Anos nem tão dourados: a triste infância de Ciça

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“Enquanto fenômeno socialmente construído, incorporada como legítima e, mesmo, como imperativo, a violência prende-se às próprias condições de constituição e de funcionamento de uma sociedade de homens livres.” (ADORNO, 1988, p. 5).

No dia 15 de agosto de 1956 às 18 horas de um dia de sexta feira, nascia Ciça, um belo bebê saudável que pesava 4 kg. Ciça veio de uma gravidez não desejada, num lar disfuncional e muito, muito pobre de recursos materiais, bem como emocionais. O bebê era a quarta de uma família de seis agora, a mãe trabalhava dia e noite lavando trouxas enormes de roupas, que mal dava conta de carregá-las. Maria era linda e loira, olhos azuis da cor do mar em calmaria, só a cor que lembrava a calmaria. Sua pele muito branca fazia um contraste dolorido com o sol quente. As condições de trabalho eram precárias, três bacias, água tirada na cisterna puxada por uma corda, onde tinha um balde pendurado, (chamava-se sari). 

O sol castigava, pois não havia proteção, o trabalho era realizado durante o dia todo debaixo daquele sol escaldante, ou da chuva, tinha quatro filhos para alimentar. O pai de Ciça aparecia de vez em quando com um pacote de arroz, e por meses a fio não se ouvia falar dele. Na época pouco se sabia sobre a história deste moço, por onde andava, o que fazia, pensava na família? Pois bem, em meio a estes eventos, lá ficava o bebê, vez ou outra a mãe aparecia para amamenta-la, com pressa, o serviço urgia, se fez necessário estancar o leite e passar para a mamadeira, não havia tempo, assim o irmão mais velho poderia providenciar o mingau e ela estaria com mais tempo para as lidas do dia. Maria era uma mulher sisuda, de poucas palavras, sorrisos raros, quase inexistentes, e bastante violenta, Ciça saberia disso anos mais tarde.

Ciça cresceu e apesar dos pesares, cresceu saudável, aos cinco anos já tinha consciência do mundo ao seu redor e de seu lugar nele. Era uma garotinha linda; assim como a mãe, era sisuda, de poucas palavras, sem sorrisos, mas por motivos diferentes, achava ela.

Os dias eram sempre molhados, úmidos, assim como sua alma.
Imagem de Elisa Riva por Pixabay

A partir desta idade Ciça atesta se lembrar de cada detalhe de sua angustiante e melancólica vida. Ela já tinha obrigações dentro da minúscula casa, que contava com um cômodo e um puxadinho sem paredes para o fogão feito com seis tijolos, tinha também uma prateleira onde os alumínios brilhavam. Maria já introduziu Ciça no exercício de varrer, arrumar cama (só tinha uma para todos) e aos bofetões lhe ensinava a brilhar panelas, e como dizia ela, ensinava a ser “gente”.

Ciça sofria agressões por fazer e fazer mal feito, por não fazer, por chorar, por não chorar, ela era o pano de fundo das amarguras de Maria. Suas mãozinhas pequeninas não conseguiam segurar direito as coisas, portanto não tinha o domínio que Maria exigia dela, até aprender, seu corpo sofria, sua cabeça não entendia o ódio que aquela mulher nutria por ela. Por fim, foi se naturalizando, vai ver que a vida era aquilo mesmo. Por incrível que pareça Ciça amava aquela mulher, achava-a linda e como ela queria por um minuto sequer que ela a amasse, mas deveria ter algo torto com Ciça, algo com que fizesse que a Maria sentisse aversão por ela. Sim, a culpa era da Ciça. É evidente que era, ninguém morde uma criança até sangrar, sem que a criança seja torta.

Aos cinco anos e meio Ciça pegou um livro de sua irmã folheou e sem a menor dificuldade leu uma página, Maria não acreditou, julgou que a menina estivesse inventando e pegou o livro e leu a página, e não, Ciça não estava mentindo, e pela primeira vez em sua pobre vidinha ela ganhou um abraço da mãe que ficou maravilhada, pois a filha nunca havia ido à escola. Maria não sabia que a irmã mais velha sempre lia para Ciça, à luz de uma lamparina, ou à luz da lua, momentos em que Ciça poderia voar e sonhar. Nestes dias peculiares, sua irmã a introduziu no mundo das letras, era pouco, mas Ciça tinha avidez em aprender. E foi assim que se deu, foi um anjo que compadecido presenteou Ciça com este momento do qual ela se lembra até hoje.

A menina acordou no outro dia disposta, depois daquele abraço ela se encheu de esperança, com planos coloridos para um futuro melhor, embora ela não soubesse o que era futuro, pensou que as coisas seriam diferentes agora. Finalmente sua mãe a amaria, ora, porque não, afinal houve aquele delicioso abraço, não se pode agredir depois de um abraço, não tem como voltar atrás depois de amar. Ela descobriu que o mundo dos adultos, nem sempre tinha regras, continuidade, era como um filme com um roteirista macabro. Maria acordou e com a grosseria costumeira já colocou Ciça para brilhar as panelas e com promessas de muita surra caso não brilhassem. Ciça só a olhou desolada e uma lágrima furtiva rolou por sua face. Foi sua primeira grande decepção, mal ela sabia que viriam muitas outras.

Com o tempo as obrigações de Ciça aumentaram muito, com sete anos já haviam mudado de casa umas 10 vezes, sempre era no fundo de alguma casa, e as habitações eram sempre miseráveis. Nesta última casa em questão, havia um fogão a lenha e a menina foi presenteada com um banquinho, para que subisse e assim poder cozinhar. Sim, o almoço seria agora por sua conta. Maria explicou a Ciça como fazer arroz, foi rápido, e ela fez, da maneira que entendeu. As mãos tremiam, o pavor do insucesso era grande, pois as consequências seriam desastrosas. Pois bem, na medida em que o arroz foi cozinhando ele foi crescendo, crescendo, por fim derramou, era arroz demais para a panela. O desespero se instalou e se justificou, Maria entrou e quando viu aquilo, colocou a mão naquele arroz quente e numa fúria mortal, esfregou no rosto de Ciça, queimando todo seu rosto. Uma semana de babosa no rosto e uma tristeza de morte na alma.

Ciça aprendeu a dor de não ter sapatos.
Imagem de Azmy Talibi por Pixabay.

Ciça nesta época aprendeu a cozinhar, quando tinha algo para cozinhar, ela não sabia se ficava alegre quando não tinha, ou ficava triste por não ter, ela conhecia a fome de perto. Os sentimentos de Ciça eram confusos entre ser triste ou ter um alívio da tristeza, aliás, os únicos sentimentos aos quais ela tinha intimidade eram medo, vergonha, tristeza, angústia e um monte de porquês embolado em sua garganta. Neste período Ciça entra na escola, “Escola Estadual Professor Chaves”, era uma escola chique para a época, lá estudavam tanto ricos como pobres, isso também foi o calvário de Ciça. A menina não tinha calçados, ia com o uniforme limpo que brilhava, porém, descalça. Logo, virou chacota da turma. A segunda decepção, ela não pensava que crianças também poderiam ser cruéis.

