poder sobre o indivíduo e não os permite dispor de seus interesses privados, pois a morte interrompe os deverem que esse indivíduo tem com ela.

Numa sociedade coerente e viva, há entre todos e cada um entre cada um e entre cada um e todos uma troca contínua de ideias e de sentimentos e como que uma assistência moral mútua, que faz com que o indivíduo, em vez de ficar reduzido as suas próprias forças, participe da energia coletiva e nela venha recompor a sua quando esta chega ao fim (DURKHEIM, 2000, p. 259).

Para que a vida seja suportável, o indivíduo precisa se ligar a algo, ele deve possuir alguma razão que lhe prenda a vida e veja valor nela. O homem não é capaz de viver por si só, pois a essência da vida é muito frustrante. O ser humano é limitado no espaço e tempo e não importa todos os nossos esforços em vida, no fim nada irá nos restar. Portanto, se não tivermos um objetivo fora de nós, resta ao homem somente si mesmo, o que não é suficiente para camuflar toda essa angústia e o apavoro que dessa inevitável anulação, e assim, o homem fica sem forças para agir.

Existem funções que só interessam ao indivíduo: as funções orgânicas; e as realizando, o homem se torna capaz de bastar a si mesmo. É o que ocorre durante a infância e velhice. Mas ao entrar na vida adulta e na civilização que a compõe, uma infinidade de necessidades que não dizem respeito a manutenção da vida física o inundam. Essas necessidades, sentimentos e ideias implantadas em nós (religião, moral, ética, política, etc), foram criadas pela própria sociedade e são a ela que se referem. Ou melhor, Durkheim diz que “são a própria sociedade encarnada e individualizada em cada um de nós” (2000, p. 263). E é por isso que para termos apego a vida, é necessário termos apego à sociedade.

Fonte: encurtador.com.br/bfkr3

À medida que os grupos sociais se desintegram ou perdem força sobre o indivíduo, ele se vê inclinado ao suicídio, pois o homem é físico e social. Quando o segundo se enfraquece, tudo o que há de social em nós também se perde. Se a única vida que o homem coletivo conhece se perdeu, e a única fundada no real (orgânica) não responde mais as nossas expectativas, o homem não encontra mais razões para viver. O tipo de suicídio que resulta dessa desintegração, onde o eu individual é preponderante ao eu social, é chamado de suicídio egoísta, justamente porque há uma individualização desmedida onde o sujeito não se vê mais dependente do social e estando dependente apenas de si mesmo, as regras de conduta que valem para ele são apenas aquelas que o interessam.

É parte da nossa constituição moral, dentro da sociedade na qual estamos inseridos, um objetivo que nos ultrapasse e determine o valor da existência. A família é uma das principais instituições que realizam esse papel com êxito, tornando-se uma instituição de controle do comportamento suicida. No entanto, em algumas situações, ela pode se tornar a disparadora desse comportamento.

Nos casamentos precoces (dos 15 aos 20 anos) há um enorme agravamento no coeficiente de preservação do número de suicídio, principalmente nos homens que, na França, chegam a se matar 473% que as mulheres. O número de suicídios começa a cair após os 20 anos, onde tanto os homens quanto as mulheres se beneficiam de um coeficiente de preservação, que cresce até os 40 anos, com relação aos solteiros. Pode-se perceber que o matrimônio serve como um disparador do comportamento suicida quando ele ocorre muito cedo, sendo muito mais prejudicial aos homens do que as mulheres.

Em outros casos, ou melhor, na maioria deles, a mulher é o sexo prejudicado no casamento. Ao comparar a participação de cada sexo nos suicídios das dois estados civis (solteiros e casados), percebeu-se que a imunidade entre os sexos é desigual: as mulheres casadas se matam mais na categoria de suicídio dos casados do que as mulheres solteiras na categoria de suicídios de solteiros. Isso não significa que a mulher casada está mais exposta ao suicídio que a solteira, e sim que a mulher se beneficia muito menos com o casamento do que o homem. Também como já foi apontado nessa discussão, a sociedade conjugal é prejudicial para a mulher quando há a ausência de filhos enquanto o homem, mesmo sem filhos, possui um coeficiente de preservação considerável. Ou seja, a vida familiar é a responsável pela minimização dos efeitos do matrimônio para a mulher.

Fonte: encurtador.com.br/dpzCD

Quando se fala em divórcios, sabe-se que os indivíduos não só se matam consideravelmente mais do que os casados, como também mais que os viúvos. Trata-se de um dado curioso, pois geralmente o divórcio é algo desejado. Ao analisar esses números, Durkheim percebe que o coeficiente de preservação das mulheres casadas aumentam à medida que os divórcios são mais frequentes. Já nas sociedades em que o divórcio é pouco praticado, as mulheres tendem a ser menos preservadas que o seu marido. O inverso acontece com o homem, ele é menos preservado à medida que o número de divórcios crescem.

