FLOAT: Sobre celebrar o que seu filho tem de diferente

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“Float” é um curta-metragem de 7 minutos, produzido pela Pixar e lançado em novembro de 2019 para a plataforma de streaming da Disney. A animação conta a estória de um garoto que tem o poder de flutuar, dando nome ao título. O pai tenta por diversas vezes fazer com que o filho permaneça no chão, sem muito sucesso e através de olhares julgadores da vizinhança o mesmo decide isolar a criança, em uma tentativa frustrada de protegê-lo. 

 Como já esperado, um dia as crianças aprendem a voar sozinhas, logo então o garoto sai voando por aí, bem feliz e tranquilo, quando de repente resolve pairar em um playground onde outras crianças estão brincando no chão. Os pais ali presentes olham o garoto com olhar de desaprovação e julgamento, não permitindo que seus filhos se aproximem do menino. Diante um ato desesperado de descontrole em manter o menino no chão, temos a única fala do curta dita pelo pai “Por que você não pode simplesmente ser normal?!”. 

Fonte: Divulgação Disney+

O curta nos mostra a relação e o medo dos pais que cuidam de crianças neurotípicas, os mesmo vivenciam os próprios conflitos e lutam para proteger seus filhos do olhar maldoso e das dificuldades do mundo. Segundo Sassi (2013) Os pais que costumam ter um ideal para receber um filho, não se tornam capacitados para receber alguma “imperfeição” que este possa apresentar, juntamente com a falta de orientação profissional quanto às possibilidades de um transtorno. Logo, quando a criança nasce e se descobre algo assim, os pais passam por uma espécie de luto. 

 A criança só estava feliz em ser ela mesma, vivenciando da sua maneira as experiências e os prazeres da infância, a descoberta pelas coisas do mundo e o desejo de explorar. O final além de emocionar nos ensina (deixo aqui a curiosidade para você ir assistir) nos mostrando sobre aceitação, empatia e a importância de uma base de cuidadores sólida. 

Maia Filho (2016) nos ensina que a família é o primeiro grupo social do indivíduo, sendo então eles os principais responsáveis pelo desenvolvimento de sua criança. Tendo importante papel na formação dos sujeitos, sendo determinante na constituição da personalidade, e de grande influência no comportamento do indivíduo, isso se dá por meio de ensinamentos e ações (Pratta e Santos, 2007). Logo se faz necessário um ambiente acolhedor, de aceitação e cuidados, aliados à busca de tratamentos e informações.

O curta sensibiliza a olharmos com mais cuidado para os pais que estão passando por esse processo, ao mesmo tempo em que causa identificação daqueles que vivenciam essas questões no dia a dia. A informação e a compreensão são fortes aliados a qualquer diferença. No caso do TEA se unem também, um trabalho multidisciplinar entre pais, psicólogos, pedagogos, médicos, enfermeiros e afins.

 No fim temos uma dedicatória do criador para seu filho, De Bobby: “Para Alex. Obrigado por me tornar um pai melhor! Dedicado com amor e compreensão a todas as famílias que têm crianças consideradas diferentes”.

Fonte: Divulgação Disney+

FICHA TÉCNICA

Título Float (Original)
Ano produção 2019
Dirigido por Bobby Rubio (I)
Estreia 12 de Novembro de 2019 ( Mundial )
Duração 7 minutos
Classificação L – Livre para todos os públicos
Gênero Animação Drama Família Fantasia
Países de Origem

Estados Unidos da América

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Precisamos falar sobre Kevin: processos de subjetivação nos massacres escolares

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Desde 1940 há registros de massacres nas escolas americanas. Segundo o jornal britânico “The guardian”, entre os anos de 1970 e 2013 houve 3.400 ataques em instituições escolares em 110 países, sendo mais frequente no Paquistão, Tailândia, Iraque e Afeganistão. Destaca-se que devido a quantidade de mortes em um curto espaço de tempo nestes fenômenos possuem a potência de marcar muitas famílias, cidades e países. Além disto, estes fatos impulsionam novos eventos, como apontado por Vieira, Mendes e Guimarães (2009).

Apesar dos massacres escolares serem um fenômeno recente no Brasil, há casos em São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Estas situações ocorridas impulsionaram a aprovação da legislação que prevê a oferta de serviços psicológicos nas escolas que estavam na Câmara dos deputados federais desde 2007.  A Lei nº 13.935, aprovada em 11 de dezembro de 2019, pretende qualificar o processo ensino-aprendizagem, auxiliar na formação de professores, enfrentar as violências e entre outros. O filme “Precisamos falar sobre Kevin” retrata os massacres escolares, desta forma, este texto pretende-se analisar este fenômeno e os seus efeitos expressos na narrativa fílmica.

O filme “Precisamos falar sobre o Kevin”, lançado em 2012, baseado no livro de Lionel Shriver com o mesmo nome, conta a história de um adolescente que comete um massacre a partir da perspectiva de Eva, mãe de Kevin. Neste sentido, o enredo é relatado através de flashbacks do desenvolvimento infanto-juvenil do Kevin e da relação mãe-filho, o que evidencia a centralidade do massacre escolar e explica por meio dos flashbacks os fatores intervenientes, bem como, as consequências.

Fonte: encurtador.com.br/movyG

Outro fator a ser destacado na obra cinematográfica são as cores. A história foi gravada com alta presença da tonalidade vermelha com o intuito de gerar angústia no telespectador. O vermelho, é uma cor quente e aparenta ser utilizada como alerta de algo perigoso que está prestes a acontecer, como o massacre. Nota-se que as modulações do vermelho são expressas em três tipos de sentido. O filme inicia com o festival “La Tomantina”, que é uma festa tradicional da Espanha promovida por meio de uma guerra de tomates. Esta cena manifesta um sentido de vitalidade, o momento que Eva poderia desfrutar dos prazeres da vida, poder se divertir, viajar. Há um outro período expresso nos conflitos familiares que apresentam o vermelho como um despertar às situações influenciadoras do massacre. Em um terceiro momento, o vermelho é mostrado nas prateleiras de extratos de tomates, na tinta jogada na nova casa de Eva. Este período simboliza os efeitos das mortes dos jovens e como a mãe foi responsabilizada por este evento. Há uma cena em que a tinta vermelha fica nas mãos de Eva e ela tenta tirar de maneira agressiva podendo simbolizar o sangue dos jovens assassinados por Kevin e que não se dissociam mais de sua mãe.

Vieira, Mendes e Guimarães (2009) analisam eventos de massacres escolares e consideram alguns fatores que possam ter influenciado nestas situações, tais como: relação familiar, interações com a mídia, escola e outros aspectos sociais. Seguindo este modelo, neste texto será discutido a partir da relação mãe- filho, o processo de identificação do adolescente e os efeitos do massacre na cidade com a finalidade de evidenciar o antes, durante e depois do fenômeno.

Eva era uma mulher livre que não queria engravidar, no entanto, ao casar-se acabou cedendo às vontades e tentativas do marido em ter filhos. Kevin é o primeiro filho desta relação. Cabe aqui informar que os direitos sexuais são garantidos desde a IV Conferência Internacional da Mulher, em 1995, em Beijing, na China e reconhece que as mulheres podem decidir pela geração de filhos (Leite, 2012). Apesar disto, Zanello (2018) recorda que desde o início dos tempos, a maternidade é colocada como aptidão natural de toda mulher. Passando por uma construção social, houve a configuração do amor materno, e a partir do século XVIII a mulher é colocada na posição de procriar e amar seu filho espontaneamente acima de tudo, inclusive de si mesmo. A autora Valeska Zanello (2018) acredita que este processo histórico- social postula o termo “dispositivo materno” se referindo à capacidade da naturalização do cuidar nas mulheres, sendo direcionado às figuras masculinas. No filme expressa este cuidado ao cumprir com as expectativas do esposo em ter filhos e se esforça em cumprir o papel materno, ainda que se irrite com as atitudes do filho. Neste contexto, a maternidade de Eva demonstra a dificuldade das mulheres terem seus direitos garantidos e como isto interfere no relacionamento parental.

