Intuição em Bergson: uma conexão com a essência da vida

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Não importa como articulamos, todos sabemos intuitivamente o significado da intuição, já que para o senso comum, é a faculdade de compreender, identificar ou pressupor a realidade sem depender de um conhecimento empírico, raciocínios complexos ou avaliação específica. Ou seja, é um pressentimento, aquele sentimento visceral, inconsciente que nos impele a acreditar em algo sem saber realmente o por quê. Em termos filosóficos e epistemológicos, a intuição em Henri Bergson (1859 – 1941), vai muito além dessa concepção. É um método filosófico, para conhecer a realidade, não apenas para descobrir algo, mas, sim, conhecê-lo verdadeiramente. Chamado assim, de método intuitivo.

Henri Bergson foi um dos grandes filósofos franceses  do século XX, influenciando futuros filósofos e psicólogos de sua época, incluindo William James. Nascido em 1859, contexto caracterizado pela filosofia positivista e materialista, no qual se acreditava que só podemos conhecer alguma coisa de fato quando relacionadas a nós mesmos. Discordando de tais conceitos, Bergson tornou-se conhecido como o filósofo da duração, pois como metafísico, explorou o vitalismo, ou teoria da vida, criando o método de conhecimento da intuição da duração. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1928. Morreu aos 81 anos, em 1941.

Fonte: http://zip.net/bstHTs

Bergson acreditava que existem dois tipos de conhecimento. O relativo, caracterizado pelo conhecimento de algo a partir de uma perspectiva única e particular inerente aos sujeitos. Compreensão tal, adquirida pelo intelecto e pela razão, onde nos distanciamos do objeto para analisá-lo. E o conhecimento absoluto, que significa conhecer os objetos no mundo como eles realmente são, através da apreensão intuitiva da verdade. Para Bergson, esta última é uma forma direta de conhecimento, na qual, a intuição caminha na mesma direção da vida.

Segundo Barroso (2009, p. 3):

Mesmo nas aparentes divergências que os filósofos têm, em suas filosofias, a respeito da definição desses dois termos, eles concordam em um ponto: “que existem duas maneiras profundamente diferentes de se conhecer uma coisa”. Uma implica que se dêem voltas em torno dessa coisa. Isso depende do ponto de vista no qual nos colocamos e dos símbolos que usamos para exprimi-la. A outra maneira requer que entremos na coisa, ou seja, que coincidamos com ela. Esta segunda maneira de conhecer não se prende a nenhum ponto de vista e não se apoia em nenhum símbolo. É, segundo Bergson, por esta segunda maneira que se é capaz de chegar ao absoluto. 

Para Bergson, a ciência é apenas uma das formas humanas de pensamento exteriorizado. Em que, a intuição, outra matriz do pensamento humano, nos faz voltar à consciência para a duração interior, onde cada fato seria interpretado de tal forma que escapam à lei, à medida e à interpretação espacial das coisas. De acordo com Ribeiro (2013, p. 97), “partindo do interior, voltando-se para dentro,  fugindo de uma análise positivista sobre a realidade, a intuição parte do eu superficial, da camada menos imediata da consciência, e vai em direção ao eu profundo, dos sentimentos”.

Fonte: http://zip.net/bltG28

Bergson acreditava que a intuição está ligada ao nosso elán vital (força vital) que interpreta o fluxo da experiência temporal, permitindo a apreensão da singularidade de um objeto por conexão direta. Sendo assim, a intuição caminha na mesma direção da vida, ou seja, é ver o mundo no âmbito do nosso senso interno de desdobramento do tempo, não da análise da realidade, mas da essência da própria vida. A intuição, para Bergson, é a coincidência com o objeto estudado, o simpatizar-se com as coisas, é o abster-se por um momento da separação entre sujeito e objeto para apreender o que é o objeto, nele mesmo, sem intervenção da linguagem, dos conceitos ou dos símbolos, imergindo, assim, na duração real (RIBEIRO, 2013, p. 102).

