“Bela Vingança” – da revanche feminina à sua perda iminente
3 de abril de 2023 Ana Paula Abreu dos Anjos
Filme
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Tudo o que é silenciado clamará para ser ouvido ainda que silenciosamente – Margaret Atwood, no livro O Conto da Aia.
Uma violação presente em todos os períodos e cenários, a violência sexual alcança mulheres de todas as classes sociais, trazendo consequências e repercussões negativas no âmbito biopsicossocial, modelando a vida da vítima e a de pessoas próximas em um verdadeiro pesadelo, a chamada “cultura do estupro” se configura em um contexto gerado por uma complexa estrutura social, que está intrinsecamente relacionada as outras ferramentas de opressão contra a mulher, como o machismo, patriarcado, sexismo e a misoginia, que relativiza e normaliza essa conduta criminosa, distorcendo a situação ao ponto de por em julgamento os comportamentos e atitudes da vítima, minimizando a culpa do agressor, ao apontar que as ações da mulher foi o fator desencadeante da violação, ou até mesmo a taxação da vitima como mentirosa.
Assim, dentro de tal cultura, passa-se a ver a mulher como objeto. Um objeto que provoca e não se porta como deveria dentro da sociedade a qual vive, fazendo com que o homem não tenha outra opção a não ser aliviar tal desejo, já que esse é controlado por seus instintos biológicos. Com isso, a cultura do estupro normaliza a violência sexual e transforma essa em uma consequência inevitável e não um crime como outro qualquer que merece punição devida. (ENGEL, 2017, p. 11).
No filme Bela Vingança (Promising Young Woman) lançado no Brasil em 2021, com 5 indicações ao Oscar, incluindo o de melhor filme (vencendo a categoria de melhor roteiro original), a protagonista é Cassandra Thomas (Cassie), uma mulher de 29 anos, que outrora foi uma jovem com a possibilidade de conquistar tudo o que alguém poderia desejar, mas que, apesar de ser uma das alunas mais promissoras do curso de medicina, abandonou a faculdade, e leva uma vida pacata, ainda morando com os pais, solteira, sem amizades, com um emprego do qual não gosta, Cassie é uma mulher beirando os 30 anos, que foi indiretamente atingida por um caso de violência sexual sofrido por sua amiga de infância, Nina, após o evento e suas obscuras consequências, abriu mão de suas ambições pessoais em detrimento de um único objetivo, a vingança.
Todas as noites Cassie vai sozinha a uma boate/bar. Fonte: Focus Features
Nas cenas iniciais podemos observar a protagonista sentada sozinha, ao que tudo indica bêbada, no sofá de uma boate, na passagem, um trio de homens, ao verem o ocorrido, verbalizam frases sobre como esse “tipo de mulher” se arrisca e se expõem a situações de risco, logo um dos rapazes, Jerry, se aproxima de Cassie oferecendo ajuda, sugerindo acompanhá-la em segurança até sua casa, o aparente cara legal chama um táxi e a acompanha em uma suposta boa ação, no entanto no meio do caminho muda a rota para o seu apartamento, insistindo que eles deveriam tomar mais uma bebida para finalizar a noite, nesse momento a câmera foca no taxista, demonstrando uma dose de incômodo com o episódio, porém seu silêncio permanece ao presenciar o acontecimento.
Nos próximos minutos do longa, em seu apartamento, Jerry, após entregar uma bebida para Cassei, a beija, a personagem visivelmente debilitada, fala que precisa se deitar, Jerry a leva para o seu quarto, na sequência começa a retirar suas roupas, mesmo sobre os claros protestos de Cassei, que pergunta diversas vezes “o que você está fazendo?”, e nesse momento recebemos a primeira reviravolta do filme, Cassandra vinha fingindo todo esse tempo o seu estado de embriaguez, ao contrário do esperado, ela era a caçadora, não a presa, a personagem noite após noite, elabora uma armadilha com o único objetivo de atrair homens que esperam se aproveitar da vulnerabilidade de uma mulher beirando a inconsciência.
Algumas mulheres, em razão do local onde se encontram, em razão da roupa que vestem, em razão do trabalho que desempenham, não são vistas como sujeitos de direito. Seus corpos não são, dentro dessa lógica, invioláveis, estando sujeitos a todo tipo de violência. Não existe, portanto, um real reconhecimento e entendimento do que significa consentimento. O estupro é justificado em diversas situações, não havendo uma compreensão pela sociedade de que, independentemente de qualquer circunstância que possa ser utilizada para justificar o crime, se não há consentimento, há estupro. (OLIVEIRA, Luiza Bischoff. 2018, p. 27).
Cassie se desfaça de stripper para entrar na despedida de solteiro do agressor de sua amiga. Fonte: Focus Features
A jornada de Cassie e sua busca por vingança se direciona aos envolvidos no episódio de violência sofrido por sua amiga, Nina, com sutileza, o roteiro sugestiona ao público que Nina teria se suicidado depois de ter sido violentada por um colega da faculdade, Al Monroe, durante uma festa, nessa caminhada Cassie traça seus alvos, desde a amiga que duvidou da palavra da vítima, a reitora que foi omissa ao receber a denúncia, o advogado que defendeu Al, finalizando ao atacar Al diretamente em sua despedida de solteiro, durante sua trajetória, Cassandra mostra-se uma personagem complexa, possuindo atitudes de caráter questionáveis, expondo outras mulheres a contextos similares ao que ela mesma experimentou, mas também levando em consideração a mudança, perdoando ao se deparar com o arrependimento.
O filme constrói sua narrativa perpassando pelos diversos fatores que perpetuam a violência contra a mulher, a culpabilização, e silenciamento, a conveniência e cumplicidade, mostrando a verdade amarga de que muitas vezes ao agressor são oferecidas múltiplas “segundas chances”, e as consequências acabam sendo mais graves para a vítima. Segundo a escritora e jornalista Ana Paula Araújo em seu livro Abuso: A cultura do estupro no Brasil, “estupro é o único crime em que a vítima é que sente culpa e vergonha” (2020, p. 08), em paralelo a afirmação da autora, Bela Vingança evidência a cultura do estupro e as diversas faces por trás dela, revelando sua dolorosa repercussão em duas vidas cheias de promessas, o longa subverte as expectativas dos telespectadores, atingindo no seu ápice o lugar que mais machuca, a cruel e mortificante realidade.
Referências:
ARAÚJO, Ana Paula. Abuso: A cultura do estupro no Brasil. 1ª edição. Rio de Janeiro: Globo Livros. 2020.
Cada vez mais ASSUSTADOR SER MULHER….
Mulheres , VAMOS NOS UNIR! Nesse caso, vocês não precisam se declararem FEMINISTAS para se INDIGNAREM…. Basta SERMOS MULHERES….. eu preciso escrever sobre isso…
E essa nova ABERRAÇÃO do judiciário brasileiro: O ESTUPRO CULPOSO?
QUE NOJO! ESTUPRO é ESTUPRO e ponto final.
Cansada de ser ” atropelada” diariamente por um sistema de convenções sociais que nos IMPÕEM UM MOLDE para que sejamos consideradas MULHERES DE BEM.Porque DECIDI SER INDEPENDENTE, já ouvi cada ABSURDO ” Eu disse para a minha mãe que a senhora é MARAVILHOSA. Mas, ela disse que a senhora tem algum defeito grave porque nunca casou “- Como se o SUCESSO de uma Mulher tivesse diretamente ligado ao casamento. Não casou? Tem defeito! Aff!
” Olá! Tudo bem? Sozinha? Precisando de companhia?”- nas noites que ouso sair para curtir minha solitude. Como se NENHUMA MULHER TIVESSE O DIREITO DE SAIR SÓ PARA FICAR SÓ…
Ouvir Boa música, tomar um bom vinho e se inspirar para escrever….Não Pode? Sempre a mulher tem que estar acompanhada? E se sair só? “Está procurando homem, com certeza!”- pensam muitos.
“A senhora fez reserva só para uma pessoa?”. Respondo ” Sim! Estou só”..
O atendente responde atônito ” A senhora está viajando Sozinha?”..Como se viajar só fosse atributo somente dos homens ” fortes e destemidos”.
” A senhora não tem marido, nem namorado, nem ficante, nem ” peguete” ..nem um ” contatinho”?
Que ABSURDO! Essa é problemática, FATO! .
Como se para sermos completas, temos que ter sempre a presença masculina ao lado…Se não temos, ALGO ESTÁ ERRADO!
Nós, Mulheres, independente da idade, vivemos sob a égide da submissão à presença masculina. Vocês já perceberam?
Já escrevi mil vezes, que MULHER EMPODERADA é aquela que luta e conquista O QUE ELA QUISER SER….Casada…Solteira….Enrolada….Antenada…..Desligada…
Estar acompanhada é Maravilhoso…mas se ” não rolar”…estamos bem! Somos independentes, lembram?
A decisão é nossa! Respeitem-nos!
Nós somos donas do nosso corpo! Aprendam, de uma vez por todas:
1- Ser simpática e educada não significa ” dar mole”…
2- Sair sozinha não significa ” estar disponível”
3- Meu corpo…Minhas regras…
4- NÃO É NÃO!
ESTUPRO CULPOSO NÃO EXISTE!
Cada corpo de mulher violado, sem consentimento, VIOLENTA TODAS NÓS!
Por isso, JAMAIS DEFENDA UM ESTUPRADOR! JAMAIS!
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Em Nome de Deus – dinheiro, armas, poder e dominação fálica: uma visão psicanalítica
O terceiro episódio da série documental Em nome de Deus traz depoimento de pessoas próximas a João Teixeira e informações judiciais sobre o que foi encontrado nos endereços pertencentes a ele, além de histórico de denúncias, ameaças e suspeita de envolvimento com organizações criminosas.
Reprodução: Globoplay
A sexualidade masculina é relacionada com armas, violência, dominação e agressividade quando existem indícios de uma psique em adoecimento. Freud (1923) faz uso do termo falo, fálico e pênis, onde ele afirma que: “o que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo” (FREUD, 1923, p. 158). É válido lembrar que em psicanálise não podemos confundir falo com pênis, entretanto não devemos ignorar a relação entre os termos.