Ciça frequentou a escola por um ano, saiu-se mal em todas as matérias, se sentia a pior das criaturas. Seu irmão Valmir que era seu único e melhor amigo, era mais inventivo e ousado, a vida dura o tinha tornado um mini adulto. Ele achou um pé de botinas, e no outro pé ele enfaixava com tiras de pano e mancava, fingindo estar machucado e assim rompeu o pré-primário. Ciça não, passou a se esconder no mato até a aula acabar, mas não era de todo perdido, estudava nos livros, neste ano, apesar dos parcos resultados, aprendeu a ler corretamente, fazia contas mais ou menos, mas adorava, como ela adorava o livro de histórias. Lia avidamente e com isso tomou gosto pela escrita, o que se tornou seu refúgio. Um dia desses de esconderijo, a menina se encontrava debaixo de uma árvore perto de uma cerca de arame, e chovia muito, caiu um raio que arrebentou a cerca, Ciça ficou intacta, se instalou nela uma esperança que ela seria um ser especial, isto passou a movê-la. 

O tempo passou, sua mãe nunca descobriu que ela não terminou os estudos, mesmo porque, não havia tempo para estes pormenores, a escola nunca a procurou, e com isso Ciça fez 10 anos. Tornou-se uma linda garota, de cabelos muito negros e longos, dignos de elogios de quem os visse. Ela não se dava conta disso. Mudou-se com a família para o estado de Goiás, onde a pobreza deu uma arrefecida, mas a fúria de Maria não. Nesta época, Maria teve mais dois filhos, mas Maria tinha que trabalhar, agora ganhando um pouco mais. Os cuidados com os irmãos eram por conta de Ciça, a menina lavava, passava, cozinhava e cuidava dos irmãozinhos, não havia tempo para estudos, a noite quando o pai aparecia, ele lhe dava algumas lições. Quando Maria chegava checava todo o serviço realizado, caso houvesse alguma coisa fora do lugar, ou mal feito ao seu olhar, o lindo cabelo de Ciça era usado como cordas enlaçando a mão de Maria que neste movimento arremessava a cabeça de Ciça nas paredes. Uma nova modalidade de violência se instalou.

A vida seguia, nesta época além de escrever Ciça adora cantar, e o fazia muito bem, cantava o dia todo naquela lida infernal que a deixava exausta. Um dia sua irmã ao chegar do trabalho, deparou-se com Ciça com os cabelos desgrenhados, perguntou o que houve, ele já sabia, mas queria saber dela. Ciça relatou e ela incontinente pegou Ciça pela mão e levou-a em um salão, sua irmã também tinha os cabelos longos e lindos. Sentaram as duas e ela disse: corte nossos cabelos curtinhos, e assim foi feito. Foi a maior prova de amor que alguém já havia dado a ela. Nunca mais a menina esqueceu, como também, nunca mais ela deixou o cabelo crescer, nunca mais conseguiu, foi como se quisesse cristalizar aquele momento de entrega genuína da irmã, bem como preservar dentro de si aquele sentimento de que alguém de verdade a amava.

Em tempos difíceis, ter com quem contar é um tesouro.
Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay

Ciça sempre pôde contar com sua irmã doravante, isso a fazia mais feliz, lhe dava um mínimo de segurança. A menina voltou a estudar, mas sempre fazia supletivos, cursos rápidos e sem embasamentos, mas aprendi muito, era uma devoradora de livros, ganhou prêmios de melhor redação, foi pro jornal e tudo; sempre passava nos testes de emprego, era dedicada em tudo que fazia, tornou-se uma adolescente sem problemas, educada e obediente. Porém com ela se arrastou pelo resto da vida, um sentimento enorme de baixa autoestima. Começou a trabalhar fora aos 12 anos de idade, todos em casa tinham que trabalhar, a vida já não era tão difícil, tinha comida na mesa. Maria era fria, porém, suas agressões haviam diminuído bastante, era quase uma mãe nesta época. Ciça se tornou especial? Não, não se tornou, o raio não fez efeito, mas se tornou um ser humano que não replicou a violência e está quase se formando aos 66 anos, acho que isso a torna quase normal, o que já é lucro para ela.

Referência

LONGO, S. Cristiano. (2005). ÉTICA DISCIPLINAR E PUNIÇÕES CORPORAIS NA INFÂNCIA. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/QxyYj3c7DdyV7WxxZMdsfYN/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 20/02/2023

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Reinventando no Caminho… 1

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As múltiplas definições do termo Reinventar-se nos conduz a um passeio pelo mundo da (re)criação, (re)produção, (re)composição, (re)instituição, dentre outros conceitos. Percebe-se então que reinventar-se faz parte do mundo dos seres vivos em qualquer dimensão. Nós os humanos temos o privilégio de nos reinventarmos a cada dia ou a cada situação em que seja necessário o desenvolvimento de novas habilidades, nos permitindo viver novas experiências, saindo de zonas de conforto que nem de longe nos ajudam a crescer. Logo, reinventar-se significa crescer na forma de pensar, agir e promover mudanças significativas para a vida.

A experiência de ter que me reinventar ou me reconstruir começou para mim num período muito cedo da vida. Aos 15 anos, tive que sair da casa paterna para um mundo novo e distante da minha realidade até aquele momento, com a finalidade de buscar conhecimento através do estudo. Nova cidade, novos amigos, nova família para conviver, tudo novo e assustador para uma adolescente do interior de Goiás, que nada sabia da vida e do que a aguardava no futuro.

Fonte: encurtador.com.br/zAJQ2

O primeiro choque adaptativo foi cultural. Fui morar com uma família de amigos americanos, com costumes diferentes, língua diferente, hábitos diversos dos meus, e para sobreviver a este primeiro momento, precisei adaptar os meus costumes e cultura familiar aos que estavam sendo apresentados a mim naquele instante. Meu primeiro desejo era voltar para o meu berço anterior. Correr novamente ao útero protetor da minha mãe. Não queria me expor a uma nova realidade. Com o tempo, fui percebendo que esta era a forma como a vida iria me ensinar a ser quem eu sou. Uma mulher forte, destemida e capaz de me adaptar às diversas situações que me fossem apresentadas. Era necessário crescer. Reinventar-me. Tornar-me outra pessoa sem me destituir dos valores, crenças e modos de pensar a vida e a fé.

Assim sendo, resolvi não sobreviver mas, viver a vida em toda a sua plenitude, aproveitando cada oportunidade que estavam me oferecendo naquele momento, para tornar-me alguém em quem eu mesma pudesse confiar.  Reinventar-se dói e cura a própria dor.

Carpe Diem

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‘Bao’ e o crescimento que se impõe com a força da vida

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhor animação.

Em situações recorrentes, os filhos são educados e preparados para experimentarem autonomia e, chegada a maturidade, saírem de casa e cuidarem de suas próprias vidas.

O curta metragem de animação Bao, vencedor do Oscar deste ano em sua categoria, é dirigido por Domee Shi e aborda de modo terno e emocionante o delicado tema da ‘Síndrome do Ninho Vazio’, problema psicológico que acomete inúmeros pais – sobretudo mães – ao redor do mundo.

Bao foi lançado pela Disney através da Pixar. A exibição, de modo inicial, ocorreu paralelamente aos ‘Incríveis 2’ e, de saída, já era o favorito para levar a estatueta mais cobiçada do cinema. Tem duração aproximada de 8 minutos e relata a estória de uma mãe que sofre com o ‘ninho vazio’ após seus filhos saírem de casa, num movimento natural rumo à independência.

De modo bastante criativo e com a assessoria de sua mãe, a diretora Domee Shi dá vida aos bolinhos artesanais produzidos pela mãe/personagem do curta. Neste sentido, quando a vida eclode em um dos bolinhos, a experiência da maternidade é colocada novamente diante da genitora e, similarmente ao que já havia ocorrido com os outros filhos, esta mãe é convidada a perceber que, no passar do tempo, a vida impõe o seu próprio ritmo e as ‘crias’ – mesmo as mais ‘doces’ e, eventualmente, apegadas – acabam por buscar a própria independência e identidade. Foi isso o que ocorreu com o bolinho artesanal. Ele cresce, se envolve com outras pessoas e não quer viver sob a influência exclusiva dos pais. Até desenvolve certa rejeição pela família nuclear – o que, em linhas gerais, ocorre com parte dos jovens em situação similar.

