Parte de mim que se perdeu…

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Aquela noite estava particularmente escura… Permitir-me ser levada para um lugar distante, através da sintonia que se formou entre as notas musicais no meu ouvido e as intensas batidas do meu coração. As lágrimas, por sua vez, dançavam conforme o ritmo sobre meu rosto levemente inchado.

Uma bela árvore estava a minha frente, possuía um tronco grosso e com uma estatura gigantesca, ela estava rodeada por uma multidão de flores. Era particularmente linda. Ao seu lado direito havia um estreito caminho, que tinha como destino um belo banco rústico, caminhei em sua direção, mas a cada novo passo o caminho ficava cada vez mais estreito até desaparecer por completo. As flores foram substituídas por um vasto pasto de capim seco, o sol batia levemente em meu rosto, fechei os olhos e me permiti sentir aquela sensação, rodopiei, rodopiei e sorri, rodopiei, rodopiei… Parei ao não sentir mais os capins tocarem minhas pernas, mas sim um formigamento nos pés, declarando a boa sensação da área, juntamente com o relaxante sons das ondas se quebrando, abri os olhos e lá estava o belo mar. Fascinantemente lindo.

Eu queria ficar ali, simplesmente vivenciar a calmaria daquele ambiente, mas não foi possível, num piscar de olhos, se tornou noite… Uma noite de lua cheia, as ondas se apresentavam mais velozes. Aquele cenário estava tão melancólico e chamativo, a maré estava alta, bastou apenas um passo, para contemplar a água molhar meus pés descalços, o vento batia em minha pele, fazendo-me arrepiar, estava frio, muito frio…

fonte: encurtador.com.br/jABE3

Adentrei ao mar, ele me chamava para ir mais e mais fundo, e eu fui… As lágrimas voltaram a escorrer levemente pelo rosto, caindo e se misturando com as águas salgadas. E então eu mergulhei, porém não nadei, não pude nadar, eu nem queria nadar, somente me deixei ser levada cada vez mais longe e fundo… A lua já estava tão distante, eu realmente me encontrava muito distante e fundo para conseguir voltar sozinha, algo me levava mais e mais ao fundo… Chorei e lentamente minha boca se abriu, a água adentrava meus pulmões, não senti dor física, somente um profundo silêncio e vazio…

Uma forte tristeza se apoderou do meu ser ao sentir que uma parte de mim estava partindo, e nunca mais voltaria, me questionei o porquê de tudo ter acontecido daquela forma, resultando naquele momento. Uma parte de mim estava indo embora… E eu não sabia o que fazer, somente pude chorar pela perda dela.

Então fui levada a olhar para mim mesma, como se olhasse uma mini boneca em um quarto de brinquedo, só que a boneca não estava nos padrões e nem mesmo feliz… Localizava-se deitada com os braços abertos, pernas cruzadas, com os pés tocando a cabeceira da cama, com um olhar sem direção. Paralisada naquela situação eu fiquei, por muito tempo, talvez horas… não me lembro. Só sei que eu precisava sentir toda aquela dor, para conseguir continuar…

Afinal de contas foi uma parte de mim que se foi, e eu me encontrava no direito de viver o luto pela partida dela.

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Atalho ou contratempo?

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Ele é grande ou talvez pequeno demais, para caber em qualquer coisa diferente dos seus sonhos. Eu o observo e cada um dos seus movimentos me hipnotiza. Seu ritmo me desacelera, perco a pressa.

Ainda vai querer meus beijos semana que vem? Pergunto com um sorriso no rosto e aperto no peito, imaginado ser a última vez, último encontro, a última despedida. Ele não responde, apenas sorri. Me parece suficiente. Ao perceber minha aflição, ele me olha e o seu olhar me transmite calma. Sinto inveja da versão de mim que jamais pôde se ver através de suas pupilas. Sempre amei a ideia da liberdade e agora, ela só é uma ideia, cada vez mais distante… Sou a sua mais nova refém. Me conta seu segredo, rapaz? Aproveita e devolve as certezas que você arrancou no último beijo que me deu.