André (1998, p. 172) denota que Freud ao utilizar o termo falo, onde: “se o falo tem relação íntima com o órgão masculino, é na medida em que designa o pênis enquanto faltoso ou suscetível de vir faltar. Portanto, é a falta frequentemente presente como ameaça ou como fato, desse modo, o que corresponde ao elemento organizador da sexualidade não é o órgão genital masculino, mas a representação psíquica imaginária e simbólica que foi construída a partir desse órgão (COSTA; BONFIM, 2014).
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Marcel Maior é jornalista especializado em espiritismo, e releva como João Teixeira era um homem ambicioso, bem articulado e que conseguiu construir um império a partir do exercício da espiritualidade. Marcel expõe detalhes sobre vendas e o comércio que existia dentro da Casa Dom Inácio, onde os pacientes atendidos recebiam receitas psicografadas por entidades médicas, indicações de água fluidificada, uso de cristais para limpeza e fortalecimento espiritual e outras práticas.
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Os pacientes recebiam receitas médicas psicografadas durante os atendimentos realizados por João Teixeira, e em seguida eram orientados a procurar a farmácia da Casa, que fornecia o remédio prescrito. Entretanto, os remédios possuíam propriedades na composição que funcionava para fugir da vigilância sanitária, porém os pacientes acreditavam que cada receita era única.
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A farmácia da Casa Dom Inácio vivia constantemente cheia, afinal, mais de 5 mil pessoas passavam pela casa todos os dias e buscavam a farmácia para comprarem os remédios que foram indicados. Os fiéis se organizavam em longas filas, aguardando pacientemente e em silêncio pela sua vez de ser atendido. Porém, muitas vezes as indicações e recomendações não se bastavam apenas em remédios, mas eram indicados cristais, água fluidificada, livros e outros objetos. Coincidentemente ou não, tudo isso era vendido dentro da Casa Dom Inácio.
Marcel relata sobre o grande comércio que existia na Casa, comércio que movimentava milhões, e era o que João Teixeira dizia que custeava o lugar, os funcionários e todos os gastos existentes. As receitas eram direcionadas apenas para os lugares existentes dentro da propriedade, não podendo sair de lá ou realizar as compras em outras instituições.
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Existia uma grande variedade de cristais e pedras na loja de cristais da Casa, que diziam que eram abençoados exclusivamente pelos espíritos que trabalhavam na Casa, ou seja, os espíritos dos médicos que realizavam os tratamentos espirituais. O preço dos cristais variava muito, podendo chegar a mais de 5 mil reais, de acordo com o tamanho e a indicação.
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Além dos cristais e dos remédios, ainda era indicado que o paciente tomasse água fluidificada que era vendida dentro da Casa. Essa água era vendida como algo abençoado, com propriedades espirituais de limpeza e preparação espiritual. Marcel releva que a água não deveria ser compartilhada ou dividida com outras pessoas, pois era exclusivamente de consumo individual. O que levava os pacientes a comprarem suas garrafas separadamente, gerando mais vendas.
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Além desses produtos, a Casa possuía uma livraria com todos os livros, DVD’s e outros materiais oficiais sobre o médium João de Deus. Marcel afirma que com tantas coisas dentro do local era fácil gastar 100 reais num piscar de olhos, o que reforça a ideia de como o comércio era forte e movimentado dentro da Casa Dom Inácio de Loyola.
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Um ex funcionário da Casa fornece uma entrevista na série, onde ele afirma ser ex contador do local. Esse funcionário revela detalhes sobre como funcionava a contadoria da Casa, e pedidos de João Teixeira para burlar impostos e fugir da Receita Federal.
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Clodoaldo Turcato releva informações sobre como João Teixeira era amado e odiado na cidade de Abadiânia, e como ele exercia o controle do comércio local através de ameaças e chantagem com os empresários locais. Turcato conta sobre no final da década de 1990, as pousadas e hotéis do lado da cidade “pertencente” a João, que era o lado onde o idolatrava, tinham que ter a autorização dele para abrirem as portas, além disso, era cobrado um valor mensal que os empresários deveriam pagar a João Teixeira através de seus capangas para que pudessem continuar funcionando e recebendo os turistas do mundo inteiro.
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Clodoaldo conta sobre como o comércio local girava ao redor de João de Deus, e como ele ameaçava os comerciantes para exercer o poder. Não era permitido que qualquer tipo de comércio fosse aberto sem a autorização prévia de João Teixeira, e sem o pagamento dos valores estabelecidos.
João cobrava taxas de cada pousada, e as que não pagassem ou não fossem autorizadas por ele, eram fechadas e os proprietários eram ameaçados pelos seus capangas. João detinha o poder econômico da cidade e nada poderia acontecer sem a sua permissão.
Turcato relata que no final do dia quando ele realizava o fechamento os caixas da farmácia, água, lanchonete, livraria, loja de cristais e outras lojas dentro da Casa Dom Inácio, o volume de dinheiro era tanto que ele precisava de um saco de lixo para colocar todas as cédulas. Ele revela que levava esse saco para a sala particular de João Teixeira, e ele abria o teto e guardava o dinheiro nesse espaço escondido.
Clodoaldo revela que João Teixeira realizava pedidos a ele para que ele fizesse tudo o que tivesse que ser feito para que ele não pagasse impostos. João não gostava nem queria pagar impostos, então pressionava sua contadoria para que fugissem e burlassem o que fosse necessário. As vendas na casa eram realizadas em dinheiro, o que facilitava o processo de ocultação, desvio e lavagem.
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Nos endereços de João de Deus foram encontrados cofres escondidos em fundos falsos e cômodos ocultos, e nesses cofres existiam quantidades exorbitantes de dinheiro em real, dólar e euro. Os dinheiros estavam escondidos em malas, e a polícia precisou recorrer a máquinas para poder contar tudo o que foi encontrado, que chegou a casa dos milhões.
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As montanhas de dinheiro foram apreendidas, além disso, a Justiça decretou o bloqueio dos bens de João Teixeira, que chegava à casa dos quase 50 milhões de reais. O que a Justiça aponta é que João pode estar envolvido com o comando de uma organização criminosa.
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Além do dinheiro, foram encontradas muitas armas nos endereços de João, e ele ao ser questionado sobre a origem das armas respondeu que eram de amigos que ele não se lembrava mais quem eram, e que ele estava apenas guardando as armas em sua casa a pedido deles. João Teixeira foi indiciado por porte ilegal de armas, visto que, as inúmeras armas encontradas não possuíam registro nem autorização.
Freud (1990) em A interpretação dos Sonhos, apresenta a arma de fogo como um dos símbolos masculinos, além de outros como o falo. O pênis é visto como símbolo de poder desde muito tempo em outras culturas, pois é capaz de perfurar, penetrar e dominar a genitália feminina, e religiões mais primitivas apontam que o poder agressivo do homem em relação a mulher possui características fálicas.
João Teixeira foi acusado de cometer abuso sexual contra mais de 500 mulheres, e em vários desses abusos houve o uso do pênis. O que aponta para essa relação entre a dominação fálica e a arma como símbolo de dominação, uma vez que as armas correspondem a capacidade de controlar o outro para aquele que porta a arma (CONELL, 1995).
Kimmel (1996) armas que são pensadas apenas para casos de legitima defesa dentro da masculinidade hegemônica possuem a função de suprir o medo de dominação por outro indivíduo, o que corresponde a masculinidade dominante: “a masculinidade tem menos a ver com a busca pela dominação, do que com o medo de sermos dominados por outros, e de vermos os outros com poder e controlo sobre nós” (KIMMEL, 1996, p. 6).
No que tange os sonhos, Ferenczi (1992) atribuía que em sonhos com armas emperradas, enferrujadas, que não acertavam o alvo, que a capacidade era curta e durava pouco tempo, possuía relação com o coito mal sucedido, incapacidade sexual e baixo desempenho sexual.
Dessa forma, Kimmel (2010) afirma que a utilização de armas de fogo ocorre como uma maneira de compensar a masculinidade hegemônica, onde o sujeito faz a equação com a perda da capacidade física em decorrência do envelhecimento e a resposta às tentativas de dominação por parte dos outros. Portanto, as armas de fogo possuem o papel simbólico de assunção da virilidade e como uma forma de recuperar a masculinidade reduzida.
FICHA TÉCNICA
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EM NOME DE DEUS
Argumento e criação:Pedro Bial Roteiro:Camila Appel e Ricardo Calil Produção musical:Dé Palmeira Direção de fotografia:Gian Carlo Bellotti e Dudu Levy Produção:Anelise Franco Direção de conteúdo:Fellipe Awi Direção:Gian Carlo Bellotti, Monica Almeida e Ricardo Calil Produção Executiva:Erick Brêtas e Mariano Boni
(A série documental está disponível para assinantes Globoplay).
REFERÊNCIAS
FERENCZI, Sandor. Interpretação e tratamento psicanalíticos da impotência psicossexual (1908). Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 25-38. (Obras completas, 1)
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: __. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 119-229. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).
FREUD, Sigmund. (1900). A Interpretação de Sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001. Connell, R. W (1995), Masculinities. Cambridge, UK: Polity.
KIMMEL, Michael. Manhood in America: A Cultural History. 1996. New York: Free Press.
KIMMEL, Michael. “Masculinity as Homophobia: Fear, Shame, and Silence in the Construction of Gender Identity.”. 2010. in Michael S. Kimmel e Abby L. Ferber (orgs.), Privilege. Boulder: Westview.
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Em Nome de Deus: dominação masculina, abuso sexual intrafamiliar e relações de poder
Pierre Bourdieu (2002) em sua obra A dominação masculina aponta que a força masculina não necessita de justificativas, ela se apresenta como natural e não precisa ser legitimada. A ordem masculina é privilegiada pela forma como a sociedade se estrutura, que constrói o corpo como realidade sexuada, que segue fundamentos de divisão sexualizante, ou seja, que o corpo é construído de forma social, e a partir da visão sexuada do mundo que traz ao corpo a distinção entre os sexos, que fundamenta a separação entre os gêneros a partir da perspectiva mítica presente na dominação masculina sobre as mulheres.