A mamãe da animação, então, vivencia e atualiza as mesmas frustrações e desencontros, o que causa profundo sofrimento psíquico. Este fenômeno abordado no curta metragem é a famosa ‘Síndrome do Ninho Vazio’, que em psicologia é caracterizada como um estado psicológico perturbador – patológico, quando associado a quadros depressivos –, marcada por sentimentos de tristeza e desânimo (sobretudo por parte da mãe) diante do processo de amadurecimento e independência dos filhos.

Foto: https://www.collater.al/en/bao-pixars-short/

Em situações recorrentes, os filhos são educados e preparados para experimentarem autonomia e, chegada a maturidade, saírem de casa e cuidarem de suas próprias vidas (conseguir emprego, relacionar-se afetivamente, constituir família, etc.). Alguns pais, no entanto, ao perceberem que dedicaram boa parte de suas vidas para os filhos, sem que tivessem a oportunidade de criar novos papeis para suas vidas, têm dificuldades de aceitar este processo de separação. Como já pontuado anteriormente, este movimento acomete, sobretudo, as mães, notadamente num cenário sociocultural de enfraquecimento da imago paterna, que pela Psicanálise edipiana é tradicionalmente vinculada a figura daquele que se responsabiliza por ‘acelerar’ a entrada dos filhos na dimensão pública (de enfrentamento do mundo).

Alguns dos desdobramentos da ‘Síndrome do Ninho Vazio’ abordados na animação e que, de fato, acometem muitas mulheres são distúrbios do sono, depressão, melancolia, raiva, distúrbios alimentares e diminuição da libido. Também há casos na literatura psicanalítica – no que se refere às fases do desenvolvimento humano e da psicologia das relações familiares – de pais que acabam por entrar num período de crise, após a saída dos filhos. Isso ocorre porque muitos casais giram em torno das demandas dos filhos e, na ausência destes, não conseguem reavaliar e ressignificar a própria relação. É neste momento que, em alguns casos, percebem não haver mais nenhum projeto em comum entre eles. É como se, inconscientemente, o vínculo marital só sobrevivesse à garantia da educação e independência dos filhos.

Para superar o ‘luto’ da saída dos filhos e a ‘Síndrome do Ninho Vazio’, a maioria das correntes teóricas da Psicologia prescrevem que é necessário reconhecer a naturalidade da saída dos filhos – isso pode ocorrer com a ajuda de um processo psicoterápico –, ao se debruçar sobre o fato de que a fase de proteção já passou. Algumas técnicas são aliadas poderosas deste processo, como a prática de atividades físicas, o engajamento no trabalho, em serviços comunitários e no próprio relacionamento afetivo, além da busca por atividades que reforcem o autodesenvolvimento e o desenvolvimento espiritual.

Fonte: https://goo.gl/NDmuu9

Os filhos de pais que desenvolvem a ‘Síndrome do Ninho Vazio’, de acordo com a literatura especializada, tendem a fazer um movimento de afastamento e de atrito em relação aos progenitores. Isto porque observam que o próprio princípio da liberdade está em crise, e em alguns casos passam a culpar os pais pelas suas demandas mais elementares, para a idade, como eventuais dificuldades para estabelecer vínculos e/ou outras inadequações que consideram ser fruto do processo de criação. Mais à frente, já como adultos, muito provavelmente estes filhos terão que se reconciliar com as imagos paternas e maternas, sob pena de carregarem um mal estar que pode interferir de modo negativo em suas ações cotidianas.

E é justamente neste cenário de resgate dos afetos que ocorre o desfecho de Bao, a partir de um enredo poético e emocionante em que mãe e filho se reconciliam, depois do tempo necessário para que a compreensão chegue e a cura se instale. O curta faz jus ao Oscar pela qualidade e função pedagógica que exerce. Um modo criativo de abordar um tema atual e desafiador.

FICHA TÉCNICA:

BAO

Título original: Bao
Direção:
Domee Shi
Elenco: Daniel Kailin – TV Son – e Sindy Lau – Mom
Ano: 2018
País: EUA
Gênero: Animação

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Pollyanna: uma arma contra a ansiedade e o tédio

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– Oh, o jogo é encontrar em tudo qualquer coisa para ficar alegre, seja lá o que for, explicou Pollyanna com toda a seriedade. E começamos com as muletinhas.”

Fonte: http://zip.net/brtMyC

Pollyanna, considerado um clássico da literatura, foi escrito pela norte-americana Eleanor Hodgman Porter e publicado no ano de 1913, sendo traduzido para o português em 1934 por Monteiro Lobato e publicado pela Companhia Editora Nacional na coleção Biblioteca das Moças. O enredo do livro gira em torno de Pollyanna que se vê órfão e vai morar com uma desconhecida que, apesar de muito rica e sozinha, não recebe a garota com alegria, mas a encara apenas como um dever a ser cumprido.

A estória se inicia com Miss Polly Harrington dando ordens a criada da casa, Nancy, para que limpasse e preparasse o quartinho do sótão, pois uma pessoa iria morar com ela e passaria a ocupar aquele cômodo. Assim que Pollyanna chega ao belo solar de venezianas verdes que irá se tornar o seu lar e é conduzida ao seu futuro quarto, ela tem um vislumbre dos demais ambientes e da riqueza com que são decorados, o que a faz ansiar pelo momento em que descobriria o seu lindo quarto com cortinas, tapetes e janelas, entretanto, quando finalmente chega ao seu destino, Pollyanna encontra um cômodo de paredes nuas, janelas sem cortinas, armário sem espelho e desprovido de tapetes.

Fonte: http://zip.net/bptNb1

A sua primeira reação é atirar-se no chão e chorar, porém ela logo transforma a paisagem que via pela janela em um quadro, alegra-se por ter poucas coisas, pois assim seria mais rápido desfazer a mala e encontra na falta de um espelho a felicidade de não ter que ver as suas sardas diariamente. Toda essa reação inesperada causou grande estranheza em Nancy, que não entendia como a alguém poderia alegrar-se diante de tal situação.

Fonte: http://zip.net/bqtNxv

A primeira vez em que Nancy expressa à Pollyanna com o fato de ela ficar contente com tudo é esquisito, a garota explica tratar-se do “Jogo do Contente”.

Tudo começou quando Pollyanna pediu um presente. As condições em que vivia mal permitiam que suas necessidades básicas fossem supridas e frequentemente lhe eram enviadas doações de caixas com roupas usadas e alguns objetos, assim, escrevem para que enviassem o desejado na próxima caixa, porém, quando esta chega, no lugar de seu presente, haviam mandado um par de muletinhas e foi então que o “Jogo do Contente” teve início. Seu objetivo era sempre, em qualquer situação, encontrar algo com que contentar-se. As muletas, dessa forma, trouxeram alegria justamente pelo fato de Pollyanna não precisar delas para viver.

A partir de então, Pollyanna começa, aos poucos, a conquistar todos ao seu redor com sua bondade, pureza e alegria contagiante, sempre brincando do “Jogo do Contente” e o ensinando a quem quer que fosse, até o momento em que a própria Pollyanna e sua capacidade de encontrar contentamento em tudo é posta a prova.

