Conselho de Psicologia critica prática de “cura gay”

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Homossexualidade e bissexualidade não são doença nem desvio. 

Por Camila Boehm – Repórter da Agência Brasil – São Paulo

A chamada “cura gay”, também denominada de terapia de reversão ou de conversão à heterossexualidade, são práticas de tortura e, portanto, produzem muitos agravos à saúde, entre eles, a própria construção de ideias suicidas. Essa é a definição do presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Pedro Paulo Bicalho, em entrevista à Agência Brasil.

Sem respaldo científico, a prática é vedada por resolução do CFP desde 1999. Isso porque a bissexualidade e a homossexualidade não constituem doença nem desvio. “Nós não podemos usar a moralidade, práticas morais, para dizer que são condutas abominadas. É importante dizer: não é doença, mas também não é desvio. E, por não ser desvio, nenhuma prática que promova a pseudo-reorientação deve permitida no Brasil, exatamente porque produz agravos”, explicou.

Para ele, o Brasil precisa reconhecer a importância de se afirmar a saúde pública como uma saúde laica, considerando que a prática de cura gay ocorre, em grande parte, no contexto de fundamentalismo religioso.

“Hoje isso é um problema de saúde pública: a existência ainda dessas tentativas de aniquilamento das subjetividades de pessoas LGBTQIA+, movidas em grande parte por igrejas fundamentalistas. O Brasil precisa olhar para isso e entender que isso está produzindo agravos sérios na saúde mental da nossa população, em especial, na saúde mental da população LGBTQIA+”, pontuou.

De acordo com o psicólogo, a prática é disseminada pelo país. “Neste momento, enquanto estamos fazendo essa entrevista, existe muita gente que está experimentando formas de cárceres para ter sua orientação sexual revertida. Existem centenas de Karol Eller por aí sofrendo agravos, tortura psicológica, processos de aprisionamento, pelo simples motivo que se considera que a orientação delas é uma orientação errada. Não é um caso isolado, infelizmente”, ressaltou.

Bicalho se referiu ao caso da bolsonarista Karol Eller, encontrada morta no dia 12 de outubro aos 36 anos. O caso foi registrado pela Polícia Civil como suicídio consumado. Eller teria sido submetida a uma “cura gay” na igreja Assembleia de Deus de Rio Verde, em Goiás.

Movimento conservador

A cientista política Laira Tenca aponta que o país tem um contexto de crescimento do movimento conservador no âmbito político, ao mesmo tempo em que há uma maior presença da religião evangélica na vida social da população brasileira. Esse cenário conflita com uma melhoria e garantia de direitos para a população LGBTQIA+.

“As pessoas LGBTs estão inseridas nesse Brasil, que passa, por um lado, por um avanço de políticas públicas para essa população, mas, por outro, há um movimento também de maior vocalização de discurso de ódio, transformando essas pessoas em vítimas no fim das contas ali, um questionamento da identidade e da existência dessas pessoas. Nesse cenário, a organização social está ali, a igreja, o pastor, as famílias bebendo desses discursos, convivendo com esses discursos e outras práticas antigas também”, apontou.

Nos retiros com proposta de conversão sexual, Tenca acrescenta que a homossexualidade e a transexualidade são tratadas como um problema, como um pecado, como uma atitude desviante, e a partir daí a cura gay passa a ser mais conectada com discursos religiosos, não mais com a psicologia. O sofrimento é agravado, segundo ela, porque há uma busca de acolhimento e pertencimento em um espaço que está constantemente questionando a identidade das pessoas LGBTQIA+ e produzindo discursos de ódio.

“Nesse contexto, a pessoa LGBT é induzida a negar uma parte da sua própria identidade. O impacto [na saúde mental] é assustador porque a sexualidade faz parte da vida do indivíduo. Ter essa sexualidade reprimida dessa forma por um discurso religioso e por uma conexão latente entre culpa, erro, equívoco e impossibilidade de existir no mundo é terrível, é muito severo”, disse.