Fonte: encurtador.com.br/movyG

Na primeira infância de Kevin foi marcada pela mãe tentar se vincular e estimular o desenvolvimento do filho, no entanto, conseguia relaxar quando não escutava o som do choro da criança e se irritava a tal ponto de quebrar o braço do filho. Além disto, a mãe não trabalhava nos primeiros anos de vida do filho e não apresentava nenhum outro ambiente de apoio à família. Em resposta a esse contexto, o desenvolvimento do Kevin demonstrava estar atrasado e o pedido de maior atenção da mãe. Desta maneira, a mãe sentia-se frustrada em não conseguir ser quem esperava ser e nem cumprir com as expectativas direcionadas a ela. Em contrapartida, o filho sentia a necessidade de receber atenção positiva.

Na fase da adolescência de Kevin, a mãe havia voltado a trabalhar e lidava com os conflitos conjugais e o filho ficava mais isolado no quarto. Na nova condição da mãe, há duas cenas em que Eva tenta sair sozinha com o filho, sendo expressa a tentativa de criar intimidade com o filho, porém, Kevin expressava não mais precisar da mãe. A atitude expressa pelo adolescente demonstra um comportamento frequente nesta fase, que é a diferenciação dos pais, necessária para construção de identidade. Nos dois períodos do desenvolvimento citados evidenciam a falta de intimidade entre mãe e filho, sendo assim, a vinculação entre os dois são frágeis.

A mãe poderia ter falhado no desenvolvimento do amor materno, contudo, Eva cumpriu com o sentimento de culpa inerente à maternidade. Após a situação do massacre escolar, a mãe foi punida pela sociedade como a responsável pela tragédia. Desta maneira, Eva perdeu o seu emprego, tentava se esconder das mães das vítimas no supermercado, a sua casa foi pintada de vermelho como um ato de retaliação. Como afirma Zanello (2018), a culpa é o sintoma de que o dispositivo materno está funcionando e o ideal de maternidade foi introjetado. No caso de Eva, a maternidade foi internalizada pela relação com a sociedade.

Vieira, Mendes e Guimarães (2009) sinalizam que os pais dos adolescentes autores destes massacres são culpabilizados pela rigidez ou afrouxamento das regras, limites presentes na criação destes sujeitos. Os autores explicam as relações familiares como um dos fatores intervenientes, no entanto, não é o único determinante deste evento.

Fonte: encurtador.com.br/movyG

No período da infância, geralmente, as crianças se identificam com personagens fantasiosos. Kevin realiza este processo com o super-herói Robin Hood. Em uma cena do filme é possível ver a mãe tentando se aproximar de Kevin com a leitura da história “Robin Hood” mantendo-se este o único livro de sua estante. Kevin cresceu envolvido nessa história, e em sua adolescência ganha um arco e flecha do pai, onde pratica sua mira até se tornar um exímio arqueiro. O adolescente faz investimentos durante a vida com o intuito de reproduzir a história deste personagem.

Robin Hood é conhecido como herói dos pobres, pois em um dado momento, onde morava passou a explorar os vulneráveis através da cobrança de altos impostos. Desta maneira, o super-herói começou a cobrar impostos dos que passavam pela floresta, adquirindo ouro dos mais ricos e devolvendo parte a população, assim, salvava o seu povo. Em paralelo a isto, Kevin estudava em uma escola que estimulava o orgulho em ser os melhores. Isto é expresso em um dos cartazes, na porta do ginásio. Birman (2010) aponta que as sociedades capitalistas têm a autoestima regida pelo sucesso de serem sempre vencedores e os melhores em tudo o que fazem. A perseguição por esta conquista tem gerado diversos quadros de ansiedade. Kevin parecia desejar “salvar” os colegas de um mundo que se subjetiva a partir deste aspecto, como pode ser demonstrado na entrevista concedida pelo protagonista após o massacre no filme. Observa-se aqui uma concepção distorcida do heroísmo e da justiça.

Além disto, a identificação com o personagem de Robin Hood possibilitou que Kevin pudesse planejar o fenômeno. O adolescente escolhe a mesma arma utilizada pelo herói em suas façanhas. Ao término da chacina, Kevin agradece ao público como se fosse uma apresentação teatral.  É importante apontar que o Robin Hood não pode ser responsabilizado por estes comportamentos violentos, mas esta identificação atua na vida do sujeito como uma expressão do sistema de crenças do adolescente. Logo, o autor do massacre não possuía relações interpessoais importantes e acreditava que através deste fato seria uma forma de marcar a sociedade.

Após o acontecimento do massacre escolar em uma cidade pequena, nota-se que a vivência desta situação não teve fim, após a prisão do adolescente. Os demais munícipes tiveram filhos mortos ou mutilados, ou seja, vivenciaram o que é denominado como luto coletivo. A citada experiência impacta a sociedade com um tudo (Torre, 2020). As consequências apontadas anteriormente refletem as fases do luto, em especial a fase da raiva. Segundo Torre (2020), nesta etapa as pessoas que sofrem o luto tendem a deslocar a raiva sob uma pessoa como responsável pelo ocorrido, neste caso, a mãe Eva. Por este motivo, é imprescindível a atuação da psicóloga escolar trabalhar os efeitos deste evento com a finalidade de interromper o ciclo da violência.

O filme “Precisamos falar sobre Kevin” destaca uma realidade crescente nas escolas brasileiras, demonstrando a importância da atuação de uma equipe interdisciplinar no ambiente escolar. Além disso, evidencia a importância de compreender este fenômeno a partir da multifatorialidade.

Fonte: encurtador.com.br/movyG

FICHA TÉCNICA DO FILME


Nome original: 
We Need Talk About Kevin..
Direção: Lynne Ramsay.
Elenco: Tilda Swinton, Ezra Miller, John C. Reilly Siobhan Fallon, Ursula Parker, Jasper Newell, Rock Duer, Ashley Gerasimovich, Erin Maya Darke, Lauren Fox.
Produção: Jennifer Fox, Luc Roeg, Robert Salerno.
Roteiro: Lynne Ramsay, Rory Kinnear.
Origem: Reino Unido/EUA.
Ano de produção: 2011.
Gênero: Drama.
Fotografia: Seamus McGarvey.
Trilha Sonora: Jonny Greenwood.
Duração: 110min.
Distribuidora: Paris Filmes.
Classificação: Livre.

Referências:

BRASÍLIA, LEI Nº 13.935, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2019.

BIRMAN, J. Muitas felicidades?! O imperativo de ser feliz na contemporaneidade. In: FREIRE FILHO, J. (Org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010, p. 27 – 47.

LEITE, Vanessa. A sexualidade adolescente a partir de percepções de formuladores de políticas públicas: refletindo o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos. Psicologia Clínica, vol. 24, n.1. Rio de Janeiro: 2012. p. 89 – 103

VIEIRA, Timoteo M; MENDES, Francisco C; GUIMARÃES, Leonardo C. De Columbine à Virgínia Tech: Reflexões com Base Empírica sobre um Fenômeno em Expansão.  2009. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79722009000300021.

TORRE, Bianca Andrade Paz de la.O luto e a família.Vassouras: Universidade de Vassouras, 2020.

ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris. 2018.

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A Ghost Story – uma história sobre a enormidade do tempo e a preciosidade de pequenos gestos

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Nas buscas por respostas para a questão da vida, experimentei exatamente o mesmo sentimento que um homem experimenta na floresta.

Saí numa clareira, subi numa árvore e vi claramente o espaço infinito, mas vi que lá não há nenhuma casa, nem pode haver; fui para a mata fechada, para a escuridão, e vi a escuridão, e lá também não havia nenhuma casa.

Desse modo, vaguei pela floresta dos saberes humanos, entre os raios de luz dos saberes matemáticos e experimentais, que desvelavam para mim horizontes claros, mas em cuja direção não podia haver nenhuma casa, e vaguei entre a escuridão dos saberes especulativos, na qual, quanto mais eu avançava, mais afundava, até que por fim me convenci de que não havia saída nem podia haver.

Uma Confissão, Liev Tolstói [1]

 

É possível que cada um de nós, à sua maneira, já tenha pensado sobre a brevidade da vida, a complexidade do tempo e, especialmente, sobre a nossa relevância em meio a tudo isso. A cada geração, várias coisas mudam, mas essa angústia perante a morte ou ao desconhecido é perene, constante. A Ghost Story é um filme originalmente diferente,  mas que fala sobre coisas que são tão comuns, especialmente essa busca por um sentido que nos liberte do ciclo de perguntas que se formam quando oscilamos entre o medo de ser esquecido e o peso da enormidade de existir para sempre.

O filme conta a história de um casal, protagonizado por Rooney Mara e Casey Affleck, e não há nenhum grande esquema no roteiro sobre isso, ou seja, o casal faz aquilo que as pessoas costumam fazer, dormem juntos, discutem sobre a divergência de pensamentos, se assustam, ouvem música, riem. Mas, para que fazer um filme que tem como base questões tão complexas a partir de algo tão comum? Talvez porque o sentido que buscamos no infinito, no cosmo, na religião, nos livros, na loucura, na fé, esteja estranhamente nas pequenas coisas que compõem o nosso dia a dia.

A vida rotineira e feliz do casal é interrompida pela morte do jovem marido. Assim, quando sua esposa vai ao necrotério reconhecer o corpo e o cobre com o lençol, e depois sai, deixando-o sozinho, tem-se o início de uma nova jornada. Um fantasma, como aqueles que construíamos na infância com um enorme lençol e dois furos para representar os olhos, passa a ser a personagem principal da história. Sua figura melancólica, quase estática, nos conduz nos infinitos quadros que compõem a vida que o cerca. Como o fantasma, nos tornamos observadores da vida das pessoas que viveram e viverão naquela casa, onde o jovem marido morto vivenciou seus melhores dias e cuja necessidade de entender um pequeno gesto é tão pungente que o prende ali por séculos.

Como um personagem fala em um dado ponto do filme, parece que sempre fazemos questão de criar um contexto que nos permita ser lembrados, mesmo quando já não existirmos. Seja Beethoven com sua sinfonia, um escritor com sua grande obra, os pais por meio das lembranças de seus filhos.  Porque parece que ser esquecido é a maior constatação da finitude. Mas há alguma chance, considerando a ínfima parte que representa nossa existência no tempo e no espaço, disso em um dado momento não acontecer?

O filme não traz respostas, mas reforçam alguns questionamentos, traz à tona uma estranha sensação de que alguém conseguiu enxergar nossas inquietações e representá-las tão bem e uma forte constatação de que nos apegamos, de fato, a poucas coisas nessa vida. Por isso, que a explicação inicial que a esposa dá ao marido sobre o motivo que a leva a deixar pequenos bilhetes escondidos pelas casas que passa é tão reveladora, ainda que tão íntima.

– Eu escrevia bilhetes e os dobrava bem pequeno, então os escondia.

– O que eles diziam?

– Eram só coisas que eu gostaria de lembrar para o caso de que se eu quisesse voltar, haveria um pedaço de mim esperando.

E ela parte… A casa fica só com o fantasma e sua busca, que é a de conseguir resgatar aquele pequeno pedaço de papel, a última motivação consciente de alguém que não tem mais uma existência, mas tem um propósito. O luto geralmente é apresentado nos filmes através da visão de quem fica. Nesse filme, em particular, acompanhamos, no silêncio e na ausência de expressão, o luto de um fantasma que só tem uma casa e um desejo: descobrir o que alguém que partiu gostaria de lembrar. Segundo Elisabeth Kubler-Ross [2], há cinco fases do luto: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação, e vimos todas elas em um lençol com dois buracos em forma de olhos. O que mostra a direção espetacular de David Lowery.

E nada é mais solitário do que o diálogo silencioso entre duas almas, cada uma em sua casa. Uma delas (o fantasma da casa vizinha) espera alguém chegar, mas sem conseguir mais lembrar quem é esse alguém. Talvez ser esquecido seja mesmo inevitável. Quando a alma esquecida tem a sua casa destruída, finalmente a sua imagem de fantasma desaparece.

Mas o nosso fantasma em particular fica na casa, mesmo quando no lugar não há mais casa, nem paredes, nem nada. Mesmo quando ele está em um tempo anterior à sua própria existência, um tempo que ainda não existe a mulher que amou, o bilhete que quis alcançar, ainda que o propósito de alcançá-lo permaneça vivo.

O tempo…. Ah, o tempo…. Já assisti inúmeros filmes de ficção científica que tem como foco essa temática, mas nenhum me tocou tão profundamente quanto esse. Não há máquinas mirabolantes, nem teorias cientificamente plausíveis, há apenas o tempo em sua forma mais brutal nos mostrando que sabemos tão pouco sobre as coisas, sobre o mundo e, especialmente, sobre a nossa existência.

O tempo (anos, décadas, séculos) passa diante da figura contemplativa do fantasma e do seu olhar melancólico, mostrando-nos que, talvez, as escalas que compõem nossa saudade, nossa esperança, nossas dores, nossos sonhos, sejam apenas variações em um dado tempo x espaço, mas não podem responder as perguntas que temos ou explicar aquelas que nem mesmo conseguimos formular, já que a linguagem também não é suficiente. Em uma escala maior, por exemplo, o universo, em qualquer contexto que observamos, o ser humano parece sempre tão pequeno, tão insignificante. O que importa ao final? Essa resposta não está no filme. Talvez esteja em nós, mas ainda não seja plenamente compreendida.

Referências:

[1] TOLSTÓI, Liev. Uma Confissão / Liev Tolstói; tradução Rubens Figueiredo. 1ª. Edição – São Paulo, 2017.

[2] KUBLER- Ross, E. “Sobre a morte e o morrer”: 8ª Ed., Martins Fontes. São Paulo, 1998.

FICHA TÉCNICA DO FILME

Roteiro e Direção: David Lowery
Música: Daniel Hart
Elenco: Casey Affleck e Rooney Mara
Ano: 2017

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Referências Nietzscheanas em “Onde está segunda?”

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O filme “Onde está segunda?” é original da Netflix e a história se passa no ano de 2073 onde a população mundial cresceu mais do que o planeta terra pode suportar, então para controlar o crescimento populacional e para que todos tenham qualidade de vida, o governo estabelece um limite para os casais onde cada casal só por ter um filho, entretanto uma mulher chamada Karen Settman teve sete filhas e faleceu no parto, e seu esposo Dr. Settman, começa a trabalhar em mecanismos para burlar a lei e esconder suas sete filhas.