– Oh, estou respirando o tempo todo, mas fazer isso não é estar vivendo A senhora respira todo o tempo que está dormindo e quem dorme não vive. Quero dizer vivendo, isto é, fazendo coisas de que a gente gosta, como brincar lá fora, ler para mim mesma, subir no morro, conversar com o senhor Tom e Nancy no jardim, e saber tudo a respeito das casas e das pessoas que moram nas lindas ruas por onde passei. Isso é o que eu chamo viver… Respirar só, não é viver.”

Fonte: http://zip.net/bstMWd

A obra de Eleanor H. Porter foi responsável por desencadear uma grande onda de esperança, otimismo e boa vontade, porém existe sempre os dois lados da moeda.

Chamar alguém de Pollyanna ou afirmar que alguém é acometido pela “Síndrome de Pollyanna”, geralmente, não é visto como um elogio, ao contrário, o termo faz referência a uma pessoa alienada, que tende a enxergar o mundo e as emoções de maneira ingênua e age de forma inconsequente. Indivíduos assim vivem em uma realidade paralela, em um mundo cor de rosa, chegando o termo a ser usado até como forma de descrever o posicionamento do Poder Judiciário brasileiro.

O grande questionamento gira em torno do fato de que ninguém consegue estar feliz o tempo todo e que pessoas que agem de tal forma, ao invés de contagiarem os outros, tendem a ser consideradas falsas e enjoadas, pois é natural ao ser humano manifestar sentimentos de raiva, tristeza e decepção, além de muitos acreditarem ser impossível ver sempre o lado bom das coisas.

Entretanto, a personagem do livro, apesar de sempre buscar colocar em prática o seu querido “Jogo do Contente”, não era imune aos sentimentos negativos, chegando a afirmar que “não consegue pensar agora em uma só coisa que a possa fazer contente”. Pollyanna, apesar de sua personalidade viva e otimista não era uma alienada, mas alguém que buscava não se deixar abater pelas adversidades da vida e é essa a principal lição do livro. Não se trata de negar os sentimentos de dor e fingir que eles não existem, mas mudar a nossa perspectiva, o modo de encararmos situações que outrora se mostravam desafiadoras. É nesse contexto, então, que podemos fazer do “Jogo do Contente” uma verdadeira arma contra dois grandes vilões: a ansiedade e o tédio. 

A ansiedade pode ser descrita como um estado emocional desconfortável, de apreensão, uma inquietação em relação ao futuro ou a expectativa de que algo ruim irá acontecer. É comum a ansiedade aparecer quando nos sentimos desafiados ou incapazes de realizarmos algo, por exemplo. Dessa forma, por que não usarmos tais situações a nosso favor? Por que não encararmos desafios que poderiam ser a causa de sentimentos de ansiedade e incerteza, como uma maneira de extrairmos o máximo de aprendizado possível? Se nos sentimos inseguros, por que não jogarmos o “Jogo do Contente” e buscarmos algo que, futuramente, nos tornará mais fortes?

De maneira oposta, o sentimento de tédio é aquele que pode aparecer quando você se sente pouco desafiado, ou pela demora no desenvolvimento de algo, ou ainda perante situações previsíveis e inevitáveis, porém, é justamente diante das circunstâncias mais entediantes que nossa criatividade pode ser melhor desenvolvida. Aproveitar esses momentos e buscar soluções criativas para nos tirar desse estado de chateação e enfado nada mais é do que jogar o “Jogo do Contente”. Situações pouco desafiadoras nos dão a oportunidade de sermos os melhores no que estamos fazendo, e a liberdade de ousarmos na busca de novas soluções.

Assim, o “Jogo do Contente, por mais simples, ingênuo e, à vezes, irritante que possa parecer, pode ser aplicado nas conjunturas mais incomuns não apenas como forma de encontrarmos algo que nos deixe contentes, mas também para nos ensinar que devemos tirar o máximo de proveito de toda e qualquer situação e usá-las como maneira de nos desafiar a melhorar, impusionar o nosso crescimento e superar o tédio.

Em tudo há sempre uma coisa capaz de deixar a gente alegre; a questão é descobri-la.”

FICHA TÉCNICA DO LIVRO:

POLLYANNA

Fonte: http://zip.net/bqtNxP

Título Original: Pollyanna
Autor: Eleanor H. Porter
Tradução: Monteiro Lobato
Editora: Companhia Editora Nacional
Páginas: 181
Ano: 1913

REFERÊNCIAS:

RODRIGUES, Rafael Rezende. Ansiedade: por um ansioso, 2011. Disponível em: > http://encenasaudemental.com/personagens/ansiedade-por-um-ansioso/< Acesso em: 4 de junho de 2017.

MARINHO, Wallace Andrade de. Apontamentos da medicina, frente ao distúrbio emocional da “Ansiedade”, 2012. Disponível em: > http://encenasaudemental.com/comportamento/insight/apontamentos-da-medicina-frente-ao-disturbio-emocional-da-ansiedade/<. Acesso em: 4 de junho de 2017.

ROBSON, David. Por que é bom sentir tédio, 2015. Disponível em: > http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150118_vert_fut_beneficio_tedio_ml<. Acesso em: 4 de junho de 2017

FOLGUEIRA, Laura. O lado bom do tédio, 2016. Disponível em: > http://super.abril.com.br/saude/o-lado-bom-do-tedio/<. Acesso em: 4 de junho de 2017

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Amar e Ser Livre: a desestrutura familiar leva a colapso moral

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A liberdade é fruto do amor, e o amor só se manifesta quando purificamos o nosso sistema dos pontos do ódio e medo. Então conforme nos purificamos, vamos abrindo mão de mecanismo de defesa que é a luxuria, a partir disso a energia erótica se liberta e começa a ascender. Então experimentamos um profundo amor pela vida e pela existência. Experimentamos a gratidão.
 Prem Baba

121111Fonte: http://www.casalsemvergonha.com.br/2012/04/11/o-amor-so-e-verdadeiro-se-vier-junto-com-a-liberdade/

Um dos livros mais festejados do psicólogo e líder espiritual brasileiro Prem Baba, “Amar e Ser Livre” esclarece a importância de um relacionamento feliz, onde o mesmo incentiva a busca por qualidade de vida amorosa que se alcança através da evolução da consciência.

De acordo com Baba somos seres sociais e sempre estamos nos relacionando com os outros; são através dos relacionamentos que amadurecemos, isto é, adquirimos a oportunidade de crescermos e evoluirmos. Mas para que realmente alcancemos essa evolução é necessário ocorrer a integração de nossa personalidade, já que esta possui um lado positivo e outro aspecto negativo no qual lutamos para não entrarmos em contato. Para Jung, fundador da Psicologia Analítica, este lado negativo da personalidade trata-se da Sombra e é nela que habita tudo o que é reprimido, o negado e o esquecido, aquilo que não aceitamos em nós e não queremos que se torne acessível e para ele é necessário ocorrer a individuação que é o processo de integração dos opostos. Neste contexto, segundo Prem Baba para ocorrer a evolução da consciência será necessário acessar e dá novos significados a esse aspecto negativo.

Conforme o ponto de vista do autor a atualidade é marcada por transformações em todas as áreas da vida e em meio a tudo isso vivenciamos um tempo de crise, mas para o autor é através da crise que nos tornamos resilientes. Se tivermos capacidade de enxergar o seu aspecto positivo, pois a raiz da crise se encontra dentro de nós, o externo é reflexo do interno, portanto para enfrentá-la é preciso ocorrer uma transformação interna, ou seja, rever nossas ações e reações para com os outros.

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Fonte: http://subentendidojm.blogspot.com.br/2011/02/sobre-liberdade-e-amor-como.html

Ele expõe com clareza de como o pilar da família tem se desestruturado, um casamento criado a partir do medo e ódio, e a fragilidade desses tipos de relacionamento tem levado a sociedade a um colapso moral. Para que haja transformações é necessário resignificar o conceito de casamento e família no qual Baba da o nome de “casamento novo”.