Fonte: encurtador.com.br/EHIP5

Nós caminhamos em círculos, sempre voltando ao lugar de início. Fazendo e refazendo o mesmo trajeto, muitas vezes cansativo. Tudo desajustado, perfeitamente desequilibrado e ainda assim, continuamos a seguir o manual, os passos do ritual, não deixando escapar nenhuma regra de um relacionamento casual. Engraçado como tudo já foi conversado, combinado, maquiado… exceto as lacunas e as brechas desse doloroso contrato. Deveria existir letrinhas minúsculas, algo sobre partir e não se despedir. Alguma multa ou uma desculpa qualquer, que não me deixasse a imaginar os mil porquês da sua ida.  Talvez você só não tenha conseguido concluir aquilo que iniciou, e mesmo que tenha tentado, não é possível ressuscitar corações mortos, afinal.

De qualquer forma, parte de mim ainda espero sua volta. Os fragmentos da sua partida ainda estão encaixados naquelas feridas que você prometeu cicatrizar. Elas doem com maior intensidade. Mas a culpa não é sua. O erro foi meu por acreditar que alguém pudesse remediar o que apenas o meu amor próprio é capaz de sarar. Sua cama não é mais suficiente, se não quiser me abrigar no seu peito, melhor que vá e faça o favor de não voltar. Eu consigo me virar.

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O processo de morte em “Uma prova de amor”

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“Mas por baixo da superfície há rachaduras, ressentimentos, alianças que ameaçam a base de nossas vidas, como se a qualquer momento nosso mundo pudesse desabar.”
Do filme Uma Prova de Amor

Uma prova de amor (2009), é um filme norte americano dirigido por Nick Cassavetes. Trata da dor de uma família em lidar com o câncer de sua filha, e de como eles adaptam suas vidas com o propósito de garantir alguns instante a mais de vida para Kate Fitzgerald (Sofia Vassilieva), que está morrendo.O enredo se dá na conflitiva familiar e no modo como a família enfrenta a doença de Kate, ao passo em que esquecem-se da manutenção de suas próprias vidas.

O núcleo familiar é comporto por cinco pessoas: a mãe, Sara (Cameron Diaz); o pai, Brian (Jason Patric); Jesse (Evan Ellingson), o irmão mais velho, Kate a filha com diagnóstico de leucemia desde a infância; e Ana (Abigail Breslin), a filha caçula.

Ana nasceu de uma fertilização in vitro, após o diagnóstico de Kate, como o propósito de ser, como ela mesma afirma em uma cena do filme,“o seguro de vida da irmã”. Ela é a combinação genética perfeita para prover material genético à Kate no seu tratamento. Mas o que a família não previa, é que ao assumir esse risco, traria ao mundo uma criança que também teria desejos e medos próprios.

A conflitiva se dá quando Kate, já na adolescência, sofre de falência renal e Ana entra com uma petição jurídica requisitando direito de decidir se faz o transplante de seu rim para a irmã ou não. É preciso deixar claro que o prognóstico médico dizia que, mesmo com um rim transplantado, Kate não teria muito tempo de vida.

O filme é recheado de flashbacks que levam o telespectador do presente para o passado em vários momentos, contando a história da família Fitzgerald paralela ao adoecimento de Kate sobre a perspectiva de todos os membros do grupo familiar.

O processo de morte é bem presente no filme e é possível identificar alguns dos estágios definidos por Kubler-Ross (1969), citada por Kovács (2002), negação e isolamento; raiva; barganha; depressão; e aceitação. Inicialmente não é demonstrada uma negação, já que a doença foi diagnosticada quando Kate ainda era muito nova. Contudo, no decorrer do filme, são mostrados flash’s em que Kate aparece apresentando algumas atitudes que se assemelham aos estágios de Kluber-Ross.

De acordo com Kovács (2002), raramente os pacientes são consultados, acerca dos seus desejos, sempre havendo uma preocupação com os sintomas da doença e com a doença em si, deixando-se de lado o indivíduo. Com Kate isso acontecia, ela não era consultada sobre seus desejos, sendo assim, ela decidiu falar com os irmãos sobre a vontade de morrer, que já estava pronta e que não queria o transplante de rim, que seria doado por Ana. Esse processo cirúrgico já estava decidido pelos pais e pelos médicos, mas ninguém procurou saber a vontade de Kate.

