Não acho prudente, nem ético, usar a psicanálise para diagnosticar ou analisar pessoas fora do meu consultório, mas é totalmente possível ou aceitável utilizá-la para analisar conjunturas político-sociais. Mas, nem é preciso entender de psicologia para perceber que o Bolsonarismo tem um componente deliroide bastante forte. As tão faladas “Fake News” exemplificam muito bem o que eu chamo aqui de deliroide: verdades construídas a partir de fragmentos ou de indícios de realidade e tornadas verdades universais.
Eu trabalho no campo da saúde mental há mais de 20 anos, e se tem uma coisa que aprendi com esse trabalho é que o delírio não pode ser desmontado por uma simples confrontação com a realidade ou com racionalidade. Se o sujeito, em franco delírio, chega até você afirmando que tem um chip instalado na cabeça e através do qual se comunica com extraterrestres, não há absolutamente nada que se diga que mudará sua perspectiva de realidade. Nem que eu lhe mostre uma ressonância magnética do próprio crânio, ou que seja possível abrir sua cabeça para mostrar que não há nada lá, ele não se demoverá de sua verdade. Isso pelo simples fato de que aceitar desmontar tal delírio, seria desmontar a si próprio, já que, naquele momento, por uma fragilidade simbólica, o sujeito encontra-se totalmente assentado sobre aquela verdade. Se ela cair, ele cai junto. Freud dizia que os psicóticos amam o próprio delírio como a si mesmos. Resumindo, é isso.
Fonte: encurtador.com.br/jlmC0
Clarice Lispector diria isso assim: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.
Tempos atrás li um artigo do Javier Salas no El País, sobre o terraplanismo intitulado: “Você não pode convencer um terraplanista e isso deveria te preocupar”. Os terraplanistas, afirma Salas, simplesmente acreditam que a Terra é plana, e qualquer dado que possa prová-los do contrário é simplesmente ignorado ou considerado manipulação de conspiradores. Obviamente que não é possível dizer que todos os terraplanistas são psicóticos ou doentes mentais, mas certamente, podemos falar de um empobrecimento ou fragilidade simbólicas, o que favorece o discurso que chamei de deliroide, ainda que ele não seja rigorosamente delirante.
Fonte: encurtador.com.br/mFL79
Voltamos ao Bolsonarismo, fortemente fundamentado num discurso deliroide, reforçado pela sua reprodução maciça nas redes sociais. Se o clã Bolsonaro está se aproveitando do discurso deliroide ou se acredita mesmo nele, eu não saberia dizer. O fato é que ele tem sabido utilizá-lo muito bem, desde a campanha eleitoral, e também tem sido bastante competente em agregar a si personagens igualmente deliroides (nem é necessário citá-los um a um). Diante disso, não há debate político possível. Não há racionalidade que possa confrontar os argumentos do Bolsoplanismo. Então, o que fazer? Que estratégias utilizaremos?
O que posso dizer a partir do que estudei e pratiquei todos esses anos é que, se não é possível desmentir um delírio, é possível desconstruí-lo pouco a pouco, parte por parte. Fazer pequenos furos, abalar algumas verdades, duvidar, perguntar, são algumas das estratégias que utilizamos para ir minando a certeza do sujeito delirante, fazendo-o enxergar outras possibilidades. E é muito importante que ele encontre outras possibilidades, caso contrário, voltará para sua certeza delirante, que ao menos lhe assegura um lugar.
Qual a relação entre loucura e razão? Elas têm algo em comum ou não? E o desatino por sua vez, trata-se de uma característica da loucura ou pelo contrário, é o caminho para razão? E o delírio e o seu parentesco com o sonho. Como é visto nesse contexto? Qual o novo sentido da loucura no mundo moderno? Existe um novo sentido? É sobre essas questões que o filósofo francês Michel Foucault se desdobrará em sua obra “História da Loucura”, na sua terceira parte. A qual analisaremos nesse trabalho.
Na introdução da terceira parte de “História da Loucura” ele aborda a questão da loucura, do desatino e do delírio. Em seguida abordará a questão do grande medo, depois nos apresentará a nova visão a cerca desse problema, em seguida a questão do bom uso da liberdade, depois falará do nascimento do asilo e por fim do círculo antropológico. Nesse sentido é importante salientar a diferença que o autor fará entre loucura, desatino e delírio. Estes dois últimos é muitas vezes vistos na modernidade como características da loucura. Tanto que quem desatina logo é taxado de louco. Será mesmo?