Para alcançar esse novo casamento é inevitável ter coragem de amar, isto é, ter coragem de ser humilde, abrir mão do orgulho e de comportamentos moldados pelo medo e ódio. Será necessário ter postura diante do sofrimento para abandonar os jogos de acusações, vinganças e outros mecanismos de defesa que tem origem na carência afetiva, além de cada um se responsabilizar por suas ações, reconhecer suas fragilidades, expor os pontos fracos. Sendo assim, é preciso que se abra mão de suas roupagens e conhecer a própria essência para que esta possa ser elaborada.

O casamento será resignificado a partir do momento que procuramos conhecer a origem da dor, pois ela não está no relacionamento ou no outro. A dor está enraizada em nós mesmos, pois o medo e o ódio se instauram em nós quando ainda somos crianças, quando perdemos a espontaneidade ou a reprimimos muito cedo. Quando Prem Baba faz referência a espontaneidade fala sobre sexualidade que se desdobra de várias formas, e uma vez que os pais não conseguem lidar com suas próprias sexualidades – pois ainda é vista como tabu -, se assustam com a dos filhos. Como vimos que para o autor a sexualidade tem vários sentidos como, por exemplo, é o prazer pela satisfação, também se refere a um aspecto da consciência que pode se manifestar através de três forças: sexo (biológico), Eros (paixão) e amor, sendo este último o desdobramento da mesma energia vital que rege o universo. O amor é uma manifestação da essência do ser humano e ele se manifestará quando se avança no processo de purificação da natureza inferior, ou seja, da parte negativa que habita em nós e que precisa ser elaborada.

De acordo com o enfoque psicanalítico do autor, o parceiro escolhido para um relacionamento baseado no sentimento de paixão é alvo de um processo desproporcional de idealização; assim atribuímos perfeição a esse objeto de amor e esquecemos que ninguém é perfeito. Baba lembra que também temos em nós aspectos não resolvidos desde a infância, ou seja, feridas abertas nos relacionamentos com nossos pais e estamos sempre buscando no outro a cura para as mesmas. É por isso que buscamos no parceiro o pior ou o melhor de nossos pais na tentativa de reparar a carência afetiva do passado, isto ocorre de forma inconsciente.

4444444444Fonte: https://economize.catracalivre.com.br/leia/dia-dos-namorados-classicas-historias-de-amor-no-kindle-unlimited/

Mas conscientemente vamos aprendendo que ninguém pode curar nossas feridas a não ser nós mesmos e se o relacionamento for baseado só em Eros despertará vários sentimentos não trabalhados, o que leva a desestruturação do relacionamento, porque atraímos aquilo que queremos integrar. É nesse momento que o casal precisa de maturidade para suportar as dificuldades e despertar o amor, além de iluminar as partes negativas: insegurança, ciúmes, medos e carências.

Além disso, para que o novo casamento aconteça é importante reconhecer o desejo que alimentamos pelo negativo, pois quando a consciência está entenebrecida assumimos um papel de vítima, e muitas vezes nos posicionamos assim para não entrarmos em contato com nossas dores e então criamos vários mecanismos de defesa. Então para amar e ser livre será necessário a autorresponsabilização, ou seja, olhar para dentro de si mesmo, ter consciência acerca do próprio sofrimento e sentimentos negativos, procurar as insatisfações e as fragilidades que habita em nós e elaborá-los e isto é um processo de grande desafio porque seremos confrontados com os aspectos desagradáveis, mas se não for assim não haverá evolução da consciência. E só assim aprendemos que de alguma forma todos nós fomos vítimas em um momento da vida, e quando assimilarmos isto seremos capazes de nos colocar no lugar do outro e lhe desejaremos sucesso, além de conseguirmos vencer mágoas e ressentimentos, purificando assim o coração. Isto leva a uma maturidade no relacionamento, pois quando procuramos a mudança dentro de nós mesmos nos tornaremos melhores e influenciamos para melhor nossa sociedade.

E assim aprenderemos a “Amar e Ser Livre”.

REFERÊNCIAS:

BABA, Sri Prem. Amar e Ser Livre: as bases para uma nova sociedade. São Paulo: Editora Harper Collins, 2015.

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O Menino e o Mundo: a distopia em suas possibilidades

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Com uma indicação ao Oscar:

Animação

Banner Série - Oscar 2016

Com direção e roteiro de Alê Abreu, em O menino e o mundo acompanhamos a história de um menino a espera da volta do seu pai, que rumou para a cidade grande em busca de novas oportunidades. Neste interlúdio, toda uma viagem é apresentada, com desafios, um mundo imaginário e fantástico, além de questões envolvendo sentimentos, sensações e decisões.

Nos últimos tempos cineastas brasileiros, ou profissionais com formação e atuação correlatas, assumiram a frente em interessantes trabalhos de curta duração e animações. Obras importantes podem ser mencionadas como detentoras deste legado, com premiações e indicações em diferentes premiações ao redor do mundo: Uma história de amor e fúria (2013), O céu no andar de baixo (2010), Céu, Inferno e outras parte do corpo (2011), Garoto Cósmico (2007), Cassiopeia (1996), O Grilo Feliz (2001), e muitos outros trabalhos, que circulam por longas e curtas-metragens de animação, tradicionais ou imagens alternativas.

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O lançamento d’O menino e o mundo foi no mínimo curiosa. Sua produção remonta ao ano de 2010, e após um longo percurso para arrecadação de fundos, angariação técnica, aproximação de colaboradores, etc. o filme foi lançado em prévias em 2013e internacionalmente nos anos de 2014 e 2015. Por esta razão faz parte dos indicados ao Oscar e outros prêmios para o gênero animação na temporada de 2016. Até o momento a obra foi reconhecida, como vencedora ou indicada, em ocasiões como Annie Awards, Oscar, Festival de Annecy, Grande Prêmio Brasileiro de Cinema, Grande Prêmio de Monstra em Lisboa etc.

Escrevi um primeiro argumento muito livremente, costurando idéias soltas: Cuca levado pelo vento, o encontro do menino com um velho, a partida do pai, mistério numa fábrica abandonada etc. Mas sempre incorporadas ao pano de fundo, que era a situação apresentada em Canto Latino, e buscando encontrar ali uma linha que os unisse numa história. […]Fazia anotações, esboços em um caderno de rascunho e depois transformava estas idéias em pequenos trechos de história, que eram incorporados ao bloco do filme. Ao mesmo tempo experimentava sons e trechos de músicas como referência e já brincava com a própria montagem (ABREU, 2011, s\n).

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Como já é costumeiro, o sucesso internacional corroborou para o olhar da crítica se voltar para o longa. Assistido por menos de 40 mil espectadores no Brasil, na França este número ultrapassou a marca dos 100 mil em poucas semanas., conseguindo grande bilheteria em países como Canadá, Japão e outros mercados fora do eixo americano e oeste europeu.

No caso d’O menino e o mundo não há, felizmente, todo o velamento da realidade opressiva e angustiante da metrópole aos viventes dos aglomerados urbanos, principalmente com concentração de baixa renda e diversos problemas citadinos. Temos uma distopia diante de nós, mas o seu reverso também está lá, pelas cores, imagens e representações que denotam esta dialética. Esta postura de negação da realidade, pelos reforços estereotípicos do Brasil, ocorreu recentemente por outra animação, nos constrangedores filmes Rio, que em certo ponto escalaram tantos arquétipos tortuosos do país que fica difícil defendê-lo além destes lugares comuns.