Ela ressalta que o suicídio entre mulheres lésbicas e o lesbocídio cresceu nos últimos anos e que o sofrimento psíquico faz parte da vida dessas pessoas, pelo próprio contexto social e pela dificuldade de existir.

Cura gay e HIV

Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sobrevivente de tentativas de cura gay, o psicólogo Héder Bello aponta que as práticas de cura gay têm relação com o momento da pandemia do HIV, na década de 80. Na época, havia o equívoco, principalmente por parte da comunidade mais conservadora, religiosa e fundamentalista, de que o vírus da Aids era um castigo de Deus devido à liberdade sexual ou às sexualidades que não estavam dentro do campo da heterossexualidade. Tal conceito, ele reforça, está completamente fora do âmbito da ciência.

“Os esforços relacionados às práticas de cura gay inicialmente se deram, de forma contemporânea [desde a década de 1980], com a tentativa de reverter a questão do HIV através da ideia equivocada de que homossexuais e a população LGBTQIAP+, através dos seus comportamentos desviantes, produziram a ira de Deus e, como um castigo de Deus, houve então a eclosão do HIV no mundo”, disse o pesquisador, em entrevista à Agência Brasil.

Bello estuda desde 2011 questões relacionadas às práticas ou tentativas de correção e reversão na orientação sexual e na identidade de gênero. Ele conta que se envolveu com essas pesquisas justamente por ter sido submetido a tais práticas durante 13 anos, dos 14 aos 27 anos de idade.

Houve ainda a tentativa de justificar a aplicação de terapias de conversão distorcendo teorias e técnicas da psicologia. Elas produziam um entendimento de que a heterossexualidade é a única sexualidade possível e que haveria a necessidade de que as pessoas passassem por um processo de ‘correção’.

De acordo com o psicólogo, as práticas de cura gay no Brasil atualmente são muito difusas e muito plurais, sendo difundidas por grupos religiosos, educadores e pessoas que exercem profissões não regulamentadas, como, por exemplo, filosofia clínica, consteladores familiares e coaches.

Técnicas de “conversão”

Em relação às técnicas utilizadas na cura gay, Bello explica que tal lógica aponta que a pessoa só aprende a desejar sexualmente alguém do sexo oposto se ela estiver bem adequada aos papéis de gênero na sociedade. Assim, ela é forçada a gostar de coisas que ela não necessariamente gosta e fazer coisas que não quer.

“Tem orações, jejuns forçados, castigos, torturas físicas e psicológicas. Tem um movimento de isolamento social, tem o encarceramento das pessoas para elas não desejarem sexualmente pessoas do mesmo sexo. E [existe] uma lógica também espiritual nesse sentido porque, se você pede a Deus e você demonstra a Deus o seu sacrifício, Deus vai operar isso por você”, revelou o psicólogo. Ele revela ainda a existência de grupos que dizem promover exorcismo por identificar que a homossexualidade é algo demoníaco.

De acordo com o pesquisador, a comunidade científica – incluindo o Conselho Federal de Psicologia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e Associação de Psiquiatria Americana – entende que quando pessoas passam por esses programas, práticas e procedimentos da chamada cura gay, se verifica um efeito iatrogênico [reações adversas causadas por tratamento médico] ou efeito negativo.

“Não existe nenhuma comprovação de que as pessoas mudam a sexualidade. Pelo contrário, a sexualidade é algo intrínseco do sujeito, que faz parte da identidade do sujeito. Não é uma opção, não é uma escolha”, disse.

“E essas tentativas de reparação, correção, reversão da orientação sexual e da identidade de gênero através de castigos, torturas psicológicas, trabalhos forçados, jejuns forçados, isolamento, cárcere, internações compulsórias, isolamento da família, geram processos de ansiedade, depressão, transtornos de estresse pós-traumático, transtornos alimentares, automutilação, ideações e tentativas de suicídio”, relatou o pesquisador.