Considerando a quase indivisível relação entre o sentido da intuição para o filósofo francês e a forma totalmente inusitada, para muitos, com a qual Bergson categorizou, por assim dizer, de duração, ou seja, o transcorrer do tempo. Para melhor compreensão do método intuitivo, faz-se necessário que analisemos mais profundamente a própria maneira como a maior parte da sociedade atual se remeter ao tempo.

Fonte: http://zip.net/brtHzs

Devemos perceber que os registros por nós utilizados para demarcar o que chamamos de “tempo” se refere a uma mensuração pautada em um fato fundamentado por uma analogia histórica, ou seja, quando eu me refiro a 12 horas de um determinado dia, faço alusão ao “exato” momento em que o sol pareceu estar no centro do céu para quem o observasse da mesma forma em que fez nos dias anteriores devido a ciclos repetidos pelo planeta. A grande questão, é que isso nos dá a ilusão de que retornaríamos ao mesmo tempo quando novamente chegássemos a essa hora dos dias seguintes.

Uma grande diferença entre a teoria de Bergson e a maioria das de outros filósofos é que, ele nos demonstra o fim como parte inerente do todo,  logo, o morrer/deixar de existir é inexoravelmente constituinte do viver/existir. A partir disso, ele contestava as teses de grande parte dos teóricos, inclusive religiosos, que traziam sempre alguma forma de continuidade para o ser. Sendo esta, no campo das ideias, ou em universos paralelos, como exemplo, o paraíso judaico-cristão.

Fonte: http://zip.net/bjtHv3

Para melhor ilustrarmos, veja o exemplo: a primavera deste ano não seria uma repetição, muito menos uma continuação da do ano passado, mas sim uma estação nova com características semelhantes, dispondo de determinadas particularidades. Estas observações nos elucidariam de que o tempo se trata de um processo, que inclui transformações e historicidade, descartando a perenidade do conhecimento. Caracterizando assim, com tais exemplos, o conceito de duração em Bergson.

Sendo assim, devemos perceber que uma realidade regida por situações tão efêmeras não poderia ser estudada e descrita de forma demasiadamente rígida, ou seja, pelo conhecimento relativo, positivista, pois descaracterizaria a realidade dos fatos. Logo, a intuição viria como uma forma de melhor observar e registrar o que ocorre no mundo, visto que a mesma não é mediada por conceitos e raciocínios lógicos e nem recebida como algo revelado. A partir dessa discussão, o conceito de duração exemplificado acima constitui a essência do ser e “se identifica com o tempo não intelectualizado; ela não é sucessiva, nem mensurável, muito menos sujeita a uma espacialização, fragmentada, seja por meio dos símbolos, da linguagem, ou da própria ciência” (RIBEIRO, 2013, p. 99-100).

Fonte: http://zip.net/bmtHrD

“Quando falamos de duração, podemos também falar de uma duração interior, um constante fluir da vida que não pode ser medido e que na realidade se manifesta como unidade.” […] “uma característica da duração é a fluidez que caminha sempre em direção ao novo e que é imprevisível” (FERNANDES, 2013, p. 41). A duração (tempo bergsoniano) só tem sentindo ao se relacionar a intuição, é a unidade e multiplicidade no ver, perceber e sentir o mundo, interpretando-o intuitivamente, percebendo assim, a singularidade dos aspectos que regem a realidade. “A intuição é a via que nos permite, por um esforço do espírito, simpatizar com as coisas e com nossa própria interioridade e percebê-las na duração. Isso nos possibilita um conhecimento da realidade naquilo que ela tem de única. Esse é um modo de contato com o mundo” (FERNANDES, 2013, p. 42).

Sem dúvida, a intuição filosófica é o contato com o que há de único na realidade, conhecendo-a a partir do interior das coisas, comportando em si graus de intensidade e profundidade. Proporcionando a quem se dispor a utilizar o meio intuitivo, a duração do real vivenciada por uma vida intuitiva, onde o conhecimento sobre o mundo será filosofia.

REFERÊNCIAS: 

BARROSO, Marco Antônio. A intuição como método. Virtú (UFJF), v. 1, p. 1-24, 2009. Disponível em: <http://www.ufjf.br/virtu/files/2009/11/1-A-intui%C3%A7%C3%A3o-como-m%C3%A9todo-UFJF>. Acesso em: 05 de março 2017.