De acordo com Saffioti (1992) o gênero se constrói através da dinâmica existente nas relações sociais, onde o indivíduo se constrói como é, conforme a relação com os outros, visto que, cada ser humano é aquilo que vive nas suas dinâmicas de relações sociais, que são atravessadas por contradições de gênero, raça e classe. Saffioti (1992, p. 45) defende que apesar das diferentes visões de feministas acerca do gênero e aspectos do mesmo, existe um consenso onde: “gênero é a construção social do masculino e do feminino”.
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Diante dessa breve conceituação sobre gênero e dominação masculina, que será complementada ao longo do texto, iremos começar com a análise do segundo episódio da série documental Em nome de Deus, onde nos primeiros minutos aparecem alguns homens amigos e conhecidos de João Teixeira, que o defendem das acusações que são estão sendo feitas.
É interessante perceber que os homens que aparecem para defende-lo representam autoridade dentro da cidade, entre eles há um ex-prefeito da cidade de Itapaci, um empresário local e um amigo de infância, usam como argumento que se fossem só algumas mulheres tudo bem, mas desconfiam dos números alarmantes, tais como 50, 100, 200 mulheres. Como se caso fosse apenas 3 ou 4 estaria tudo bem. Eles se expressam como se o abuso pudesse ser visto como algo aceitável sim, o que tira a credibilidade são os números serem altos.
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Adedi Santana apresenta um argumento sobre a validação do homem poder ter muitas mulheres, e respalda seu posicionamento na história bíblica do Rei Salomão, que foi o terceiro rei de Israel, filho de David com Bate-Seba. Que segundo a Bíblia no livro de I Reis teve 700 esposas de classe principesca e 300 cuncubinas. Cuncubinas correspondiam às mulheres que estavam unidas a um homem, mas ocupavam um lugar inferior ao de esposa, apesar de desempenhar às funções desta.
Adedi ainda culpabiliza as mulheres pelo pecado do homem ao utilizar a frase: “a mulher é danada pra fazer o homem pecar”. A Bíblia no livro de I Reis quando denota sobre o número de mulheres do Rei Salomão, finaliza o versículo dizendo que essas mulheres perverteram o coração dele. A colocação de Adedi possui ligação direta com o trecho bíblico que ele mesmo citou, e que reforça, valida e legitima a ideia de que a mulher é culpada pelo que o homem faz de errado.
João Teixeira está sendo acusado de abuso sexual contra mais de 500 mulheres, mesmo assim ainda possui apoiadores e defensores que culpabilizam as vítimas e o inocentam. De acordo com Carloto (2001), o gênero demonstra a discrepância na repartição de responsabilidade na sociedade, pois a sociedade impõe a divisão de responsabilidades para além do desejo dos indivíduos, e essa distribuição é realizada com requisitos sexistas, racistas e classistas. Conforme a posição ocupada dentro da sociedade, o indivíduo poderá ou não ter acesso a meios de sobreviver segundo o sexo, raça e classe.
Seguindo essa linha de raciocínio, vemos como o a responsabilidade do homem é opcional e submetida ao viés do engano, enquanto a mulher mesmo em situação de violência é vista como culpada, ainda mais quando se trata de mulheres que não possuem o mesmo lugar de poder social que João Teixeira estava inserido. Ele era alguém influente dentro da sociedade, possuía prestígio social e espiritual dentro daqueles que eram detentores dos mais altos níveis de poder.
Para Davis (1975), a finalidade do estudo de gênero é compreender a dimensão que os papéis sexuais possuem e qual o espaço ocupado pelo simbolismo sexual ao longo das sociedades e diferentes épocas, de modo que seja possível encontrar como operavam para preservar a ordem social e para alterá-la. Conforme Zanello e Bukowitz (2011), os papéis de gênero e toda a abrangência que a categoria traz se complementam e fazem parte da mesma estrutura de funcionamento social.
O argumento de Adedi ao usar o número de mulheres que o Rei Salomão possuía está ligado também ao mito judaico-cristão responsável pela transição do matriarcado para o patriarcado, que é a história de Eva e Adão. Onde Eva é vista como inferior desde a sua criação e nascimento por ter sido formada a partir da costela de Adão, que reforça a ideia da necessidade masculina de não aceitar a igualdade de gêneros. Além disso, Eva é culpada por ter tentado Adão e pela expulsão que receberam do paraíso. Eva foi o exemplo de mulher trazido para o Ocidente, a mulher que não deveria ser tida como exemplo a ser seguido. Esse mito judaico-cristão implantou no imaginário coletivo que o feminino deve ser visto como subversivo, e não confiável (CABRAL, 1995).
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O empresário Mauro, fala em tom sarcástico sobre a sua dúvida de que João Teixeira pudesse ter se relacionado sexualmente com mais de 300 mulheres, onde ele diz que “é muita potência”, como se João Teixeira não fosse capaz de cometer tantos abusos sexuais assim devido às suas condições físicas. Ele relata não acreditar que João fez isso, e manifesta sua dúvida em relação aos depoimentos e denúncias feitas pelas mulheres.
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Juca Martins, amigo de infância de João Teixeira além de duvidar que ele cometeu abusos sexuais com todas essas mulheres, ainda retruca ao dizer que as vítimas retornaram “lá de novo”, se referindo à Casa Dom Inácio. Esse comportamento de Juca reforça a desmoralização das vítimas, visto que, elas perdem a razão quando apresentam qualquer aproximação ou inclinação ao seu abusador. Ameaças, chantagens e violências são desconsideradas, afinal, a vítima escolheu a reaproximação do abusador.
Bourdieu (2002) afirma que a dominação masculina nas formas de exploração e a expressão pura do masculino trazem honra ao homem, serve como uma maneira afirmativa de sua virilidade. Bourdieu aponta que o assédio sexual corresponde a uma maneira de afirmar a dominação masculina.
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João Teixeira recebeu o apoio não somente de pessoas próximas, mas de uma grande multidão que o esperava na porta da Casa Dom Inácio. Pessoas vindas de vários lugares, que já frequentavam a Casa, e que estava ali gritando a inocência de João Teixeira. As pessoas trajavam branco, assim como ele, e formaram um escudo ao redor dele afastando os jornalistas e pedindo que a imprensa deixasse o “pai” em paz.
João respondeu aos jornalistas apenas dizendo que era inocente, antes disso dentro das instalações da Casa, ele disse aos fiéis que continuava sendo o João de Deus, e que iria se entregar a Lei Brasileira, mas continuava sendo o João de Deus. Logo se despediu com palavras religiosas e declarou sua inocência aos jornalistas presentes que tentavam falar com ele.
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A apresentadora Xuxa Meneghel foi a primeira pessoa famosa a se manifestar em relação ao caso de João de Deus estar sendo acusado de abuso sexual de mulheres. Ela se pronunciou numa rede social, onde pedia desculpas aos seus fãs e seguidores por já ter indicado e falado muito bem do trabalho espiritual desempenhado por João de Deus. Ela relata se sentir envergonhada por ter indicado alguém como ele, por ter colocado pessoas em risco sem saber.
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Xuxa relata sobre ter sido resistente no primeiro momento em relação às denúncias, mas ao entrar em contato com os relatos das mulheres releva ter se sentido conectada a elas por dividirem o mesmo trauma em comum: o abuso sexual. Ela fala sobre as semelhanças nos relatos, sobre o silêncio de tantos anos, sobre o medo e sobre a forma como as mulheres revelaram sobre os abusos sofridos.
De acordo com Chauí (1985), a violência corresponde a uma relação hierárquica de desigualdade, que possui a finalidade de dominação, exploração e opressão, que é efetivada no silêncio da vítima e na passividade. Além disso, a violência está ligada ao poder, ao passo que um dos lados é dominador, o outro é então dominado, violentado. Onde de um lado há a dominação e no outro a coisificação, entretanto a violência e o poder não correspondem a características intrínsecas e inatas do ser humano.
A apresentadora traz informações sobre quando João Teixeira acompanhou a mãe dela num período crítico de adoecimento decorrente da doença de Parkinson, e de como ela se encontrava fragilizada e qualquer coisa que ele dizia, ela se agarrava porque não havia mais nada que ela já não tivesse tentado. Xuxa conta sobre as ligações que ele fazia a ela, onde ele dizia que iria realizar uma cirurgia espiritual à distância enquanto a mãe dela estivesse dormindo, e que no outro dia ele sempre ligava para perguntar se ela havia melhorado. Xuxa embarga a voz ao relatar sobre como qualquer melhora que a mãe dela tinha, ela atribuía aos cuidados espirituais dele e qualquer coisa era devido ao trabalho dele.
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Os relatos começam a ficar mais pesados quando Dalva, filha de João Teixeira aparece e começa a relatar que foi vítima de abuso sexual dele desde os 10 anos de idade. Dalva traz informações muito fortes, e agora nessa parte do texto eu gostaria de informar sobre a densidade das informações que serão trazidas sobre abuso sexual infantil, violência física, violência patrimonial e violência psicológica. Além de abuso de álcool e outras drogas.
Se você não se sente confortável com os temas citados, peço que não veja a série documental e que não continue a leitura, visto que, os relatos são intensos, e para caso isso seja um gatilho emocional para você, por favor, não continue.
Dalva é filha biológica de João Teixeira de Faria, e relata ter sofrido abuso sexual por parte dele inicialmente aos 10 anos de idade, entretanto os abusos se estenderam até a vida adulta dela, e sempre envoltos de manipulação, chantagem e dominação de João Teixeira.
Ela conta que morava com sua mãe quando João Teixeira chegou para buscá-la, e ela não queria ir, mas foi forçada a ir com ele. João chegou até a fazenda onde Dalva residia dirigindo um carro importante e caro da época, o que demonstrava seu status de poder aquisitivo naquele momento. Dalva era uma criança e estava brincando na beira da estrada, relata que vivia uma vida simples e humilde, e que a partir daquele dia não teve mais tranquilidade. Ela usa a expressão de que é melhor ter pouco com Deus do que muito com o diabo ao se referir as posses que o pai estava começando a possuir devido a expansão de sua fama no Brasil e no mundo.
O relato sobre o primeiro abuso sofrido por ela ocorreu na casa de João Teixeira, quando ele se disse a ela que precisava fazer um trabalho com ela (se referindo a trabalho espiritual), ele então se deitou com ela e começou a acariciar o seu corpo. Ela diz que no momento se sentiu confusa, mas confiava nele, afinal, era o seu pai e aquilo não era nada que ela devesse se preocupar.