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Uma análise pessoal do livro “O Corpo Guarda as Marcas”

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Bessel Van Der Kolk é o autor do Livro O Corpo Guarda as Marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma, onde o assunto trauma e seus efeitos é exposto e investigado a partir de estudos dentro da neurociência. Ao colocar trauma como algo que todos experienciamos e muitas vezes não curamos, Kolk traz explicações físicas para o pós-trauma, o que muda, o que se mantém e o que fazer depois.

Kolk investiga as mudanças no cérebro de pessoas que passaram por traumas e fala sobre self, sobre cura, sobrevivência, amor e lembrança. Tudo que nos envolve é atingido pelo trauma, tudo que nós somos muda a partir dessas vivências, é preciso se redescobrir e se curar para ter uma percepção de self nova e para seguir em frente. Talvez essa seja a parte mais dolorosa, deixar que se é e se tornar outro, ainda sendo você.

Tendo uma abordagem direta que sempre lembra o leitor de que ele passou por isso, a minha percepção é de que Kolk vê uma forma quase combativa contra experiências traumáticas e constrói essa obra com diversos gatilhos do começo ao fim, e somente no fim, trazendo um caminho para a cura. Ao ler o livro revivemos o trauma e saímos com uma possível solução. Talvez seja o meu trauma digitando por mim, mas relembrar realmente dói, Bessel.

Ao que se refere a neurociência, ler que “Depois do trauma, o mundo é sentido com um sistema nervoso diferente. A energia da vítima concentra-se agora na supressão do caos interior, em vez de investir espontaneamente na própria vida.” Dá uma explicação para tudo que se é sentido depois disso, trazendo também aceitação. Sim, seu corpo mudou e sim, não tem como voltar atrás.

Apesar de ser um constante chute no peito, O Corpo Guarda as Marcas é uma obra importante para aqueles que estudam psicologia, a escuta que é feita dentro de uma sessão, na saúde pública ou em hospitais sempre passa por sofrimento e inevitavelmente, o trauma. Saber como lidar ou como explicar para alguém tudo que o trauma envolve e muda é extremamente importante para psicólogos.

REFERÊNCIAS

VAN DER KOLK, Bessel. O corpo guarda as marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Sextante, 2020.

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Polícia Militar do Estado do Tocantins Promove Campanha de Prevenção ao Suicídio no Setembro Amarelo

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O setembro amarelo é o mês dedicado a campanha de prevenção ao suicídio que deu início no ano de 2015 e hoje se destaca mundialmente como um período em que são abertos espaços de discussões e debates acerca da temática. O reconhecimento da necessidade de se olhar para esse fenômeno vem sendo construída a partir da realidade a cada dia mais preocupante, em que o risco de suicídio, nas diferentes faixas etárias, demonstra que o manejo em lidar com essa questão deve ser amplamente discutido e aplicado seja no âmbito familiar, social ou profissional.

Segundo Botega (2015) o suicídio é multideterminado por um conjunto de fatores de diferentes naturezas, que são externas ou internas aos indivíduos e podem se combinar de forma complexa e variável. Existem uma influência genética, de elementos da história pessoal e familiar, de fatores culturais e socioeconômicos, de acontecimentos estressantes, de traços da personalidade e também de transtornos mentais.

O alerta quanto aos sinais e principalmente a abertura para a possiblidade de oferecer atenção e acolhimento à dor psíquica expressada pelo indivíduo, pode ser um meio de modificar a situação ao qual o panorama do suicídio se apresenta na atualidade.

Fonte: Governo do Tocantins

A Diretoria de Saúde e Promoção Social da Polícia militar do Tocantins (DSPS), por meio do Centro de Atenção à Saúde Integral do Policial Militar (CAISPM) se prontificou durante todo o mês de setembro a realizar orientações e acolhimento via telefone disponível, para a escuta daqueles que se sentirem atravessados pela temática de alguma forma, sejam os policiais militares, como também toda a sociedade em geral, para que possam ser atendidos por profissionais de saúde, numa perspectiva de atenção psicossocial.

Lembrando que essa pauta se faz necessário ser discutida não somente durante o setembro amarelo, mas a atenção deve acontecer de forma ampla e constante e ocupar cada vez mais os espaços de discussão, para que estratégias possam ser implementadas frente a essa problemática.

