O conto da Aia, seria mesmo uma distopia?

Compartilhe este conteúdo:

O Conto da Aia, livro escrito em 1985 pela autora canadense Margaret Atwood continua mais atual do que nunca. No livro “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir tem uma frase que define muito a obra de Atwood “[…] Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados” (BEAUVOIR, 1949, p.29).

A obra se passa em um futuro distópico, onde os Estados Unidos sofrem um golpe de Estado, sendo assim proclamada a República de Gilead. Neste novo país as universidades estão extintas, não existe mais jornal, televisão ou biblioteca e as únicas leis existentes são a lei divina, sendo assim um país teocrático, totalitário e patriarcal, pois as mulheres são as primeiras vítimas e os seus direitos são abolidos.

A sociedade de Gilead é composta por castas, onde os homens sempre ocupam os principais poderes, os homens também compõem as atividades laborativas, como, médicos, farmacêuticos, militares etc. Já as mulheres são divididas em categorias, cada qual com uma função já estabelecida pelo Estado.

As esposas são as companheiras dos Comandantes (os comandantes são pessoas do alto escalão do exército) e a função da esposa é sempre fazer a vontade de seus maridos. As Marthas são as responsáveis por manterem a casa sempre organizada e elas são propriedade da família.

Fonte: encurtador.com.br/goC17

São chamadas de Tias, as mulheres responsáveis por disciplinarem as Aias. Depois que uma catástrofe nuclear deixou uma grande parte da população estéril, as poucas mulheres que ainda eram férteis são as aias, elas pertencem ao governo e existem somente para procriar. As aias são entregues as famílias dos comandantes e obrigadas uma vez por mês a terem relações sexuais com eles para engravidar. Após dar à luz, elas amamentam o bebê e logo depois são transferidas para outra família.

O sucesso do livro gerou a série adaptada homônima que acabou de estrear sua quarta temporada. Tanto o livro quanto a série são narrados por June, a Aia da família Waterford. Na série vamos acompanhar toda a mobilização das Marthas e Aias para exporem as atrocidades cometidas no país para o mundo, com o intuído de estabelecer um mundo melhor.

A obra discute sem receio a opressão feminina e como elas não possuem direito sobre seus corpos, também aborda como o discurso fundamentalista religioso é extremamente perigoso. A distopia também suprime resolutamente as pessoas mais poderosas associadas às minorias.

Embora este pareça ser um universo completamente fictício, a verdade é que a obra de Margaret se aproxima de alguma realidade contemporânea em muitos aspectos, visto que é só abrir a página do jornal e encontrar algumas comunidades contemporâneas que vivem sob o apoio da autocracia e da teocracia.

Fonte: encurtador.com.br/wILM9

Referência:

ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. 1.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

Compartilhe este conteúdo:

Mundo Pré-Apocalíptico e a Sociedade de Controle (Deleuze)

Compartilhe este conteúdo:

O motivo para a associação entre a tese deleuziana de Sociedade de Controle e o filme disponível no Netflix ‘Onde Está Segunda?’ é bastante claro ao usarmos a ótica de que grandes instituições desenvolvem técnicas absolutamente criativas para o controle da sociedade como um todo. É um processo de massificação planificada que se manifesta por meio da sociedade de consumo, onde se inclui mídia, jornais, propagandas e até mesmo o discurso dos próprios alvos destas técnicas.

A distopia em que se mostra o filme faz referência à uma possível problemática de superpopulação do planeta em que podemos algum dia enfrentar. A política do filho único não é uma invenção mirabolante e foi utilizada na China para tentar resolver este mesmo problema e perdurou até 2015 quando outra problemática surgiu no país, que embora ainda em desenvolvimento, enfrenta um problema de países desenvolvidos: o envelhecimento da população.

Fonte: encurtador.com.br/sOPZ4

Mas, o enfoque do texto não é exatamente esse. O ponto é a estratégia utilizada pelas agências de controle do filme para convencer a população da eficácia daquele projeto. Foram inseridos métodos extremamente invasivos as pessoas, como a identificação de cada cidadão por meio de pulseiras rastreáveis pelo governo e a técnica de criogenia para supostamente preservar os organismos dessas crianças a fim de acordarem em um mundo menos populoso e com mais oportunidades.

Similarmente como ocorreu na Segunda Guerra Mundial, em que a propaganda do Partido Nazista sobre os campos de concentração era extremamente falsa e fantasiosa, a propaganda desta distopia mostrava um processo muito poético no congelamento destes seres, mas esconde a crueldade da incineração de todas essas crianças objetivando solucionar a superpopulação.

Fonte: encurtador.com.br/buMU1

A estratégia utilizada para esconder as sete gêmeas idênticas refere-se muito ao processo de generalização referido no texto, em que cada uma podia ter sua individualidade internamente, mas ao serem expostas àquela sociedade altamente controlada tinham de usar uma máscara, um personagem altamente alienado que servia de força de trabalho para a alimentação daquele sistema (o que não difere muito da sociedade contemporânea).

O que se mostra fundamental é o questionamento e a posição de confrontadores da realidade nas condições impostas, afinal, o dever de todos como viventes deste sistema é de serem cidadãos críticos, pensantes e ativos para justamente dificultar esse controle pelas grandes agências e tornar assim uma sociedade potencialmente mais justa e preservar o princípio da equidade de direitos, tendo a informação genuína como principal forma de alimentação do senso crítico, sendo essa informação proveniente somente de uma educação honesta, livre de alienações.

Fonte: encurtador.com.br/ijqu4

Claramente é uma ideia utópica no sentido de que o capitalismo coíbe o pensamento crítico, uma vez que só é permitido essa “liberdade de ser” quando o bem-estar causado por ele gera um mercado consumidor. Enfim, a liberdade dentro do sistema controlador não existe. Cria-se uma rede de liberdades apenas para incluir os mais diversos constituintes da sociedade no grupo de compradores, ou seja, a diversidade virou produto.

A inclusão de minorias dentro das propagandas midiáticas se tornou mais um meio de aprisionar esse grupo – antes marginalizados e ávidos por aceitação – no rol de consumidores. Por fim, a liberdade só existe quando se toma consciência desses artifícios e cria-se julgamento sobre eles, feito quase inatingível na contemporaneidade. O maior ato de resistência é se posicionar contra eles, questionar é resistir.

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

  • https://razaoinadequada.com/2017/06/11/deleuze-sociedade-de-controle/ (acesso em 31/10/2017)
Compartilhe este conteúdo:

Mad Max: Estrada da Fúria – o (re)nascer do herói

Compartilhe este conteúdo:

Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham nessa imundície pedregosa?
Filho do homem 
não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol, e as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos, e nenhum rumor de água a latejar na pedra seca.
Apenas uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto de tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”.
Wasteland, de T. S. Eliot por Ivan Junqueira.

O fosso da queda

Max Rockatansky não é um louco, como os títulos da franquia do personagem pressupõem. Ao menos esta não é sua estirpe essencial no início de sua concepção, nos idos de 1979, com o longa-metragem Mad Max (sabiamente não traduzido, o que manteve a força da pronúncia) de George Miller, também idealizador do argumento da obra; o que há diante de nós é um policial, já assolado pela cruel realidade vivenciada por ele e sua família, se perguntando qual a diferença entre usar ou não um uniforme nas estradas combatendo o crime. Ao final deste primeiro filme, e ao longo das duas sequências Mad Max 2: a caçada continua (Mad Max 2: The Road Warrior, 1981) e Mad Max: além da cúpula do trovão (Mad Max: Beyond Thunderdome) é que Max se tona Mad, sendo possuído por sua dor, agonia, arrependimento e ódio do mundo que lhe tirou tudo.