Para Morales e Schramm (2002), o abuso sexual intrafamiliar possui uma estrutura assimétrica, visto que, o abusador ocupa um lugar de vantagem por ser mais velho, por possuir autoridade e por impor de alguns meios, como chantagem emocional, intimidação e opressão.
Nos dias que seguiram ele começou a proibi-la de ter amigos e amigas, também a proibiu de namorar, de sair e de relações sociais. Ela relata que ele não deixava que ela se relacionasse ou se aproximasse de amigos. Entretanto, quando Dalva tinha por volta de 9 anos e 6 meses, João Teixeira, pai de Dalva, a levou para o quarto dele onde ocorreu o primeiro abuso. Dalva relata que ele arrancou toda a sua roupa e então começou a tocá-la, ele tentou penetrá-la, ela então disse que estava machucando e saiu correndo.
Dalva engravidou aos 14 anos de um rapaz, João Teixeira ao saber começou a agredi-la com ferramentas utilizadas em vaquejadas, ela ficou muito ferida e teve um aborto espontâneo. Dalva se casou aos 14 anos e permaneceu casada até os 20 anos, e relata que foi o único período que não sofreu abusos do pai. Ao se separar, ela foi morar próximo a rua onde ele morava, João então passou a frequentar a casa de Dalva e a tentar ter relações não consentidas com ela novamente.
João de Deus passou a proibir Dalva de ter amigos, de sair de casa e de se relacionar com outras pessoas. Ele passava na porta na casa dela ao longo do dia acompanhado de seus capangas, entrava na casa de Dalva pra verificar se ela estava lá, se havia alguém.
Dalva conta que foi abusada por João de Deus na Casa Dom Inácio também, e disse que naquele momento ele não tocaria nela de novo. João então disse que ele afirmou que tiraria os filhos dela, a casa, o carro, o dinheiro e tudo o que ela tinha, que ela iria ficar na lona, mas seria dele. Dalva concordou em ficar na lona, pois só queria ficar longe dele e livre dos abusos.
Ela procurou João Teixeira num momento onde não tinha nada para comer nem para dar para os filhos comerem, ele então responde que não tem nada a ver com isso, que ela deveria pedir para o pai das crianças e não para ele. Dalva perdeu a guarda dos filhos por não ter condições mínimas de cuidar deles, ela relata que quando isso aconteceu, ela começou a ter problemas com o abuso de álcool.
Segundo Papalia e Feldman (2013), as consequências dos maus-tratos em crianças podem ser físicas, emocionais, cognitivas e sociais, e essas consequência geralmente estão inter-relacionadas. De acordo com Zanello (2011), o sofrimento psíquico é construído socialmente, visto que o sofrimento acontece a partir dos valores de gênero. Nesse caso, o sofrimento de Dalva a deixou depressiva e em estado de desesperança, pois havia perdido tudo. Ainda conforme Araújo (2002), a violência consiste na violação do direito de liberdade e de poder ser dono da própria história, que contém todas as formas de opressão, maus-tratos e agressão, tanto físicas como emocionais, pois provocam sofrimento.
Num momento onde Dalva visitou a sua família, João Teixeira se aproximou dela e pediu para levá-la em casa, naquele momento Dalva residia em Goiânia. Ele a levou num apartamento novo, perguntou a ela se ela gostaria de morar ali e de ter os filhos de volta. Em seguida mostrou o quarto que nomeou como sendo dos filhos, e o outro como sendo “deles”.
João impôs a condição de tê-la para que ela pudesse ter a moradia e a guarda dos filhos. Dalva encontrava-se muito fragilizada devido a ausência dos filhos, e aceitou. Ela foi em busca dos filhos e os levou para morar com ela, João aparecia no apartamento poucas vezes na semana, mas queria exclusividade, ele havia proibido Dalva de namorar com outros homens. Ele diz que pode ter qualquer mulher do mundo, mas que ele quer tê-la. A submissão da mulher estava contraposta as noções de autonomia do sujeito dentro da esfera pública e capitalista, e o que a vida doméstica possui objetivos contrários a liberdade (KEHL, 2007).
Reprodução: Globoplay
O filho de Dalva, Paulo Henrique, explana sobre a boa convivência que tinha com João Teixeira, que ele era generoso e dava muitos presentes, e que naquele momento ele não suspeitava de nada, mas achava estranho. Até que um dia, João ficou furioso com o irmão de Paulo Henrique, e enfiou a cabeça do garoto dentro do vaso sanitário e deu descarga várias e várias vezes.
O medo e o pânico tomaram conta de Paulo Henrique, ele passou a desconfiar de João de Deus, e se escondeu dentro do quarto da mãe. Paulo Henrique presenciou a mãe sendo abusada sexualmente e ser agredida fisicamente. Ele relata que ele bateu nela e que tiveram relações sexuais.
Paulo Henrique diz que João era apaixonado por Dalva, e diz sobre ter percebido que as visitas se tornavam cada vez mais frequentes, que o clima ficava ainda mais estranho. Ele relata sobre ouvir as ameaças que a mãe sofria, e que ele apesar da pouca idade começou a entender as coisas, entender o motivo da mãe não poder ter namorado e por isso namorar escondido.
Reprodução: Globoplay
O filho mais velho de João, João Augusto de Faria, diz que nunca sofreu nenhum tipo de abuso do pai, e que até que Dalva falasse sobre isso, ele era muito próximo dela. João relata que seu pai era generoso, que tudo o que ele tem hoje ele não precisou trabalhar para conseguir porque foi dado pelo seu pai. Ele diz ainda, que Dalva está motivada pelo dinheiro, e que ela e os filhos dela estão mentindo para conseguir dinheiro.
Quando houve a denúncia de Dalva sobre os abusos sofridos, João Teixeira divulgou um vídeo onde ela aparece acariciando sua cabeça e dizendo que nunca foi abusada por ele, que sempre foi amada e cuidada.
Reprodução: Globoplay
Dalva diz que foi coagida a gravar o vídeo ao lado de João Teixeira e na presença dos advogados e comparsas dele. Ela estava sendo ameaçada e teve medo, então resolveu gravar o vídeo fazendo o que eles estavam pedindo. O roteiro foi pré-estabelecido e a gesticulação também. Ela seguia às ordens que estavam sendo dadas para que pudesse ser liberada em segurança, e ter a segurança dos filhos.
Ela afirma que rompeu o contato com todos os irmãos porque eles não acreditaram nela, que nunca acreditaram que ela foi abusada pelo pai. Ela diz que nunca mais teve contato nem proximidade com nenhum dos irmãos desde que teve coragem de expor toda a situação, mas que se sente bem e em paz por não estar próxima de pessoas que não acreditam em algo tão grave.
O episódio termina com Dalva dizendo que após as denúncias e a prisão de João Teixeira, ela passou a andar de cabeça erguida, que não sente mais medo ao andar pelas ruas da cidade.
FICHA TÉCNICA
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EM NOME DE DEUS
Argumento e criação:Pedro Bial Roteiro:Camila Appel e Ricardo Calil Produção musical:Dé Palmeira Direção de fotografia:Gian Carlo Bellotti e Dudu Levy Produção:Anelise Franco Direção de conteúdo:Fellipe Awi Direção:Gian Carlo Bellotti, Monica Almeida e Ricardo Calil Produção Executiva:Erick Brêtas e Mariano Boni
(A série documental está disponível para assinantes Globoplay).
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, M. F. Violência e abuso sexual na família. Psicologia em Estudo, 7(2), 3-11. 2002.
AZEVEDO, M. A., & Guerra, V. N. A. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 2. ed. São Paulo: Cortez. 1993
BOURDIEU, P. A dominação masculina. 2.ed. Trad. de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
CABRAL, J. T. A sexualidade no mundo ocidental. 2.ed. Campinas: Papirus, 1995.
CHAUÍ, M. (Participando do debate sobre mulher e violência. In Cavalcanti, M. L. V. C.; Franchetto, B., & Heilborn, M. L. (Orgs.) Perspectivas Antropológicas da mulher (pp. 25-62). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MORALES, Á. E; SCHRAMM, F. R. A moralidade do abuso sexual intrafamiliar em menores. Ciência & Saúde coletiva, 7(2). 265-273. 2002
SAFFIOTI, H.I.B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A.O.; BRUSCHINI, C. (Orgs.) Uma Questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992
______. Violência de gênero: lugar da práxis na construção da subjetividade. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 2, 1997
KEHL, M. R. Deslocamentos do feminino. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2007
PAPALIA, Diane E. Desenvolvimento humano [recurso eletrônico] / Diane E. Papalia, Ruth Duskin Feldman, com Gabriela Martorell; tradução: Carla Filomena Marques Pinto Vercesi… [et al.]; [revisão técnica: Maria Cecília de Vilhena Moraes Silva et al.]. – 12. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: AMGH, 2013.
ZANELLO, Valeska; FIUZA, Gabriela; COSTA, Humberto Soares. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Revista de Psicologia, [s.l.], v. 27, n. 3, p.238-246, dez. 2015.
ZANELLO, Valeska.; BUKOWITZ, B. Loucura e cultura: uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes psiquiatrizados. Revista Labrys Estudos Feministas. v. 20-21, 2011.
ZANELLO, Valeska. A saúde mental sob o viés do gênero: uma releitura gendrada da epidemiologia, da semiologia e da interpretação diagnóstica. In: ZANELLO, V.; ANDRADE, A. P. M. (Org.). Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade. Curitiba: Appris, 2014ª
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A busca pela cura e o sofrimento de um novo trauma
Este texto apresenta uma breve análise do primeiro episódio da série documental Em nome de Deus, do Globoplay, que traz relatos de sete mulheres que foram abusadas sexualmente pelo médium João de Deus. Informo que o texto contém gatilhos sobre violência sexual, violência psicológica e estupro, caso você não se sinta confortável com esses assuntos, talvez não seja uma boa ideia continuar a leitura ou assistir aos episódios. Além de tudo, contém spoiler sobre o primeiro episódio.