Fonte: http://zip.net/bstHZV
Segundo Foucault (1978) “é do próprio fundo do desatino que nos podemos interrogar sobre a razão. E está novamente aberta a possibilidade de reconquistar a essência do mundo no torvelinho de um delírio que totaliza, numa ilusão equivalente à verdade, o ser e o não-ser do real”. Logo podemos afirmar que o desatino não é o mesmo que loucura. É preciso, portanto para não cair nesse erro e se libertar das noções patológicas a cerca do deliro do desatino, o que é recorrente na visão positivista da loucura. Foucault, portanto nos apresentará uma nova visão da loucura partindo dos seguintes problemas:
Por que não é possível manter-se na diferença do desatino? Por que será sempre necessário que ele se separe de si mesmo, fascinado no delírio do sensível e encerrado no recuo da loucura? Como foi que ele se tornou a tal ponto privado de linguagem? Qual é, então, esse poder que petrifica os que uma vez encararam-no de frente, e que condena à loucura todos os que tentaram aprovação do Desatino? (Foucault, 1978; 386).
Essas são as questões centrais que o autor abordará e que analisaremos nesse trabalho.
HISTÓRIA DA LOUCURA – TERCEIRA PARTE
O Grande Medo:
O desatino ainda não pode ser totalmente compreendido no século XVIII. Sendo ainda visto não a partir da “interrogação secreta, é apenas o hábito social: as roupas rasgadas, a arrogância em farrapos, a insolência que se suporta e cujos poderes inquietantes são calados através de uma indulgência divertida”. (Foucault, 1978; 387). Dessa deficiência em interpretar o desatino corretamente é que surge o grande medo. Medo que surgi de uma vizinhança estranha que lhes trazem um traço de quase-semelhança e por conseguinte um duplo, onde ao mesmo tempo se reconhece e se anula. O medo se espalha, sobretudo com o aparecimento das casas de internação, sobretudo por que qualquer pessoa está sujeita a ser taxada de louca, já que não há claramente uma distinção se se trata ou não de uma doença, do que é ou não loucura ou desatino.
Fonte: http://zip.net/bytH6j
A falta de conhecimento é um campo aberto para proliferar e espalhar o medo. Foucault (1978) alerta:
Todas essas formas do desatino que haviam ocupado, na geografia do mal, o lugar da lepra e que se havia banido para bem longe das distâncias sociais, tornaram-se agora lepra visível, e exibem suas chagas comidas à promiscuidade dos homens. O desatino está novamente presente, mas agora marcado por um indício imaginário de doença atribuído por seus poderes aterrorizantes.
Percebe-se, portanto que esse grande medo que assola o século XVIII não tem fundamentação na ciência. Não será através da medicina que procuraram resolver as doenças, mas no fantástico, isto é, no não-real. Dessa forma não buscavam saber em que medida o desatino é patológico. Nessa linha Foucault ressalta:
É importante e talvez decisivo para o lugar que a loucura deve ocupar na cultura moderna que o honro medicus não tenha sido convocado para o mundo do internamento como árbitro, para fazer a divisão entre o que era crime e o que era loucura, entre o mal e a doença, mas antes como um guardião, a fim de proteger os outros do perigo confuso que transpirava através dos muros do internamento.
Logo podemos afirmar que a questão da loucura não foi abordada como se deveria, tal como tantas outras questões aonde a repressão vem antes da política. Percebe-se que no século XVIII o que se imperava era um grande medo, de que aquilo contaminasse toda a sociedade e em vez de encarar o problema resolveu-se reprimi-lo, isola-lo, trancafia-lo.
Fonte: http://zip.net/bgtHF2
Segundo Foucault (1978):
Na época clássica, a consciência da loucura e a consciência do desatino não se haviam separado uma da outra. A experiência do desatino que guiara todas as práticas do internamento envolvia a tal ponto a consciência da loucura que a deixava, ou quase, desaparecer, em todo caso arrastava-a por um caminho de regressão onde ela estava prestes a perder o que tinha de mais específico.