Max, início do filme de 2015.

Estas considerações são fundamentais para entendermos o que é, ou ao menos esboçar, a significância por trás do road movie Mad Max, Estada da Fúria (Mad Max, Fury Road do original) lançado em 2015. Nas investidas originais da franquia, Mel Gibson deu corpo, força e profundidade ao ex-policial de um mundo cada vez mais decadente e, três décadas depois, após inúmeros problemas de produção e adiamentos, Tom Hardy assume o posto deixado por Gibson, e a mudança conseguiu dar vitalidade e novas facetas para personagem, o apresentando e modernizando para nossa época, linguagem e público.

Este novo Max nem que quisesse seria o mesmo do longa inicial de 1979, muito menos o guerreiro implacável dos dois filmes posteriores. Estrada da fúria é um conto sobre alguém perdido em si mesmo, quase uma negação de estudo sobre o personagem título, já que pouco dele nos é apresentado, justamente pela vontade de esquecer-se da própria vida: “Eu era um policial. Um guerreiro da estrada, em busca de uma causa justa” (Max Rockatansky), uma sombra do passado, caminhando num presente sem sentido.

Mel Gibson e Tom Hardy como Max, respectivamente. Fonte: www.imdb.com

Nas telas da obra de 2015 vemos a penumbra do herói que um dia viveu nas infindáveis estradas do deserto que se tornou o mundo. O que vemos nesta versão do personagem é a sua mais profunda condição de fuga, sobrevivência e introspecção, agregados ao peso de seu passado, ações e decisões: “Eu sou aquele que foge tanto dos vivos quanto dos mortos. Caçado por saqueadores. Assombrado por aqueles que não consegui proteger” (Max Rockatansky).

Mas, ao mesmo tempo, o roteiro não nos entrega uma versão anti-heroica de Max, o que seria uma via tentadora, algo reincidente na atual indústria cinematográfica. Desta forma, não uma vendeta ou grande catarse na qual o protagonista trilha seus passos, dos cenários, objetos pessoais e trejeitos não emanam pomposidade ou luminescência moral. O instinto de sobrevivência prevalece como causa e condição para seguir alimentando o andarilho das terras desoladas em Estrada da Fúria.

E, este estado em que se encontra o novo/velho Max é que intrigou boa parte do público que assistiu aos longas clássicos. Apesar da riqueza e espetacularidade – há muito não vistas nas maçantes computadorizações do cinema contemporâneo – do filme apresentado por Miller, a impressão que se teve em muitas pessoas foi de estranhamento em relação ao herói título, muito mais por resistência em mergulhar na proposta de seu renascimento do que na incontestável qualidade do filme, um dos mais premiados e elogiados dos últimos anos.

A viagem pela Estrada da Fúria

O realismo e discussões propostas por Miller só encontraram tamanho eco na indústria cinematográfica a alguns anos, com o Cavaleiro das Trevas (The Dark Night, 2008) de Christopher Nolan. Não há transparência da virtualidade nos cenários e ambientações, vemos o sangue, a ferrugem, a areia e o sol de uma maneira crível e temível, como um mundo distópico suporia ter.

O filme inicia sua jornada com uma das aberturas mais intensas já registradas por Hollywood e que, certamente, ecoará por muitos anos em obras similares. Desde a concepção de sua distopia arenosa Miller viu sua maior criação ser objeto de diversas investidas plagiosas e por vezes falíveis, como O livro de Eli (2010), O Justiceiro (2004) e o brasileiro Reza a Lenda (2015). Mas o filho pródigo retornado às mãos do seu genitor atinge um patamar ainda a ser debatido em sua totalidade.

Os temas trazidos direta e indiretamente ao longo de suas duas horas de duração não temem as reações que possam causar inquietude ao público, como o feminicídio e exploração sexual e corporal das mulheres; a crítica aos extremismos religiosos em torno de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) e seus seguidores; toda a crítica ao armamento nuclear, causador do apocalipse que devastou o mundo; e a raridade, distribuição e consumo de petróleo e água; a adoração aos objetos acima de qualquer coisa, neste caso os carros e suas corridas representando este argumento crítico, dentre tantas outras nuances sobrepostas nas camadas de Mad Max, Estrada da Fúria.

Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne).

E não menos importante que todos os pontos já levantados, há a questão do papel de coadjuvante destinado a Max em seu próprio filme, uma consequência e resultado de todos os elementos supracitados. A depreciação corporal, moral, sexual e natural do mundo em Mad Max: Estrada da Fúria é o ponto de sustentação da essência do seu protagonista, um homem que lutou até as últimas forças contra tudo e todos, mas no momento apenas se arrasta como um ser inerte à própria existência.

Era preciso dar força à desgraça de Rockatansky, e a atuação internalista e brutal de Hardy interligada à visceralidade e camadas da Furiosa de Charlize Theron para aumentar toda a potência dos momentos em que estão juntos, em lados contrários ou como aliados. Furiosa é todo o que Max foi um dia e deixou de ser, sua crença, luta e persistência remete à versão oitocentista do herói caído e, não por coincidência, a partir dela o filme se estrutura e desenvolve, aos poucos mostrando a Max uma nova chance, ou ao menos, algum propósito em seus dias terrenos. A relação dos dois é intensa, bruta, real, talvez, por estas razões, não foram poucas as notícias de conflitos entre os dois atores durante as filmagens, devido a vontade mútua de transparecer em máximo realismo possível os sentimentos e contextos de seus personagens.

Furiosa (Charlize Theron) e Max.

E lembremos, é Furiosa quem apresenta a Max uma chance dele buscar algo, um propósito, um sentido para sua caminhada na estrada. Porque se ela é, no contexto do filme, o que Max deixou de ser, portanto, faz todo sentido que nela seja encontrada a rota para sua identidade.

“Furiosa: Você nunca vai ter uma chance melhor.
Max: Em quê?
Furiosa: Redenção.”

Theron/Furiosa é forte, convicta, justa, emocional, profunda e, assim como o personagem título, carrega consigo um peso do tempo em que viveu e vive neste mundo devastado e, mais do que isto, em meio às cores cruas do mundo em que vivem: vibrante e pulsante no cinza, amarelo e sombras, seu sonho, sua almejada redenção reside na busca pelo Vale Verde (menção intertextual à esperança).

Esperança esta também apresentada e dividida, a pós o embate inicial com Max, que passa a acreditar na chegada a este lugar. O vai e vem da história não deixa de ser uma reminiscência ao eterno retorno nietzschiano, pois mesmo negando-nos nossa essência, ela estará lá, mesmo esquecida ou relegada ao ostracismo por muito tempo. O arco envolvendo Furiosa remete a esta alegoria numa linguagem criativa e adequada para este reinício da franquia.

Portanto, devemos entender, ou tentar compreender, que Max não luta ou compete contra Imperatriz Furiosa, Immortan Joe ou Nux, até porque nenhum destes – principalmente a líder da fuga da Cidadela – precisam de outro personagem para se impor, cada qual possui sua história e complexidade. A luta de Max, o seu enfrentamento é consigo próprio, e com isto, e somente e partir disso, a força, fúria e potência de suas convicções e motivações tomam ainda mais importância para sua regeneração, após anos em meio ao seu breu pessoal.

Novos Aliados, pontes para a reificação de si.