João Teixeira de Faria é o nome de registro de João de Deus, ou John of God, que teve a prisão decretada dia 14 de dezembro de 2018 (GLOBO NEWS, 2018). O episódio começa contando a história da Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia no estado de Goiás. A casa Dom Inácio era o local onde João de Deus recebia fiéis do mundo todo, cerca de 3 mil pessoas passavam na casa por dia. As pessoas vinham do mundo todo em busca de cura espiritual, psicológica ou física, eram doenças terminais, transtornos psicológicos, e quem já havia procurado todo tipo de tratamento.
Os fiéis que se atravessavam o Brasil e o mundo até a cidadezinha de Abadiânia, levavam consigo apenas esperança e a fé de que através de João de Deus iriam receber a cura para as suas enfermidades e a paz para suas almas. Pessoas trajando branco, com os pés descalços e em silêncio ocupavam todos os cantos do lugar, o choro era contido e os gemidos ecoavam no volume mínimo, nas mãos terços, bíblias, crucifixos e imagens de entidades religiosas.
Crédito: Alexandre Severo
De acordo com Terrin (1998), as religiões não possuem valor ou serventia se não puderem curar doenças ou fornecer compreensão holística sobre elas. A motivação da cura era o combustível que alimentava a força dessas pessoas que enfrentavam grandes distancias para chegarem na Casa Dom Inácio.
As paredes brancas com azul da casa contrastavam com as roupas brancas dos fiéis, pelas paredes placas em português, inglês e espanhol pediam silêncio e diziam que o silêncio é oração. No meio da multidão surgia a figura emblemática e messiânica de João de Deus, um homem de origem pobre que dizia ser instrumento espiritual que tinha a missão de levar a cura de Deus aqueles que precisavam dela.
As pessoas se espremiam em filas para o atendimento coordenadas por funcionários da casa, entre eles tradutores que facilitavam a comunicação de estrangeiros. Pelas paredes da casa havia quadros religiosos, em alguns cômodos existiam pilhas de cadeiras de rodas que foram usadas por fiéis que conseguiram a cura e lançaram a cadeira na pilha para simbolizar o poder das mãos de João de Deus.
Fonte: UOL
Instrumentos cirúrgicos estavam distribuídos em bandejas, e eram utilizados para a realização de cirurgias espirituais. João não possuía formação em medicina, tampouco qualquer outro curso, mas através do exercício da sua espiritualidade dizia receber espíritos de médicos do mundo espiritual que usam o seu corpo para fazer cirurgias.
Lemos (2002) descreve que a relação entre a religião e a saúde consistem na utilização e imposição das mãos, benzeduras, rezas e rituais de cura. E na casa Dom Inácio a utilização das mãos do médium para a realização da cirurgia era primordial para que fosse possível alcançar a cura.
Porém, na casa também era muito comum e forte a prática da oração, utilização de águas bentas, e Reimer (2008) aponta essas práticas como parte importante dentro da estruturação das religiões que oferecem a cura. Essas e outras práticas não se originaram na casa Dom Inácio, mas possuem um percurso histórico-cultural que atravessa séculos.
Existia uma hierarquia dos funcionários da casa, aqueles que seguravam a bandeja de instrumentos estavam alguns passos acima de outros. As cirurgias eram realizadas na frente de todos, cortes e retiradas de tumores eram feitos sem a presença de sangue e sem qualquer censura. Boquiabertos e invadidos pela fé, fiéis testemunhavam as cirurgias e todo o processo de cura.
A relação da religião com a cura é antiga, Berlinguer (1988) traz a história dos primeiros hospitais que nasceram em mosteiros. Dessa forma, vemos que a religião e a cura estão interligadas desde a construção da sociedade.
Fonte: Folha Z
João de Deus era visto como uma figura de grande poder, seus olhos azuis e sua pele branca refletiam à luz dos céus sob ele, que para muitos dos fiéis era a reencarnação de Jesus Cristo. A fala mansa e as palavras diretas de João atravessavam aqueles que o procuravam, ele era idolatrado e adorado. João esbanjava humildade, não cobrava nada de seus fiéis, embora recebesse muitos presentes e ofertas voluntárias. Era um homem humilde e santo, a figura perfeita para aqueles que estavam em desespero.
Pessoas em sofrimento e desesperadas se apegam ao incerto, entregam-se àqueles que possam sanar suas dores e aliviar os seus problemas. Esse apego a figura salvadora ou curadora de João de Deus fez com ele construísse um império, tornando-se um dos maiores nomes no Brasil e no mundo.
João de Deus viajou o mundo todo e espalhou sua proposta de cura, recebeu viajantes de diversas parte do mundo e viveu quatro décadas ileso de quaisquer punições ou retaliações. Tudo isso possui influência de frequentadores da casa que tinham poder, tais como políticos, celebridades e autoridades policiais. Esse casulo de proteção ao redor de João de Deus intimidou suas vítimas.
A advogada Camila Ribeiro conta a sua história de sofrimento com o transtorno do pânico, e relatou sua incessante busca por diagnósticos, profissionais e tratamentos que a ajudassem. Sua família concordou com a ida dela para Abadiânia em busca da cura, porém ela foi abusada sexualmente por João de Deus durante a sua consulta mediúnica com ele.
Camila relata dor, sofrimento e medo sobre o abuso que ela sofreu.
Fonte: Globoplay
A fisioterapeuta Marina Brito relata ter ouvido falar sobre João de Deus a partir de uma de suas pacientes, que estava realizando o tratamento espiritual. Naquela época ela estava tentando engravidar, e não possuía nenhum problema biológico de saúde que a impedisse, porém não conseguia engravidar.
Ela viajou em busca do seu milagre, relata não ter pesquisado sobre o médium, tampouco se existiam relatos negativos sobre ele. Ela disse que foi de coração aberto e com muita esperança para encontrá-lo. Marina foi uma das mais de 500 vítimas de João de Deus, foi abusada sexualmente e recebeu ameaças.
Fonte: Globoplay
As vítimas tinham em comum a esperança do milagre e da cura, depositaram toda a sua confiança e força na visita até a casa Dom Inácio, mas voltaram de lá amedrontadas, confusas, violentadas e descredibilizadas. Elas estavam frágeis e vulneráveis, foram vítimas fáceis. A manipulação do abuso através da possibilidade da cura violou essas mulheres.
A publicitária Luana Schnorr foi atrás de João de Deus buscando a cura para a sua irmã que sofria de diabetes. Como as outras vítimas mostradas, Luana agarrava-se na esperança de que receberia a sua graça e que sua irmã ficaria livre da enfermidade. Mas como as outras mulheres mostradas, foi mais uma vítima de abuso sexual.
Reprodução: Globoplay
O padrão exercido por João Teixeira de Faria era o mesmo: quando no meio da multidão ele perguntava sobre o que elas buscavam ali, em seguida dizia para que o esperassem terminar de atender a todos e que fossem até a sua sala, ou salinha. Isso gerava o sentimento de que elas eram importantes e especiais, e que seriam atendidas separadamente, garantindo assim, mais chances de alcançarem suas graças desejadas.
Entretanto, dentro dessa sala os abusos aconteciam. As vítimas eram tocadas, ou eram obrigadas a tocar na genitália dele. Ele tocava o corpo delas e em alguns casos penetrou às vítimas. Nenhuma das ações cometidas por ele eram consensuais, houve o abuso sexual e estupro em alguns casos.
Deborah Kalume é atriz e buscou a ajuda de João de Deus para seu esposo, que estava em coma há alguns anos depois de um acidente de carro. Deborah relata já ter procurado diversos tipos de tratamento e auxílios religiosos, e que nada havia dado certo, por isso então ela decidiu tentar a última alternativa que era o João de Deus.
Ela foi vítima de abuso sexual no maior momento de vulnerabilidade de sua vida, foi usada e violada pelo médium. Deborah conta que quando o abuso estava acontecendo, ela não conseguia acreditar e assimilar que aquilo estava acontecendo. Aquela era a sua última esperança e acabou sendo seu maior motivo de sofrimento.
Fonte: Globoplay
As mulheres abusadas conseguiram reunir forças para expor seus rostos e dar cara às denúncias a partir do primeiro relato público feito pela coreógrafa holandesa, Zahira Lieneke Mous, que expôs o abuso sofrido através do seu perfil pessoal no Facebook.
Fonte: Globoplay
A produção do programa Conversa com Bial através da jornalista Camila Appel entrou em contato com Zahira na tentativa de que ela pudesse expor na televisão a violência sofrida, e a partir disso que outras mulheres pudessem denunciar também. Zahira concedeu a entrevista e contou sobre o abuso que sofreu. A semelhança nas histórias dessas mulheres é chocante, pois existem os mesmos elementos, apesar de que elas não se conhecem, e moram em lugares diferentes.
Zahira foi a primeira cara da exposição contra João de Deus ao relatar o abuso sexual que ele cometeu. A partir disso, hoje mais de 500 mulheres conseguiram expor também, e João Teixeira de Faria encontra-se preso.
FICHA TÉCNICA
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EM NOME DE DEUS
Argumento e criação: Pedro Bial Roteiro: Camila Appel e Ricardo Calil Produção musical: Dé Palmeira Direção de fotografia: Gian Carlo Bellotti e Dudu Levy Produção: Anelise Franco Direção de conteúdo: Fellipe Awi Direção: Gian Carlo Bellotti, Monica Almeida e Ricardo Calil Produção Executiva: Erick Brêtas e Mariano Boni
(A série documental está disponível para assinantes Globoplay).
Referências:
BERLINGUER, Giovanni. A doença. Trad. Virgínia Gawryszewski. São Paulo: CEBES-Hucitec, 1988.
LEMOS, Carolina Teles. Religião e saúde: a busca de uma vida com sentido. Fragmentos de Cultura, Goiânia, Pontifícia Universidade Católica, v. 12, n. 3, p. 17- 57, 2002.
REIMER, Ivoni Richter. Milagre das mãos: curas e exorcismos de Jesus em seu contexto histórico-cultural. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2008.
TERRIN, Aldo Natale. O sagrado off limits: a experiência religiosa e suas expressões. São Paulo: Loyola, 1998.
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Laranja Mecânica: com quantos condicionamentos se faz um homem?