A vida desmedida e fora da lei está completamente fora dos planos de toda a população, e quem burla o sistema de filhos tem os filhos congelados numa máquina para que sejam descongelados no futuro quando houver estabilidade. Essa briga de forças nos remete ao dionisíaco e apolíneo trazidos por Nietzsche.

Fonte: encurtador.com.br/frNO4

A obra a origem da tragédia ou nascimento da tragédia, helenismo e pessimismo, foi a primeira obra de Nietzsche, (CASTRO, 2008). De acordo com Vieira (2012), esta obra de Nietzsche foi publicada em 1872 quando ele ainda era professor universitário no curso de filologia, e é considerada por algum autores uma das principais obras da filosofia moderna. Neste livro, Nietzsche aborda sobre a tragédia que era segundo Vasconsellos (2001) um coro composto por doze homens e era cantada por um ator denominado Hipocritas que representava deuses ou seres legendários vivos ou mortos, sobretudo a tragédia era aberta ao público e o público participava livremente e se comovia com os coros e entravam em uma catarse.

A tragédia de Nietzsche aborda a dialética entre o deus Apolo e o deus Dionísio, onde Apolo representava as artes plásticas, o sonho, perfeição, luz, beleza, razão, sonho e Dionísio representava o vinho, a embriaguez, os prazeres carnais, a falta de limites e regras, pois para Nietzsche (2006) a vida se dava entre essa dialética apolínea e dionisíaca, entre o equilíbrio das duas forças, contrariando as ideias socráticas e discorrendo sobre o helenismo que foi o período onde o apolíneo e o dionisíaco viviam em perfeita harmonia, e o autor também traz a tragédia ática que resgata o dionisíaco e é a manifestação artística, é o equilíbrio do espírito dionisíaco e por meio desse processo o grego consegue manter-se diante da vida rodeado por essas duas forças, na tragédia ática o espirito dionisíaco prevalece. A tragédia nasceria na Grécia a partir do espírito da música e renasceria na modernidade a partir do espírito wagneriano. O nascimento da tragédia proveniente do espírito da música (NIETSZCHE, 2008).

Fonte: encurtador.com.br/egTV7

As sete filhas recebem o nome de dias da semana, sendo Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado e Domingo, e ridiculamente todas as filhas possuem personalidades que remetem a esses dias da semana. Elas são treinadas desde criança a terem uma personalidade igual, e a cada dia da semana que corresponde ao seu nome, uma delas pode sair e viver a identidade de Karen Settman. Tudo o que acontece naquele dia é registrado visto que possuem grande tecnologia de registro de dados e imagens, porém mesmo assim é necessário que ela se reúna com todas as irmãs e conte detalhadamente tudo o que houve durante o seu dia.

Karen Settman trabalha num banco e em uma segunda-feira quando Segunda foi trabalhar no seu lugar, misteriosamente Kate some e as irmãs tentam localiza-la por seu sistema moderno, porém não conseguem, então na terça-feira, a Terça sai para tentar desvendar o que houve e reencontrar a irmã, entretanto ela também é pega e descobre que o governo já está sabendo sobre a falta identidade delas. Homens que trabalham para o governo invadem a casa e há confronto e luta. Toda a tecnologia do filme e todos os apetrechos mostrados, são extremamente belos e bem feitos, tudo muito perfeito e bem estruturado.

Fonte: encurtador.com.br/INP58

O espírito apolíneo criava ao redor da forma uma cortina estética perfeita e bela, criando também uma ilusão utilizando da arte para os gregos mostrando apenas o lado belo da existência, e o espirito apolíneo foi reforçado pelo cristianismo, pois mantem a ideia de submissão do homem. O espírito apolíneo representa as artes plásticas e o espírito dionisíaco representa a música e Nietzsche (2008), em sua obra busca o equilíbrio das duas forças, visto que os gregos moldavam o mundo com formas e arte: apolínea e dionisíaca, duplo caráter, teatro e música. E Nietzsche (2008) também retrata sua enorme influência proveniente de Schopenhauer, onde aborda a vida como sendo essencialmente sofrimento e acontecimentos negativos de forma nua e crua, de maneira transparente e fiel a estes relatos de sofrimento e desprazer, rasgando o véu ilusório criado por Sócrates e por Apolo. E Nietzsche (2008) retrata Hegel como o processo de conhecimento do mundo é dialético, tese e antítese, na obra Nietzsche traz uma tese apolínea e uma antítese dionisíaca, resultado disso é a tragédia ática.

De acordo com o que é trazido e apresentado na obra de Nietzsche, o principium individuationis é o processo onde o indivíduo se constrói quanto individuo, uma armadilha da natureza para nos fazer acreditar que somos únicos e podemos vencer a morte e escapar do destino trágico.

FICHA TÉCNICA

Fonte: encurtador.com.br/fozY2

Título: Onde está segunda?

Título original: Seven Sisters

Diretor: Tommy Wirkola
Elenco: Noomi Rapace, Glenn Close, Willem Dafoe, Marwan Kenzari
Pais: EUA  
Ano: 2017
Classificação: 16

REFERÊNCIAS

CASTRO, M.C. , A inversão da verdade. Notas sobre o nascimento da tragédia 2008: Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732005000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 de novembro de 2020.

NIETZSCHE, Friedrich. A ORIGEM DA TRAGÉDIA. Rio de Janeiro: Cupolo Ed, 2008.

SILVA, L. A. Tragédia 2012. Disponível em: < http://www.infoescola.com/artes/tragedia/>  Acesso em: 11 de novembro de 2020.

VIEIRA, M.V. Para ler O nascimento da tragédia de Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2012..

TRINDADE, Rafael. Nietzsche e o Dionisio. Disponivel em: https://razaoinadequada.com/2017/08/23/nietzsche-e-dionisio/ Acesso em: 12 novembro de 2020.

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T.H.U.G.L.I.F.E: O ódio que você semeia

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A obra faz uma crítica sobre o que é ser uma pessoa negra frequentando ambientes onde a maioria das pessoas são brancas e privilegiadas

O livro “O ódio que você semeia”, escrito por Angie Thomas (e que deu origem ao filme), conta a história de Starr, uma adolescente negra que enfrenta um processo jurídico após presenciar a morte de seu melhor amigo, também negro, Khalil, por um policial branco. A história foi adaptada para os cinemas e foi estrelado por Amandla Stenberg em 2018. Antes dos acontecimentos principais do livro, a protagonista também testemunha a morte de outra amiga negra durante a infância, resultado de brigas de gangue de seu bairro. Tanto o livro quanto o filme trabalham com questões como o racismo, a violência policial sofrida por pessoas negras e em como a violência em si, no seu formato puro, transforma a vida de pessoas negras para sempre.

Antes do assassinato de Khalil, este apresenta os conceitos da T.H.U.G.L.I.F.E para Starr, que seria as siglas para The Hate U Give Lil’ Infants F**** Everyone, na tradução: O ódio que você semeia para as crianças, ferra com todo mundo. A sigla e pensamento foram criadas pelo cantor já falecido Tupac em 1992 juntamente com membros de duas gangues rivais, originando um código de ética para membros de gangues. Levando este ódio para o âmbito da saúde mental, é impossível não pensar em como o racismo e a violência contra pessoas negras afetam os campos emocional e psíquico dessa população marginalizada, podendo levar a transtornos ansiolíticos, depressivos e até mesmo contribuir para o aumento da violência, criando assim um ciclo de ódio.