O herói renascido de suas cinzas

Após a alucinante sequência inicial, orquestrada de maneira crível e sufocante por Miller, é possível observar, aos poucos, a maneira como o herói morto em Max começa a se reerguer, combatendo o ceticismo dele mesmo ao longo do desenvolvimento do longa. Alguns sinais desta (re)descoberta de si podem ser vistas em momentos-chave e elementos que compõem a mitologia construída ao longo da herança oitocentista de Mad Max.

Por exemplo, as aliadas, lideradas pela Imperatriz Furiosa em sua fuga; a preocupação com os mais novos e inexperientes neste mundo, sendo Nux (Nicholas Hoult) e as pariedeiras seus principais representantes; a recuperação de sua vestimenta, tal como as botas e sua icônica jaqueta, além de suas armas; por fim, mas ainda de maneira subjetiva o embate com seu carro, parte fundamental da construção da identidade do andarilho da terra devastada.

Finalmente a última consideração, não necessariamente sobre Mad Max, Estrada da Fúria, mas sob o personagem título da obra. Os pré-julgamentos e desprendimento da carga iconográfica e sígnica das atuações originais de Mel Gibson construíram uma cortina de fumaça, um velamento analítico sobre este Max do século XXI, e assim como ocorre ao novo Homem de Aço de Zack Snyder ou o Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan, neste filme temos não necessariamente o herói que queremos, mas o que merecemos. Um alguém humano, assolado por seus erros e, mesmo que relutante, em busca de um fio de esperança em meio às cinzas, sombras e derrotas.

A contemporaneidade é mais fria, descrente e hipócrita que a 30 anos atrás, no período de lançamento das primeiras obras do universo megalomaníaco de Miller. A chegada do Max de Hardy não poderia, nem deveria, ser de outra maneira. Um homem carregado pelas cicatrizes de anos a fio num deserto de decepções, enfrentamentos e sobrevivência. No fim das contas, Mad Max Estrada da Fúria é um filme de (re)começos, Furiosa e Max, representam este plot do roteiro, e todo o percurso de ida e volta que assistimos demonstram isso explícita e cruamente.

Mas não nos esqueçamos, o Max que em certo porto da fuga na estada da fúria profere sua sentença de erro sobre a esperança, é o mesmo que a mantém para o grupo de pessoas que decide ajudar. No fim da loucura e maldição do sangue e sal em que estão afundados, o herói renascido do seu fosso assume seu papel de mantenedor de uma crença no possível, uma via de desconstrução para sua realidade distópica e esquizofrênica. Este é o Max que o público, em sua maioria, deixou de apreciar, (re)ver e deixar-se (des)envolver.

Pelo menos assim nós vamos ser capazes de,  juntos,
se deparar com algum tipo de redenção.”
Max Rockatansky

FICHA TÉCNICA DO FILME:

MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA

Diretor: George Miller
Elenco: 
Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne
País:
Austrália e EUA
Ano:
2015
Classificação:
16

Compartilhe este conteúdo:

O Lagosta: o curioso psiquismo das distopias

Compartilhe este conteúdo:

Com uma indicação ao OSCAR:

Melhor Roteiro Original (Yorgos Lanthimos e Efthimis Filippou).

Banner Série Oscar 2017

“Mas o valor de uma coisa não está na vontade de cada um. A sua estima e dignidade vêm tanto do seu valor real, intrínseco, como da opinião daquele que a tomou.”
Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley [1]

Talvez uma das maiores surpresas de indicações do Oscar 2017, e com certeza a maior surpresa de sua categoria, O Lagosta (The Lobster), que estreou em 2015, concorre ao prêmio de Melhor Roteiro Original fazendo jus à indicação. A distopia com ponta de Sci-Fi do diretor Yorgos Lanthimos difere categoricamente da maioria dos filmes do gênero que se popularizaram nos últimos anos, desempenhando com maestria a tarefa de encher o espectador de questionamentos, curiosidade e expectativa.

screen-shot-2015-09-05-at-16-29-46

A trama se passa em uma sociedade de um futuro próximo, onde ser solteiro é totalmente proibido, assim, pessoas que não tem companheiros (viúvos inclusos) são enviadas para um “hotel” onde devem, em um período de tempo limitado, encontrar um parceiro. Caso não encontrem uma pessoa em cerca de 45 dias o hóspede deve selecionar um animal de sua preferência no qual ele será literalmente transformado.

É neste cenário que nos deparamos com o protagonista David (Colin Farrel), um homem de meia idade que recentemente rompera um casamento de 11 anos. Ele leva consigo seu irmão que fora transformado em um cachorro no mesmo hotel anos antes. Os administradores do hotel tomam várias medidas pedagógicas agressivas e punitivas para com os hóspedes, a fim de assegurar a junção dos pares e que todos saibam a importância disso.

the_lobster_1

Quando questionado sobre qual animal ele gostaria de se transformar caso não se apaixone por ninguém, David responde: “Uma lagosta […] porque vivem mais de cem anos, tem sangue azul como os aristocratas […]”, denotando as principais características dessa narrativa, o criticismo e a ironia quanto à sociedade e relações humanas. Na maioria das cenas é nítida a frieza e indiferença das pessoas umas com as outras, como algo intrínseco, arraigado ao psiquismo de indivíduos constituídos pela sociedade e ao mesmo tempo constituintes dela.  Por meio da película, Lanthimos critica fortemente as heteronormatividades e a familia nuclear tradicional.

O curioso em distopias é sua capacidade de assustar com a possibilidade de sua existência e em como elas tem semelhanças com a realidade em que se vive. Assim como a obra Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, as “impluralidades” de O Lagosta acabam por definir o que é humano e não-humano, refutando qualquer possibilidade de uso do comum termo “humanização” como um substantivo de socialização benevolente. Termos como “apaixonar-se” e “amor” são totalmente ressignificados na realidade do filme, assim como já acorreu várias vezes ao longo da história da humanidade, questionando qual a essência dos sentimentos humanos, independente da sociedade, cultura e época.

IMG_2492.CR2

O que as distopias compartilham é o pressentimento de um mundo extremamente controlado, que segundo Bauman (2001), reduzem agudamente ou até mesmo extinguem a liberdade individual, rejeitada por pessoas coniventes a seguir ordens e rotinas estabelecidas, enquanto uma pequena elite manipula as relações de poder. A ignorância, intransigência e fleumatismo quanto às condições que degradam o homem nos levariam naturalmente a uma realidade com menos liberdade e mais controle opressor [2].

Bauman (2001, p. 66) afirma que “esse mundo não tem espaço para o que não tiver uso ou propósito. O não-uso, além disso, seria reconhecido nesse mundo como propósito legítimo”. Assim como nas interações “operacionalizadas” do filme, as relações humanas na pós-modernidade se encontram cada vez mais objetificadas e ausentes de reflexão [2]. Esse fato nos permite questionar: seria a realidade de O Lagosta, em linhas gerais, um presságio do nosso futuro?

Imagem6

De acordo com Pondé [3], uma das intuições do pensamento de Bauman é que o ser humano é um “animal” que não tem solução. Portanto, a consciência da distância quanto à solução para o homem é a premissa básica da inteligência. O que vemos no filme é justamente a consequência do afastamento da racionalização quanto à imperfeição humana, com pessoas escoando sua existência para as transfigurações em signos (animais), e de maneira relutante e depressiva o que não foram enquanto humanos [3].