Em uma das cenas, Kate encontra-se em seu quarto, quebrando as coisas, ouvindo um som alto e bebendo, ao ser questionada por Ana ela diz que estar fazendo uma festa de despedida, dizendo: “Adeus mãe, adeus droga de hospital, vou ver o Taylor!”, tomando remédios para morrer. Pode-se dizer, que Kate foi tomada por raiva, por todo processo que vinha passando e por perder o namorado, Taylor (Thomas Dekker), que também tinha leucemia.

Além desta cena, também existem outras duas que demonstram um momento em que Kate estava bem depressiva, se achando feia, afirmando que as pessoas iriam rir dela, Sara, para não ver a filha naquele estado, raspa a cabeça. Em outras duas cenas, Kate conversa com Ana e deixa claro que já está pronta para morrer, em uma das cenas ela fala que a mãe voltaria a furá-la e cortá-la novamente e que ela não queria mais isso, assim como é explanado no texto de Kovács (2002), a pessoa não é encarada como sujeito e sim como objeto de atuação do médico, passivo, submisso e silencioso. Na outra cena ela diz a Ana que tudo será tranquilo e demonstra, ainda mais, que já aceitou a sua condição e que só basta esperar a morte.

A autora afirmou que, nem todos os pacientes passam por essas fases, nem as passam na mesma ordem, e com Kate isso fica bem claro, ela passou apenas por algumas fases.

A família também passa pelos mesmos estágios que o paciente, segundo Kovács (2002), e no caso da família Fitzgerald quem passou mais intensamente pelos estágios foi Sara, ela muitas vezes passou pela negação, não aceitando que aquilo estava acontecendo com sua filha e lutou todo instante para que Kate fosse salva.

Sara também passou muitas vezes pela raiva, raiva pela doença, raiva de Ana por negar ajuda a irmã, raiva de Brian por tirar Kate do hospital, raiva do médico, enfim, ela não conseguia aceitar a doença da filha. Sara estava sempre entristecida por ver o sofrimento da filha, tentando fazer de tudo para vê-la bem, alegre. E, por fim, Sara acabou aceitando que Kate queria partir, talvez tenha aceitado apenas após a morte da garota, afinal ela lutou a vida toda para manter a vida de Kate, mas fica claro que ela aceitou o fato de que não poderia fazer mais nada para contornar a situação.

Kovács (2002) afirmou que, em muitos casos, o paciente sabe da gravidade do seu caso, mesmo que não tenha se informado objetivamente, mas tem falar com seus familiares, pois acha que eles não sabem e imagina que sofrerão se souberem. No fundo isso aconteceu com a Kate, ela já tinha certeza de que não iria sobreviver, mesmo recebendo o rim de Ana, mas ela comentou apenas com os irmãos, evitando falar com a mãe, pois ela sabia o quanto Sara lutava para mantê-la viva.

O luto não começa no momento da morte, e sim quando a pessoa percebe que ela é inevitável (KOVÁCS, 2002). Kate se preparou durante muito tempo para morrer, preparando tudo para a morte ocorrer naturalmente. Por isso pediu aos irmãos que a ajudassem e também preparou uma espécie de livro de recordações, onde deixava mensagens para toda família, inclusive pedindo perdão, afinal toda família estava envolvida no seu processo de morte.

A leucemia tem um final lento, portanto, há tempo para elaboração. A negação tem de ser confrontada, os sentimentos precisam encontrar um canal de expressão. Os membros da família também têm de realizar desapego. Podem deixar o paciente seguir seu processo, sem que isso signifique abandon ou isolamento (KOVÁCS, 2002, p. 204).

Nesse caso, Sara não permitiu que o desapego acontecesse, pelo contrário, ocorria o apego a esperança de que Kate sobreviveria e se recuperaria, apesar de se ter ciência das poucas chances de reestabelecimento. A elaboração ocorreu de forma brusca, quando foi revelada a vontade que Kate tinha de partir, de finalmente descansar, sendo que esse foi um processo mais doloroso do que teria sido se ocorresse a longo prazo.