Fonte: encurtador.com.br/hoSV3

O livro, ilustrado muito bem pelo filme, mostra o quanto crianças negras que nascem na violência estão suscetíveis a fazerem parte do ciclo, só para depois serem mortas pela polícia ou serem jogadas em presídios. Quando mais adultas, se vêem sem opções para o sustento da família e as alternativas mais acessíveis é o tráfico ou outra atividade ilícita. É uma boa explanação do que as minorias negras vivenciam. Nem todos possuem escolhas e o que é mais viável é sempre acessado. Obviamente há as exceções, mas os motivos dos encarceramentos em massa da população negra estão aí.

Na história, a protagonista frequenta uma escola particular em uma cidade próxima por causa da violência em seu bairro e descreve colocar uma máscara no ambiente onde apenas ela e outro rapaz são as únicas pessoas negras presentes. Starr deixa explícito que separa sua vida escolar do lugar onde mora, seja no modo de agir, modo de falar, entre outros, alegando que seria taxada de estranha se agisse da mesma maneira que age em seu bairro. A obra faz uma crítica sobre o que é ser uma pessoa negra frequentando ambientes onde a maioria das pessoas são brancas e privilegiadas que não possuem a consciência de que vivem em uma bolha social.

Fonte: encurtador.com.br/hoSV3

No decorrer da história, Starr se vê em um processo onde deverá dar um testemunho sobre o ocorrido da morte de seu melhor amigo, para que seja definida a prisão ou não do policial que puxou o gatilho. A protagonista não conta que foi a testemunha para seus colegas de escola para simplesmente não deixar a “normalidade” do ambiente escolar privilegiado ser poluído pela vida que leva em seu bairro, mas acaba por quebrar esses estigmas e solta a sua voz no protesto sobre o resultado da audiência, expondo sua indignação e toda a sua raiva reprimida.

Histórias como a de Starr não ocorrem somente na ficção. Estão mais perto do que você imagina e muitas vezes não são nem noticiadas na televisão, mas com o advento da internet, estão sendo cada vez mais propagadas e feitas reflexões críticas acerca do assunto. Um dos maiores problemas que acontecem quando histórias da vida real, parecidas com esta, são expostas, as pessoas negras que sofreram a violência, são apontadas como vitimistas.

Infelizmente, esses “donos da razão”, são pessoas que não conseguem enxergar além do próprio nariz, sem nenhuma consciência de classe e privilégio. Pessoas que vivem em um outro mundo, onde tudo é perfeito… Tudo muito perfeito, até uma pessoa negra soltar a voz e estourar de vez a bolha social.

FICHA TÉCNICA

O ódio que você semeia

Título original: The Hate U Give

Direção:  George Tillman, Jr.

Elenco: Amandla Stenberg, Regina Hall, Russell Hornsby, Anthony Mackie

País: EUA

Ano: 2018

Gênero: Drama.

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Um quebra-cabeça mitológico no filme “A Deusa da Vingança”

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A crítica aponta que, ao lado de Mãe!, de Aronofsky, o filme A Deusa da Vingança também é um drama mitológico capaz de gerar comentários furiosos sobre perda de tempo.

Califórnia, Deserto de Mojave, 1998. Enquanto uma misteriosa estrela vermelha brilha no céu ensolarado, um vendedor ambulante percorre zonas desoladas com trailers e depósito de ferro-velho. Sam não encontra ninguém, liga insistentemente para sua esposa que nunca atende e encontra um motel igualmente vazio. A única voz que ouve é de um programa de rádio no seu velho carro, cujo host chamado Eddy conclama os ouvintes a acharem e fazerem justiça com as próprias mãos contra um frio assassino de crianças. Estranhamente algo prende Sam naquele lugar e as coisas ficarão ainda piores. Esse é o filme “A Deusa da Vingança” (Sam Was Here, 2016) um quebra-cabeça mitológico na mesma linha de “Mãe!” de Aronofsky. Assim como na mitologia grega na qual Nêmesis busca a vingança para manter o equilíbrio cósmico, também naquele lugar um drama cosmológico precisa ser resolvido.

Por que um vendedor insiste em bater de porta em porta em busca de clientes em uma área desabitada no Deserto de Mojave? O que é aquele estranho brilho no céu? Por que toda a ação se desenrola em 1998? Por que não há ninguém nos trailers e no motel? Quem é Eddy, a única voz humana que ele ouve no rádio?

Definitivamente, A Deusa da Vingança (Sam Was Here, 2016), filme que recentemente chegou no catálogo da Netflix, não é uma produção para aquele espectador que gosta de tudo explicadinho no final da narrativa. Com apenas 70 minutos, é um filme que está fazendo muita gente quebrar a cabeça e ter reações bem opostas: ou ama ou odeia.

Fonte: encurtador.com.br/xyzJ8

Co-produção EUA-França, no país europeu ganhou o título de “Nemesis” – a deusa grega que personifica a vingança divina como forma de manter o equilíbrio cósmico através do destino, concepção fundamental do helenismo grego: Tudo que se eleva acima da sua condição, tanto no bem quanto no mal, expõe-se a represálias dos deuses. Tende, com efeito, a subverter a ordem do mundo, a pôr em perigo o equilíbrio universal e, por isso, tem de ser castigado, se pretende que o universo se mantenha como é” (Dicionário Hoaiss).

E o título em português acabou acompanhando a França, porém de forma mais literal, quase entregando um spoiler. Bem diferente do título norte-americano, entre a ironia e a neutralidade: “Sam esteve aqui”. 

A crítica aponta que, ao lado de Mãe!, de Aronofsky, o filme A Deusa da Vingança também é um drama mitológico capaz de gerar comentários furiosos sobre perda de tempo. A diferença é que enquanto Darren Aronofsky saiu por todos os lados dando explicações sobre o seu filme, ao contrário, o diretor Christophe Deroo simplesmente diz que entender o filme é o que menos importa. O mais importante é acompanhar a atmosfera.

Aliás, muito bem construída com a espetacular fotografia de Emmanuel Bernard de trailers e motéis abandonados na desolação do Deserto de Mojave.

Fonte: encurtador.com.br/bgnF2

Provavelmente se o leitor chegou até esse texto, deve estar em busca de explicações depois de acompanhar o drama de Sam durante 1h e 10 minutos.

Até aqui podemos dizer que A Deusa da Vingança constrói uma interessante narrativa com uma violenta torsão, enganando o espectador: grande parte do tempo o filme nos leva a criar uma relação de empatia com Sam – um pobre vendedor colocado em uma fria pelo seu chefe, tentando voltar a tempo para casa para comemorar o aniversário de sua filha. E um urso de pelúcia gigante é a sua única companhia naquela maravilhosa desolação, o presente para filha de um pai ansioso em reabilitar uma relação estremecida com sua esposa. 

As óbvias referências a O Massacre da Serra Elétrica (1974), Halloween (1978), Os Estranhos (2008) apenas são falsas pistas. Tudo parece muito realista e verossímil, como fosse um drama de um personagem urbano perdido em uma terra de “red necks” enlouquecidos. Mas o elemento sobrenatural (a estrela vermelha que brilha no céu azul) destoa de uma supostamente previsível narrativa.

O Filme:

Estamos em 1998, Deserto do Mojave, Califórnia. Sam (Rusty Joiner) é um vendedor sem sorte. Em plena desolação do deserto, ele bate na porta de cada trailer mas não encontra ninguém. Ou pelo menos, ninguém quer atende-lo. Aparentemente tudo está abandonado, inclusive um motel, vazio, sem hóspedes ou funcionários.

Sam se locomove pelo deserto com um carro velho, sempre à procura de um telefone público para tentar entrar em contato: primeiro com seu chefe pedindo autorização para retornar a Los Angeles – ali, definitivamente, não é um bom local para vendas; e ligar para sua esposa, que nunca responde. Sam deixa diversas mensagens – quer chegar a tempo para o aniversário da filha, e também reatar com a esposa após uma discussão.