Entendemos ao longo do filme como a realidade social em que David foi criado permeia seus comportamentos e intenções mesmo quando ele não está na pressão aterrorizante do hotel. Segundo Lane (2006), desde o nascimento estamos inseridos em um contexto histórico, onde cada sociedade desenvolveu um padrão do que considera correto [4], desse modo as relações sociais pregressas são inevitavelmente parte da construção psíquica, independendo do local onde o individuo se encontra.

IMG_2135.CR2

Apesar da realidade desconfortável, O Lagosta consegue retratar o amor genuíno ainda que com tantas contingências. A ansiedade gerada pela trilha sonora impactante e grave, e pela narradora pontual que é onisciente quanto à mente de David (e posteriormente descobrimos ser uma personagem da trama); só fazem sentido com a atuação impecável de Colin Farrell, criando uma personalidade que nos parece familiar para seu personagem introspectivo. Talvez as definições do filme como sendo bizarro sejam genuínas, uma vez que o conteúdo da bizarrice nos incomoda porque sabemos que ela existe ou tem a possibilidade de existir. Uma das qualidades de um bom filme é fazer o expectador se sentir grato pela reflexão, sem dúvidas O Lagosta cumpre esse quesito.

REFERÊNCIAS:

[1] HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, p. 282, 1979.

[2] BAUMAN, Zygmunt; Modernidade Líquida, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, p. 64-66, 2001.

[3] PONDÉ, Luiz Felipe. Invenção do Contemporâneo: Diagnóstico de ZygmuntBauman para a Pós-Modernidade – In Café Filosófico (44:12 min). Campinas: CPFL Cultura, 2011. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=qx-tRVyMphk >. Acesso em: 16 fev. 2017.

[4] LANE, Silvia T. Maurer. O que é psicologia social. São Paulo: Brasiliense, p. 13, 2006.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O Lagosta (1)

O LAGOSTA

Diretor: Yorgos Lanthimos
Elenco: Colin Farrell, Rachel Weisz, Léa Seydoux, Ben Whishaw
Países:  Grécia, Irlanda, Países Baixos, Reino Unido e França
Ano: 2015
Classificação: 12

Compartilhe este conteúdo:

Admirável Mundo Novo: perspectiva da Psicologia Social

Compartilhe este conteúdo:
Fonte: http://migre.me/vF3ks
Fonte: http://migre.me/vF3ks

A Psicologia Social tem por objetivo estudar os comportamentos no que são influenciados socialmente (LANE, 2006). Dessa forma, a disciplina de Psicologia Social buscou discorrer acerca dessa ciência e de temas que são relevantes para sua compreensão. A partir dos conteúdos discutidos em sala de aula o presente trabalho busca articulá-los com o livro “Admirável Mundo Novo”, tendo que em vista que a obra aponta diversas interferências sociais na forma dos personagens se comportarem, o que possibilita a identificação de diversos fenômenos sociais. O livro “Admirável Mundo Novo” (1932) de Aldous Huxley, apresenta a história de dois mundos, o “Civilizado” e o “Selvagem”.

Fonte: http://migre.me/vEZoD
Fonte: http://migre.me/vEZoD

A narrativa tem início no Centro de Incubação e Condicionamento, que tem como lema do Estado Mundial: Comunidade, Identidade e Estabilidade, é localizado em Londres, no chamado estado da civilização. A história se passa nesses dois cenários, que embora completamente distintos interferem diretamente na construção da identidade de seus habitantes. No entanto, de acordo com suas especificidades produzem diferentes impactos e “jeitos de ser” dos indivíduos.

Diante dessas discrepâncias entre os contextos, surgem também preconceitos com relação ao outro, no qual o diferente é menosprezado e essas vivências também geraram impactos na forma de se comportar dos indivíduos. Assim, o presente trabalho visa realizar articulações entre o livro e os temas Identidade segundo Jacques (1998) e Preconceito de acordo com Myers (2014), a partir de textos que foram discutidos em sala de aula ao longo da disciplina.

.

No Centro de Incubação e Condicionamento, os indivíduos eram condicionados a agirem de maneira estável e social, elementos que constituem suas identidades. Isto, considerando que identidade diz respeito a “um conjunto de representações para responder a pergunta quem és”, Jacques (1998, p.161). Os embriões eram divididos por castas, de forma hierarquizada e suas características biopsicossociais eram definidas a partir disso. Estatura, cor de pele, sensibilidade a determinadas temperaturas e outras especificidades eram estabelecidas previamente de acordo com a casta e suas atribuições.

O sujeito era condicionado a exercer as atividades de seu grupo e não conhecia outras possibilidades, por isso não se importavam com o papel desempenhado ao longo de sua vida. É possível notar que os indivíduos pertencentes a esse estado, o chamado “Civilizado”, tinham seus destinos previamente traçados, bem como suas identidades e características já pré-determinadas, que iam sendo reafirmadas ao longo dos anos, a partir do desempenho de determinadas funções e da ausência de criticidade.

Fonte: http://migre.me/vEZDL
Fonte: http://migre.me/vEZDL

A partir dessa hierarquia, era notório o preconceito existente no trato com as castas tidas como “inferiores”. Referiam-se a eles como negros, horrorosos, pequenos e outros adjetivos que remetiam a desprezo. Preconceito segundo Myers (2014) consiste em um julgamento negativo de um grupo e seus membros, que predispõe contra uma pessoa apenas por ela pertencer a determinado grupo. Isso fica evidente no livro, à medida que um indivíduo era considerado inferior devido fazer parte de um referido grupo. Os Gamas, Deltas e Epsilons foram condicionados a associar massa corporal com superioridade social.

As castas representam a identidade social do indivíduo, que é uma das subdivisões dos sistemas identificatórios e diz respeito a atributos que demarcam a pertença a uma categoria ou grupo (JACQUES, 1998). Dessa forma, a identidade dos indivíduos nesse contexto era totalmente voltada para o aspecto social, uma vez que a maioria não reconhecia suas características pessoais, tendo em vista que isso não era bem visto pelos seus superiores.

Bernard, um dos personagens, era um Alfa que tinha oito centímetros menos do que o esperado para sua casta, por isso era tido também como “esquisito”, fora do padrão esperado o que o isolava de seus semelhantes. O rapaz se isolava e sentia-se inferior e quando se reportava aos seus “inferiores”, acreditava que eles não lhes respeitavam, por isso era hostil e ríspido para obter atenção. Myers (2014) relata que a frustração pode levar à hostilização, o preconceito pode ajudar a camuflar sentimentos de inferioridade, já que pode proporcionar sensações de superioridade. Isto pode justificar as condutas de Bernard.

Diante dos preconceitos sofridos, Bernard intensificava sentimentos de desprezo a si próprio devido aos seus “defeitos físicos” que o excluíam de sua casta, aumentando sentimentos de exclusão e solidão, apesar da sociedade civilizada não ser programada para vivencia-los. Nesse sentido, a medida que o preconceito “pode defender nossa individualidade contra a ansiedade que vem da insegurança ou do conflito interior” (MYERS, 2014, p. 190), o rapaz pode utilizar desse tipo de atitude para minimizar suas conturbações pessoais.

Fonte: http://migre.me/vF0Gl
Fonte: http://migre.me/vF0Gl

Bernard sempre se sentiu como um indivíduo à parte, mas encontrou Helmholtz, que havia percebido seu excesso mental e o que lhe diferenciava de outras pessoas, por isso poderiam compartilhar suas angustias. Bernard relatava ter o desejo de agir mais por si, e não tão parte de outra coisa, de ser apenas uma célula do corpo social. Esses desejos escandalizavam os outros, que diante do condicionamento não cogitavam essas possibilidades e achavam absurdos esses desejos, já que era tão felizes e se sentiam livres.

