O Lagosta: o curioso psiquismo das distopias

Com uma indicação ao OSCAR:

Melhor Roteiro Original (Yorgos Lanthimos e Efthimis Filippou).

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“Mas o valor de uma coisa não está na vontade de cada um. A sua estima e dignidade vêm tanto do seu valor real, intrínseco, como da opinião daquele que a tomou.”
Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley [1]

Talvez uma das maiores surpresas de indicações do Oscar 2017, e com certeza a maior surpresa de sua categoria, O Lagosta (The Lobster), que estreou em 2015, concorre ao prêmio de Melhor Roteiro Original fazendo jus à indicação. A distopia com ponta de Sci-Fi do diretor Yorgos Lanthimos difere categoricamente da maioria dos filmes do gênero que se popularizaram nos últimos anos, desempenhando com maestria a tarefa de encher o espectador de questionamentos, curiosidade e expectativa.

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A trama se passa em uma sociedade de um futuro próximo, onde ser solteiro é totalmente proibido, assim, pessoas que não tem companheiros (viúvos inclusos) são enviadas para um “hotel” onde devem, em um período de tempo limitado, encontrar um parceiro. Caso não encontrem uma pessoa em cerca de 45 dias o hóspede deve selecionar um animal de sua preferência no qual ele será literalmente transformado.

É neste cenário que nos deparamos com o protagonista David (Colin Farrel), um homem de meia idade que recentemente rompera um casamento de 11 anos. Ele leva consigo seu irmão que fora transformado em um cachorro no mesmo hotel anos antes. Os administradores do hotel tomam várias medidas pedagógicas agressivas e punitivas para com os hóspedes, a fim de assegurar a junção dos pares e que todos saibam a importância disso.

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Quando questionado sobre qual animal ele gostaria de se transformar caso não se apaixone por ninguém, David responde: “Uma lagosta […] porque vivem mais de cem anos, tem sangue azul como os aristocratas […]”, denotando as principais características dessa narrativa, o criticismo e a ironia quanto à sociedade e relações humanas. Na maioria das cenas é nítida a frieza e indiferença das pessoas umas com as outras, como algo intrínseco, arraigado ao psiquismo de indivíduos constituídos pela sociedade e ao mesmo tempo constituintes dela.  Por meio da película, Lanthimos critica fortemente as heteronormatividades e a familia nuclear tradicional.

O curioso em distopias é sua capacidade de assustar com a possibilidade de sua existência e em como elas tem semelhanças com a realidade em que se vive. Assim como a obra Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, as “impluralidades” de O Lagosta acabam por definir o que é humano e não-humano, refutando qualquer possibilidade de uso do comum termo “humanização” como um substantivo de socialização benevolente. Termos como “apaixonar-se” e “amor” são totalmente ressignificados na realidade do filme, assim como já acorreu várias vezes ao longo da história da humanidade, questionando qual a essência dos sentimentos humanos, independente da sociedade, cultura e época.

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O que as distopias compartilham é o pressentimento de um mundo extremamente controlado, que segundo Bauman (2001), reduzem agudamente ou até mesmo extinguem a liberdade individual, rejeitada por pessoas coniventes a seguir ordens e rotinas estabelecidas, enquanto uma pequena elite manipula as relações de poder. A ignorância, intransigência e fleumatismo quanto às condições que degradam o homem nos levariam naturalmente a uma realidade com menos liberdade e mais controle opressor [2].

Bauman (2001, p. 66) afirma que “esse mundo não tem espaço para o que não tiver uso ou propósito. O não-uso, além disso, seria reconhecido nesse mundo como propósito legítimo”. Assim como nas interações “operacionalizadas” do filme, as relações humanas na pós-modernidade se encontram cada vez mais objetificadas e ausentes de reflexão [2]. Esse fato nos permite questionar: seria a realidade de O Lagosta, em linhas gerais, um presságio do nosso futuro?

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De acordo com Pondé [3], uma das intuições do pensamento de Bauman é que o ser humano é um “animal” que não tem solução. Portanto, a consciência da distância quanto à solução para o homem é a premissa básica da inteligência. O que vemos no filme é justamente a consequência do afastamento da racionalização quanto à imperfeição humana, com pessoas escoando sua existência para as transfigurações em signos (animais), e de maneira relutante e depressiva o que não foram enquanto humanos [3].

Entendemos ao longo do filme como a realidade social em que David foi criado permeia seus comportamentos e intenções mesmo quando ele não está na pressão aterrorizante do hotel. Segundo Lane (2006), desde o nascimento estamos inseridos em um contexto histórico, onde cada sociedade desenvolveu um padrão do que considera correto [4], desse modo as relações sociais pregressas são inevitavelmente parte da construção psíquica, independendo do local onde o individuo se encontra.

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Apesar da realidade desconfortável, O Lagosta consegue retratar o amor genuíno ainda que com tantas contingências. A ansiedade gerada pela trilha sonora impactante e grave, e pela narradora pontual que é onisciente quanto à mente de David (e posteriormente descobrimos ser uma personagem da trama); só fazem sentido com a atuação impecável de Colin Farrell, criando uma personalidade que nos parece familiar para seu personagem introspectivo. Talvez as definições do filme como sendo bizarro sejam genuínas, uma vez que o conteúdo da bizarrice nos incomoda porque sabemos que ela existe ou tem a possibilidade de existir. Uma das qualidades de um bom filme é fazer o expectador se sentir grato pela reflexão, sem dúvidas O Lagosta cumpre esse quesito.

REFERÊNCIAS:

[1] HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, p. 282, 1979.

[2] BAUMAN, Zygmunt; Modernidade Líquida, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, p. 64-66, 2001.

[3] PONDÉ, Luiz Felipe. Invenção do Contemporâneo: Diagnóstico de ZygmuntBauman para a Pós-Modernidade – In Café Filosófico (44:12 min). Campinas: CPFL Cultura, 2011. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=qx-tRVyMphk >. Acesso em: 16 fev. 2017.

[4] LANE, Silvia T. Maurer. O que é psicologia social. São Paulo: Brasiliense, p. 13, 2006.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O Lagosta (1)

O LAGOSTA

Diretor: Yorgos Lanthimos
Elenco: Colin Farrell, Rachel Weisz, Léa Seydoux, Ben Whishaw
Países:  Grécia, Irlanda, Países Baixos, Reino Unido e França
Ano: 2015
Classificação: 12