Deixar uma pessoa se expressar livremente e adotar uma postura sem julgamento e não diretiva produz benefícios que podem fazer a diferença na vida de alguém que pretende o suicídio, por isso se faz importante campanhas que promovam um oportunidade de fala e de escuta receptiva com imenso valor terapêutico.

REFERÊNCIA

BOTEGA, NJ. Crise Suicida: avaliação e manejo. Artmed, Porto Alegre, 2015.

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Homossexualidade: como curar o que não é doença? Parte 2

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Na primeira parte deste texto tentei contra-argumentar a noção de que a homossexualidade é uma doença que pode ser curada. Para tanto, recorri à perspectiva do filósofo Georges Canguilhem sobre o normal e o patológico. Nesta segunda parte, pretendo refletir sobre a possibilidade de uma reorientação sexual. Digo reorientação para evitar as expressões “tratamento” ou “cura” que apontam para uma perspectiva patologizante. A pergunta que move esta segunda parte do texto é se é possível mudar a orientação sexual de uma pessoa, seja da homossexualidade para a heterossexualidade ou vice-versa.

Gostaria inicialmente de comentar um episódio que trouxe à tona, mais uma vez, a questão da “cura gay”. Em entrevista cedida à jornalista Marilia Gabriela, o pastor evangélico (e “psicólogo”) Silas Malafaia afirmou, dentre outras coisas que, o “homossexualismo”, como ele chama, é um comportamento passível de mudança por ser eminentemente comportamental. Para ele, a ciência já demonstrou que a genética não tem qualquer influência na orientação sexual de uma pessoa. Poucos dias após a entrevista ser vinculada, circulou pela internet um vídeo de um geneticista que critica Silas afirmando haver muitas evidências científicas de que a genética, ainda que não determine, influencia de forma significativa na constituição da orientação sexual. Segundo esta perspectiva, não sendo a homossexualidade uma escolha, não seria passível de “tratamento”.

Minha posição geral sobre esta briga pode ser resumida da seguinte forma: tirando poucas características e doenças realmente determinadas por genes, todos os outros comportamentos e traços humanos são constituídos num caldo híbrido de natureza e cultura. Definir a causa ou as causas da homossexualidade me parece uma tarefa um tanto infrutífera e, até certo ponto, desnecessária. O fato indiscutível é que existem pessoas que se identificam como gays e elas devem ser respeitadas não porque a homossexualidade é “genética” ou “comportamental”, mas porque pessoas adultas devem ter liberdade para se relacionar com quem bem entenderem – desde que seja consensual, obviamente. A defesa deste princípio não deve estar atrelada a teorias científicas, mas a pressupostos humanistas. Ficar brigando sobre quem tem acesso à “verdadeira ciência” ou quem é mais cientista do que quem, me parece, neste caso, irrelevante. Além do mais, dizer que a homossexualidade tem base “genética” ou “comportamental” não resolve o problema fundamental da intolerância, pois ambas possibilidades abrem espaço para perspectivas de tratamento, sejam terapias genéticas ou comportamentais.

Tudo isto nos traz de volta à pergunta-guia deste artigo: é possível fazer uma pessoa deixar de ser gay? Outra questão relacionada a esta é: sendo possível, COMO isto poderia ocorrer? Uma outra questão ainda é se é possível fazer o contrário: tornar gay uma pessoa hétero. Afinal, se a homossexualidade é uma escolha, a heterossexualidade também o é, e, como tal, poderia ser revertida. Os partidários da “cura gay” fogem desta questão igual “o diabo foge da cruz”, porque, para a responderem, teriam que admitir que tal “conversão inversa”, independente de ser ou não possível, não é desejável. E por que? Porque consideram a heterossexualidade o normal, o natural e a homossexualidade um pecado, uma abominação. Desta forma, o caminho só poderia ser da homossexualidade para a heterossexualidade e nunca o inverso. Simples assim. Mas nos concentremos agora nas duas primeiras perguntas: é possível fazer uma pessoa deixar de ser gay? E como isto seria possível?