Fonte: encurtador.com.br/imnw3

A única voz que ouve naquele lugar é de um programa da estação de rádio local. O host, chamado Eddy, chama seus ouvintes para compartilhar seus pensamentos e reclamações. Os ouvintes avisam que há um assassino de crianças à solta na área. E Eddy parece convocar todos para achar o criminoso e fazer justiça com as próprias mãos.

Quando o carro quebra, Sam fica prisioneiro em um ambiente hostil e vazio. Primei recebe estranhas mensagens em seu pager: “pedófilo bastardo” ou “assassino”… Até que encontra no meio da estrada uma viatura policial e pensa em pedir ajuda. Mas tudo o que recebe é inexplicavelmente um tiro. A partir desse ponto, pessoas começam a aparecer, todos com máscaras, tentando mata-lo. Sam tornou-se o alvo e agora ele tem que desesperadamente se defender, escondendo-se em trailers vazios ou em depósitos de ferro-velho.

Pouco a pouco, Sam é tomado por uma crise de identidade paranoica: será ele é realmente o assassino de crianças ou há uma grande conspiração para culpa-lo?

Mas há um estranho detalhe: uma estrela vermelha brilha no céu ensolarado, sempre próxima ao horizonte. É um detalhe aparentemente solto, non sense em toda a narrativa. Mas fundamental, dependendo da linha interpretativa do espectador.

Fonte: encurtador.com.br/ewPVW

Quebra-cabeça mitológico – alerta de spoilers à frente 

Assim como Mãe!, estamos diante de um quebra-cabeça mitológico sobre a função da vingança no equilíbrio cósmico. A referência mitológica direta é da deusa grega Nêmesis, que Heródoto e Plutarco atribuíram o sentido de vingança, numa referência a harmonia que deve existir no mundo – o bem e o mal devem ser compensados em igual medida. 

Na atualidade, “nêmesis” assumiu um significado mais simples: o de um inimigo implacável e temível.

A reputação de Nêmesis foi representada em várias esculturas espalhadas pelo mundo antigo, como uma deusa alada. Era encarregada de abater as desmesuras, censurando o excesso de felicidade ou o orgulho dos reis. Felicidade e tragédia, bem e mal deveriam ter um justo equilíbrio para evitar o desequilíbrio que poderia por em risco a própria existência do cosmos.

Daí a presença ameaçadora do brilho vermelho no céu em todo o filme, como um sinal de catástrofe cósmica eminente, caso a justiça não fosse feita naquele lugar. 

Apenas no final do filme vemos Eddy (Sigrid La Chapelle), de costas, em uma mesa da suposta estação de rádio, operando fitas e vídeo-cassete com gravações de áudio da esposa de Sam: “mas ele morreu há cinco anos!”, é a reposta críptica às insistentes mensagens de Sam para ela.

Fonte: encurtador.com.br/oKVXZ

Filmes como After Life (1998), O Terceiro Olho (The I Inside, 2004) ou AfterDeath(2015) sempre mostram protagonistas que morreram, mais ainda não se deram conta da sua condição. Da qual decorre todo drama, agonia e impasses do herói.

A Deusa da Vingança é mais um filme que se insere nesse drama sobrenatural, mas dessa vez com um toque mitológico: Sam esqueceu da sua vida pretérita, como um frio assassino. Culpa e arrependimento fazem ele se passar como um vendedor, batendo de porta em porta como se pedisse perdão. Mas tudo que recebe é vingança. 

E Eddy parece ser o demiurgo daquela espécie de purgatório. Mas a Justiça deve ser feita rápida, pois aquele misterioso corpo celeste parece se aproximar. É urgente a necessidade de se retomar o equilíbrio.

Ao final, literalmente Sam é apagado, derretido com ácido por trás das cortinas de um box no banheiro, numa cena hitchcockiana. Para depois o cosmos retornar à normalidade: finalmente vemos um funcionário entrar no motel – uma faxineira chicana, para limpar toda a bagunça, enquanto no céu não vemos mais o ameaçador brilho vermelho. O cosmos retornou ao equilíbrio.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A DEUSA DA VINGANÇA

Título original: San was here
Direção: Christophe Deroo
Elenco: Rusty Joiner, Sigrid La Chapelle, Hassan Galedary
País: França, EUA
Ano: 2016
Gênero: Mistério, terror

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‘Buscando…’ e a importância do vínculo paternal

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De agora em diante, apenas me diga o que você precisa. (David Kim)

‘Buscando…’ é um filme dos gêneros suspense e drama, que apesar do nome e do tema não trazerem a conexão necessária para a obra se consagrar, certamente é um dos melhores filmes de 2018. Ele nos surpreende do começo ao fim, pois a sacada do trabalho é como ele foi produzido. A história toda é contada pelo panorama das tecnologias, de modo literal, as cenas não são filmadas de modo convencional. De início isso impacta ou confunde o telespectador, pois não estamos habituados a assistir filmes pelo ângulo de câmeras de celular, web cam’s, imagens de buscas do próprio Google, Facebook, Gmail, Messenger, Skype e Facetime. Vemos vídeos caseiros da família Kim, históricos de busca, Internet Banking, toda a vida dos personagens contadas pela ótica tecnológica. Mesclando elementos da vida real e metafórica de como deixamos toda nossa vida registrada e a mercê dos males da internet. ‘Buscando’… se aproxima de temas tratados em episódios de Black Mirror, série da Netflix que trata sobre as diferentes relações da sociedade com as telas de LED, que representam tecnologia

O enredo do filme começa quando David Kim (John Cho), um homem viúvo e solitário, percebe que sua única filha, Margot Kim (Debra Messing) uma adolescente que estudava longe de casa, não volta para o lar, depois de avisar que estaria estudando na casa de uma colega de escola. Não acreditando que sua filha tenha de fato desaparecido, David embarca em uma jornada cheio de infelicidades e desencontros, consequências da complicada comunicação contemporânea. Precisando lidar com seus sentimentos de impotência por ter deixado sua filha se afastar após a morte de sua esposa, o protagonista encarar os maiores medos de um pai, deixar de acreditar até o fim em sua filha, aceitar que não sabia nada sobre ela e concordar em sua morte.

Fonte: encurtador.com.br/kJX23

Criando um parâmetro entre a narrativa o vínculo paternal de David Kim com sua filha, podemos perceber que os laços parentais não são definidos apenas pela hereditariedade, eles são em sua maioria construídos ao longo dos anos, pelo cotidiano, através dos cuidados, carinho, proteção e afeto. É indispensável que um pai zele pela segurança e afeto de um filho, pois isso é um fator primordial para que a criança seja de alguma forma bem-sucedida na vida. David era um pai presente, amoroso e protetor, porém depois da morte de sua esposa, ele tenta dar mais espaço a menina, permitir mais autonomia na vida dela.

É reconhecido como importante o papel do pai no desenvolvimento da criança e a interação entre pai e filho é um dos fatores decisivos para o desenvolvimento cognitivo e social, facilitando a capacidade de aprendizagem e a integração da criança na comunidade (BENCZIK,2011). Assim, David esperava que depois de um tempo o luto de Margot ia ser amenizado, ele se sentia culpado por não oferecer mais espaço a sua filha, mas deixava que o tempo resolvesse os problemas.

Por sua vez, Margot se afasta do pai, dos amigos, da música de tudo que dizia respeito a mãe. Até que um dia a garota desaparece e ele tem que correr contra o tempo para se provar mais que um pai e salvar a vida dela.