Aqui fica explicita uma relação de devoção, os indivíduos não tinham conflitos e nem passavam por dificuldades, por isso eram agradecidos ao grupo social que faziam parte, a “civilização”. Essa devoção pode predispor uma pessoa a menosprezar os outros (MYERS, 2014).  Os demais recomendavam o consumo de “soma” para que eles não tivessem essas ideias horríveis e se sentissem alegres.  Os rapazes tinham suas identidades distintas dos demais e se apropriaram do contexto de forma diferente. No entanto, por causa da necessidade de se sentirem pertencentes precisaram se conformar com as normas do grupo.

Cada grupo vestia uma determinada cor, e até por isso eram alvos de preconceito. Até mesmo os jornais eram destinados a castas. Em Londres tinham três jornais, Londres sendo eles o Rádio Horário, jornal para as castas superiores, A Gazeta dos Gamas, verde-pálido, e, em papel cáqui e exclusivamente em palavras monossilábicas, O Espelho dos Deltas. Tudo isso, atuava reafirmando a identidade social das pessoas que ali habitavam,  a medida que tudo era separado para cada grupo, fazendo com que cada vez mais eles se entendessem como Gama, Delta e outros.

Fonte: http://migre.me/vF01V
Fonte: http://migre.me/vF01V

A segregação favorece o preconceito, bem como a identidade social. Um grupo que usufrui de uma superioridade econômica e social pode justificar essa posição por meio de convicções preconceituosas (MYERS, 2014). Isso fica evidente no livro, pois as castas superiores se utilizavam de argumentos preconceituosos para relatar as diferenças.

Lenina, uma das personagens, era uma típica jovem de casta superior que seguia a risca os regulamentos e tinha atitudes preconceituosas com as outras castas. Isso é potencializado devido a identidade social fortalecida, segundo Myers (2014) é possível que essa identificação leve o indivíduo a detestar grupos diferentes. Além disso, o autor acrescenta que pertencer a um grupo implica também na definição de quem não se é. Por isso, a moça agradecia constantemente por não ser inferior, já que sabia que o grupo ao qual pertencia era de superiores.

Existiam regulamentos para nortear as condutas, por exemplo, as mulheres não deveriam engravidar, mas deveriam relacionar-se sexualmente com quantos homens elas desejassem, por isso, eram sujeitas a anos de hipnopedia intensiva e, dos doze aos dezessete, exercícios malthusianos três vezes por semana, de modo que esses cuidados se tornavam quase automáticos. Tudo isso, reforçava a identidade social e impediam os indivíduos de tomarem consciência de suas singularidades.

Emoções, laços de maternidade/paternidade e conjugalidade também eram descartados na civilização, uma vez que poderiam gerar instabilidade. Para evitar tais “desconfortos”à sociedade, as pessoas ouviam repetidamente comandos que influenciariam seus comportamentos, eram anos de hipnopedia. Além disso, se por ventura, ocorresse algo desagradável eles utilizavam a “soma” medicamento que lhes permitiam fugir da realidade e suportar as adversidades sem acionar recursos pessoais de enfrentamento.

Ao longo da história, Bernard, decide ir passar suas férias em uma reserva, e leva com ele Lenina. A reserva era conhecida como o estado “Selvagem”, onde se encontram os nãos civilizados, ou chamados índios e mestiços. Lá existiam piolhos, suor, mau cheiro e as pessoas envelheciam. Bem como, casamento e famílias o que para o mundo civilizado era antiquado devido ao condicionamento.  Diferente de Londres e a sociedade civilizada de onde vinham.

Fonte: http://migre.me/vF0Tc
Fonte: http://migre.me/vF0Tc

Existiam os civilizados e os selvagens e para Myers (2014) as etnias são uma forma de categorizar as pessoas, na qual rotulamos os indivíduos na tentativa de simplificar o mundo.Os chamados civilizados viam os índios como sujos e merecedores de todas “mazelas” do mundo selvagem, ou seja, como tendo características que justificavam essa situação e fortalecem essa diferença de “status” (MYERS, 2014).

Durante a viagem Bernard e Lenina conheceram outra realidade que lhes gerou espanto, desconforto e atitudes preconceituosas.  O preconceito pode ser advindo de uma série de convicções negativas, os estereótipos (MYERS, 2014).Para Lenina, as pessoas da reserva eram sujas, imundas, feias, desprovidas de sabedoria, antiquadas, conforme lhe era descrito em Londres.

Conheceram ainda Linda que também trabalhou no Centro de Condicionamento e há alguns anos foi visitar a reserva e se perdeu, estava grávida e lá teve seu bebe. Tendo em vista que e gestação e a relação materna eram inconcebíveis na sociedade civilizada, ela não quis retornar para Londres com seu filho John.

Ao longo do livro são apontadas as dificuldades que Linda teve em se adaptar ao novo contexto e como foi conturbada a relação entre ela e seu papel de mãe. Tendo em vista que sua identidade a resposta para a pergunta quem és era voltada apenas para suas atribuições socais, frente a perda delas Linda não conseguia prosseguir. Isso também se deve ao fato dela ter sido condicionada ao uso de “soma”, um medicamento milagroso que lhe permitia fugir da realidade e evitar solucionar conflitos a partir de seus próprios recursos.

Fonte: http://migre.me/vF1ch
Fonte: http://migre.me/vF1ch

Foi difícil para John se inserir na comunidade local e compreender as regras passadas por Linda. O preconceito era frequente não apenas na sociedade civilizada, mas também no estado selvagem. John era descendente de brancos tinha olhos azuis e pele clara, por isso fora excluído de algumas atividades da comunidade.

Lenina fica espantada com a aparência física de Linda, que devido à idade tinha rugas, dentes manchados e era gorda. Tudo isso, era inadmissível em Londres, pois lá não era permitido que ninguém ficasse assim. Eram utilizadas diversas estratégias para evitar o envelhecimento e esse aspecto “assustador”.

Linda e John retornaram para Londres e são narradas as dificuldades do rapaz para adaptação ao novo ambiente e os novos costumes. Quando Selvagem chegou, todos queriam conhece-lo e por isso tratavam Bernard bem, já que o contato se daria por meio dele. Diante dessa “aceitação” o rapaz mudou seus comportamentos, ficou deslumbrado com a possibilidade de inclusão, tinha quantas mulheres quisesse e sentia necessidade de gabar-se por isso. Aqui, nota-se que a identidade pessoal que está em constante modificação através das novas experiências, começou a se moldar a partir do novo perfil de relações estabelecidas.

Bernard vivenciou sentimentos de exclusão durante todo o tempo devido a suas características físicas desproporcionais a sua casta, por isso não tinha uma identidade pessoal positiva. Myers (2014) relata que nesses casos é comum que as pessoas busquem auto-estima por meio da identificação com grupo e do estabelecimentos de laços. Essa explosão de experiências positivas e de inserção na comunidade, caracterizavam uma grande oportunidade para se firmar com indivíduo.

Fonte: http://migre.me/vF1la
Fonte: http://migre.me/vF1la

Quando John foi pra civilização ele era uma pessoa distintiva, pois era diferente do grupo dos civilizados, o que fez com que ele se tornasse uma atração. Além disso, as pessoas o tomavam como modelo dos demais Selvagens, o que fazia com que os estereótipos se intensificassem (MYERS, 2014).