São muitos os aspectos importantes destacados no filme, porém nele não é visto um tratamento psicoterapêutico, o que seria de grande auxílio, tanto para Kate, quanto para sua família, principalmente para Sara. “A família também precisará de ajuda, quando ocorrer a morte efetiva, para realizar o desligamento efetivo” (KOVÁCS, 2002, p. 204). Essa ajuda poderia ser oferecida por um psicólogo, que também teria dado esse auxílio, ajudando que o processo de desapego ocorresse, desde o momento em que a doença foi descoberta.

Kovács (2002) ainda ressaltou que o processo psicoterápico não está focado na cura do paciente, nem em alongar a vida, mas sim em tentar proporcionar uma qualidade de vida e auxiliar na comunicação e expressão de sentimentos.

Em dado momento, no filme, é apresentada a possibilidade de Kate ir para casa, para poder ter uma qualidade de fim de vida, o que é totalmente repudiado por Sara, que não quer aceitar o fato de a filha estar morrendo. Essa oferta é muito semelhante a proposta do “movimento hospice”, apresentado por Kovács em seu texto, onde procura-se dar ao indivíduo um alívio da carga da doença terminal. Esse seria um auxílio muito válido para Kate e sua família, mas Sara ainda não estava pronta para encarar os fatos.

 

FICHA TÉCNICA:


Gênero: Drama
Direção: Nick Cassavetes
Elenco: Abigail Breslin, Alec Baldwin, Andrew Schaff, Andrew Shack, Angel Garcia, Annie Wood
Duração: 1h49
Ano: 2009

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Adeus, Mãe!

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A minha mãe, que sinto, mesmo não estando de corpo presente,
mesmo que não saibamos onde se encontra  – se não nos nossos corações –
aplaude com orgulho mais essa fase que venci”

Essa foi minha dedicatória impressa em meu trabalho de conclusão de curso. Por quê? Porque ela está em tudo, assim como tudo aquilo que conquisto é para ela.

Foi exatamente no dia 26 de agosto de 1994 que um trecho da minha história acabou. Sei dessa data porque nos últimos dezenove anos eu a escutei diversas vezes e por infinitas vezes ela é considerada a data mais triste de nossas vidas. Se caso não tivessem me falado que foi no dia 26 de agosto de 1994 não saberia, certamente iria descobrir que de repente ela não estava mais por perto. O ruim de ser criança, nessas horas, é exatamente isso; de uma hora para outra o colo sumiu e muitos outros colos (alguns até estranhos) apareceram… e que bom que apareceram.

“O que é mais chato em tudo isso?”me perguntam. O mais chato é quando alguém pergunta por ela e, quando recebem a resposta, cuidam logo de pedir desculpas. Desculpa porquê? Entendo o peso da resposta, também entendo o desconforto, mas não existe uma razão para um pedido de desculpas, porque não há culpados. Não, eu não me sinto triste quando perguntam sobre ela, pelo o contrário, a coisa mais linda entre todas as coisas é saber que ela existiu. Aceito que ela tenha partido, mas não aceito que ela seja esquecida.

“Você sente saudades?” É possível que uma criança, aos cinco anos de idade, sinta saudades? Sim, mas é uma saudade diferente. Os outros sentem saudades do que viveram ao lado dela, sinto saudades daquilo que não vivi e do que eu poderia ter vivido com ela. Penso quase todos os dias como seria se ela estivesse aqui. Às vezes, numa tentativa de suprir essa saudade, simulo situações e as possíveis reações dela, se caso ainda estivesse presente. E funciona.

É bobeira lutar contra a saudade, é travar guerra com um inimigo poderoso e invencível. Prefiro seguir o ditado: quem não pode com o inimigo, une-se a ele.