Neste ponto há outro destaque para a obra de Abreu, que é o traço, o apuro das gravuras, os movimentos, os sons, tudo está orquestrado de modo a apresenta rum caminho para a imersão do espectador na obra. Há uma delicadeza e sutileza nos desenhos, nos planos imagéticos, incrementos sonoros e todo o envolvimento da narrativa com seus personagens e cenas, tornando a experiência de assistir o filme algo único e inesquecível.

Inspirações em grandes mestres da animação e desenhistas de Hayao Miyazaki, Katsuhiro Otomo, Satoshi Kon a Charles Schulz e Mauricio de Souza são perceptíveis na obra de Abreu, fortalecendo-a como uma verdadeira obra-prima nacional, justamente por lidar com um cenário, público e mercado que não estão acostumados com sua linguagem e profundidade.

E cabe aqui uma menção aberta ao cinema nacional brasileiro. Não é de hoje que as fórmulas de grande potencial publicitário caminham distantes da qualidade, em prol da quantidade. O ponto fora da curva fica por conta do já distante duo Tropa de Elite (2007; 2010), comandados por Wagner Moura e o diretor José Padilha, as demais obras de grande caibre financeiro em investimentos e distribuição sequer são dignas de nota.

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 A fuga da realidade

Há algum tempo o cinema independente do Brasil vem fazendo investidas em temáticas sobre a existência nas grandes cidades. Solidão, solidariedade, angústia, desamores, o cotidiano urbano, dentre outros campos são explorados em obras de rico espectro reflexivo: O homem das multidões (2014), O Homem que Copiava (2003), Edifício Master (2002) e A Busca (2013), etc. Filmes que furaram uma bolha de extremos, entre os grandes lançamentos, americanos principalmente, e duvidosas obras nacionais sustentadas por interesses muito distantes da qualidade cinematográfica merecida pelo público e profissionais da sétima arte.

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Obras como O menino e o mundo mostram e provam, explícita e implicitamente, que o cinema brasileiro pode sim superar seus arquétipos e estereótipos: as favelizações, o nordeste (com um caricato e desrespeitoso regionalismo), o ufanismo edênico há muito servido como pano de fundo ideológico para a nação; as recentes e constrangedoras comédias sustentadas com leis de incentivo cultural dignas de repúdio em seus critérios de apoio e patrocínio, dentre outros.

Lembrando, os clichês existem em todas as linguagens da arte, e assim o são porque são devires da sociedade – a refletem, representam e reinventam pelos tempos e espaços –, é preciso revistá-los sempre, mas de forma original e construtiva, e não apenas como recurso fugidio para a falta de criatividade ou em busca de aceitação popular e retorno monetário.

É preciso valorizar a criatividade das animações brasileiras, que demonstraram, e o continuam fazendo, em várias ocasiões. Não seria exagero estabelecer nossos artistas em grandes escolas de animações já consagradas, como a japonesa, alemã e francesa, riqueza esta passível de constatação em cada novo projeto lançado, independente da plataforma, linguagem, escala popular ou alcance financeiro, se o pulso das novas fronteiras do cinema brasileiro pulsa com todo o seu vigor, um destes lugares reside nas animações como O menino e o mundo que  poderia ser muito mais do que já é, uma obra-prima da animação nacional. E mesmo que chegue a ganhar prêmios de maior escala como o Oscar, certamente ainda veremos anos de esquecimento e ostracismo para grandes obras, excelentes filmes, e inovadoras possibilidades, como é esta singular estória contada por Alê Abreu.

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REFERÊNCIAS:

O MENINO E O MUNDO. Roteiro e Direção de Alê Abreu. Filme de Papel e Espaço Filmes. 2015. 85 min.

ABREU, Alê. Textos do diretor [2011]. In: < http://omeninoeomundo.blogspot.com.br/> Acesso. 10.01.2016.

FILME DE PAPEL. O menino e o mundo. BLOG. 2014. Disponível em: <http://omeninoeomundo.blogspot.com.br/>. Acesso em: 01 de fev. de 2016.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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O MENINO E O MUNDO

Direção: Alê Abreu
Elenco: Alê Abreu, Lu Horta, Vinicius Garcia;
País: Brasil

Ano: 2015
Classificação: Livre

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Boyhood – Da Infância à Juventude

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Richard Linklater), Melhor Ator Coadjuvante (Ethan Hawke), Melhor Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette), Melhor Roteiro Original (Richard Linklater) e Melhor Edição. 

“As pessoas viajam para admirar a altura das montanhas, as imensas ondas dos mares, o longo percurso dos rios, o vasto domínio do oceano, o movimento circular das estrelas e, no entanto, elas passam por si mesmas sem se admirarem.”

Santo Agostinho, Confissão X [1]

Boyhood é uma sensível e arriscada experiência realizada por Richard Linklater.  O filme não é sustentado por um enredo com grandes reviravoltas ou espetaculares efeitos, nem tem um final que fecha todas as arestas, na verdade, não é possível identificar quais arestas devem ser fechadas, já que o filme, como a vida, é uma experiência contínua, sem delimitações precisas ou entendimento a priori de quando tudo acaba.

O que acompanhamos na tela são os 12 anos da vida de um garoto (dos 6 aos 18 anos), e as mudanças que o tempo pode provocar na relação dele com as pessoas e na sua percepção dos acontecimentos. O que torna esse filme tão singular é a maneira como Linklater o construiu, filmando as cenas em 12 anos, considerando as mudanças de cada personagem/ator, das mais visíveis, como o crescimento ou envelhecimento natural, até as mais sutis, como o sentido que cada sujeito tem do contexto vivido.

Linklater já tinha lidado com a questão da passagem do tempo na construção de outros filmes, vide a trilogia Before, que conta a história de um casal aos 23 (Antes do Amanhecer), 32 (Antes do Pôr-do-Sol) e aos 40 anos (Antes da Meia-Noite), acompanhando a idade cronológica dos atores. Em outras sagas também vimos os atores crescerem juntamente com os personagens, como é o caso de Harry Potter ou de algumas séries de TV. Mas em nenhuma dessas situações vimos isso acontecer em um espaço tão curto, ou seja, nas 3 horas de duração do filme.  E é a possibilidade de ver esses atores/personagens modificando-se no decorrer da história que a torna tão especial e um dos motivos que fez essa obra de Linklater ser tão aclamada.  Mas não foi só isso…

O tempo é uma das principais variáveis do filme, e para que sua passagem fosse assimilada de forma profunda, Linklater utilizou-se de músicas (Coldplay, Foo Fighter, Lady Gaga, Arcade Fire…), tecnologias (iMac G3, Xbox 360, Wii, Facebook, Facetime…), política (eleição do Obama), cinema/livros (Harry Potter, Toy Story, Star Wars, Homem Aranha…) e, especialmente, um roteiro que tornou o amadurecimento de cada pessoa do filme crível, sem exageros.

Mason: Não existe magia de verdade no mundo, não é?

 

Mason (o excelente Ellar Coltrane) é filho de pais separados (Patricia Arquette e Ethan Hawke, ambos em interpretações marcantes) e tem uma irmã mais velha (Lorelei Linklater). Sua mãe carrega a responsabilidade de criar sozinha duas crianças e ainda ter que fazer uma graduação e tentar uma nova profissão, enquanto isso, o pai dos meninos viaja pelo mundo, sem emprego ou local fixo. A passagem do tempo dá a mãe experiências desastrosas em dois relacionamentos com homens abusivos e alcóolatras, e torna o pai, aos poucos, um homem mais responsável, ainda que menos interessante. Mason é a nossa ligação com essa família e, através dos seus olhos, vamos solidificando a ideia de que a vida é por si só  um acontecimento extraordinário.