CASTELO, Rogério. O Livro da Filosofia. São Paulo: Globo Livros, p. 226-227, 2015.

FERNANDES, Diôgo Costa. A concepção de filosofia em Henri Bergson. Pensar-Revista Eletrônica da FAJE, v. 4, n° 01, p. 37–57, 2013. Disponível em: <http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/pensar/article/viewArticle/2220>. Acesso em: 05 de março 2017.

RIBEIRO, Eduardo Soares. Bergson e a intuição como método na filosofia. Maríia: Kínesis, 2013, Vol. V, n° 09, Julho, p. 94-108. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/eduardoribeiro.pdf>. Acesso em: 05 de março 2017.

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Perdido em Marte: há limites para a expansão humana?

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Com sete indicações ao OSCAR:

Filme, Ator (Matt Damon), Roteiro Adaptado, Design de Produção, Efeitos Visuais,
Mixagem de Som e Edição de Som

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“Perdido em Marte” (The Martian) acaba de estrear nos cinemas, sob a direção de Ridley Scott (Prometheus – 2012) e baseado no livro homônimo de Andy Weir. No longa de 120 minutos, o astronauta Mark Watney (Matt Damon) é uma das primeiras pessoas a caminhar em Marte. Devido a complicações causadas por uma tempestade de poeira, Mark é deixado para trás por sua tripulação e pode se tornar a primeira pessoa a morrer no planeta. Com apenas poucos suprimentos, Mark conta com sua criatividade e inteligência, e embora as possibilidades e probabilidades estejam todas contra ele, Mark luta para sobreviver.

O filme foi lançado poucos dias depois de a NASA (a Agência Espacial Americana) anunciar que há água corrente em Marte, o que causou furor nas comunidades científica e política, e no público em geral, num movimento de redespertar do “encanto” pelo tema da colonização do planeta vermelho, cujo último ápice (de tal idealização) ocorreu no final dos anos 70.

A estória se desenrola a partir de uma corrida contra o tempo, na Terra e em Marte, para salvar a vida do astronauta. No arcabouço das discussões, encontra-se a interação entre o homem e a técnica, a política como mediadora de conflitos, o homem como ser que está em constante projeção para além das fronteiras (vontade de transcender?) e o trabalho como propulsor da criatividade. Pouco provável, portanto, assistir “Perdido em Marte” sem que não se estabeleça conexões com a obra “A condição humana”, da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975).

Desta forma, e levando-se por base parte do conceito teísta de que o homem não é um ser meramente natural, mas que se reveste de naturalidade para atuar nas interações fenomênicas, a tentativa de colonizar Marte e de, em alguma medida, “conquistar” o espaço (pelo desenvolvimento e domínio da técnica) é, assim, uma alternativa real para “libertar o homem de sua prisão na Terra”.A Terra, desta forma, é a própria expressão da natureza, e caberia ao homem superar esta dependência e firmar-se como um ser em constante autopoiese, devendo à técnica e ao trabalho (aspectos racionais) os frutos de sua evolução. Neste sentido, como se faz ver já desde o Iluminismo, a natureza (que, pelo viés do Mito e levando-se em conta a disputa de gênero, é comparada ao aspecto feminino) deve ser entendida e conquistada.

A Terra, então, antes mesmo de ser classificada como o “vale de lágrimas” (na concepção cristã que povoa o inconsciente), passa a ser vista como “prisão para o corpo do homem” a ser superada. Assim, em “A condição humana”, Hannah Arendt chega a comparar este “desejo” de fugir da“prisão” terrena com o objetivo de “cortar o último laço que faz do homem um filho da natureza”. Portanto, haveria também na Ciência uma forma de espiritualidade, por mais que parte de seus expoentes não admita.
Política

Algo interessante no filme é a mediação política presente na esteira da técnica e do avanço científico. A chegada a Marte, neste sentido, antes mesmo de ser uma conquista tecnológica se configura, também, como um progresso das trocas políticas (no filme, a NASA tem que utilizar-se de política para obter o apoio da opinião pública e, mais do que isso, para consolidar o até então inesperado apoio da agência espacial chinesa).