É só a partir do final do século XVIII com a publicação de obras de pensadores que tratavam a cerca desse tema que essa realidade foi se modificando e começou-se a perceber que era necessário fazer certas diferenciações – nem todos que eram internados eram de fato loucos.
Fonte: http://zip.net/bwtHcp
A loucura e a liberdade, a loucura mercantil, a loucura, a civilização e a sensibilidade são alguns aspectos que foram analisados. Segundo Foucault (1978) a loucura no século XVII foi descoberta,
na perda da verdade: possibilidade inteiramente negativa na qual a única coisa em questão era essa faculdade de despertar e de atenção no homem, que não é da natureza, mas da liberdade. O fim do século XVIII põe-se a identificar a possibilidade da loucura com a constituição de um meio: a loucura é a natureza perdida, é o sensível desnorteado, o extravio do desejo, o tempo despojado de suas medidas; é a imediatez perdida no infinito das mediações.
No século XIX Foucault ressalta:
a loucura se tornou possível em virtude de tudo aquilo que o meio pôde reprimir, no homem, que dependia da existência anima. A partir de então, a loucura se vê ligada a uma certa forma de devir do homem. Enquanto era sentida como ameaça cósmica ou iminência animal, ela dormitava ao redor do homem ou na noite de seu coração, dotada de uma eterna e imóvel presença. (Foucault, 1978; 409)
A partir dai, logo percebemos o surgimento de uma nova concepção da loucura, que passará a não ser mais a perda absoluta da verdade, mas sim a sua verdade. Essa virada se dá no final do século XVIII.
Do Bom Uso da Liberdade;
Para Foucault a loucura volta a ser devolvida a solidão. Não a solidão que lhe era peculiar até a renascença, mas uma solidão que levava para uma zona neutra e vazia. Assim percebemos portanto que no século XVIII o que desaparece não é a forma desumana como o louco é tratado mas sim a evidência da internação. Foucault (1978) coloca que a era do internamento se encerrou. No entanto permanece apenas uma detenção onde se colocam, lado a lado, criminosos condenados ou possíveis criminosos e os loucos.
Tal fato se deu por que como bem ressalta o autor “Durante muito tempo, o pensamento médico e a prática do internamento haviam permanecido estranhos um ao outro”. Nessa linha apesar dos avanços que ocorreram “se se prescrevia aos pobres válidos a obrigação de trabalhar, se se confiava às famílias o tratamento dos doentes, estava fora de cogitação deixar que os loucos se misturassem à sociedade”. (1978; 466).
Fonte: http://zip.net/bbtHyF
Os loucos são tratados como outros prisioneiros. Nesse contexto percebe-se a farsa do internato. Os interesses do mercado se sobrepõem as questões sociais, logo as saídas apresentada pelo campo da caridade não conseguem responder aos problemas satisfatoriamente. Dai que o internato toma um novo caráter tornando-se,
um espaço de verdade quanto espaço de coação, e só deve ser este para poder ser aquele. Pela primeira vez é formulada essa ideia que tem um peso único na história da psiquiatria até o momento da liberação psicanalítica: a ideia de que a loucura internada encontra nessa coação, nessa vacuidade fechada, nesse “meio”, o elemento privilegiado no qual poderão aflorar as formas essenciais de sua verdade. (1978; 476).
É com o surgimento da psicologia que teremos uma nova abordagem a cerca dessa questão “propondo uma nova descrição das relações do homem com as formas ocultas do desatino”. Foucault ressalta, no entanto que tal psicologia não surgiu a partir de uma preocupação da humanização da justiça, mas sim por uma questão moral – uma espécie de estatização dos costumes. Esta psicologia é, antes de mais nada, a imagem invertida da justiça clássica. (Foucault, 1978; 490).
Segundo Foucault (1978) nesse contexto, a loucura não é mais uma coisa que se teme, ou um tema indefinidamente renovado do ceticismo. Tornou-se objeto. Mas com um estatuto singular. No próprio movimento que a objetiva, ela se torna a primeira das formas objetivastes: é através disso que o homem pode ter uma ascendência objetiva sobre si mesmo. Com isso passa-se a ter uma perspectiva enigmática o que persiste não apenas no século XIX como também na modernidade. A esse respeito Foucault (1978) afirma “para o pensamento do século XIX, para nós ainda, ela tem a condição de uma coisa enigmática: inacessível, de fato e no momento, em sua verdade total, não se duvida, contudo, que ela um dia se abra para um conhecimento que poderá esgotá-la”.