Em primeiro lugar, é importante refletirmos sobre a função de uma terapia, quer seja de reorientação sexual ou não. Na minha visão, terapeutas não mudam pessoas, muito menos as curam (como já havia apontado na primeira parte). Terapeutas auxiliam as pessoas a se transformarem. Portanto, diante de um sujeito que deseja reorientar a própria sexualidade, o terapeuta pode, no máximo, auxiliar a pessoa a transformar-se naquilo que ela deseja. O terapeuta sozinho não tem a capacidade de “mudar” ou “curar” ninguém. Neste sentido, gosto da ideia de que o terapeuta é uma espécie de co-piloto, que ouve, acolhe, orienta e sugere, mas quem realmente é o piloto, ou seja, quem define caminhos e possibilidades, é o sujeito, paciente ou cliente. Terapeuta e paciente são, como aponta Irvin Yalom, “companheiros de viagem”.

De uma forma geral, as pessoas chegam até um terapeuta por basicamente duas vias: ou o procuram por conta própria, porque sentem que tem alguma coisa errada com a própria vida; ou são encaminhadas, e mesmo forçadas, por outras pessoas a procurarem ajuda, seja porque estão sofrendo muito ou porque estão incomodando os outros. Neste caso, muitas vezes, a pessoa não sente que tem realmente um problema, acreditando que quem deve se tratar são aqueles que a encaminharam. Algumas vezes a pessoa pode estar certa e não haver de fato qualquer problema com ela; em outros, pode-se tratar de um processo de negação, no qual a pessoa não aceita que tem um problema que de fato ela tem. Isto é muito comum de ocorrer com dependentes químicos, que costumam relutar em aceitar tratamento

Neste último caso poderíamos dizer que a pessoa se encontra, segundo o modelo de mudança proposto por Prochaska e DiClemente, no estágio da pré-contemplação, ou seja, não contempla que tem um problema, acha que está tudo bem, quando de fato, tudo está mal ou nem tão bem assim. A pessoa pode permanecer neste estágio ou passar para o seguinte, que é o estágio da Contemplação, no qual a pessoa já contempla que tem um problema, embora não esteja motivada a superá-lo nem saiba como fazê-lo. Da mesma forma, a pessoa pode permanecer deste estágio ou avançar para o seguinte, que é o da Preparação. Nesta fase o sujeito já concebe que tem um problema, deseja superá-lo e começa a preparar-se para isso. Na fase seguinte, a da Ação, o sujeito já iniciou o seu processo de mudança e está motivado e engajado em fazer diferente. No entanto, não basta iniciar o processo de mudança, ele deve permanecer nele. Neste sentido, a fase da Manutenção é fundamental. Nela, o sujeito procura criar estratégias para manter-se motivado e engajado no processo de mudança. Se as estratégias utilizadas forem bem sucedidas, o sujeito pode permanecer indefinidamente neste estágio. Se não, poderá recair para algum estágio anterior, seja o da pré-contemplação ou o da contemplação. No entanto, esta recaída, bastante comum e até mesmo esperada em qualquer processo de mudança, pode ser apenas momentânea. Este modelo, embora bastante genérico, é bastante útil para compreendermos que o processo de mudança, qualquer que ele seja, depende substancialmente da motivação e do engajamento permanente dos sujeitos – o que talvez explique o fracasso retumbante da maioria dos tratamentos compulsórios que tem se disseminado por aí. E mais: tal modelo aponta para o fato de nenhuma mudança ser necessariamente permanente, sendo as recaídas partes integrantes do processo.