Inconformados com a civilização acrítica, Bernard, Helmholtz e Selvagem buscam falar com o diretor, a fim de questionar as motivações para as regras impostas. São informados que isso é para a felicidade de todos, pois as pessoas precisam de estabilidade e para isso precisam viver em hierarquia e sem muitos questionamentos. Aqui nota-se a mudança na identidade deles, que até então não tinha tido coragem de desafiar as regras, mas como o “eu” está em constante transformação passaram a questionar a sociedade na qual estavam inseridos.

Diante dessa petulância, Bernard e Helmholtz foram levados para ilhas longe dali, na qual vão todos que adquiriram demasiada consciência de sua individualidade, que não se satisfizeram na ortodoxia da comunidade ou os quem tem ideias próprias ou independentes.  Essa conduta era baseada na tentativa de evitar que outros fossem “contaminados” com essa consciência de si. Selvagem permaneceria na civilização para ser estudado, porém ele resolveu ir também, pois não desejava modificar-se a agir conforme a comunidade civilizada. A mídia local ia a ilha para filmá-lo e observar o seu modo de viver.

Fonte: http://migre.me/vF1Cf
Fonte: http://migre.me/vF1Cf

A partir da história contada no livro “Admirável Mundo Novo” e dos conteúdos discutidos por meio da Psicologia Social é possível ressaltar o quanto de social tem em cada indivíduo. O contexto em que cada um está inserido influencia diretamente na sua forma de ser, mesmo que o indivíduo não perceba essas interferências e considere-se livre.

Durante a narrativa os habitantes do estado civilizado foram condicionados a terem uma falsa impressão de liberdade e autonomia, e qualquer um que chegasse a ter consciência dessa ausência de individualidade era tirado da sociedade afim de não contaminar os demais. Diante dessa identidade previamente moldada e da força desse papel social, os preconceitos aumentavam, tendo em vista que o diferente era visto como inferior. Todavia, os preconceitos, rótulos e discriminações estavam presentes nos dois mundos, ainda que por vezes se mostrasse da maneira mais sútil possível.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

adous-huxley-admiravel-mundo-novo-jpg2

Editora: Globo
Assunto:  Ficção científica e distópica
Idioma: Português
Ano: 1979
Páginas: 178
Ano de lançamento: 1932

REFERÊNCIAS: 

HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1979.

JACQUES, M. G. C. Identidade. Em: JACQUES, M. G. C. Psicologia Social Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1998.

LANE, Silvia T. Maurer. O que é psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2006.

MYERS, D. G.Preconceito: o ódio ao próximo. Em: MYERS, D. G. Psicologia Social. Porto Alegre: Artmed, 2014.

Compartilhe este conteúdo:

The Walking Dead – Dias Passados

Compartilhe este conteúdo:

Walking Dead 1

“Ela não merecia isso. Ninguém merece isso.”

Dale (personagem)

Febre mundial, a franquia The Walking Dead não só ressuscitou a cultura dos mortos vivos, como a tornou uma marca da sociedade moderna – tal como os vampiros – com seguidores fervorosos de todas as idades. O sucesso sazonal destes sub-arquétipicos (o arquétipo principal representado seria a Morte, ou a eterna fuga dela) atrai a atenção para uma análise mais profunda dos significados que o material pode trazer e, talvez, encontrar a essência que agrega e leva a uma identificação coletiva com a obra.

Walking Dead 2

Campeão de vendas nas livrarias e bancas, líder de audiência na TV, tornando-se um dos programas mais populares dos últimos anos e fenômeno de popularidade onde é exibido, a série The Walking Dead merece respeito. Não credito o seu reconhecimento com caráter de admiração do produto em si, mas sim devido a sua capacidade de adentrar de uma maneira tão massiva no inconsciente popular em uma época que prima pela diluição da atenção nos programas de entretenimento. Por isso a necessidade de analisar de maneira sucinta, sem preconceitos de suas origens, a razão de tal fascínio por essa obra que já está marcada como representação do nosso tempo.

Optei por fazer uma análise dos quadrinhos no lugar do seriado, por ser a fonte primeira onde o criador, o americano Robert Kirkman, expõe de maneira subjetiva seus conceitos de moral, ética, política etc. Ao serem adaptados para a televisão muitos detalhes são perdidos, a cronologia pode ser alterada e fatos podem ser modificados drasticamente a favor de uma audiência ou censura; nas revistas encontramos o material puro para ponderação.

Apesar das semelhanças com o seriado, o nível de violência visual é alto nos quadrinhos, porém tudo em preto e branco. Em um enredo onde a qualquer momento alguém pode ser canibalizado ou ter a cabeça decepada por um machado, foi uma escolha sensata, já que as páginas da revista procuram ser o mais detalhista possível e o esmero e criatividade ao demonstrar as várias possibilidades de desconstrução de músculos, articulações e vísceras que são apresentadas constantemente, de maneiras chocantes, sempre surpreendem. Na TV temos o choque, a cena acontece, surpreende, no entanto há um continuum que necessita substituir um fato pelo outro a favor da atenção da audiência. Já na literatura há, em especial nesse gênero, o horror diante do que é apresentado e, a depender do nível de violência que algumas páginas trazem, ficamos inertes e boquiabertos segurando o livro e encarando a página por algum tempo, diante do assombro que a história nos coloca. Outro detalhe dos quadrinhos: o que na cultura popular ficou conhecido como zumbis ou mortos-vivos, tal termo não é citado em nenhum momento neste primeiro volume; a nomenclatura clássica ganhou as seguintes variantes: “os andantes”, “os errantes” ou “os mordedores”; estes são alguns dos nomes que foram escolhidos para nomear aqueles seres em decomposição e eternamente famintos. É bom salientar que a simbologia que os “mortos-vivos” de TWD trazem não é tão diferente daquela iniciada por George Romero em seu A noite dos mortos-vivos (1968), mas se distancia em significado quando comparados ao mesmo mal epidêmico de filmes como Extermínio e Guerra Mundial Z – mas essa questão fica para outro artigo.

Walking Dead 3

A primeira coletânea que será analisada aqui corresponde aos números um ao seis com o título nacional de Dias Passados (Days Gone By, 2003), publicado pela editora HQM no Brasil. Nele somos apresentados ao protagonista da série, o oficial Rick Grimes, policial do estado da Georgia; através desse homem observaremos as transformações que essa “epidemia” estará impondo. Escolher um policial, pai de família, que tem valores éticos e morais fortes é uma forma do escritor colocar à prova os conceitos e ideologias do leitor. Existia uma sociedade pautada por leis e regras, se elas serão úteis nesse “novo mundo” é algo que o texto sempre trará a tona. Uns desejarão retomar a antiga ordem, para outros é necessário uma adaptação, se não uma transformação social adequada diante da derrocada do cenário social vigente.

O INÍCIO DO FIM

Walking Dead 4

A primeira ideologia posta em prova logo nas primeiras páginas – e que será recorrente durante todos os números – é a segurança. A representação de um sistema de segurança frágil onde os meios de contingência da violência não asseguram total proteção e paz social como utopicamente prega, toma forma no tiroteio em que Rick é baleado. Alvejado gravemente na troca de tiros: o primeiro pilar social, a segurança, é demolido em uma única página de The Walking Dead.