Nascimento do Asilo:
Fonte: http://zip.net/bbtHyL
O retiro é visto como um aparelho fundamental para recuperação dos loucos como também a quebra das correntes. Para isso o positivismo contribuirá ao defender que “todo domínio objetivo sobre a loucura, todo conhecimento, toda verdade formulada sobre ela será a própria razão, a razão recoberta e triunfante, o desenlace da alienação”. Nessa linha o autor ressalta:
as correntes estão se rompendo, o louco é libertado. E, nesse momento, recupera a razão. Ou melhor, não: não é a razão que reaparece em si mesma e por si mesma; são espécies sociais já constituídas que dormitaram durante muito tempo sob a loucura, e que se levantam em bloco, numa conformidade perfeita com aquilo que representam, sem alteração nem caretas. (Foucault, 1978; 521).
Percebemos, portanto que não há triunfo da razão sobre a loucura, pelo contrário, mas sim uma espécie de conformismo, alienação. Logo portanto, o retiro nada mais é do que um espaço de segregação, de dominação da razão sobre a loucura – para tanto a religião contribui de forma significativa. O asilo, no entanto não deixa de gerar medo tal como a internação no século XVIII. Foucault afirma (1978) que vigilância e Julgamento: já se esboça uma nova personagem que será essencial no asilo do século XIX.
Fonte: http://zip.net/bstHZ7
E para Foucault não só a religião cumpre um papel central como também os cientistas positivistas. “À medida que o positivismo se impõe à medicina e à psiquiatria, singularmente essa prática torna-se mais obscura, o poder do psiquiatra mais milagroso e o par médico-doente mergulha ainda mais num mundo estranho”. (1978; 552). Na contramão dessa visão surgi Freud. Para Foucault (1978) Freud desmistificou todas as outras estruturas do asilo: aboliu o silêncio e o olhar, apagou o reconhecimento da loucura por ela mesma no espelho de seu próprio espetáculo, fez com que se calassem as instâncias da condenação.
O Círculo Antropológico
Acerca dessa questão Foucault ressalta que Pinel ou Tuke não deram nenhuma liberdade ao louco, além da que ele já tinha. É por isso que ele afirma que:
E essa liberdade que o internamento, no momento de suprimi-la, apontava com o dedo? Libertando o indivíduo das tarefas infinitas e das consequências, de sua responsabilidade, ele não o coloca, nem de longe, num meio neutralizado, onde tudo seria nivelado na monotonia de um mesmo determinismo. É verdade que muitas vezes se interna para fazer alguém escapar ao julgamento: mas interna-se num mundo onde o que está em jogo é o mal e a punição, a libertinagem e a imoralidade, a penitência e a correção. (1978; 556)
Essa afirmação de Foucault é fundamental para que compreendamos como a questão da loucura é abordada ainda nos dias atuais. Apesar de todos os avanços é inegável que ainda prevalece uma visão moralista a esse respeito. Logo podemos afirmar que há uma enorme carga repressiva nesse processo.
Fonte: http://zip.net/bptJl0
O autor vai destacar portanto a visão antropológica que passa a dominar sobre o tema da liberdade do louco – “A loucura sustenta agora uma linguagem antropológica visando simultaneamente, e num equívoco donde ela retira, para o mundo moderno, seus poderes de inquietação, à verdade do homem e à perda dessa verdade e, por conseguinte, à verdade dessa verdade”. (Foucault, 1978; 560). O que coloca o problema da loucura no campo da linguagem. Mas uma linguagem diferente do que era compreendida no período clássico, apesar de reaproximar delírio e sonho.