Por tudo isto, forçar uma pessoa a se tratar não costuma ser uma tática muito eficaz. Logicamente, e vamos pensar no caso dos dependentes químicos, a mudança é possível mesmo que a pessoa inicialmente negue que tem um problema. No entanto, para que ela saia da fase de pré-contemplação e passe para a fase de contemplação é necessário um trabalho cuidadoso de escuta e diálogo que pode levar ou não a pessoa a se dar conta de que tem um problema. No caso deste trabalho fracassar, dificilmente a pessoa caminhará em direção à mudança, o que é um tanto óbvio: se a pessoa não acha que tem um problema por que, afinal de contas, ela se engajaria num processo de mudança? Se, por outro lado, a pessoa passar a contemplar o próprio problema, aí ela pode seguir para as etapas seguintes. Mas nem neste caso, há a certeza do “sucesso” – entendido aqui como a manutenção do processo de mudança (por quanto tempo? Difícil definir. Talvez a palavra sucesso seja inadequada, afinal, por exemplo, um sujeito que conseguiu manter-se abstêmio por 5 anos foi, de certa forma, bem-sucedido em sua empreitada, mesmo que esta não tenha sido “para toda a vida”). Tudo isto aponta para a importância da motivação, ou seja, do desejo de “querer mudar” para que qualquer transformação se efetive.

No entanto, a motivação, ainda que necessária, não é suficiente. Muitos limites estão em jogo. Nem toda mudança é possível. Se você é negro e deseja se tornar branco, a menos que você seja o Michael Jackson, isto não será possível – ou melhor, ainda não é possível, felizmente. Existem até formas de clarear a pele, mas a menos que você tenha alguma doença, você permanecerá negro, pois isto é, de certa forma, constitutivo. Agora vamos supor que um dia haja uma forma de “reorientar sua cor de pele”. Isto seria desejável? De forma alguma, afinal porque as pessoas buscariam tal forma de “tratamento”? Certamente porque se sentiriam incomodadas com a própria cor de pele. E porque se sentiriam assim? Não tenho dúvidas de que isso ocorreria por viverem numa sociedade em que a pele branca é valorizada e a negra desvalorizada e estigmatizada. Senão, por que elas desejariam ser diferentes do que são? Simplesmente por motivos estéticos do tipo “eu acho branco mais bonito que preto”? Mas será que tal pessoa teria tais preferências estéticas se vivesse numa sociedade em que o negro fosse valorizado? Dificilmente. Afinal, nossas preferências estéticas dizem muito do mundo em que vivemos. Se achamos bonita a pele clara, o cabelo loiro e os olhos azuis é porque fomos “moldados” socialmente a pensar assim. Se fôssemos aborígenes australianos talvez considerássemos tal padrão muito pouco atrativo.

Da mesma forma, poderíamos perguntar por que, afinal, uma pessoa desejaria, hoje em dia, reorientar a própria sexualidade? E mais: porque o desejo de reorientação se dá sempre da homossexualidade para a heterossexualidade e nunca – repito: NUNCA – no sentido contrário. Ou você sabe de algum caso de um sujeito heterossexual que deseja se tornar gay? Os motivos para isso são absoltamente claros para mim: o sujeito deseja deixar de ser gay e tornar-se hétero porque a heterossexualidade é valorizada socialmente – ao contrário da homossexualidade, que é carregada de estigmas e alvo de um enorme preconceito. Se não fosse assim, porque, afinal de contas, as pessoas procurariam uma “terapia de reorientação sexual”? Com tudo isso quero apontar que tanto o desejo de ser reorientado quanto a disponibilidade de “tratamentos” como esses, só são possíveis num mundo como o nosso. Numa sociedade mais igualitária e menos preconceituosa, ambos seriam simplesmente inconcebíveis.