Esse vínculo de pai e filha é algo importante na vida de todos, embora isso não ocorra constantemente, é significativo na vida de uma pessoa ter alguém que se importe e faça chuva, faça sol, ele estará sempre lá para lhe apoiar. Isso é o acontece em toda trama do começo ao fim. Um pai desesperado pelo sumiço da filha, vasculha toda a vida dela, procura amigos, conhecidos, nas redes sociais. Utiliza-se de forma primordial os recursos tecnológicos, ajuda a polícia e até se arrisca na mídia, sendo considerado um pai negligente, tudo para encontrar sua menina.

Ficha Técnica

BUSCANDO…

Título Original: Searching
Direção: Aneesh Chaganty
Elenco:  ‎John Cho‎, ‎Debra Messing
Ano: 2018
País: Estados Unidos da América
Gênero: Drama Mistério Thriller

 

Referência

BENZICK, E. B. P. A importância da figura paterna para o desenvolvimento infantil. Rev. psicopedag. vol.28 no.85 São Paulo  2011.

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‘Namorados para sempre’ e a idealização do casamento

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O filme “Namorados para sempre” traz muitas questões pertinentes ao estudo das relações familiares e é necessário uma sensibilidade para entender, de fato, como ocorre o início do relacionamento

O filme “Namorados para sempre” conta a estória do casal Dean (Ryan Gosling) e Cindy (Michelle Williams), os quais se conheceram ocasionalmente numa casa de idosos e apaixonaram-se. A família é composta pelo casal e uma filha de aproximadamente 6 anos de idade.

De acordo com Gottman (1995), existem alguns modelos de casamento que levam à desintegração. No caso de Dean e Cindy, é possível perceber que com o tempo eles tomaram forma de casal hostil/distante, ou seja, um casal emocionalmente separado que se envolve em rápidos episódios de ataque e defesa.

É possível notar que há uma “patologia de triângulos” (ANTON,2000), a qual se consolida a partir da aproximação entre dois membros da família em oposição a um terceiro, pois percebe-se uma aproximação maior entre o pai e a filha, formando-se uma barreira entre o casal, o qual está em conflito.

Fonte: encurtador.com.br/yACSY

 

No filme, há uma cena em que Cindy e Dean conversam em um motel, já bêbados, e ela começa a falar sobre o “potencial” dele e critica a forma como ele vive. A conversa se resume a ataques e defesas, na qual ela afirma que Dean poderia ser mais, e ele diz não precisar disso por ser feliz com a vida que tem e não pretende mudar.

Iara Anton (2000) discorre sobre a idealização do casamento, que constitui em um constructo fantasioso, formado por desejos inconscientes e influências do ambiente. Cindy fazia parte de uma família nuclear tradicional, com um modelo rígido e autoritário. Quando Falke e Féres-Carneiro (2011) falam sobre transgeracionalidade, eles afirmam que, mesmo que distorcida, a prole tende a absorver os comportamentos dos genitores. Portanto, no momento em que Cindy questiona Dean sobre a profissão dele e o quanto ele poderia ser “melhor” subentende-se que ela toma como exemplo o próprio pai, o qual sustentava a família sozinho, e ela esperava que este fosse um dever de todos os homens.

Mediante essa perspectiva, Cunha e Alves (2014) ao falar sobre educação e violência nas relações de gênero, explica que há um estigma no qual os homens e mulheres possuem espaços definidos, sendo o privado para as mulheres e enquanto o homem seria o provedor das necessidades e deveria estar no espaço público. No entanto, essa perspectiva muda na medida em que as mulheres conquistam seus direitos. Cindy representa essa mulher que é enfermeira e luta por sucesso profissional enquanto Dean não demonstra ter uma perspectiva de futuro e se limita a trabalhos braçais.

Fonte: encurtador.com.br/ijBFT

 

Na cena em que mostra a discussão na clínica, a qual culmina na agressão de Dean ao médico, mostra um exemplo de violência conjugal. Porém, o que realmente acontece no casamento em questão é muito diferente do que é esboçado por quem vê a cena sem conhecer todo o arcabouço de eventos que levaram àquilo. Como Falke e Féres-Carneiro (2011) descreveram, é muito fácil ver simplesmente o homem como agressor e a mulher como a vítima e não levar em conta todo o contexto. Durante todo o roteiro, Dean não demonstrou ser um homem violento, autoritário, nem esboçou menosprezo em relação à Cindy, tampouco abusava de bebidas.

Cindy, por outro lado, parecia esperar outras atitudes “de homem” dele. Sob efeito do álcool, Dean expressa toda sua frustração quanto à expectativa de Cindy, ao derrubar as coisas da sala em que estavam enquanto repetia “você quer que eu seja um homem? Então tá, eu vou ser um homem. É assim que voce gosta?”. O soco que ele deu no médico foi estopim, sendo aquilo algo tão extremo para ele que prevaleceu a vergonha ao invés de raiva.

Na cena do término definitivo, onde os dois conversam na cozinha dos pais de Cindy, se repete algo que foi visto em outros momentos do filme, a influência entre o subsistema familiar conjugal e paternal, descritas por Turnbull e Turnbull (2001 apud SILVA, 2008). Para que haja uma boa qualidade nessa relação familiar, os autores destacam duas características: coesão, que consiste na ligação afetiva entre os membros e a liberdade de cada um deles, mantendo cada um sua individualidade sem perder o vínculo seguro; e a adaptabilidade, que é a resiliência da família sob crises e mudanças.

Fonte: encurtador.com.br/eHIUX

 

A conjugalidade de Dean e Cindy já estava muito comprometida, porém isso não deveria afetar a paternalidade deles com Frankie, mas várias cenas mostraram o contrário, por exemplo: a forma como eles se tratavam mesmo na frente da criança; os adultos comentavam sobre os problemas conjugais perto de Frankie, e quando ela perguntava o quê estava acontecendo, mudavam de assunto; Dean, nas últimas cenas, tentou utilizar Frankie como motivo para que eles mantivessem a conjugalidade; e, na cena final, o que fica para a criança é que ele não está se separando apenas de Cindy, mas dela também. Esse cenário, como afirma Weyburne (2004), pode gerar na criança um sentimento de culpa, que acarreta angústias traduzidas em tiques nervosos ou atitudes agressivas, além da possibilidade dela culpabilizar um dos pais.

O filme “Namorados para sempre” traz muitas questões pertinentes ao estudo das relações familiares e é necessário uma sensibilidade para entender, de fato, como ocorre o início do relacionamento bem como da crise que resultou na separação do casal. Puderam-se perceber vários fatores que contribuem para o esfacelamento dos matrimônios, não só dos personagens do filme, como também dos casamentos atuais.

FICHA TÉCNICA DO FILME

Imagem relacionada

NAMORADOS PARA SEMPRE

Título Original: Blue Valentine
Direção Derek Cianfrance
Elenco: Ryan GoslingMichelle WilliamsMike Vogel
País: Estados Unidos da América
Ano: 2010
Gênero – Drama Romance

REFERÊNCIAS

ANTON, Iara L. Camaratta. Contribuições da Teoria Geral dos Sistemas. In: A escolha do cônjuge: um entendimento sistêmico e psicodinâmico. Porto Alegre: Artmed, 2000. Cap. 5. p. 67 – 83.

CUNHA, Tânia Rocha Andrade. ALVES, Ana Elizabeth Santos. Educação e violência nas relações de gênero: reflexos na família, no casamento e na mulher. Rev Em Aberto. V. 27, n. 92, p. 69 – 88, jul/dez. 2014. Disponível em http://www.emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/2447/2404

FALCKE, Denise; FÉREZ-CARNEIRO, Terezinha. Reflexões sobre a violência conjugal. In: WAGNER, Adriana; et al. Desafios psicossociais da família contemporânea: pesquisas e reflexões. Porto Alegre: Artmed, 2011. Cap. 4. p. 72 – 85.