O louco se coloca como um objeto de estudo e se transforma portanto em coisa. Percebe-se então no correr do século XIX uma visão dualista a cerca da loucura. Porém vão surgindo ao longo da história diferentes abordagens e perspectivas de como se deve encarar essa questão. Por exemplo, Foucault destaque essas diferentes concepções e os conflitos decorrentes que vai desde o conflito entre uma concepção histórica, sociológica, relativista da loucura; Conflito entre uma teoria espiritualista, que define a loucura como uma alteração da relação do espírito consigo próprio e um esforço materialista para situar a loucura num espaço orgânico diferenciado; Conflito entre a exigência de um juízo médico que mediria a irresponsabilidade do louco pelo grau de determinação dos mecanismos em atuação nele e a apreciação imediata do caráter insensato de seu comportamento; Conflito entre uma concepção humanitária da terapêutica, à maneira de Esquirol, e o uso dos famosos “tratamentos morais” que fazem do internamento o meio maior da submissão e da repressão. (1978; 566 e 567).
Fonte: http://zip.net/bltG8z
Foucault concluirá a terceira parte de sua “História da Loucura” abordando filósofos e artistas famosos que enlouqueceram. Analisando a questão da loucura com a obra desses autores. Nesse sentido ele afirma que “a loucura é ruptura absoluta da obra; ela constitui o momento constitutivo de uma abolição, que fundamenta no tempo a verdade da obra; ela esboça a margem exterior desta, a linha de desabamento, o perfil contra o vazio”. (1978; 583). A obra e a loucura, uma contra a outra, mas uma se alimentando da outra. Dai que não se pode ater a seus traços patológicos, pois elas estão em consonância com o tempo do mundo. Isso, é, são frutos da sociedade. Logo cabe a sociedade o papel de regenerar obra e loucura.
Foucault salienta (1978) “ali onde há obra, não há loucura; e, no entanto a loucura é contemporânea da obra, dado que ela inaugura o tempo de sua verdade. No instante em que, juntas, nascem e se realizam a obra e a loucura, tem-se o começo do tempo em que o mundo se vê determinado por essa obra e responsável por aquilo que existe diante dela”. Cabe, portanto não despreza-la, mas conservar o seu legado, pois tanto uma como a outra não podem ser apagadas da história da humanidade. Isso mostra o triunfo da loucura – e esse triunfo se dá justamente através dessas obras. Dai que para Foucault não é a psicologia que deve se preocupar em avaliar ou julgar a loucura, é o contrário.
Uma análise do conceito foucaultiano no filme “Bicho de Sete Cabeças”
Na terceira parte de seu livro, “A História da Loucura”, Foucault descreve as condições presentes da “loucura” na segunda metade do século XVIII ao início do século XIX. Fazendo um paralelo com o filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), dirigido por Laís Bodanzky, podemos observar algumas ideias em comum.
Fonte: http://zip.net/bdtH9G
Foucault na parte 3 de seu livro descreve a passagem de uma experiência moderna da loucura, objetivando o sujeito louco e interpretando a loucura como uma doença mental, ele não enxerga mais uma ausência do ser, mas uma alteração das faculdades humanas, uma alienação da verdade do homem. Assim como na visão foucaultiana, o filme mostra através de seu protagonista, jovem chamado Neto, um alienado sendo aprisionado, castigado e submetido a mecanismos de remodelação simplesmente por não fazer parte da “normalidade” imposta por aqueles que estão no poder.
O “Bicho de Sete Cabeças” relata um retrato duro e cruel da realidade vivenciada pelos internos de hospitais psiquiátricos. Este filme conta a história de um jovem (Neto) que é internado contra sua vontade pelo pai após ter sido flagrado com cigarro de maconha. Adolescente, vivendo uma fase tão conturbada de sua vida seus pais nem sequer tentam dialogar com o rapaz para entender o que se passa em sua mente e é simplesmente deixado em um manicômio. Internado, Neto é submetido à administração de medicamentos e procedimentos que o reduzem à condição animal sendo tratado de maneira agressiva, impiedosa e desumana. Enfermeiros usavam de violência fazendo uso de camisa de força, quarto “forte” e eletrochoque.
Para justificar a internação, a imposição do padrão de normalidade, assim referida na terceira parte do livro de Foucault “A História da Loucura”, foi utilizada pelos pais. Para seus pais, Neto fugia do padrão da normalidade da sociedade e por isso deveria ser internado. Dessa forma, a família passa a ser responsável pela vigilância do alienado, impedindo que este cometesse desordens. Assim, o louco continua sem liberdade, ele se encontra sob as ordens da família.