O filme faz um uso espetacular de cenários e figurinos que provocam horror e repulsa ao telespectador, que se vê imerso em uma espécie de freekshow/horrorshow o tempo inteiro
Laranja Mecânica, filme baseado na obra homônima de Antony Burguess, é estrelado por Malcolm MacDowell que interpreta o personagem Alex, um jovem inclinado à violência que acompanhado de seu grupo de amigos Pete, Georgie e Dim, usa de agressões físicas, sexuais e psicológicas para satisfazer seus impulsos mais intensos.
Se você se deparasse com Alex e seus companheiros de grupo no meio da rua, já notaria uma caracterização de figurinos bastante peculiar. Trajados com macacões brancos, portando porretes nas mãos e manchas de sangue espalhadas por toda vestimenta, compõem um grupo que trabalha objetivando praticar a violência com qualquer pessoa que apareça em sua frente.
O filme faz um uso espetacular de cenários e figurinos que provocam horror e repulsa ao telespectador, que se vê imerso em uma espécie de freekshow/horrorshow o tempo inteiro. Um desses artifícios é um clube chamado Leiteria Korova, que tem por cenário vários manequins de mulheres em posições de sexo, que ora são usadas como mesa ora são usadas como garçonetes, uma vez que ao pressionar uma alavanca abaixo delas, as mesmas expelem leite pelos seios.
Fonte: encurtador.com.br/gtFPZ
A apelação sexual é intensa através desses cenários, que a todo instante fazem alusão aos sucessivos estupros que Alex e seu bando cometem às mulheres da sua cidade. Tal ato de violência é denominado por eles como “o velho entra e sai”, o que traz uma concepção de simplicidade a uma prática tão horrível, intensificando assim um sentimento de horror experimentado nas cenas de estupro.
Além dos comportamentos de estupros, o grupo de freekshow agride pessoas de forma brutal e irônica. Uma cena do filme que retrata bem isso se dá quando eles encontram um senhor de idade bêbado no meio da rua que lhes pede dinheiro. O pobre idoso se vê caçoado pelo grupo e principalmente pelo próprio Alex que diz “não suporto bêbados jogados a rua. Mas principalmente velhos bêbados”, sendo então agredido a socos, pontapés e cassetetes, salvo apenas devido ao surgimento da polícia.
O arsenal de violências corria muito bem, até que um dia Alex trata seus companheiros de forma opressora jogando-os dentro de um lago e cortando a mão de um deles. Esse fato se deu pelo desejo de um dos seus amigos de propor as atividades do grupo, o que para o nosso personagem principal era inaceitável, já que existia apenas um líder, e esse líder era ele.
Fonte: encurtador.com.br/lpsvI
Essa falta de compreensão e companheirismo renderia a Alex a traição de seu bando, que consequentemente acarretaria na sua prisão pelo assassinato de uma senhora dona do SPA que eles haviam invadido.
A análise do comportamento aplicada à vida de Alex
Ao ser pego, Alex foi enviado para uma prisão e lá ficou sabendo de um projeto piloto de procedimento experimental, que prometia “curar” os detentos de seus impulsos violentos. Animado com a ideia pediu ajuda ao reverendo da instituição para que ele fosse indicado ao tratamento. E assim foi feito, sendo o protagonista enviado como cobaia ao projeto piloto.
O procedimento consistia em dar a Alex um remédio no início do dia e em seguida expô-lo a situações de violência em um grande telão. Nesse momento, seu corpo estava imobilizado por uma camisa de força e seus olhos presos com certo tipo de arame, para que em hipótese alguma ele conseguisse se livrar de ver as cenas.
Após algumas sessões do experimento, o resultado apareceu. Todas as vezes que Alex experienciava situações de violência ou sentia desejo de praticar comportamentos violentos, ele sentia um enorme enjoo e desconforto, que lhe provocavam ânsia de vômito e muita tontura. Mas o que aconteceu com Alex? Ele teve seu comportamento condicionado!
Fonte: encurtador.com.br/GOWZ4
A Análise do Comportamento, ciência que estuda o comportamento humano, acredita que o homem é fruto do meio em que está inserido. E que comportamentos podem ser ensinados e aprendidos através da união dos estímulos e consequências corretos.
Quando dizemos que Alex teve seu comportamento condicionado, queremos dizer que a consequência do experimento foi a responsável por manter essa sua nova reação às situações de violência. Explicando melhor temos que um comportamento opera na lógica da contingência tríplice de acordo com a Análise do Comportamento (MOREIRA e MEDEIROS, 2019).
A contingência tríplice pode ser representada pela fórmula S – R –> S, que traduzida traz S (estímulo antecedente) – R (comportamento) à S (consequência) (TODOROV, 2012).
No caso de Alex a situação se configura da seguinte forma: S (remédio que provoca enjoo) – R (assistir cenas de violência) –> S (vômitos e tontura). Mas por que toda vez que Alex presencia cenas de violência ele se sente mal? Por que para ele as consequências de ver cenas de violência são aversivas ou punitivas.
Fonte: encurtador.com.br/ajxEV
A Análise do Comportamento traz que existem consequências de comportamentos consideradas aversivas ou positivas, e que estas são responsáveis pelo aumento ou diminuição de determinado comportamento. Quando uma consequência aumenta uma determinada prática chamamos de reforço, e quando ela diminui chamamos de punição (MOREIRA E MEDEIROS, 2019).
Para Alex experienciar situações de violência se tornou uma punição, já que todas as vezes que ele passava por essas situações, as sensações de enjoo e tontura vinham juntas. Sendo assim, a frequência do comportamento de violência diminuiu devido à consequência aversiva (TODOROV, 2012).
O “sucesso” do experimento é posto à prova, já que a trama do filme vem trazer também uma pegada de sarcasmo e vingança, fazendo com que o personagem sofra nas mãos de todas as pessoas que ele já havia feito algo de ruim. Portanto, uma sucessão de eventos ruins, desde o abandono dos seus pais à surra de seus ex- amigos colaboram para que Alex entre em um colapso e tente se suicidar.
Ao final cabe uma reflexão sobre as práticas de experimentos com seres humanos e como essas práticas devem ser aplicadas. Levando em consideração não só os desejos do cientista, mas, sobretudo, o desejo do indivíduo que se sujeita a essas situações. É sempre válido lembrar que a ética em experimentos com seres vivos sempre deve estar presente!
FICHA TÉCNICA
LARANJA MECÂNICA
Título original: A Clockwork Orange Direção: Stanley Kubrick
Elenco: Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates Ano: 1972 País: EUA
Gênero: Ficção científica,Drama
REFERÊNCIAS:
MOREIRA, Márcio Borges; MEDEIROS, Carlos Augusto de. Princípios Básicos da Análise do Comportamento. Porto Alegre: Artmed, 2019. 320 p. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=0LdwDwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PT261&dq=principiso+basicos+da+analise+do+comportamento&ots=WAZQkCc6wF&sig=R0df4BxtqPx5MJS1aCCQiak9bl0#v=onepage&q=principiso%20basicos%20da%20analise%20do%20comportamento&f=false>. Acesso em: 27 fev. 2019.
TODOROV, João Claudio. O conceito de contingência tríplice na análise do comportamento. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 4, n. 18, p.123-130, 05 nov. 2012. Disponível em: <https://www.revistaptp.unb.br/index.php/ptp/article/view/1116>. Acesso em: 27 fev. 2019.
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Preciosa: reflexões sobre o abuso sexual e a educação como instrumento de ressignificação do sofrimento
Carregado de um conteúdo extremamente dramático e pesado emocionalmente, o filme trata explícita e implicitamente sobre diversos temas, como gordofobia, violência intrafamiliar e estupro
Lançado em fevereiro de 2010, sob a direção de Lee Daniels, o filme Precious, “Preciosa”, em português, aborda a vida de Claireece “Preciosa” Jones, uma jovem de 16 anos inserida num contexto familiar extremamente abusivo desde a sua infância. Violentada pelo próprio pai e abusada fisicamente e psicologicamente pela mãe, Preciosa cresce permeada por traumas e questões psicológicas oriundas das situações vivenciadas durante toda a sua vida, incluindo o nascimento de duas crianças, fruto de uma série de abusos sexuais.
Carregado de um conteúdo extremamente dramático e pesado emocionalmente, o filme trata explícita e implicitamente sobre diversos temas, como gordofobia, violência intrafamiliar e estupro, além de questões referentes à psiquê do sujeito, como problemas de autoestima e as consequências psicológicas e comportamentais de abusos de diversas naturezas. Durante o filme, somos convidados a mergulhar a fundo na história da personagem e em sua profundidade psicológica, e, em determinado ponto da trama, somos apresentados a uma nova dinâmica na vida da jovem a partir da educação, aspecto que será discutido ao longo dessa análise juntamente dos outros mencionados anteriormente.
Fonte: https://bit.ly/2DWoLHs
Resumo do Filme
Preciosa mora no bairro do Harlem, em Nova York com sua mãe e sua história se passa no ano de 1987. As primeiras cenas do filme mostram a jovem em seu ambiente escolar, onde não interage com os colegas nem com os professores, além de sofrer provocações por conta de seu peso e aparência. Após uma situação na sala de aula, ela recebe um chamado da diretora, que demonstra preocupação com a jovem por conta da gravidez, por não ser a sua primeira, algo preocupante devido principalmente a sua idade.
Preciosa acaba sendo retirada do ambiente escolar por decisão da diretora, que a visita posteriormente em casa apresentando a oportunidade de estudo em uma escola alternativa, chamada “Cada Um Ensina Um”. Nessa cena, conhecemos a dinâmica familiar problemática de Preciosa, que é humilhada pela mãe pelas coisas mais triviais possíveis. Flashbacks mostram as memórias da personagem do estupro sofrido por ela. É o primeiro contato que temos com o fato de que as duas gestações da jovem foram oriundas dos abusos de seu próprio pai.
A visita da diretora desperta na jovem, que já era interessada nos estudos, principalmente em matemática, a vontade de se matricular na escola, mas sua mãe, irritada com a visita, a ofende de diversas maneiras, até mesmo colocando em pauta o abuso sexual sofrido pela filha, culpando-a pelo acontecido e alegando que ela havia “roubado seu marido”.