E não se pode falar em política sem falar em Ética e ponderação. Ou seja, “as certezas científicas” também podem ruir e, neste ínterim, é necessário saber o que se quer para o futuro da humanidade. É aí onde entra a questão central de “A condição humana”, cuja pergunta gira em torno de “o que é ser humano?”. No fundo e em alguma medida, “Perdido em Marte” também busca responder a esta questão.

Observa-se que ao perguntar “quem sou?”, Arendt não restringe a questão à “natureza” humana, mas à sua essência. Assim, a resposta à esta indagação é simplesmente: “és um homem – seja isso o que for”. Desta forma, segundo Arendt, somos seres humanos seja lá qual for a resposta sobre qual seja a nossa essência. Como costuma defender o professor de Filosofia Rainri Back, “a pergunta ‘quem somos?’ parece ser mais uma pergunta sobre ‘as condições da existência humana’”.

E dentro desta condição humana, onde Arendt apresenta a tríade “labor, obra e ação”, é o “labor [que] assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. O trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano”. Já a ação, “na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança” (história). Desta forma, há o reforço de que o labor, o trabalho e a ação tem “raízes na natalidade”, uma vez que “sua tarefa é produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados”.

Para Arendt, das três atividades, “a ação é a mais intimamente relacionada a condição humana da natalidade”, porque o recém-nascido “possui a capacidade de iniciar algo novo, de agir”. Assim, o homem é um fim em si mesmo. E, ao mesmo tempo, é um ser que constantemente se projeta para o futuro. No filme, o “recém-nascido” é o impulso constante pela perpetuação da própria vida e da vida da espécie.

No entanto, Arendt diz que “a natureza e o movimento cíclico que ela imprime, à força, a todas as coisas vivas, desconhecem o nascimento e a morte tais como a compreendemos. O nascimento e a morte de seres humanos não são ocorrências simples e naturais, mas referem-se a um mundo ao qual vêm e do qual partem indivíduos únicos, entidade singulares, impermutáveis e irrepetíveis”.Além disso, o “nascimento e a morte pressupõem um mundo que não está em constante movimento, mas cuja durabilidade e relativa permanência tornam possível o aparecimento e o desaparecimento”. São justamente estes dois últimos pontos (aparecimento e desaparecimento) que, (consciente ou inconscientemente) o homem procura superar.

Outro aspecto interessante do filme e que encontra eco em Arendt é que “a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens”. Isso depende de iniciativa, e não só disso, de uma “iniciativa que nenhum ser humano pode abster-se”. É desta forma que o astronauta Mark Watney consegue perpetuar a própria vida e ainda mantém o sonho de expansão da ação humana.

Para sobreviver, portanto, Mark deixa para trás uma série de coisas (materiais), mas não pode abrir mão do discurso e da ação. Sem estes aspectos, [a vida] “deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens”. Assim, por mais que a atuação do astronauta pareça algo isolado, “desplugado”, trata-se de uma ação que é socialmente plural porque, para ser efetivada, é necessário que se fale dela, no ato mesmo em que ela é executada, do contrário não haveria diferença entre os homens e os robôs (por isso que Mark, diligentemente, grava o seu diário de bordo). Destarte, “desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter revelador como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito”.

Por fim, antes mesmo de configurar-se como um filme de ação, aventura e ficção científica, como aponta o gênero, “Perdido em Marte” é uma obra essencialmente política. Ele demonstra uma faceta que está intrinsecamente ligada à espécie humana, que a diferencia e projeta-a, num movimento em que o particular (individual) é sempre sobrepujado pelo social, tendo como pano de fundo a superação das limitações naturais e a pulsão (de vida?) em lançar-se para a eternidade.“Perdido em Marte”, mesmo que não pareça, é também um filme que fala de espiritualidade, pois aborda o desejo humano pela transcendência. Nesta seara, parece que não há limites à expansão humana.

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016

CURIOSIDADES:

1 – Perdido em Marte é baseado no livro homônimo de Andy Weir.