No filme, assim como retratado por Foucault na terceira parte de seu livro, a figura do médico é de autoridade competente. Com a psicanálise, o louco agora pode falar, ao contrário do período anterior, mas é tratado como objeto de estudo e não como um ser coberto de razão. O louco continua a ser vigiado e confinado pela razão. Os médicos, serão a autoridade que atua sobre os loucos, ditam o poder da razão em confinar a loucura. O que vemos é a razão exercendo poder sobre a loucura, como se a tudo o que o louco estivesse falando houvesse o julgamento da razão. Superar a autoridade psiquiátrica seria superar a razão.
Pode-se também fazer uma comparação do filme com o período que é abordado no livro em sua terceira parte, em relação ao papel a que se destinavam os hospitais. Na parte 3 do livro, no século XVIII, assim como no filme o hospital se apresenta como um meio de exclusão social, onde se internavam loucos, prostitutas, leprosos, criminosos, entre outros. Lá dentro estas pessoas eram “docilizadas” e disciplinadas, controladas constantemente. Nesse período, o hospital passa a assumir a responsabilidade de uma instituição destinada a promover a cura, diferente da Idade Média que o hospital não era visto como meio de cura. Apesar da coerção física e os maus-tratos contra a loucura estarem mais camuflados e maquiados, o conceito social que trouxe uma relação de dominação à loucura permanece e permeia a nossa sociedade até os dias atuais.
Mesmo após ser liberado da internação Neto ainda sofre sequelas de tudo que viveu ali dentro. Ele não consegue se adaptar ao modelo imposto pela sociedade e pela família, e é novamente encarcerado no hospício. A cada vez que ele é internado ele sofre mais, perde a razão, a liberdade, é degradante. Ele somente consegue sair depois de incendiar a cela em que está, e finalmente chamar a atenção do pai. No final do filme vemos Neto envelhecido pela dor e sofrimento.
Em sua obra, Foucault atentou para as condições de possibilidade para o aparecimento da psicologia, fato cultural que é próprio do mundo ocidental desde o século XIX e produziu o louco do mundo moderno. O filme também revela possibilidades do surgimento da insanidade mental surgida no louco moderno e é representada por Neto. E mesmo que essa “insanidade mental” não tenha partido do interior de Neto o filme aborda todo um envolto psicológico para tratar do assunto. O “Bicho de Sete Cabeças” é um filme que nos faz refletir sobre tudo que Foucault escreveu em sua obra e nos dá subsídio para estudar melhor a psicologia.
Percebemos que em “História da Loucura”, o Filósofo Michel Foucault mostra como a questão da loucura vem sendo abordada ao longo da história. Sendo que nessa terceira parte da sua obra ele falará como esse problema era visto no século XVIII e XIX até chegar à modernidade. A esse respeito é importante ressaltar a confusão que se tinha a cerca da loucura, especialmente no inicio do século XVIII – onde o que predominava era uma visão fantasiosa. O caminho da internação levou ao que ele denominou de o grande medo – que surge justamente da falta de clareza e da perspectiva fantasiosa com que a loucura era vista. Nesse contexto há uma grande confusão entre loucura e desatino, que como vimos que não se trata da mesma coisa. É em fins do século XVIII que surge, portanto uma nova divisão a cerca da loucura.
Fonte: http://zip.net/bttJmw
Segundo Foucault (1978) A loucura encontrou uma pátria que lhe é própria… algo que isola a loucura e começa a torná-la autônoma em relação ao desatino com o qual ela estava confusamente misturada. O que vem com a descoberta de que os internatos de nada serviam, a não ser para repressão e perseguição. Nesse contexto o positivismo acaba influenciando fortemente a cerca de uma nova abordagem a cerca da loucura. Já com a psicologia vemos um retorno à concepção clássica, preocupando-se, ao contrario do positivismo, com questões mais humanistas, não a cerca da justiça, mas da moral – assim investe a concepção clássica. Nesse contexto o autor falará a cerca do surgimento do asilo no século XIX, que surge em contraposição a internação, mas o que se percebe é que os asilos apesar de não haver mais correntes, não dá a liberdade prometida.