GOTTMAN, John. Por que os casamentos fracassam ou dão certo. São Paulo: Scritta, 1995.

SILVA, Nancy Capretz Batista da et al. Variáveis da família e seu impacto sobre o desenvolvimento infantil. Temas em Psicologia, São Paulo, v. 16, n. 2, p.215-229, jan. 2008.

TURNBULL, A. P.; TURNBULL, H. R. Families, professionals and exceptionality: Collaboration for empowerment. Columbus: Merrill Publishing Company,2001.

WEYBURNE, Darlene. O que dizer aos filhos sobre o seu divórcio. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2004.

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Brooklin: o amor e o processo de individuação

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Com três indicações ao OSCAR:

Filme,  Atriz (Saoirse Ronan), Roteiro Adaptado (Nick Hornby)

Banner Série Oscar 2016

A narrativa do filme Brooklin tem uma linguagem leve e envolvente. Uma jovem irlandesa chamada Ellis (Saoirse Ronan) se muda de sua terra natal para o Brooklyn, na busca pela realização de seus sonhos. No inicio de sua jornada nos Estados Unidos, ela sente muita falta de sua casa, de sua irmã e mãe, mas ela vai se ajustando aos poucos até conhecer e se apaixonar por Tony, um bombeiro italiano.

Conforme Carl Jung o processo de individuação ocorre de maneira espontânea e inconsciente e faz parte da natureza inata do indivíduo. Entretanto, esse processo só se torna significativo na medida em que o indivíduo se torna consciente e se compromete com ele. O processo é desencadeado pelo Self, centro da totalidade psíquica e também é exatamente o Self a meta da individuação. Ou seja, ele é o inicio e a meta.

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Nesse processo é importante a participação ativa do ego, que com as imagens e o conhecimento provindo do inconsciente vai ampliando a sua consciência e conseqüentemente auxiliando no processo de individuação. As relações amorosas ao longo da historia da humanidade possibilitam o encontro com o Self, pois ao se apaixonar o outro se torna sagrado, um objeto de adoração. Projetamos então o sagrado e divino em nós em outro ser.

Na Mitologia Grega, temos a figura do deus grego Eros, que representa o amor como força transcendente que leva a alma humana para o auto-desenvolvimento e para o mais profundo do seu ser. Eros é representado, algumas vezes, por um menino rechonchudo, com asas, que sai atirando suas flechas inconseqüentemente. E às vezes representado por um belo homem, como no mito de Eros e Psique. Algumas vezes também é retratado como filho do Caos, sendo um deus primordial. Outras vezes é filho da bela Afrodite.

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A verdade é que essas imagens destoantes e sua origem diversa causa certa confusão, mostrando o quanto ficamos confusos diante do tema amor. Ellis então é flechada por Eros e se apaixona. A moça que antes estava soturna se torna ativa e com sentido de viver em uma terra estranha e nova. Vemos no jovem casal o estado inicial do relacionamento.

Nesse estado, o de paixão, comum no inicio de namoro, os indivíduos ficam indiferenciados, encantados, conectados e vulneráveis à projeção do que imaginam e desejam ser o outro, sem condições conscientes de perceber o outro como ele realmente é. Um estado paradisíaco, no qual o outro se torna tudo o que vínhamos buscando até então.

O difícil nesse estado é perceber que o que vínhamos buscando é a nós mesmos. O que Ellis mais deseja, e que é a maior falta que ela sente em sua alma é de força. E Tony possui essa força. O rapaz banca suas escolhas, seus sentimentos e sua condição de imigrante. Essa força é que falta em Ellis para prosseguir em sua jornada de individuação e construir sua carreira, seus conceitos e sua própria família. Ela ainda é uma garota indefesa e insegura.

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Eros é quase sempre um Deus traquinas, inconseqüente e subversivo, mas também belo e irresistível. Ele muitas vezes causa discórdia e subverte a ordem. Mas também gera nova vida, e possibilita a unificação de opostos, sendo um elemento de transformação. Ser flechado por Eros pode nos levar a uma compreensão mais profunda de nós mesmos, pois somente o amor possibilita nos vermos através dos olhos do outro.

O tempo passa e o relacionamento dos dois vai se transformando. As projeções começam a se retirar. Ambos precisam sair dessa unicidade para se tornarem indivíduos autênticos dentro da relação. É a queda do Paraíso! Ellis passa uma vez por essa expulsão do paraíso ao sair da casa de origem. Ela sai do conforto original, do estado urobórico e precisa buscar sua autonomia.

E agora novamente precisa sair essa unidade com o ser amado. Sair da prisão da paixão e da indiferenciação. A paixão é de extrema importância, sem ela Ellis não teria suportado a vida em um país diferente e longe da casa materna. Esse amor a impulsionou a buscar seus sonhos e ampliar seu horizonte.

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É esse amor que fez Bela suportar a vida longe da casa e origem e amar a Fera. No entanto, assim como Bela, a mocinha faz um movimento de volta ao lar de origem. Ela realiza um movimento de regressão de libido após a morte de sua irmã. Quando uma projeção se retira, a libido antes investida em um objeto se volta para o inconsciente e ativa complexos arcaicos e mais primitivos.

Ellis retorna a casa da mãe e lá fica dividida com um novo interesse amoroso. Ela se encontra então dividida entre dois países e entre o amor e o dever. Esse é um momento delicado em qualquer relação, pois o individuo pode não aceitar o processo e tentar buscar aquela sensação de unidade em uma nova relação sem antes compreender o que é necessário para si.

O filme trata então de uma jornada de iniciação da mocinha. De amadurecimento e crescimento. Recolher suas projeções não é uma tarefa fácil. Nesse processo de crise, Ellis fica dividida entre dois opostos. O outro rapaz é o oposto de Tony e representa a zona de conforto da moça.

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Ao retornar ao lar original, ela já não é mais a mesma. Já não se encaixa mais no padrão anterior. Mas algo ainda a segura ao que é conhecido: o medo. O medo da grande transformação. Essa expulsão do estado indiferenciado e retorno, ou seja, progressão e regressão da libido é comum. Passamos por essa dinâmica diversas vezes em vários níveis.

Ao se relacionar com esse outro rapaz, Ellis volta a estar indiferenciada, mas não mais como anteriormente. Algo nela já mudou. Nesse instante Ellis passa a conhecer o bem e o mal em si. Ela passa a se questionar e encontra o insight de crescimento. Ao se confrontar com a megera para quem trabalhava, ela se conscientiza de que precisa retornar, que já não cabe mais ali. Ela precisa fazer o sacrifício de abandonar as emoções infantilizadas.

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Ela retorna ao Brooklyn e agora ao seu amor por Tony renovado e mais consciente e diferenciado. Ela percebe que essa relação a transformou em quem ela é e nas possibilidades de crescer ainda mais. Não há relação ideal e ela passa a perceber isso. É nesse separar e retornar com mais consciência que o Self começa a se manifestar.

Quando Eros aparece com suas asinhas e seu arco e flecha, ele vem nos ensinar que é necessário que conheçamos um novo centro. Se estivermos disponíveis à reflexão e abertos à experiência podemos encontrar nosso eu mais profundo e iniciarmos nosso processo de individuação.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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BROOKLYN

Direção: John Crowley
Elenco: Saoirse Ronan, Emory Cohen, Domhnall Gleeson, Julie Walters;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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