Essas novas informações se relacionam com a já exposta: o casamento é benéfico ao homem, tão benéfico que quando ele o perde, sua propensão ao suicídio aumenta; enquanto a situação da mulher melhora à medida que o suicídio é praticado. Assim, entende-se que, o sexo masculino é o responsável por essa alta taxa de suicídio dos divorciados. Essa não é uma verdade absoluta em todas as sociedades, mas é uma realidade que se repete em muitas delas. Esses efeitos tão opostos do casamento sobre o sexo se dá porque seus interesses dentro desse regime são antagônicos.

A sociedade moderna é marcada por uma desorganização; há um estado de falta de objetivos e regras que se faz perder a identidade. Esse fenômeno é entendido por anomia. Para controlar os efeitos negativos da anomia na sociedade, instituiu-se diversas medidas que pudessem amenizá-las e conter os indivíduos, pois a ausência de limites gera uma perseguição interminável que nunca será satisfeita, consequentemente levando ao caos e muitas vezes ao suicídio. O casamento, principalmente o monogâmico, é uma das instituições que possuem essa função. Ele regula a vida passional do indivíduo, obrigando-o a se ligar a uma única pessoa e fechar seu horizonte. E como diz Durkheim (2000, p. 346), é disso que o homem tira vantagem:

É essa determinação que constitui o estado de equilíbrio moral de que o homem casado se beneficia. Por não poder, sem faltar seu dever, buscar outras satisfações além das que lhe são assim permitidas, ele limita a elas seus desejos. A disciplina salutar à qual é submetido faz com que deva encontrar felicidade em sua condição e, por isso mesmo, fornece-lhe os meios para isso.

O homem por culturalmente possuir uma liberdade maior, precisa ser regulado, pois definindo os seus prazeres, o homem irá garanti-los estabelecendo o equilíbrio mental que ele necessita. O que não acontece na vida do homem solteiro, onde a anomia assume um caráter sexual. Por não ter um regime que o regule, a vida de solteiro é repleta de frustrações porque, por não ter limites, o homem quer tudo e por isso, nada o satisfaz. “Quando não somos detidos por nada, não podemos deter a nós mesmos” (2000, p. 346).

Fonte: encurtador.com.br/iIOSZ

E da mesma maneira que o homem não se dá definitivamente a ninguém, nada a ele pertence também, condenando-o a um futuro instável e incerto. Disso resulta um estado de perturbação e insatisfação que aumenta as probabilidades de suicídio. E é isso o que ocorre no divórcio. A regulamentação estabelecida no casamento se enfraquece e os limites que eram colocados aos seus desejos já não são tão rígidos, podendo facilmente se deslocarem. A estabilidade e tranquilidade que o homem casado experenciava dá espaço para uma inquietude por não conseguir se ater ao que tem.

Contudo, enquanto o homem possui uma intensa liberdade que deve ser contida para o seu próprio bem, a mulher precisa de liberdade. A mulher sempre esteve presa a moldes sociais que até hoje influenciam muito na nossa cultura, mesmo que aos poucos sejam quebrados pelo movimento feminista. As necessidades sexuais da mulher têm um caráter menos mental em comparação aos homens, pois não se permitia que isso se desenvolvesse nelas. Portanto, a mulher não precisa de um meio de regulamentação como o casamento, pois ela já o faz há muitos séculos por imposições sociais.

Não só a mulher sofre com essa limitação de horizontes trazida pelo matrimônio, o homem também se vê numa condição complicada. Mas enquanto o segundo ainda é capaz de obter privilégios com o rigor desse regime, a primeira só sai perdendo. Além do casamento não ser útil para conter seus desejos que já são naturalmente limitados pela sociedade machista, o casamento tira dela a esperança de um futuro diferente e que realmente almeja, pois historicamente as mulheres sempre estiveram mais inclinadas ao casamento, como uma obrigação. Por essa razão o matrimônio é muitas vezes intolerável para a mulher, pois é um encargo muito pesado e sem vantagem; e assim, qualquer coisa, como a presença de filhos, vem a suavizar essa desvantagem que explica sua propensão maior a suicídio quando a única coisa que ela tem é o casamento.

Fonte: encurtador.com.br/opE08

Em determinado momento da vida, o homem também é afetado da mesma maneira que a mulher pelo casamento, mesmo que por outras razões. Isso ocorre com os homens jovens, e é por isso que o número de suicídio de homens casados entre 15 a 20 anos é tão alto como dito anteriormente. Eles não são capazes de se submeter aos limites impostos pelo casamento, pois suas paixões são muito intensas e ele não as consegue controlar. Os efeitos positivos do casamento só se vem sentir mais tarde, quando a idade tranquiliza o homem e a disciplina passa a se fazer necessária. Mas mesmo com esse contraponto, é ao homem que a instituição do casamento favorece, pois ele que necessita de coerção, tem o que precisa; e ela que precisa de liberdade, se vê mais presa.