Mason: Então de que adianta?
Pai: O quê?
Mason: Não sei, tudo.
Pai: Tudo? De que adianta? Não faço ideia. Ninguém sabe. Estamos só vivendo, sabe? Pelo menos você está sentindo algo. Aproveite, isso passa. Você envelhece e não sente tanto, você cria resistência.

 

Há várias abordagens na psicologia que tenta explicar o desenvolvimento humano. Desde as teorias de Piaget até a vertente sócio-histórica de Vygotsky. O desenvolvimento pode ser equiparado, em um dado nível, a um processo de transformação. Segundo [2], as transformações concernentes à vida de uma pessoa estão relacionadas a um conjunto complexo de fatores: “a etapa da vida em que a pessoa se encontra; as circunstâncias culturais, históricas e sociais nas quais sua existência transcorre; e as experiências particulares privadas de cada um e não generalizáveis a outras pessoas”. É claro que essas experiências são intensificadas na infância e na adolescência, pois é nessa época que ocorrem as transformações físicas mais intensas, o que é refletido nas transformações psicológicas. Por isso, ao vermos as transformações dos pais e dos filhos no filme, verificamos que em um dado ponto, os adultos tornam-se mais presos a um padrão de comportamento, não há mudanças consistentes, enquanto Mason e a irmã estão no auge de intensas transformações.

Mason: Parece que todo mundo está em algum lugar intermediário. Sem realmente vivenciar nada.

O filme inicia-se com Mason, aos seis anos, observando o céu e a sensação que temos no decorrer do tempo é que, para ele, tudo parece ser transitório, mas há um sentido constante de apreciação da beleza da vida. E o desejo de apreender o momento, ainda que pareça que ele sabia que isso seja impossível, o faz iniciar-se na fotografia. Nas palavras de Cartier-Bresson, entendemos que “fotografar é prender a respiração quando todas as faculdades convergem para captar a realidade fugaz”. É essa inconstância da vida e, ao mesmo tempo, a ideia de que as coisas parecem girar em torno de algo incompreensível e, por isso mesmo, sem sentido, que dá um tom de melancolia à história. Diferente de uma ideia niilista, em que tudo tanto faz e ponto, parece permanecer em Mason uma sensação de que mesmo se todos os caminhos, de fato, não levem a nada, ainda é interessante fazer o percurso.

Nicole: Sabe quando dizem ‘aproveite o momento’? Acho que é ao contrário. É como se o momento nos aproveitasse.
Mason: Eu sei, é constante. Os momentos são… Parece que sempre é o agora.

[1] AGOSTINHO, Santo. Confissões, IN-CM, Lisboa, 2001. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/agostinho_de_hipona_confessiones_livros_vii_x_xi.pdf

[2] OLIVEIRA, Marta Kohl de. Ciclos de vida: algumas questões sobre a psicologia do adulto . Educação e Pesquisa, Brasil, v. 30, n. 2, p. 211-229, ago. 2004. ISSN 1678-4634. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ep/article/view/27931/29703>. Acesso em: 12 Jan. 2015. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022004000200002.

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

BOYHOOD: DA INFÂNCIA À JUVENTUDE

Título Original: Boyhood
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater
Elenco Principal: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Lorelei Linklater and Ethan Hawke
Ano: 2014

Alguns Prêmios:

Golden Globes: Melhor Filme – Drama, Melhor Direção, Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette)
AFI Awards: Filme do ano.
Austin Film Critics Association: Melhor Direção, Melhor Filme, Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette)
Berlin International Film Festival: Urso de Prata (Melhor Direção)
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O fascínio pela tela e o desenvolvimento dos sentidos na infância

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Os desenhos animados chamam a atenção pelo colorido e pelos efeitos sonoros, ao mesmo tempo em que podem proporcionar, ao corpo, alterações funcionais. A alteração dos batimentos cardíacos quando vemos um desenho de aventura, por exemplo, relaciona-se ao conteúdo bem como a interpretação do conteúdo das imagens e, portanto, tal efeito relaciona-se às emoções humanas. Aquilo que se relaciona à emoção das pessoas pressupõe uma integração entre os sistemas de captação e de compreensão do mundo e de expressão nele.

Desse modo, pode-se dizer, que o fascínio pela tela não éapenas fruto do processo pelo qual o homem se aliena. O fato de as telas dispararem processos que vão além do foco da atenção é condição suficiente para se encarar a televisão como um ativo meio de formação, inclusive afetiva, do ser humano. Isso não é o mesmo que dizer que precisamos das televisões (e congêneres) para nos formarmos. Pelo contrário, ela é apenas um instrumento moderno, potencializado pela tecnologia digital.

http://www.gemind.com.br/3952/televisao-faz-mal-bebes/

A criança, quando nasce, pouco integra e não sabe que integra os seus aparelhos de captação do mundo externo. Apesar disso, avança intuitivamente reagindo ao meio em que se encontra, mesmo que dependa vitalmente de quem lhes faz crescer. Fazer crescer depende de muitas outras coisas além da televisão. A mudança da voz dos pais, músicas, ritmos, luminosidades, vento, objetos com temperaturas diferentes, gostos e tato promovem o desenvolvimento infantil uma vez que faz o bebê integrar seus sistemas de captação de estímulos e informações.

A compreensão que a criança faz do meio em que vive, nos primeiros anos da vida, é pautada em sensações ligadas àsatisfação e à segurança, reconhecendo-as pela diferenciação de sensações opostas que nela gera insatisfação e insegurança. Trata-se de um sistema comunicacional entre tecidos e órgãos que captam estímulos, integrando-os, promovendo uma mistura de incômodos, satisfações, movimentação e cansaço. A criança reage a essas mudanças com movimentos e com sons que são reconhecidos por adultos que, por sua vez, com aquela interagem e promovem, em nível verbal e não verbal, comunicação e, portanto, constroem linguagens.

Tal integração, que se dá nas relações humanas, depende de como integramos, enquanto seres individualiazados e sociais, nossos sistemas de captação, codificação, decodificação e emissão da linguagem. A fala usa e, ao mesmo tempo, cria a linguagem. É a capacidade de nos referirmos ao mundo e, portanto, de dizermos sobre as transformações oriundas do “ir sentindo”, incluindo, nesse fenômeno, os resultados da captação dos cinco sentidos (tato, paladar, olfato, visão e audição) chamados de percepções. Uma vez que o “ir sentindo” depende da comunicação, a fala depende das várias linguagens desenvolvidas por cada agrupamento humano e, portanto, não sópossui o papel de referir sobre o mundo, mas também o de construir as relações e os fenômenos.

O tema da linguagem e da estimulação infantil, nos leva ao tema inicial desse texto, sobre o qual passo a explorar a partir da seguinte questão: qual o papel da televisão e do videogame no desenvolvimento cognitivo infantil?

A televisão e o videogame são eficientes na promoção da linguagem oral e na integração de sistemas de comunicação uma vez que trabalham com as cores, os sons, os símbolos e as emoções. As cores, os sons, os símbolos e as emoções da criança, quando assiste à TV, acomodam-se nas diversas maneiras que a criança as possa acomodar, a depender do espaço que possui, deitadas, em pé, sentadas, de cabeça para baixo e etc. O tempo é também um fator determinante: seguir programas que contam histórias que se conectam ao longo do tempo permite à criança aprender histórias, acumular aprendizados, além de ver como um mesmo contexto (os lugares nos quais se passam os desenhos) pode variar em seus elementos.