Uma outra questão é se ser gay é “constitutivo” da mesma forma que ser negro. Biólogos tendem a responder que sim. Sociólogos que não. Psicólogos se dividem a respeito. Eu tendo a pensar que não. Como já expressei em outros momentos, acredito que a sexualidade humana é muito mais complexa do que fazem supor as categorias homossexual e heterossexual. A famosa Escala de Kinsey já apontava para isso no início do século passado. Para quem não conhece, tal escala apontava para uma classificação da sexualidade humana que ia além deste binarismo, apontando mesmo para uma variação de graus. Segundo Kinsey, a orientação sexual dos seres humanos vai desde os “exclusivamente heterossexuais” até os “exclusivamente homossexuais”, passando pelos “heterossexuais ocasionalmente homossexuais” até os “homossexuais ocasionalmente heterossexuais” e os bissexuais, que seriam ao mesmo tempo heterossexuais e homossexuais. Na atualidade, o movimento dos assexuados e a emergência dos pansexuais, quebram ainda mais a visão da sexualidade humana enquanto restrita ao binarismo heterossexualidade-homossexualidade. Segundo esta visão, a perspectiva de uma “cura gay” não passaria de uma “passagem de ida”, talvez momentânea, talvez não, da homossexualidade para a heterosexualidade. A “passagem de volta” seria concebida não como uma recaída, mas como uma possibilidade dentre outras. Desta forma, sendo a sexualidade humana concebida de uma forma tão dinâmica e fluida, a noção de certo e errado e de norma e anormal se desfaz. Não há mais ponto de partida ou de chegada. Todos os caminhos são possíveis.

Mas vamos supor que esta concepção esteja equivocada e a sexualidade humana se resuma basicamente à heterossexualidade e à homossexualidade – sendo a bissexualidade uma mentira, como alguns acreditam. E vamos supor também que um sujeito homossexual procure um psicólogo querendo tornar-se hétero. Como seria este tratamento?

Bom, em primeiro lugar é preciso diferenciar dois “objetos” possíveis para um tratamento como esse: o comportamento e o desejo. Porque uma coisa é o sujeito deixar de comportar-se como gay (o que pode significar em alguns casos agir de forma menos afeminada ou masculinizada e de uma forma geral deixar de se relacionar com outras pessoas do mesmo sexo, seja afetivamente e/ou sexualmente) e outra coisa é não sentir desejo por pessoas do mesmo sexo. “Tratar” o comportamento pode até ser difícil, mas talvez seja possível. Afinal, nem sempre agimos conforme desejamos. Algumas vezes podemos ter pensamentos homicidas ou suicidas, mas acabamos não os transformando em realidade. O próprio Freud já nos alertava, no início do século passado, que viver em sociedade implica em uma certa renúncia de nossos impulsos sexuais e destrutivos. Mas como evitar o desejo?

Talvez com um exemplo tosco, a questão fique mais clara. Vamos supor que você goste muito de chocolate. Agora vamos admitir que você passe, em certo momento, a não achar mais correto comer chocolate, seja porque dizem que faz mal ou porque você não quer engordar. Então você decide não comer mais chocolates – ou seja, você quer curar sua chocolatria. Com um certo autocontrole é possível que você consiga evitar comer chocolate. Talvez você evite ir à festas ou a lugares que você ia comprar chocolate para evitar cair em tentação. Talvez você busque prazeres alternativos. Com tudo isso, você segue firme em sua missão de não comer chocolate. Mas será possível nunca mais desejar colocar um chocolate na boca?

Os partidários da “cura chocólatra” podem afirmar que sim. Com o tempo, poderiam dizer, o desejo vai diminuindo à medida que você se afasta dos estímulos que poderiam lhe fazer cair em tentação. O problema é que, para isso, você talvez tenha que se afastar de tudo e de todos. Sozinho no quarto talvez você consiga realmente atingir seu objetivo. Mas a questão é que você está no mundo, sujeito a ver pessoas comendo chocolate, assistir na TV propagandas de marcas de chocolate… e uma hora, mesmo sem estes estímulos externos, você pode simplesmente desejar colocar mais uma vez uma deliciosa barra de chocolate na boca. Sobre isto, os partidários da “cura chocólatra” tem um argumento “imbatível”: deixar de comer chocolate é como parar de fumar ou abandonar o sedentarismo. No início é difícil, mas com o tempo vai ficando mais fácil até se chegar ao ponto de o desejo inicial nem mesmo existir. Afinal, não existem ex-fumantes e ex-sedentários? Por que então não poderiam existir ex-chocólatras?… E ex-gays?