“Você chorou?” Não sei. Não lembro.  Tenho poucas lembranças, tanto dela quanto da última vez que a vi, para falar a verdade. Lembro-me de pedaços de vida, lembro-me de alguns passeios, dos bolos de abacaxi que ela fazia, de ficarmos até tarde assistindo televisão, das broncas e da roupa que ela estava vestindo naquele último dia. Alguns dizem que foi meu “mecanismo de defesa” que agiu e que por isso não recordo, outros falam que por conta da pouca idade é difícil mesmo lembrar (e me apego a essa versão). Aí então,corro, pego algumas fotos dela e pronto: estou salva.

Mas eu choro, por tudo, pela saudade, pelas poucas lembranças, pela impossibilidade de um futuro ao lado dela. Imagino que ela esteja logo ali, de pé, orgulhosa e boba, igual uma mãe como todas as outras. E isso é lindo.

Ela é como uma “sombra de luz” porque está em tudo, está junto ao meu coração, que pulsa todos os dias para me fazer lembrar – e sentir – que ela está aqui, o tempo todo.

Quando vejo alguém passando pelo o que eu passei, a única coisa que aconselho é que chore. Chorar sem culpa e sem culpar. Porque as lágrimas aliviam o peso, lava a tristeza e é somente isso que nos resta, nos confortar entre uma lembrança e outra.

A saudade não passa, é inútil alguém dizer o contrário. Sinto informar, mas, ela só aumenta. Mas deixa de ser uma saudade dolorosa, que destrói o peito e os pensamentos, e se torna uma saudade bonita e, ao invés de chorar, a gente ri e agradecemos: Obrigada por ter existido e me escolhido para passar esse tempo com você.

O que penso sobre tudo isso? Que a senhora minha mãe deve estar muito orgulhosa porque os três presentes que ela deu ao mundo estão crescidos e formados, um deles até é metido a escritor e dedica versos a ela (minha mãe deve estar ‘se achando’ por ter se tornado literatura, eu diria, rs).

É isso, na verdade, não é somente isso, mas é um pedaço da experiência de um coração que, mesmo carregado de saudades, consegue pulsar tranquilamente e que se sente mais feliz ao lembrar que a mãe dele existiu.

Dos versos que dediquei a ela:

“26 de Agosto: data nenhuma parece ser tão importuna quanto essa. Acabo me rendendo às 24 horas pesadas que esse dia traz entre os minutos. Antecipo cansaço uma semana antes. Mesmo se eu fugisse para outra dimensão ainda recordaria esse dia, apesar de não lembrá-lo com clareza. Algumas pessoas chorando, correria, silêncio, questionamentos a Deus, aos santos e anjos.  Desculpas esfarrapadas e orações jogadas ao vento, sem querer isso marca qualquer dia do calendário. O mês não faz tanto efeito, o que pesa mesmo é o dia. 26 de agosto, que sempre tem gosto de vazio, embrulha meu estomago, é sempre espera sem resultados. (…) Grito saudade por dentro, dou parabéns à morte por conseguir, só para ela, alguém que todos nós tínhamos. Ninguém nunca me respondeu e nem mesmo sei porque ela se foi.”

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Por uma Morte suave

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“Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.

Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida”

Raul Seixas – Canto para a minha Morte

A morte é um acontecimento envolto de mistérios, dúvidas, medos, angústias… Embora seja um algo que acometerá a todos, as pessoas em geral (em especial na sociedade ocidental) evitam falar sobre o assunto.

A humanidade construiu inúmeros sentidos para a morte ao longo dos séculos, ela pode ser entendida como o fim, como o início de uma nova existência, como um momento de passagem para retornar a vida, como a reconexão com a energia cósmica… enfim, muitas são as crenças a respeito do que significa a morte e do que ocorre após. No entanto, este texto se trata de um relato de experiência e procura produzir alguns questionamentos a respeito não dos que vão, mas dos que ficam, até porque, como nos diz Shakespeare, em Hamlet, não temos como saber o que acontece após a morte, e justamente por isto a mistura de medo e fascínio em torno de tal acontecimento da vida:

“Morrer… dormir… mais nada… Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer.., dormir… dormir… Talvez sonhar… É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando ao fim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa idéia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte — terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou — que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência.”