Por fim vimos a questão do círculo antropológico, a liberdade do louco, a tentativa de resumir a loucura a questão da linguagem, e as diversas concepções conflitantes que foram surgindo no final do século XVIII e durante o século XIX. Vimos a grande contribuição de Freud desmistificando várias questões a cerca da loucura e por fim vimos à relação entre loucura e a obra de diversos autores. E é nessa relação que percebemos o triunfo da loucura, dai que não adianta a psicologia buscar avalia-la ou justifica-la. As obras estão aí servindo justamente para que a sociedade busque redimir a loucura. Muito esforço foi feito nesse sentido, mas nenhum conseguiu dá uma resposta pronta e acabada. Pelo que vimos será mesmo necessários essa resposta? Uma coisa é fato, não confundindo loucura com desatino, alienação entre outros que a compreenderemos. É claro, se é que ela possa ser compreendida.
REFERÊNCIA:
FOUCAULT, Michael. História da Loucura. Tradução – José Teixeira Coelho Netto. Editora Perspectiva S.A. – São Paulo – Brasil; 1978. Págs. 376 a 584.
Eu quero compartilhar com vocês a minha visão do mundo, das coisas” Estamira
Estamira é uma falecida senhora brasileira que viveu por 70 anos. Sua trajetória de vida foi retratada no documentário “ESTAMIRA” dirigido pelo fotógrafo Marcos Prado que também dirigiu “Os Carvoeiros” e produziu o filme “Ônibus 174”. Existe uma temática que é transversal nesses três filmes de Marcos Prado: pessoas em condições de vida extremas, imersas numa sociedade que, há tempos, exporta, cada vez mais, o senso de justiça e importa, cada vez mais, a desigualdade social e a exploração do homem pelo homem.
No documentário “Os Carvoeiros” Prado retrata a vida de famílias do interior do Brasil, em especial dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Pará, na produção de carvão vegetal que alimenta multinacionais do aço e de automóveis. Retrata o regime de trabalho dessas pessoas e nos mostra que a escravidão é uma prática que atravessa sociedade até os dias de hoje, mesmo nos países que possuem leis de abolição à escravidão, como o Brasil.
Marcos Prado parece querer dar voz às pessoas do dia-a-dia, pessoas cujas vozes não se ouvem, anônimas da sociedade. Ele busca retratar as condições de vida dos milhares de anônimos brasileiros, desde os explorados em sua força de trabalho até aqueles que, em meio às dificuldades de viver, praticam seqüestros, de forma desesperada, como foi no episódio do Ônibus 174. Ou seja, Prado trata em seus documentários, da injustiça, da exclusão, das desigualdades sociais com a tentativa de retratar o ponto de vista das pessoas que se submetem-são submetidas à injustiça, à exclusão e às desigualdades sociais.
O mesmo ocorre à Estamira. Marcos busca essa senhora, em seus 63 anos, e lhe oferece um meio de falar de suas condições de vida, aliás, um meio de viver, nas telas, as condições de vida que vivia há mais de 20 anos. E Estamira diz que sim, que tem algo a falar para o mundo. Ao longo do documentário, ela, no poder do microfone, tece sua concepção de vida e seu ponto de vista acerca do homem. “Assim falou Estamira” é um link do sítio oficial do documentário onde se encontram frases de Estamira. É interessante notar a relação que o sítio quer fazer com o filósofo Nietsche, autor de “Assim falou Zaratustra”. E isso se deve simplesmente pelo fato de Estamira praticar, ao longo das gravações do documentário, de pensamento filosofia, tecendo críticas pertinentes, atuais e ácidas quando à sociedade que a circunda. Estamira foi uma filósofa.
Vivendo e trabalhando no Aterro Sanitário Jardim Gramacho, a desconfiança e decepção com o homem são imanentes em seu viver, transbordam em suas falas, em seu pensamento, em seu andar, em seu habitat e na relação com a família. “Eu transbordei de raiva… transbordei de ficar invisível… com tanta hipocrisia, com tanta mentira, com tanta perversidade, com tanto trocadilo.”