Voltando para a questão da “cura gay”, algumas pessoas poderiam utilizar o mesmo argumento: deixar de ser gay é como deixar de fumar ou de comer chocolate. No início é difícil, sofrido, mas com o tempo a pessoa se acostuma com nova realidade até o ponto de o desejo cessar. Neste sentido, poderia se falar em ex-gay como alguém que passou tempo suficiente sem praticar o “comportamento homossexual” que fez cessar o “desejo homossexual”. No entanto, a metáfora do chocolate tem seus limites. Não dá para comparar o desejo por chocolate com o desejo afetivo-sexual, pois estão em planos “existenciais” distintos. A satisfação provocada por um chocolate está, sem dúvida, em um nível mais superficial do que a satisfação (ou insatisfação) provocada por um relacionamento. Neste sentido, negar o desejo por um chocolate talvez seja mais fácil do que negar um desejo afetivo-sexual. Obviamente, a frustração faz parte da vida. Nem sempre podemos ou devemos comer chocolate, mesmo desejando muito. Da mesma forma, nem sempre conseguimos nos relacionar afetiva e/ou sexualmente com aqueles que desejamos. No entanto, uma coisa é não nos relacionarmos com algumas pessoas que desejamos; outra, bem diferente, é não nos relacionarmos com nenhuma das pessoas que desejamos. Se, por exemplo, o sujeito sente desejo exclusivamente por homens e, por algum motivo, só pode se relacionar com mulheres, provavelmente emergirá uma enorme frustração e insatisfação com a vida. Não é por outro motivo que muitos sujeitos que passam por terapias de reorientação sexual tornam-se pessoas depressivas ou atormentadas e alguns chegam mesmo a se suicidar – caso do matemático Alain Turing. Afinal, estão negando uma parte muito forte e profunda de si mesmos. Alguns desses sujeitos, por outro lado, tornam-se famosos militantes anti-homossexualidade – até serem pegos com “a boca na botija”, claro.

Com relação aos ex-gays, não tenho como dizer que todos estão mentindo e que tudo não passa de um grande engodo. Como já disse em outro momento, não há como afirmar categoricamente que tal “conversão” seja impossível. O fato de eu e muita gente não acreditar nisso não significa que estejamos certos. Podemos estar errados! Se uma pessoa falar para mim, olhando nos meus olhos, que deixou de ser gay, eu tenho todos os motivos do mundo para duvidar dela, mas não tenho como penetrar em seus desejos mais profundos para desmentí-la. Só o que tenho são suas palavras contra minhas crenças. O que fazer?

Uma possibilidade é negar terminantemente: “Não existe ex-gay. Uma vez gay sempre gay. Não é uma escolha, é um destino”. Talvez seja verdade e a tal “reorientação sexual” não passe de um retorno para “dentro do armário”. Mas volto à questão: como lidar com o sujeito que afirma ser um ex-gay? Como provar que ele está mentindo? Vamos colocá-lo diante de um filme pornô gay e verificar se seu pênis fica entumecido ou então se as regiões de seu cérebro ligadas ao prazer se ativam? Podemos até fazer isso com alguns, mas faremos com todos aqueles que se dizem ex-gays? Iniciaremos uma “caça às bruxas” para provar que todos eles não passam de um bando de mentirosos? Por que faríamos isso? Afinal, eles estão fazendo algum mal a alguém? Na minha opinião, eles até podem estar mentindo ou negando um desejo constitutivo, mas eles tem o direito de se relacionarem (ou não se relacionarem) com quem quiser. O problema não está neles, mas sim no mundo ao redor deles, que faz com que esses sujeitos queiram deixar de ser gays para tornarem-se héteros.

Desejo sinceramente que chegue um momento em que tais “terapias de reorientação sexual” não existam mais. Não por serem proibidas, mas por simplesmente não fazerem mais sentido. Neste contexto, os rótulos não terão o peso que tem hoje e as pessoas poderão ser o que bem entenderem e deixar de ser no momento seguinte, se assim o quiserem. Serão, pelo menos no que diz respeito ao afeto e à sexualidade, livres.

Texto originalmente publicado em: http://psicologiadospsicologos.blogspot.com.br/2013/02/homossexualidade-como-curar-o-que-nao-e.html

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