2 – O escritor levou três anos para desenvolver a história no qual o filme é baseado. Segundo ele, a ideia surgiu quando passou a imaginar como seria uma missão tripulada a Marte e considerou todas as formas possíveis de tudo dar errado e como a tripulação agiria.

3 – Em 2013, a 20th Century Fox comprou os direitos para levar Perdido em Marte aos cinemas.

4 – O último filme de ficção científica dirigido por Ridley Scott foi Prometheus (2012).

5 – A atriz Jessica Chastain e o ator Matt Damon também atuaram juntos no filme de ficção científica Interestelar (2014), de Christopher Nolan. (Fonte: cinema10)

REFERÊNCIAS: 

ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense Universitária, 2014;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014;

Sinopse de “Perdido em Marte  – Acesso em 04/10/2015.

FICHA TÉCNICA

PERDIDO EM MARTE

Titulo original: The Martian
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Andy Weir, Drew Goddard

Estreia: 01/10/2015
Gênero: Aventura, Ação, Ficção Científica
Duração: 120 min.
Origem: Estados Unidos
Distribuidor: Fox Film do Brasil
Classificação: 12 anos
Ano: 2015

 

 

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O amor e as relações de consumo

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“O que importa quantos amores você tem
se nenhum deles te dá o universo?”

Jacques Lacan

E o amor nunca esteve tão em alta!

É só o dia dos namorados se aproximar que o movimento começa, é o momento para fazer parte do seleto grupo de quem tem um par romântico para postar uma foto do casal nas mídias sociais. Se não, perde a oportunidade.

Não é raro ver e ouvir, principalmente nessa época do ano, as lamúrias de quem não tem um par para festejar a data, em contraponto, há quem alegue que não faz diferença. Isso para não falar naqueles que, com muito senso de humor, anunciam abertamente estarem dispostos a se alugarem para uma noite de muito amor em troca de companhia para o dia dos namorados.

E a coisa não para aí não… As empresas não perderam tempo e estão promovendo em suas fanpage’s promoções onde o casal de namorados que receber mais likes em sua foto postada na rede será premiado.

Excelente estratégia de marketing!

Mas por que será que o amor vende tanto?

É verdade que o dia dos namorados já perdeu, há muito tempo, a raiz de sua essência. Toda essa campanha midiática em torno da data se dá devido ao interesse puramente comercial e capitalista das empresas em faturar cada vez mais.

Mas, o que de fato faz do amor uma fórmula tão eficaz para as campanhas publicitárias?

As motivações são várias e uma das mais primárias é a apresentada pelo livro de Gênesis: “E disse o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele.” (Gênesis 2:18). Noutro versículo: “Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma só carne.” (Gênesis 2:24). Essa é, afinal de contas, a motivação por trás de cada relacionamento: formar famílias? Pelo menos, costumava ser.

Os perigos em se apegar à bíblia, e a textos como esse, são o de que, atualmente, a conjuntura social que vivemos é outra completamente diferente. A própria configuração dos casais sofreu adaptações, existem relacionamentos abertos e fechados; casais heterossexuais e homossexuais; casamentos formados por dois, três ou mais parceiros; casamentos com filhos e sem filhos etc.

“Os Amantes” (1928). Magritti. Óleo sobre tela.

Poucos sabem, mas a prática monogâmica do homem, historicamente, nasceu pela necessidade que se tinha, em um determinado período da idade média, dos grandes senhores de terras terem certeza de que seus bens seriam herdados por descendentes consanguíneos. Desse modo a mulher era obrigada a casar virgem e ter ao longo da vida um único parceiro, enquanto o homem, não teria seus filhos bastardos reconhecidos, se estes nasciam no pecado, logo não tinham direitos legítimos. Que diferença o teste de DNA faz nos dias atuais não é mesmo? Ele abre um leque de oportunidades.

Não só a estrutura familiar mudou, como o modo que os relacionamentos amorosos mudaram. Hoje em dia, há um fluxo muito maior de início e término de relacionamentos, pautados em modismos e comodismos. É o que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de Amor Liquido.