Para Estamira, o homem que explora outro homem (a exploração em todas as suas formas: econômica, sexual, afetiva etc.) é trocadilo. “Trocadilo é Deus ao contrário!” E mesmo que trocadilo seja outras coisas para ela, é também sinônimo de “amaldiçoado, excomungado, hipócrita, safado, canalha, indigno, incompetente…”, pois “o trocadilo fez de uma tal maneira, que quanto menos as pessoas têm, mais eles menosprezam, mais eles jogam fora, quanto menos eles têm!…”
Suas falas são auto-referenciais, aliás, o seu sistema filosófico de concepção de mundo é auto-referencial. “Eu Estamira sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. E eu me sinto orgulho e tristeza por isso.” A meu ver, de outra maneira talvez não poderia ser, pois todas as referências que teve na vida a traíram: seus esposos a traíram, os cientistas mataram sua mãe num hospital psiquiátrico, seu filho e neto insistem em catequizá-la, mesmo depois de Deus a ter traído. Sobre deus, Estamira fala: “Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem andou com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!”
Estamira gesticula e diz sua concepção de mundo: “Tudo que é imaginário, tem, existe, é.”. Foto: Marcos Prado
O mundo de traição em que Estamira viveu não poderia, em minha concepção, ser-lhe a principal referência de sentido e de produção de vida… a ideia de solidariedade, de sentido de vida e de inteligência não cabem num sistema referencial embasado na traição. A meu ver, a auto-referência como fundamento do mundo é a única relação em que ela pôde identificar vida depois de ter perdido a fé em seu próprio Criador. E a ciência vai chamar isso de psicose, de esquizofrenia, de narcisismo, de projeção, de formação reativa, de delírio, de discurso desconexo – Ah, não dá!!!
Estamira, a meu ver, possui a chave para o maior mal da humanidade, maior que a própria morte: tem a chave para a solidão – suporta a solidão como poucos; está no mundo, está no universo, sozinha – não vive em função de discursos, não vive em função de ninguém. Vive na Terra, pega-lhe uma carona e cuida dela transformando o lixo utilidades. “A Terra disse, ela falava, agora que ela já tá morta, ela disse que então ela não seria testemunha de nada. Olha o quê que aconteceu com ela. Eu fiquei de mal com ela uma porção de tempo, e falei pra ela que até que ela provasse o contrário. Ela me provou o contrário, a Terra. Ela me provou o contrário porque ela é indefesa. A Terra é indefesa.”
Estamira, em conversa numa língua desconhecida pelo homem trocadilo. Foto: Marcos Prado
É contra a exploração que ela passa a explorar, não as pessoas, mas o Aterro Sanitário Jardim Gramacho. É do lixo e no lixo que ela passa a viver. É no lixo, com todo o seu mal-cheiro e possibilidades de doenças, que ela encontra seu habitat, suas referências pessoais, amigos e colegas, seu trabalho, sua educação, seu lazer, sua vida. É naqueles que reconhecem a própria responsabilidade do próprio lixo que ela se reconhece. E quem assim não o faz é hipócrita. Por isso não só vive com o objetivo de transformar o lixo material, mas também ao lixo abstrato, à hipocrisia. Ela mesma diz: “A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não.”
Estamira denuncia a ciência como já o fizeram Boaventura de Souza Santos e outros autores críticos do epistemicídio. Revela a classe dos copiadores e dos dopantes, independente se a burocracia acadêmica e da sociedade formalizada pelos contratos aceita sua fala ou a divulga como formadora de opiniões. Tão pouco Estamira procura tal reconhecimento.
Enfim, Estamira se apresenta no documentário de Marcos Prado e nos vínculos que deixou após sua morte. Ela foi uma mulher que morreu aos 70 anos, no dia 28 de agosto de 2011, por conta de uma infecção que se generalizou na espera de seu atendimento no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Zona Sul da cidade do rio de Janeiro. E é, hoje, uma personagem que se destacou pela forma brilhante de fazer de sua vida um fluxo de transformação, disruptivo, denunciante, instituinte.
Saiba mais:
FICHA TÉCNICA DO FILME
ESTAMIRA
Diretor: Marcos Prado Produção: Marcos Prado, José Padilha Roteiro: Marcos Prado Fotografia: Marcos Prado Trilha Sonora: Décio Rocha Duração: 127 min. Ano: 2004 País: Brasil Gênero: Documentário Cor: Preto e Branco Distribuidora: Não definida Classificação: 10 anos