A desaprovação da mãe não impede Preciosa de buscar a escola sugerida pela diretora. Ela visita o local e faz a prova para se inscrever. Em outra cena, pela manhã, Claireece não encontra nada na geladeira. A fome e a indiferença da mãe a levam a roubar uma lanchonete, fugindo logo após para a escola em que havia se matriculado. No local, Preciosa é chamada pela professora para a sala e inicialmente relutante em participar da aula, a jovem acaba cedendo e conhece suas colegas, todas mulheres com histórias de vida diferentes. Chegando em casa, a jovem segue sendo humilhada pela mãe, que recusa a comida preparada por ela e obriga a própria filha a comer. Somos apresentados ao fato de que o peso de Claireece pode ter, inclusive, influência dos abusos da mãe.
Fonte: https://bit.ly/2T5Ijmg
Não bastando o contexto familiar desorganizado e problemático, a mãe de Preciosa, conforme mostrado em flashbacks, ensaia uma vida perfeita para receber a visita da assistência social, de modo a não perder o auxílio financeiro. O teatro organizado por ela é desmontado pela jovem, que, a pedido da mãe, vai à assistência social, mas é clara com a assistente quanto aos problemas em sua casa. Descobrimos também que a filha de Claireece nem mesmo mora em sua casa, sendo criada pela avó, que age passivamente frente aos comportamentos da filha, ou seja, mãe de Preciosa.
Várias cenas são exibidas ao longo do filme retratando a jovem imersa em introspecções e sonhos onde ela se vê feliz com o próprio corpo e aparência. Em uma delas, a imagem que ela vê refletida no espelho é completamente diferente da sua, mostrando uma mulher totalmente encaixada nos padrões de beleza. Entretanto, a baixa autoestima, o histórico de abusos e agressões e a dinâmica familiar desestruturada tornam-se cargas mais leves à medida que a jovem passa a frequentar mais as aulas em sua nova escola.
A empatia da professora com Claireece abre portas para a aprendizagem, e a jovem começa não só a ler melhor como também a produzir textos. No auge de sua gravidez, ela entra em trabalho de parto durante uma aula e é levada ao hospital. A assistência de sua professora e de suas colegas durante todo o processo mostra a força dos laços construídos durante as aulas. Apaixonada por sua criança, mas ainda sem uma estrutura familiar adequada para criá-la, Preciosa se vê em mais um impasse em sua vida. Ela retorna, um tempo depois, a sua casa, levando consigo seu filho recém nascido. A reação de sua mãe é extrema, mais do que nunca. Ela chega ao ponto de jogar a criança no chão e agredir fisicamente a jovem, que foge com o filho nas mãos. Num último ato de loucura, a mulher joga uma televisão nos dois, que conseguem escapar do ataque. Então Blu Rain, sua professora, num dos gestos mais humanos exibidos durante o filme, entra em contato com vários números e encontra um lar, ao menos provisório, para a jovem, na casa de um casal de mulheres, que a acolhem junto da criança.
A dedicação de Preciosa na escola, cada vez mais, começa a lhe trazer frutos. Ela chega a ser premiada por sua história e evolução por meio da educação. Entretanto, pendências de seu passado continuam a permear seu presente, com o agravante de uma notícia certamente perturbadora: a de que o pai da jovem, seu estuprador, havia falecido com o vírus da AIDS. Um exame acaba por revelar que Claireece também é portadora do vírus. Ao desabafar sobre isso em sala de aula, sua professora oferece a ela seu apoio e a jovem rebate dizendo que o amor em sua vida só lhe trouxe coisas ruins. A professora então, em uma das cenas mais belas e simbólicas do filme, desconstrói o conceito de amor trazido por Preciosa, difereciando o sentimento dos abusos sofridos por ela durante toda a sua vida.
Fonte: https://bit.ly/2IrDTSv
Nas cenas finais, numa das últimas visitas à assistência social, Claireece recebe a visita de sua mãe, que confessa na frente da filha e da assistente que era ciente dos abusos sexuais que ocorriam sob o seu teto, além de dizer que esses abusos já aconteciam quando Preciosa ainda era uma criança de três anos. Seu discurso, totalmente carregado de mágoa e rancor, culpabiliza a jovem pelos abusos, como se Claireece fosse a responsável pela separação dos pais. A chocante cena encontra seu desfecho quando a jovem decide fechar a porta do seu passado, levando consigo suas duas crianças e uma série de vivências e sofrimentos resignificados.
Análise
Apesar de se passar nos Estados Unidos, a história de Claireece, uma jovem negra e pobre, representa uma parte da população brasileira ainda à mercê de situações de abusos sexual, da mesma faixa etária da personagem. O contexto familiar de Preciosa não é uma realidade distante: pode estar mais perto do que imaginamos. Uma pesquisa realizada por Dos Santos (2014) apontou que o perfil de crianças que sofrem abusos sexuais é predominantemente feminino. Dados da pesquisa também expressam que, na maioria das vezes, a violência é intrafamiliar e tendo o pai da vítima como o agressor, o que vai de encontro com a história. Considerando o contexto histórico do filme, pouco se falava sobre educação sexual nas escolas. Atualmente, muito se discute em relação a isso, principalmente no uso como ferramenta de trabalho na escola, visto que, no âmbito escolar, há a possibilidade do assunto ser abordado de maneira profissional e lúdica.
Conforme Spaziani e Maia (2015), o processo de educação sexual parte do pressuposto que a criança é um sujeito de direitos, principalmente no que tange à informação. Educar crianças e adolescentes nesse viés seria prevenir doenças, possíveis gravidezes precoces e abusos sexuais. A importância desse processo nas escolas é indiscutível. Trazendo para o contexto do filme, se o momento histórico e o ambiente escolar de Preciosa fossem propícios para a instauração de um debate acerca da educação sexual, sua situação de vulnerabilidade poderia ser investigada e repassada o quanto antes aos dispositivos de assistência social e psicológica. Esse tipo de discussão também é necessária no âmbito familiar, mas não deve ser de exclusividade deste, visto que, infelizmente, ainda em muitas famílias, a desinformação sobre o assunto é enorme, além dos inúmeros casos de abusos dentro do próprio contexto familiar, como no de Claireece.
Entendendo o ser humano como um organismo moldado por suas interações, é fácil compreender que abusos sexuais trazem inúmeras consequências para o desenvolvimento, principalmente em crianças. Tais consequências abrangem aspectos físicos, sociais, psicológicos e sexuais, e podem variar de intensidade de acordo com determinados fatores (FLORENTINO, 2015). O vínculo entre a vítima e o abusador, por exemplo, pode ser um agravante dessas consequências. Outro fator é a diferença de idade entre vítima e agressor. Deve-se considerar outros aspectos, como se houve uso de violência física além da violação sexual durante os abusos. De toda forma, as consequências são inevitáveis – apenas mudam de vítima para vítima e de caso para caso.
Fonte: https://bit.ly/2SMiPuS
No filme, Preciosa é abusada pelo próprio pai. De acordo com Florentino (2015), as consequências psicológicas do abuso intrafamiliar também são diversas e até mais duradouras, isso porque há uma alteração das imagens parentais. Não só a imagem do pai é modificada como também a da mãe. No caso de Claireece, sua relação com a mãe tornou-se ainda mais confusa e problemática, visto que ela era conivente e omissa com a violência e ainda assumia uma postura de culpabilizar a jovem. Para a criança ou adolescente vítima de abuso sexual intrafamiliar, o núcleo familiar deixa de ter uma conotação de segurança e afeto para ser um espaço de relações conflituosas, dor e sentimentos confusos, o que acarreta sérias consequências no desenvolvimento psicológico e social. Entre os prejuízos observados em crianças e jovens vítimas de abuso sexual, como a própria Claireece, está o retraimento social e a dificuldade em estabelecer vínculos e em confiar nas pessoas. (FLORENTINO, 2015). Isso é observado na personagem ao longo do filme, que não possuía relações sociais saudáveis e não se sentia confortável em compartilhar seus pensamentos e sua individualidade com as demais pessoas, como exemplificado na cena em que ela deveria se apresentar para as colegas de sua nova escola.
Gottardi (2016) também ressalta algumas consequências no âmbito psicológico. Entre elas, a baixa autoestima, característica também percebida na personagem. A relação da jovem com sua imagem corporal é de desprezo e insatisfação, não só como consequência dos abusos sexuais como também resultado das situações de violência psicológica sofridas por ela durante sua história de vida. Sua mãe, assim como várias pessoas ao seu redor, contribuíram para o desgaste emocional de Claireece, ao ponto de que a adolescente chegou a ver sua imagem alterada no espelho, em uma distorção que a encaixava nos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade.
No filme, a jovem Claireece, inserida num novo contexto escolar, desenvolveu novas habilidades, percepções e ressignificou várias vivências. Conforme Gonçalves (2014), o papel da escola no que se refere à educação de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual é imprescindível. O ambiente escolar é tido como uma extensão da família, e, quando a criança está inserida em um ambiente familiar problemático, é na escola que ela deve ter uma referência de apoio e afeto, muito além da relação professor-aluno de ensinar e aprender. A postura do profissional de educação nesse contexto é essencial para que os impactos dos abusos sejam minimizados, visto que as consequências dessa violência se estendem no contexto escolar, às vezes representadas por dificuldades de aprendizagem e concentração, outras vezes por problemas de socialização e conduta (GONÇALVES, 2014). A professora de Preciosa, Blu Rain, comprometeu-se com a jovem não só em prol de sua educação, mas pensando em trabalhar suas habilidades pessoais de modo a reduzir os danos do abuso. É visível o desenvolvimento da personagem durante o filme, que consegue formar vínculos e ressignificar várias situações de sua vida, inclusive seguir com a criação de seus dois filhos, frutos do abuso, e conviver com o HIV, numa época em que pouco se sabia sobre a doença.
Fonte: https://bit.ly/2Vbg1UW
Muito além de apenas um veículo de entretenimento, o cinema pode ser uma ferramenta despertadora de insights e reflexões. Esse caso se aplica a Preciosa – Uma História de Esperança, um filme carregado de lições e discussões sobre violência, educação e família. Trazendo para o contexto brasileiro, muito se precisa discutir ainda sobre esses temas, de modo que a vida de jovens e crianças vítimas de abuso não seja eternamente definida e marcada pela violência, mas pela esperança de um futuro transformado pela educação.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
PRECIOSA – UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA
Título Original: Precious
Direção: Lee Daniels
Elenco: Gabourey Sidibe, Mariah Carey, Mo’nique, Paula Patton;
País: EUA
Ano: 2010
Gênero: Drama
REFERÊNCIAS:
DOS SANTOS, Creusa Teles. Abuso sexual com criança: uma demanda para o serviço social. 2014. 201f. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2014.