A liberdade à qual o homem renunciou só podia ser para ele uma fonte de tormentos. A mulher não tinha as mesmas razões para abandoná-la e, sob esse aspecto, podemos dizer que, submetendo-se à mesma regra, foi ela que fez o sacrifício (DURKHEIM, 2000, p. 353).

De modo geral, é assim que o matrimônio pode se tornar um disparador do comportamento suicida para a mulher, enquanto serve como uma instituição de controle para o homem. Por essa razão, o divórcio a protege a mulher do suicídio que recorre mais facilmente a ele, enquanto inclina homens à morte voluntária.

Considerações Finais

A imunidade que os indivíduos casados desfrutam em relação aos solteiros se deve, em sua maior parte, não ao matrimônio e sim à vida doméstica que surge dela. Os coeficientes de preservação aumentam consideravelmente quando há a presença de filhos no casamento e a imunidade se torna maior quanto mais densa for a família. Uma família fortemente integrada, onde as consciências individuais que a compõem estão reforçando seus laços, serve como uma instituição de controle do comportamento suicida. E quanto mais membros ativos existirem na vida doméstica para alimentar essa energia particular, mais benéfica essa instituição se torna. Quando há um elevado, mas ainda estável, nível de comprometimento dentro do seio familiar, eliminar a própria vida não se torna uma opção porque o “eu” social é mais forte que o “eu” individual, tamanha é a importância que a família tem para esse sujeito.

Entretanto, o suicídio varia inversamente a integração desse ser dentro nos grupos. Assim, quando a instituição familiar se desintegra e/ou perde sua força, o indivíduo se isola da vida social e os fins sociais não possuem mais importância que os fins próprios. Desta maneira, essa estrutura pode agir como disparador do comportamento suicida. Por si só, o casamento tem seus benefícios, contudo, ele só atende a um dos sexos, sendo o sexo masculino o beneficiado na maioria das vezes. É correto afirmar que o ser humano precisa de algo que o regule em todas as esferas, e no âmbito afetivo quem faz esse papel é o casamento.

O homem precisa do matrimônio, pois enquanto solteiro, seus desejos são ilimitados e insaciáveis e assim, as normas regem a sociedade não correspondem os seus objetivos de vida. Uma vez que o indivíduo não se identifica com essas normas sociais, o suicídio passa a ser uma alternativa. Por isso, ao limitar seus horizontes, o homem passa a ter apenas um objeto de desejo, e ao limitar a esse objeto seus desejos e ele proporciona a si meios de satisfazê-los. Por essa razão o casamento, ao fazer essa regulação social, serve como um dispositivo de controle.

Fonte: encurtador.com.br/bdFHL

Enquanto isso, o casamento atua como um disparador do comportamento suicida às mulheres. Ao contrário dos homens, por toda a história, a elas foi imposto que deveriam regular seus desejos, e assim elas os fazem naturalmente, sem a necessidade de uma instituição com esse papel. Por isso, quando elas se casam, a liberdade da qual elas necessitavam e da qual os homens sempre desfrutaram, se perde. Se vendo ainda mais presa e sem esperanças de um futuro que atenda suas necessidades, a mulher se torna mais propensa ao suicídio.

Diante dessas informações, podemos pintar um cenário desvantajoso para as famílias contemporâneas quando falamos sobre suicídio. À medida que os anos passam, o número de filhos por casal diminuem, filhos esses que saem da casa dos pais com muito mais facilidade; pais superocupados com uma rotina repleta de afazeres e obrigações e que, por consequência, não dão a devida atenção para o cenário familiar e filhos desamparados dentro de seus próprios lares. Tudo é mais “eu” e menos “nós”. Todos esses fatores que moldam a família pós-moderna, favorecem a sua desintegração e a fraqueza dos laços internos que, como pudemos ver nesse ensaio, favorece a propensão ao suicídio.

Já para as mulheres, o cenário é vantajoso. A grande força que o movimento feminista ganhou nas últimas décadas garantiu às mulheres um espaço muito maior do que elas detinham e uma liberdade até então nunca experienciada. Tendo em vista que é isso o que a mulher necessita, talvez a sua perspectiva do casamento se altere com o passar dos anos, e a realidade apresentada aqui mude.

REFERÊNCIAS:

DURKHEIM, Émile. O Suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes Editora Ltda., 2000. 513 p. Tradução de: Monica Stahel.

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