Com a morte de alguém há uma série de procedimentos instituídos, que vão desde emissão de documentos (necrópscia, certidão de óbito, boletim de ocorrência, entre outros), e se estendem até o enterro ou cremação. Entre estes procedimentos se encontra o velório, momento público de despedida, reflexão e oração. Isto ocorre de formas singulares no catolicismo, protestantismo, budismo, judaísmo, espiritismo e candomblé – embora neste último o velório ocorra após o enterro.

Este relato descreve situações e sentimentos vividos por este que lhes escreve, na experiência de ter seu corpo preparado para o próprio velório. É preciso deixar claro que não se trata de algo cômico e/ou desrespeito, mas de uma experiência singular que possibilitou a problematização de como encaramos o velório e a própria morte.

Passamos a vida inteira sem falar sobre a morte, vivemos a vida como se fosse para sempre, embora saibamos que chegará a nossa hora, bem como das pessoas que nos rodeiam. Isto promove um desconhecimento que acaba produzindo medo e insegurança, na medida em que não entendemos a morte como parte da vida.

Quando cheguei na Funetins a sensação era de angústia, era como se estivesse lidando com algo que não devia. Cheguei a ouvir o comentário “Cuidado, quem faz isso vai logo depois”, se referindo a eu estar simulando a preparação para o velório. Depois, uma aluna do curso de psicologia do CEULP me disse que o rapaz que prepara os corpos se negou a participar, afirmando que “só preparo os mortos”.

O próprio clima da funerária nos remete a sentimentos desagradáveis, inclusive não sei explicar muito bem o que senti, mas o que posso dizer é que foi desagradável. No entanto, quando entrei no caixão para dar início a ornamentação, senti um aperto no peito e  percebi que as pessoas envolvidas também sentiram o mesmo, começaram a se solidarizar com a situação e passaram a conversar  no sentido de explicar o processo de preparação do corpo e ornamentação.

Fiquei muito surpreso com a delicadeza com que todos demonstraram, explicando que este era um momento muito delicado para os familiares e que por conta disto eles tem muito cuidado com a preparação. Em um determinado momento uma das meninas limpou o meu terno e ao fazer esta ação ela se surpreendeu e disse “eu tô te tratando como se fosse um morto mesmo”, este comentário me causou uma sensação muito estranha, um misto de tristeza e aconchego. Era como se estivesse se me considerando uma pessoa morta, mas com muito respeito e ternura.

Me senti muito apertado e desconfortável no caixão, embora tivessem colocado um tecido embaixo para eu me deitar. Quando iniciaram a ornamentação fiquei pensativo e me dei conta que nunca tinha pensado em como eu gostaria que fosse este momento. Percebi que não quero ser enterrado, mas cremado. Fiquei pensando nas pessoas que me amam sofrendo e se despedindo, enfim, foi um momento difícil… mas importante.

Ao fim da preparação foi comentado que os familiares costumam beijar a testa da pessoa morta, que ficam segurando a mão, alguns gostam de deixar um véu por cima do rosto… Os funcionários da funerária disseram que tudo é preparado de acordo com o desejo da família, pois o objetivo é que seja o “mais de acordo com o que a família espera e necessita neste momento tão difícil”.

Ao final eu já não aguentava mais estar naquela situação, queria sair do caixão, caminhar, conversar, queria provar para mim mesmo que estava vivo.

Ao fim desta experiência fico me perguntando: Por que conversamos tão pouco sobre a morte? Por que as pessoas vivem como se nunca fossem morrer? Por que algumas pessoas passam a viver quanto se aproximam da morte? Como podemos aceitar a inevitabilidade de tal acontecimento? Será que esta forma de lidar com a morte e seus rituais (que persistem por séculos) um dia vão mudar? Espero que em algum momento possamos lidar com a morte e seus rituais de forma mais clara, sem mitos, medo. Obviamente que não sem tristeza, mas com a tranquilidade de quem sabe que um dia chegará a sua vez.

 


Nota: Postagem de sétimo día, desencarne de vida.

Fotos: Samuel Leumas

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