Investir no relacionamento é inseguro e tende a continuar sendo, mesmo que você deseje o contrário: é uma dor de cabeça, não um remédio. Na medida em que os relacionamentos são vistos como investimentos, como garantias de segurança e solução de seus problemas, eles parecem um jogo de cara-ou-coroa. A solidão produz insegurança — mas o relacionamento não parece fazer outra coisa. Numa relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade (BAUMAN, 2004. p. 30).

Para o autor, a real motivação por trás dessa fluidez em que se perderam os relacionamentos está no simples medo que os casais têm de sofrerem com o término dos relacionamentos, caso estes cheguem ao fim. Em outras palavras, amamos menos por medo de perder o ser amado. É ou não uma dose de egoísmo?

Diferentemente dos ‘relacionamentos reais’, é fácil entrar e sair dos ‘relacionamentos virtuais’. Em comparação com a ‘coisa autêntica’, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear (BAUMAN, 2004. p. 12-13).

Na literatura, na música e no cinema o amor sempre foi à motivação principal de grandes artistas. Essa prática vem desde a era mitológica, onde os poetas gregos homenageavam suas musas com muita arte. E só para quem não sabe, eram elas: a eloquência; a história; a poesia lírica; a música; a tragédia; a música cerimonial (sacra); a comédia; a dança; a astronomia e a astrologia.

“O Beijo” (1907-1908), Gustav Klimt. Óleo e folha de ouro sobre tela.

Sigmund Freud, também atribui grande valor a esse sentimento em sua produção bibliográfica, assim como no tratamento psicanalítico. Segundo ele

todo tratamento psicanalítico [JedepsychoanalytischeBehandlung] é uma tentativa [isteinVersuch] para libertar [zubefreien] o amor recalcado [die verdrängteLiebe], que encontrou no sintoma a incômoda solução de um compromisso [die in einemSymptomeinenkümmerlichenKompromissausweggefundenhatte] (FREUD, 1907/1982, p.80).

Isso sem mencionar as histórias épicas que dão um colorido e dramaticidade à nossa vida e ao modo como experimentamos o amor. Casais como Romeu e Julieta; A Bela e a Fera; Capitú e Bentinho; Dom Quixote e Dulcinéia; Shrek e Fiona; Vada e Tom (de Meu Primeiro Amor); estarão eternamente gravados em nosso inconsciente de forma tão concisa, que passam despercebidos, influenciando o modo como nos relacionamos afetivamente.

Fiona e Shrek

É o que o psiquiatra suíço, criador da Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung chama de arquétipo.

Segundo Jung, existem aspectos inconscientes de nossa personalidade, opostos à persona, que encontram expressão (vazão) em uma representatividade interior: feminina para os homens (Anima); e masculina para as mulheres (Animus).

Por mais idealizados que sejam os relacionamentos, fato é que eles têm sofrido forte interferência do mundo pós-moderno. As pessoas começam se envolver em relacionamentos cada vez mais jovens por motivações pessoais e de cunho egoístas, os resultados emocionais desses atos impensados são catastróficos.

Em nosso mundo de furiosa ‘individualização’, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam – embora em diferentes níveis de consciência. No líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalência (BAUMAN, 2004. p. 8).

Então, como se preparar para um relacionamento?

Não há resposta pronta, é importante ter claro os valores do renascentista Luiz Vaz de Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(O Soneto 11 de Luiz Vaz de Camões).

O ideal é trabalhar o autoconhecimento, e ter consciência das razões que a(o) motivam nessa busca incessante por um par romântico. O amor não tem cara, cor, credo, idade e nem sexo. Iniciar um relacionamento por medo de ficar sozinho; para mudar o status de relacionamento do seu perfil no facebook; ou simplesmente para ganhar um presente no próximo dia 12 de junho, é apostar numa união que está claramente fadado ao fracasso.

Referências:

BÍBLIA SAGRADA

BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

FREUD, S. (1907/1982) “Der Wahn und die Träume In W. Jensens ‘Gradiva”.Studienausgabe.Band X. Bildende Kunst und Literatur. Frankfurt am Main: Fischer, TaschenbuchVerlag, s. 9-85. (Disponível em: http://scholar.google.com.br/scholar?q=%20Studienausgabe:%20Band%20X.%20Bildende%20Kunst%20und%20Literatur).

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