FLORENTINO, Bruno Ricardo Bérgamo. As possíveis consequências do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes. Revista de Psicologia. v. 27, n. 2, p. 139-144, maio-ago. 2015. São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil.
GONÇALVES, Cássia de Oliveira. Implicações do abuso sexual no processo educacional: um olhar para a criança. 2014. 92f. Monografia – Universidade de Brasília, Brasília, Brasil, 2014.
GOTTARDI, Thaíse. Violência sexual infanto-juvenil: causas e consequências. 2016. 71f. Monografia – Centro Universitário UNIVATES, Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil, 2016.
SPAZIANI, Raquel Baptista; MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi. Educação para a sexualidade e prevenção da violência sexual na infância: concepções de professores. Rev. Psicopedagogia, Bauru – SP. pg 61-71, 2015.
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Cultura do Estupro é tema de encontro do Grupo de Estudos Feministas
26 de setembro de 2018 Laryssa Nogueira dos Anjos Araújo
Notícias
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O debate é aberto ao público e ocorre no dia 24 de setembro, às 17h, na sala 203, no Ceulp.
Acontece na segunda-feira, dia 01 de outubro de 2018, o encontro do Grupo de Estudos Feministas com o tema “Cultura do Estupro: Não é Não!”, das 17h às 18h, na sala 203, no Ceulp/Ulbra. O debate é aberto ao público e será conduzido pela acadêmica do curso de Arquitetura e Urbanismo, Daniella Gomes.
Sobre o tema, Daniella Gomes ressalta que “estupro é toda e qualquer relação sem consentimento, seja o estranho que te assedia na rua, a pessoa que te incomoda na balada depois de algumas doses ou o parceiro não aceitando a sua indisposição. Já passou da hora de entender: NÃO É NÃO!”.
Saiba mais
O Grupo de Estudos Feministas, iniciativa do curso de Psicologia do Ceulp, com orientação da Profa. Me. Cristina Filipakis, procura situar a luta feminista e sua história nos mais diversos contextos objetivando discutir temas que perpassam de maneira transversal as perspectivas e vivências das histórias de diferentes mulheres.
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Três Anúncios para um Crime: surpreendente e contraditório
Melhor Filme, Melhor Atriz (Frances McDormand), Melhor Ator Coadjuvante (Woody Harrelson e Sam Rockwell), Melhor Roteiro Original, Edição e Melhor Trilha Sonora.
“You’re enchained by your own sorrow
In your eyes there is no hope for tomorrow”.
-Abba, Chiquitita.
Três Anúncios Para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri) é um filme estadunidense de 2017, com direção e roteiro do britânico Martin McDonagh. Com sete indicações ao Oscar 2018, a película traz uma trama envolvente e imprevisível, retratando de temas polêmicos, mas nem sempre fáceis de lidar em um longa de 1h 56min de duração.
Na trama, Mildred Hayes, vivida por Frances McDormand (Fargo), teve sua filha Angela Hayes (Kathryn Newton) estuprada e assassinada, sem que o culpado pelos crimes fosse encontrado pela polícia. Ao perceber o esquecimento da polícia quanto ao crime, Mildred aluga três outdoors em uma estrada pouco movimentada na cidade de Ebbing em Missouri, no Meio-Oeste dos Estados Unidos (como o título original do filme sugere). Nos outdoors a mãe cobra justiça após meses sem investigações, provocando o xerife local Bill Willoughby (Woody Harrelson).
O xerife vivido por Woody Harrelson é o segundo maior personagem na relação tríplice entre as principais personalidades do filme. O xerife que é apontado como culpado em letras garrafais por Mildred, vive com a culpa de não ter solucionado o crime e também tem de lidar com um câncer terminal, que o torna preocupado com o futuro de sua família. Mesmo sendo o alvo da mãe enfurecida, Bill é o único personagem da trama que compreende e defende Mildred, se contradizendo entre o comportamento machista e estúpido da polícia local e uma ternura paternal hipnótica.
Fonte: goo.gl/Vu3jHQ
Bill também serve de conselheiro e inspirador para o policial Jason Dixon (Sam Rockwell), o terceiro personagem no tripé de personalidades. Dixon é uma curiosa mistura de alívio cômico e vilão: homofóbico, machista e racista, e ao mesmo tempo infantil e reprimido.
Para cada personagem na relação tri-pessoal da trama há reviravoltas que nem os melhores “palpiteiros” de filmes poderiam prever, comportando a maior virtude do filme, com um realismo de humor irônico; mas também seu maior defeito, a escolha de temas muito delicados que não são tratados com tanta delicadeza.
O tema que serve de eixo central da trama se trata do estupro de Angela Hayes. O olhar cuidadoso do diretor torna o filme repleto de detalhes, um deles pode ser o easter egg em relação ao nome “Angela Hayes”, que também foi da personagem de Mena Suvari em Beleza Americana (1999), retratada como uma “sex symbol” menor de idade, cobiçada sexualmente pelo pai de família interpretado por Kevin Spacey (sim, polêmicas à parte).
Fonte: goo.gl/ou9xxL
A violência cometida contra Angela é claramente retratada no zeitgeist social de sua cidade através do filme, e da sociedade em geral, por isso um tema tão pertinente atualmente. De acordo com Sousa (2017), os estupradores agem apoiados sob discursos machistas difundidos até eles e por eles, de modo que se acredita no direito de poder sobre as mulheres de acordo com estereótipos de virilidade e masculinidade dentro da sociedade binária.
A violação sofrida pela filha de Mildred é fruto não só da covardia de um abusador, mas também do espírito de uma época, que faz vítimas no mundo todo através da cultura do estupro. Todas as mulheres retratadas na película sofrem algum tipo de violência, e são coagidas a não revidar.
Para Sousa (2017) esses valores são difundidos socialmente, revitimizando a mulher, que se colocaria nas ‘situações de risco’, tornando-a culpada por não seguir as regras de conduta que lhe são impostas desde o nascimento. Dessa maneira, deposita-se a responsabilidade na mulher sobre os atos de terceiros contra sua integridade sexual.
Fonte: goo.gl/12TDMV
A mudança
Com tantos fatores de coerção, a violência transgeracional na família de Mildred, cometida também pela polícia, só encontrou alguma mobilização quando a personagem canalizou sua raiva para a ação nos outdoors. Ação essa, que a fez vítima de várias retaliações, por acusar um homem, xerife, detentor do poder.
Em uma participação no programa Café Filosófico, a filósofa Márcia Tiburi elucida aspectos sobre o “Mito do Sexo”, fazendo reflexões sobre a condição feminina e a relação entre sexo e poder. Segundo Tiburi (2014), historicamente o homem assume a esfera pública enquanto à mulher se atribui fortemente a função reprodutiva, tornando, portanto, o homem detentor da “lei” e do poder atribuídos a uma imagem masculina. Tal dinâmica é retratada com maestria em Três Anúncios para um Crime, na figura da polícia e de todos os agentes da delegacia, que atuam propositalmente na destruição dos planos de Mildred.
Brilhantes atuações
As participações impecáveis que renderam indicações para Frances McDormand, Woody Harrelson e Sam Rockwell, são sustentadas por uma relação dualista entre agressividade e desamparo dos personagens. Mildred encontra um sentido em seu caos, Bill encontra um fim para seu sofrimento, mas o destaque de transformação fica com Dixon, que quase em uma licença poética se transforma como ser humano no último momento, em uma epifania de revelação da bondade que já estava dentro dele.
Fonte: goo.gl/gE2SKt
A pouca coerência de Dixon que em uma cena ouve a música Chiquitita do grupo ABBA (conhecido pelas suas musicas cheias de esperança e amor), e em outra age pra prejudicar Mildred no momento em que ela mais precisa de ajuda, alcança uma redenção quase cômica após um “insight”.
“Chiquitita, me diga o que há de errado Você está acorrentada na sua tristeza Nos seus olhos não há esperança para o amanhã.”
Qualquer prêmio que Três Anúncios para um Crime venha a receber não será nenhum tipo de surpresa, visto suas estrondosas atuações e as minuciosas direção e fotografia. A importância da representação de temas tão atuais como a cultura do estupro e violência contra a mulher é inegável, mérito de McDonagh e todo elenco do filme.
Porém, a maior incoerência da trama é sem dúvidas a falta de atores negros em papéis importantes. O filme vencedor de quatro Globos de Outro, rendeu um prêmio para Sam Rockwell, que interpretou o policial conhecido por ter espancado um homem negro que estava sob custódia, algo que deve ser pensado. Apesar da redenção de Dixon e da grande atuação de Rockwell, nada explica falta de atores negros em um filme que aborda preconceito racial. Apenas um ator negro em um papel pouco relevante, não é o que fará o Oscar deixar de ser branco. A mesma dinâmica se aplica à homofobia, mostrando cenas extremamente violentas, porém sem dar ênfase ao personagem Red Welby, com a atuação intrigante de Caleb Landry Jones.
Fonte: goo.gl/19VjNc
Esses e outros aspectos tornam Três Anúncios para um Crime contraditório. À medida que aborda temas extremamente relevantes e delicados em segundo plano, sem os tratar com a merecida atenção; a trama central se desenvolve bem, surpreendendo na profundidade das atuações e nas reviravoltas do roteiro. Surpreendente e contraditório.
Um bom filme que sem dúvidas merece ser assistido pelos leitores desse texto. Certamente chegarão aos seus próprios e novos entendimentos.
FICHA TÉCNICA
TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME
Diretor: Martin McDonagh Elenco: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell Gênero: Drama Ano: 2018
TIBURI, Márcia. O Mito do Sexo – In Café Filosófico (14:57 min). Campinas: CPFL Cultura, 2014. Disponível em <https://vimeo.com/71103337>. Acesso em: 13 fev. 2018.