Walking Dead 5

Em seguida, Rick acorda em um hospital. O silêncio não assusta, já que isso é uma característica do local; falta de assistência, não. Ao sair pelos corredores, encontra tudo deserto. Nada de médicos ou enfermeiros e, aparentemente, ele é o único doente. Ao chegar ao elevador encontra uma pessoa morta. Desesperado, chega ao refeitório. Ao adentrar a sala – em uma pequena ironia – encontra várias pessoas em estado de putrefação se movendo. Aqui, pela primeira vez, Rick enfrenta um desses mortos. Ele tenta dialogar, mas percebe que a comunicação não tem efeito, sua única alternativa é recuar.  Ele sai do hospital abandonado sem compreender o que acabou de acontecer.

Os avanços que tivemos na medicina permitiram ao ser humano vislumbrar uma extensão, cada vez maior, dos seus anos de vida. E essa evolução chegou a ponto de tentar deter os “sintomas” da velhice: falta de tônus muscular, perda de agilidade, problemas diversos nos organismo etc. No hospital é onde as limitações são “consertadas”, o paciente busca uma solução para se manter tanto interna quanto externamente condizente com os parâmetros de uma pessoa saudável. Observar, nos quadrinhos, homens e mulheres andando pesadamente, em decomposição pelos corredores é a pá de cal sobre a única possível solução de cura para o problema da epidemia. No despertar de Rick neste pesadelo é dito, de forma indireta, que nem sempre a ciência vai ter respostas e, muito menos, a cura. Temos a queda de mais um pilar social: a ciência. Para os leitores, que já entendem o que está ocorrendo, fica sensível que o problema dos mortos vivos não pode ser contido nem pelos cientistas e muito menos pelo sistema de segurança da sociedade.

Walking Dead 6

Ao ir para a rua, Rick percebe o abandono a que a cidade foi deixada, não há nenhum ser vivente, nem pessoas ou bichos. O que ele encontra são “monstros” com características que lembram humanos, em decomposição, inertes ou rastejando pela cidade. Tudo é muito difícil de entender, não é possível digerir o horror e a estranheza que o cerca, então ele vai atrás da única referência de humanidade que ainda lhe resta: sua família. Ao chegar a casa, percebe que tudo foi abandonado. Após o choque do medo vem o desalento da solidão e uma entrega sobre a aparente pressão que está sofrendo com os fatos vividos. Isso, até ser surpreendido com uma pancada na cabeça. Metaforicamente era preciso abandonar velhos padrões para entender o que estava ocorrendo; não será apegado a um mundo que não existe mais que ele terá alguma resposta e muito menos conseguira sobreviver se ainda tiver parâmetros de uma sociedade totalmente destruída, assim é necessário haver uma ruptura, uma separação entre o que era conhecido e o novo para sobreviver.

Morgan Jones explica a situação para Rick, e sem rodeios descobrimos que o sistema de informação ruiu com uma semana de crise. Durante a conversa dos dois, a primeira que Rick tem com uma pessoa depois que consegue escapar do hospital, pode-se notar ao fundo dois quadros onde temos duas cabeças de cavalo. A leitura que podemos fazer é que ambos estão cientes e dominantes de sua capacidade de racionalizar, o instinto é intrínseco às espécies, até na humana, mas a capacidade de mensurar os fatos e escolher a opção mais apropriada é comum somente ao homem e naquele momento temos a racionalização humana em foco.

Walking Dead 7

Ao buscar as armas e carros na delegacia, são expostas duas características que acompanharão toda a saga de The Walking Dead: as armas são a melhor resposta para uma sociedade doente que não ouve e nem dialoga e que o enfrentamento a esse grupo descontrolado só deve ocorrer em momentos de crise, o que diferencia os vivos dos “mortos” é a racionalização e a ponderação, isso permite segurança e controle da situação e uma diferenciação de quem age pela razão ao invés dos impulsos.

Nas últimas páginas do primeiro número, Rick retorna ao local onde encontrou um “andante” e atira na sua cabeça. Sinal que ele não encara aqueles seres como humanos, mas as lágrimas que escorrem dos seus olhos demonstram que há ainda uma identificação, pois no passado todos eram iguais.

EM BUSCA DO PARAÍSO PERDIDO

Walking Dead 8

A capa do segundo número é icônica para a saga, algo correspondente ao pôster da série na primeira temporada: Rick sobre um cavalo em uma estrada repleta de carros parados e pessoas mortas dentro. Um sinal que todos os referenciais que estão ligados ao conceito de civilização devem ser abandonados.

Walking Dead 9

Ao iniciar sua caminhada para Atlanta, Rick é levado na esperança de encontrar sua família e de ter respostas e assistência na capital. Na travessia, ele para em uma fazenda e encontra um grupo de cadáveres na sala. Vale ressaltar que a cena é rápida mas cheia de nuances: nela encaramos o resultado daqueles que não suportaram a pressão, ou seja, perderam a fé. O cenário delineia que era uma família religiosa – por causa da bíblia em suas mãos e a cruz na parede – e que o pai provavelmente decidiu matar a todos os familiares e depois tirar a própria vida. Ao contrário dos outros pilares que são destituídos e abandonados – ciência, segurança e família – a fé religiosa nunca é posta totalmente de lado no universo de The Walking Dead e sim renovada de acordo com as provações enfrentadas, adaptando-se a cada nova tragédia sem sentido que ocorre na saga.

Walking Dead 10

Ao encontrar um cavalo, a história coloca Rick com sua racionalidade ativa, o cavalo representa o controle apesar de tudo que ocorre a sua volta. Acredito que essa insistência em mostrar o animal é uma maneira de situar a importância do personagem para a história, Rick tem a capacidade rara de manter a racionalidade em momentos delicados. Aos poucos, Rick é colocado no caminho do herói.

Sair do interior e ir para uma metrópole é uma experiência, sua individualidade deixa de existir para adentrar a massa – aquela que adapta comportamentos, determina posições e modifica personalidades – e é difícil permanecer fiel a sua moral e valores diante de uma força que adentra sem qualquer sutileza e exige adequações que podem trazer conseqüências, desde a rejeição a um auto-isolamento. Rick adentra com seu cavalo a cidade e são logo cercados pelos “habitantes” de Atlanta; eles avançam famintos sobre os dois como predadores em matilha.

A morte do cavalo simboliza a luta e os desafios que Rick terá de enfrentar dali para frente. O último resquício de civilização e racionalidade como o policial conhece devem ser transformados para que assegure sua vida. Pensar do mesmo modo, baseado nas mesmas estruturas, o fará cair entre a massa de “andantes” sem causa e sem rumo. Sua crença no aparato que uma sociedade moderna poderia oferecer não existe mais, o sentido de segurança, ciência e fé tem que tomar nova forma, a partir do interior, com regras próprias que o permita avançar rumo à sobrevivência.

Walking Dead 11

Nas últimas páginas deste capítulo, Rick é salvo por Glenn que explica toda a situação que ocorreu em Atlanta e o leva para um acampamento. Para sua surpresa, lá ele encontra, entre um grupo de sobreviventes, sua mulher e seu filho. A redenção e a esperança são oferecidas para o herói, mas a que preço?

Walking Dead 12

 

LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE?

O grupo que está no acampamento é uma representação nuclear de uma pequena cidade conservadora americana: jovens, idosos, crianças, trabalhadores e donas de casa; todos tentando emular um estilo de vida que não existe mais. A tônica aqui é manter firme a ilusão de que algo os tirará daquele pesadelo, enquanto isso não ocorre o melhor é esperar e sustentar o cotidiano e a saúde mental com banalidades que remetem aos “dias passados”.