Pelo fato de a televisão alavancar o aprendizado por meio da narrativa, descrição e contação de histórias, o tato tende a não ser ativado no momento desse aprendizagem, uma vez que a atenção está voltada para a captação visual e auditiva. O olfato e o paladar também raramente integram-se no aprendizado mediado pela TV. Por outro lado, o contato com brinquedos, com a comida, com animais, com outras crianças, com adultos, com objetos e coisas em geral tende a integrar, na aprendizagem infantil, um número maior de sentidos, desde que dispostos em relações sociais facilitadoras de criatividade, em espaço suficiente para a movimentação e para o brincar além de tempo apropriado para a construção de conteúdos simbólicos. Não adianta ter muitas coisas acessíveis; os objetos são apenas meios de interação e, portanto, de construção simbólica, mas, para tanto, a mediação de outras pessoas (crianças e adultas) é necessária. E ésobre isso que a Pedagogia se debruça.

A televisão e o videogame também possuem a capacidade de mediação entre a criança e o par imagem-som, limitada, contudo, pois eletrônica. Por mais que alguns softwares sejam mais eficientes na comunicação de informações e no estímulo àmemória, pelo fato de integrarem apenas dois sentidos humanos (visão e audição), não possuem capacidade equivalente à mediação humana. Nessa discussão, não estáem questão qual mediação é melhor, mas, antes, visa-se apontar a imprescindibilidade da mediação humana, direta, pele com pele, no desenvolvimento infantil.

Voltando à questão da integração de sistemas de captação, na infância ela pode ser comparada à fome. A criança busca aprender. Isso não é o mesmo que dizer que se trata de um ato voluntário. O meio a estimula, ela reage, buscando-o, descobrindo-o. As metáforas conseguem dizer mais completamente sobre isso: o girassol busca o sol, os mamíferos recém-nascidos buscam a mama, o broto busca o ar, as crianças buscam interagir. O fator simbólico é um elemento que se constitui no início do desenvolvimento da criança. Traspondo o significado das metáforas ao desenvolvimento infantil, diria que as crianças, já em seu primeiro ano de vida, buscam aprender.

Dando prosseguimento às metáforas, pode-se dizer que a criança tende a dedicar mais tempo ao “prato” de sentidos que mais lhe sacia a fome de todos os seus sentidos. Em muitos casos, esse prato é a TV que, por sua vez, tende a excluir três sentidos: o tato, o paladar e o olfato. Nos casos em que o interesse pela televisão é maior, pode-se pensar que o que mais está saciando o interesse da criança pela estimulação é um meio de comunicação que a estimula, mas não por completo. Tal fato leva-nos a afirmar, pelo menos como hipótese, que as relações que a criança, nesse caso, faz em seus diversos aprendizados estão, do mesmo modo que a TV, excluindo a estimulação e a integração dos sentidos, uma vez que a TV, que em geral integra e estimula apenas dois, éo que a mais sacia. A criança, quando acompanha histórias contadas pela televisão, avança, sem fronteiras, nos territórios da atenção, da memória e do pensamento, sem, contudo, integrar nesse processo os sentidos do tato, do paladar e do olfato. Pode-se concluir, também hipoteticamente, que, em muitos casos, o pensar, o atentar-se e o uso da memória desenvolvem-se com um desenvolvimento hipertrofiado da visão, regular da audição e hipotrofiado dos demais sentidos.

As hipóteses levantadas são, logicamente, precipitadas, mas não absurdas. Demandam avaliações também sobre qual posição o desenvolvimento dos sentidos humanos têm ocupado nas relações humanas e no aprendizado escolar. Talvez tais sentidos são, da mesma forma, renegados a uma posição subalterna à visão e à audição.

Primeiramente, quando aqui uso o termo “escola”, não me refiro a todas ou a algumas em específico. Trata-se de um termo para se falar àquilo que julgo ver e haver em comum em muitas escolas brasileiras, baseando-me na observação que já pude fazer, nos artigos relacionados à escola e em minha vivência profissional. Trata-se de um ensaio despretensioso no que tange à comprovação das hipóteses, mas que pretende gerar debate.

As escolas são, em muitos casos, lugares que possuem menos cores que a televisão; tendem à assepsia monocromática desviada com letras e números cuja animação passa desapercebida diante da animação disponível na televisão.

http://www.zun.com.br/cuidados-com-a-voz-do-professor/

O som trabalhado é em geral a fala pausada e, por vezes, cansada, de um professor que é pouco escutado e que não recebe alguma orientação para o cuidado com o seu principal instrumento de trabalho, a voz (sem contar as mazelas que todos, empiricamente, sabemos haver nas condições de trabalho nas escolas); além disso, a tendência é o uso da voz sem explorar sua extensão de tons, de timbre e de ritmos.

Na escola, pouco se estimula o tato, uma vez que o contato com o lápis prepondera sobre o contato com a diversidade da matéria, sua temperatura, sua viscosidade e plasticidade; além disso, o ensino de ofícios (como marcenaria, pintura, carpintaria e etc) é, infelizmente, considerado secundário e reservado ao púbere que se encontra à margem do sistema escolar. A exploração do corpo pela atividade física éfeita da maneira mais disciplinar possível com o declarado objetivo de fazer as crianças gastarem a energia para poderem se aquietarem nas cadeiras. Educação sexual não há, além de uma série de informações que visa o controle de natalidade e a hiperadequação à norma hetero-cristã-sexual.

Quanto ao paladar e ao olfato, a plastificação e uniformização das refeições tem contribuído ao enfraquecimento da capacidade que o ser humano possui no uso desses sentidos. Na escola, o paladar é estimulado apenas recreacional e ligeiramente e o olfato é o mesmo da cidade: de cimento, talvez cinza.

A escola é, portanto, um lugar de estímulos iguais para crianças que querem ver coisas diferentes e que vêem coisas diferentes na televisão, todos os dias. A fala é, na maior parte do tempo controlada, tanto na altura, quanto no tempo e no local, sem contar o controle do conteúdo. A criança que não se interessa pela escola ou se interessa menos por ela do que pela televisão, além de carregar estigmas ligados ao não aprendizado fica dois turnos na escola, o mesmo lugar que, provavelmente, tem grande responsabilidade por sua falta de interesse.

Que efeitos a precariedade de estimulação do tato, do olfato e do paladar produz no aprendizado e, portanto, na constituição do ser humano? Que relação fazemos com nossos próprios corpos e que insistimos em passar culturalmente? Pelo fato de os sentidos estarem ligados ao reconhecimento e à percepção do próprio corpo, tal falta de integração deve levar a alterações em tal reconhecimento e na percepção como um todo. Tal precariedade produz certamente efeitos  na criação do ritmo, na integração dos sistemas de recepção e transfusão de mensagens, na dança, no sexo, nas relações, na vida. Afinal, a dança é apenas, geralmente, uma recreação nas escolas e não um meio de formação social e de percepção corporal!

Os ritmos no viver humano demandam espaço, passagem de tempo diferente do tempo do mercado e que acompanhe as mudanças corporais com uma linguagem corporal criativa e expressiva. O que as crianças escutam e vêem na escola supera, na saciação da fome por aprendizagem, o que escutam e vêem na televisão e nos games?

Talvez o papel da TV seja importante, o que não quer dizer que devemos cultuar a TV. O que quero dizer é que os efeitos da TV são mais potentes do que imaginamos. Mas a pergunta que fica e que talvez me leve a outra escrita é: o que nossas crianças andam a tocar, a ouvir, a cheirar e a degustar no sistema educacional? Que concepção de corpo temos construído socialmente? Que corpos a sociedade tem moldado?

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