Walking Dead 13

Uma das discussões levantadas neste capítulo é sobre a igualdade de gêneros. Enquanto Dona, uma senhora conservadora, mas consciente dos caminhos percorridos historicamente pelas mulheres, reclama sobre a clássica divisão de serviços, Lori, jovem mãe de classe média, não reclama e reafirma sua condescendência perante o papel que representa no grupo. Posteriormente, observamos Shane, Rick e Dale em uma caçada com posicionamentos machistas sobre as mulheres. A normatização do papel da mulher é algo natural ou imposto por uma sociedade patriarcal? As pressões impostas pelos eventos vindouros, no universo de TWD, demonstrarão que conceitos de gênero rígidos não significam vida longa para um personagem, a fragilidade, independente do sexo, é indicativa de morte.

Uma das características de TWD não são o perigo constante encarnado nos “andantes” e sim o comportamento de qualquer um dos sobreviventes que aparecem durante a saga. É quase impossível viver sozinho em um mundo com esses traços. Em grupos há maiores chances de sobrevivência, no entanto, a imprevisibilidade do comportamento humano é assustadora. O instinto de sobrevivência, a sede de poder e a intolerância são alguns exemplos que podem levar a ações extremas entre os componentes do grupo. No quarto capítulo a tragédia é desenhada em torno da possível obsessão de Shane com a mulher de Rick. Além de ficarem atentos com a voracidade dos “mordedores”, os impulsos passionais podem ser tão ou mais perigosos que eles e, sempre, surpreendentes.

Walking Dead 14

O REI ESTÁ NÚ

Para viver em comunidade é preciso regras, leis e aceitação, mesmo que silenciosa, de todos. A idéia inicial é permanecer no acampamento próximo a cidade e esperar uma possível ajuda do governo. Quem está a frente desta opinião é Shane que logo encontra um opositor em potencial. Depois de tudo o que Rick vivenciou antes de chegar a Atlanta, ele sabe que a situação é bem mais grave do que o grupo a qual se inseriu imagina; para ele as esperanças presentes são frágeis e que é necessário lutar pela sobrevivência e não esperar serem salvos. Essa percepção do protagonista reforça a queda de mais uma estrutura social: o Governo. Mais do que opiniões diferentes, são vidas que, indiretamente, estão nas mãos daquele que é considerado líder e uma decisão errada pode levar a morte de todos. Na discussão política dos dois sobre qual seria a melhor opção – permanecer ou sair do acampamento – a liderança vai muito além de uma representação de poder – como usualmente temos hoje – para literalmente ver as conseqüências de uma decisão errada modificar a dinâmica do grupo ou fazê-la sucumbir diante dos perigos que os cercam.

Rick sabe que é preciso correr riscos para manter sua vida e a do grupo, por que o que diferencia os vivos dos “mortos” é a capacidade de mover-se de forma ágil, racionalizar uma situação e optar pela melhor alternativa. Todos precisam aprender a se defender, mas para isso precisam de armas, então ele e Glenn vão em busca de algumas em Atlanta. Aqui temos o paradoxo do enredo: o que seria aquela massa de devoradores de carne que busca cegamente um desejo, mesmo que isso custe vidas? O que os diferenciam uns dos outros?

Walking Dead 15

Para o psicanalista Mario Corso (2013) “o fenômeno zumbi é a revolução francesa no território da ficção, a plebe angariando fatias de prestígio. Nossa ideologia prega a individualidade, devemos ser únicos, afinal, ser confundidos com a massa, ser ninguém, é o grande horror.” Perceba que “os andantes” parecem aquém do que os rodeia, a massa faminta que avança sobre os sobreviventes é uma ilusão, paradoxalmente não existe uma percepção do outro entre eles, existe uma ilusão de ser especial representada pela vontade infinita em consumir. Podemos fazer uma analogia com a sociedade atual que acredita na sua individualidade pela construção de um sujeito de consumo. Corso desenvolve que “o fenômeno zumbi sugere um cansaço também com essa ideologia individualista, nos aponta a luta inglória e sem sentido para despontar na multidão, como também a força dos excluídos.” Rick e Glenn passam sangue de um dos “mordedores” executados pelo corpo para se misturar a eles. Se misturar as massas na modernidade liquida é adequar-se a valores éticos, morais e ideológicos que não correspondem a sua personalidade, mas assegura a sobrevivência; qualquer sinal que demonstre que eles não seguem a “filosofia de vida” da massa que os cercam, trará a tona raiva, fúria e “fome” irracionais. Uma grande ironia para a sociedade atual.

TODOS OS MONSTROS SÃO HUMANOS” (da série American Horror Story)

Aos poucos, Rick começa a influenciar o grupo que o adotou. Todos começam a aprender a usar armas, inclusive seu filho de sete anos – um processo que remete as culturas antigas que através de rituais procuravam direcionar o crescimento espiritual e a representação do indivíduo no grupo ao qual está inserido; o pequeno Carl e as outras crianças sobreviventes serão os filhos dessa nova sociedade dura e implacável que não permite mais brincadeiras e sonhos de um futuro promissor. Sobreviver um dia de cada vez será a luta contínua dessa nova geração.

Walking Dead 16

A noite chega e todos estão reunidos se alimentando enquanto contam como eram suas vidas antes de chegarem ao acampamento. Lembrar dos familiares perdidos, da rotina que tinham e dos sonhos que não existem mais é uma constante em TWD; os personagens procuram incansavelmente entender todo aquele horror pelo qual passaram. Olhar o passado é uma forma de buscar detalhes ou respostas para toda aquela situação.

Durante a reunião, vários “mordedores” surgem pegando de surpresa o grupo. Atacados por todos os lados, alguns personagens sucumbem. A situação demonstra que os avisos de Rick estavam corretos, o único meio de continuarem vivos é saírem daquele lugar e se afastar da cidade. É um risco, mas em decorrência dos acontecimentos, soa como melhor alternativa. Menos para Shane.

 

EFEITOS COLATERAIS

Walking Dead 17

No último capitulo temos o fim da esperança. O objetivo principal passa a ser a sobrevivência. Não irei detalhar os acontecimentos que fecham esse primeiro volume – já há muitos spoilers em todo o texto, que a “cereja do bolo” seja saboreada por aqueles que comprarem a coletânea – o que fica evidente é a escolha do autor finalizar esse primeiro arco com uma tragédia entre os sobreviventes e não em um embate com os “andantes”. Assim ele se distancia do simples e barato horror que poderia emular nas páginas para se aprofundar no drama e nas transformações internas que aqueles personagens sofrerão durante a saga.

A presença dos “mordedores” é constante e eles representam a morte encarnada pronta para dar o bote, basta baixar a guarda e não estar atento. Porém, rastejando sorrateiramente pelos corações está o ódio, a inveja, a luxúria e a soberba para turvarem seu caminho. As três páginas finais demonstram, segundo o autor, que não é necessário ser mordido para se tornar um ser irracional movido por uma pulsão, viver já nos deixa a mercê de muitas outras.

Ao ler ou assistir a série sempre torcemos pelos mocinhos e nos identificamos com seus feitos de altruísmo e coragem, mas, subjetivamente, o autor parece apontar que se não estamos mais próximos da alienação dos “andantes”, é difícil escapar das fraquezas que levam a fragmentação e, consequentemente, a destruição decorrente das paixões humanas.

Walking Dead 18

THE WALKING DEAD – DIAS PASSADOS (VOL. 1)

Criador e Escritor: Robert Kirkman
Artista: Tony Moore
Editora: HQM

Compartilhe este conteúdo: