A diversidade e o preconceito linguísticos no Brasil: uma luta da psicologia e do multiculturalismo

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O preconceito linguístico existe no Brasil e persiste ao longo da história desde o período colonial. Os portugueses ignoraram a língua nativa dos moradores que aqui viviam e passaram a ensinar o português. E por não saberem a língua portuguesa, os nativos perdiam os seus direitos garantidos diante da Corte.

Quanta injustiça os índios não viveram? E para sobrevierem, muitos tiveram que aprender o português que aos poucos fez com que muitas línguas indígenas fossem esquecidas, já que não foram documentadas e não mais ensinadas para as gerações futuras.

Na sociedade atual, diariamente somos surpreendidos com notícias de que alguém sofreu algum tipo de preconceito, seja social, sexual, preconceito físico, de gênero, etc., e também preconceito linguístico. Mas, como definir o preconceito linguístico em um país que tem 26 Estados e o Distrito Federal, onde no mesmo Estado ou região, pode haver variação de sotaques e usos de palavras para um determinado objeto?

Primeiramente vamos compreender o significa de lingüística. Segundo o dicionário Houaiss, “linguística é a ciência que estuda a linguagem humana, a estrutura das línguas e sua origem, desenvolvimento e evolução”. Ou seja, cada lugar, cada povo possui a sua própria língua, a sua forma de se comunicar uns com os outros. Além da língua, existe o dialeto, o qual conforme o dicionário citado anteriormente é “qualquer variedade linguística coexistente com outra e que não pode ser considerada outra língua (p.ex.: no dialeto português do Brasil, o dialeto caipira, o nordestino, o gaúcho, etc.)”. Logo, conclui-se que dialeto é uma variedade linguística, termo utilizado para se referir a formas diferentes de utilizar a língua de um mesmo país. Essas variedades linguísticas resultam da variação de uma língua que ocorre devido a vários fatores, como por exemplo, a faixa etária, a escolaridade, a região, o contexto social e cultural.

O PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Agora é preciso compreender o termo preconceito. O dicionário de Evanildo Bechara define-o da seguinte forma: “Conceito, sentimento ou atitude discriminatória em relação a pessoas, ideias, etc.”. Assim, o preconceito linguístico se manifesta ante as diferenças que existem na forma diversificada de falar, que “cada indivíduo observa como errado”, considerando apenas como certa a variação de aceitação no que diz respeito à norma culta ou padrão, e diminuindo o valor das demais formas linguísticas, classificando-as como inferiores.

Pode-se dizer que preconceito linguístico é qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários. Ora, a linguagem, como dito, é um mecanismo de comunicabilidade e deve ser usada por todos, sem discriminação. É um absurdo achar que somente a língua aprendida nas academias, que segue as regras da norma culta, é correta. Se a linguagem é uma forma de expressão do indivíduo, o que importa é que a mensagem emanada pelo emissor chegue até o ouvinte e por esse seja decodificada e compreendida. Se isso aconteceu, está tudo certo.

Outra questão que necessita ser observada é diferenciar a linguagem escrita, que segue regras e padrões de formatação que não podem ser alterados pelo fato da linguagem falada ser diferente. Se uma pessoa falar “nóis vai”, não quer dizer que irá escrever da mesma forma.

O sistema econômico subjugou a língua falada, padronizando o comportamento das pessoas, privilegiando alguns para exercer o poder. Isto é, quem pertence à classe social alta, tem mais acesso à educação, inclusive, alguns estudam em escolas que alfabetizam em duas ou mais línguas, além do português.

Tanto é verdade que, por exemplo, entre grupos de médicos, engenheiros, advogados, psicólogos, entre outras tantas profissões, há termos técnicos que são falados entre aqueles profissionais e que não fazem parte do vocabulário dos falantes daquela língua e nem por isso, estes, por se utilizarem de vocábulos “diferentes” são excluídos ou diminuídos pelos demais, ao contrário, são venerados.

Dessa maneira, estes são tratados de forma diferente daqueles que não têm acesso ao ensino básico de qualidade e não conjugam, por exemplo, os verbos da forma padrão. As salas de aula, quando tem aula e onde tem escola, são improvisadas e não há divisão de turmas, de idade entre os alunos, grau de escolaridade, etc., numa visão totalmente antagônica à anterior. Mesmo nos dias de hoje, podemos encontrar escolas como essas em alguns Estados brasileiros.

Fonte: Chico Bento – Tirinha de Maurício de Sousa. 1998.

Outro aspecto relevante a ser abordado são as diferentes formas de se comunicar entre os brasileiros. O Brasil, pela sua dimensão territorial, abriga povos que apresentam diferentes culturas e formas de se expressarem, a depender da região. E as regiões consideradas mais economicamente desenvolvidas discriminam as menos favorecidas no plano econômico.

Fato é que os meios de comunicação também reforçam essa diferenciação, inferiorizando algumas maneiras de falar. Muitas das vezes, o sotaque nordestino aparece quando é encenado por um trabalhador da limpeza ou que atua como humorista. Não se observa com frequência em posição de destaque e influência em papéis principais nos filmes, novelas ou telejornais nacionais.

De igual forma, há uma discriminação dos mais jovens para com os mais velhos, mesmo em relação à linguagem. Como explica Maria Homem, em seu canal, esse fenômeno consiste no embate estrutural, como sempre, que está implícito na palavra cringe, pois, durante milênios, os anciãos eram os que tinham mais respeito, em razão dos anos vividos, da experiência e com ela a sabedoria. Inverter essa estrutura se traduz na prepotência da modernidade, que não cuida dos mais velhos, ao contrário, maltrata, não abarca esse caldeirão de experiências, desvalidando aquilo que não se faz mais.

Ora, não é diferente com a linguagem. Os mais jovens desvalidam os mais antigos, a partir de gírias como “broto, pão, avião” que se referiam a alguém bonito e que representam uma determinada geração. Aqueles que reproduzem esses vocábulos são alvo de tratamento pejorativo, jocoso, demonstram estar fora de época, ultrapassados, cringe, como alguém que traz vergonha, e, portanto, algo que deve ser marginalizado, discriminado, numa verdadeira expressão do preconceito linguístico.

A prática desse tipo de preconceito é constatada em todos os lugares e ambientes. Como bem nos assegura Mariane (2008), o ato de julgar antecipadamente consiste na discriminação existente entre pessoas falantes do mesmo idioma que elegem esse outro idioma como oficial e exclui outras variações existentes.

Assim, o preconceito linguístico existe, inclusive, dentro das escolas. O bullying tem levado adolescentes à depressão, à ansiedade e até ao suicídio. Já que o ensino tradicional determinou quem fala certo ou errado, crianças, adolescentes e jovens, que mudam de uma região do Brasil para outra, podem ser alvo de piadas em sala de aula.

Fonte: Imagem por pikisuperstar no Freepik

É oportuno lembrar que existem dois tipos de gramáticas para os linguistas: a normativa e a descritiva. A primeira é a “base da maioria dos livros didáticos e gramáticas pedagógicas, em que se caracteriza um conjunto de regras. Considerada como o conjunto sistemático da norma, ou seja, para o falar bem e escrever. Essa concepção parte do princípio de que todos que falam, sabem de fato, falar. Essa fala segue regras que são consideradas legítimas do ponto de vista do uso e da comunicação entre os diversos tipos de falantes/usuários”. Já a descritiva “tem a preocupação de analisar, descrever e explicar a construção dos enunciados, que são utilizados de fatos pelos falantes”.

Dessa forma, os professores precisam ensinar a variação da língua de forma realista (gramática descritiva) e não utópica (gramática normativa), a fim de minimizar os impactos, fazendo com que o aluno reconheça a importância da própria história, sem perder a essência e ser inserido no novo ambiente, de forma que os demais o recebam com respeito.

Essa atitude está em conformidade com o que prega o Multiculturalismo, que defende a luta pelos direitos civis dos grupos dominados, excluídos.

É oportuno frisar que, diante desse contexto, o preconceito devia ser considerado um problema de saúde pública. O site Veja Saúde publicou uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (USFC), que “concluiu que vítimas de discriminação têm um risco quatro vezes maior de desenvolver depressão ou ansiedade e ainda estão propensas a agravos como hipertensão”. “A experiência crônica de intolerância estimula a liberação de hormônios relacionados ao estresse, como o cortisol”, explica o epidemiologista João Luiz Dornelles Bastos, um dos autores do trabalho”.

Desse modo, nota-se que não somente a pessoa que está sendo discriminada, mas, também quem está discriminando pode sofrer problemas psicológicos, como afirma na matéria: a “pessoa prestes a agir de maneira hostil se submete a um estresse interno”, explica Ricardo Monezi, psicobiólogo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Outro fator importante que precisa ser observado é a questão da rejeição e as consequências, pois pode levar o indivíduo que está sendo hostilizado à baixa estima, agressão, solidão e inseguranças, que causam medos de enfrentar os desafios de uma vaga de emprego, por exemplo. É aqui que a Psicologia entra em campo, no cuidado da saúde mental desses indivíduos que sofrem com preconceitos, inclusive o linguístico, já que as consequências são tão devastadoras quanto qualquer outro tipo de discriminação.

CONCLUSÃO

A classificação de certo ou errado para os usos da língua portuguesa não deveria existir, já que há a adaptação do contexto coloquial. A pessoa utiliza determinada maneira para falar, levando em consideração o ambiente familiar, a renda, região que mora, formando a sua própria identidade.

A diversidade na forma de falar torna o Brasil com múltiplas características, já que cada região tem um sotaque, seu vocabulário próprio, sua forma de se expressar, a exemplo das diversas línguas indígenas que carregam em si uma história.

O ser humano pertence a um determinado grupo e isso o torna autêntico, donde se conclui que a “língua” não poderia ser considerada como um problema, ao contrário, a “diversidade linguística, neste caso, está relacionada com a existência e a convivência de línguas diferentes. O conceito defende o respeito por todas as línguas e promove a preservação daquelas que se encontram em vias de extinção por falta de falantes”.

Portanto, a diversidade linguística se refere às múltiplas identidades de cada um e como tais merecem respeito e não preconceito.

REFERÊNCIAS

Pequeno Dicionário Houaiss da língua portuguesa/Instituto Antônio Houaissde Lexicografia, [organizador]; [diretores Antônio Houaiss, Mauro de Sales Villar, Francisco Manoel de Mello Franco]. – 1. Ed. – São Paulo: Moderna, 2015

BECHARA, Evanildo, Minidicionário da língua portuguesa Evanildo Bechara/ Evanildo Bechara. – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009, página 718.

HOMEM, Maria. O que é cringe? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hjh6p5Ip6Bg. Acessado em 24/11/21.

SANTOS, Patrícia da Cruz Ferreira dos [1], ANDRADE, Marta Mires Da Cruz de [2], ALMEIDA, Daiane Vithoft de [3], Preconceito linguístico: Intolerância que retrai, língua que marginaliza.Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 15, pp. 12-33. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza, DOI:10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza. Acesso em 17/11/21.

MATTA, Sozâgela Schemim da. Português, linguagem e interação. Curitiba: Bolsa Nacional do Livro Ltda, 2009.

BERGAMO, Karolina. A intolerância de hoje pode ser a doença de amanhã — inclusive entre quem pratica a discriminação. Publicado em 28 jun 2016. Disponível em https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/preconceito-faz-mal-a-saude/amp/. Acesso em 24/11/21.

[1] Pequeno Dicionário Houaiss da língua portuguesa/Instituto Antônio Houaissde Lexicografia, [organizador]; [diretores Antônio Houaiss, Mauro de Sales Villar, Francisco Manoel de Mello Franco]. – 1. Ed. – São Paulo: Moderna, 2015, p. 593.

[2] Idem. p. 334.

[3] BECHARA, Evanildo, Minidicionário da língua portuguesa Evanildo Bechara/ Evanildo Bechara. – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009, página 718.

[4] HOMEM, Maria. O que é cringe? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hjh6p5Ip6Bg. Acessado em 24/11/21.

[5] SANTOS, Patrícia da Cruz Ferreira dos [1], ANDRADE, Marta Mires Da Cruz de [2], ALMEIDA, Daiane Vithoft de [3], Preconceito linguístico: Intolerância que retrai, língua que marginaliza.Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 15, pp. 12-33. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza, DOI:10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza. Acesso em 17/11/21.

[6] MATTA, Sozâgela Schemim da. Português, linguagem e interação. Curitiba: Bolsa Nacional do Livro Ltda, 2009, p. 136.

[7] Idem

[8] BERGAMO, Karolina. A intolerância de hoje pode ser a doença de amanhã — inclusive entre quem pratica a discriminação. Publicado em 28 jun 2016. Disponível em https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/preconceito-faz-mal-a-saude/amp/. Acesso em 24/11/21.

[9] Idem

[10] Conceito da diversidade lingüística. Publicado em 2011/atualizado em 2019. Disponível em https://conceito.de/diversidade-linguistica. Acesso em 24/11/21.

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Diferenciação entre pessoas de “mente aberta” e as de “mente fechadas”

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Vivemos em um mundo em constante evolução, com a pandemia o uso e crescimento das tecnologias da informação ganharam força. Com isso, é nítido a necessidade de evoluirmos em relação a esse progresso ao qual o mundo passa. É normal sentirmos estranheza e desconforto em algumas circunstâncias que envolvem mudanças, fazendo-se necessário o ajustamento da forma em que pensamos a respeito das situações que estamos vivenciando, no caso de já termos uma opinião formada previamente onde possivelmente existe influências externas, poderá ser uma causa para que o processo de mudança ou flexibilidade de pensamento seja mais difícil de ocorrer.

De acordo com Marques (2021), para fazermos parte desse processo de evolução ao qual o mundo passa é necessário termos a mente aberta, pois isso poderá nos levar a níveis cada vez mais elevados, em todos os aspectos de nossas vidas. Mesmo sabendo disso, existe pessoas que possuem dificuldades em aceitar mudanças “São indivíduos considerados inflexíveis de mente fechada, que se sentem bem mal só de ver algo se transformando em sua rotina” (MARQUES, 2021).

Fonte: encurtador.com.br/qCK47

Com isso convido você a conhecer algumas entre as tantas características desses dois perfis de pessoas, as de mente aberta e as de mente fechada. Entre as peculiaridades existentes podemos encontrar:

  • Autoestima; as pessoas de mente fechada tendem a ser inseguras, demonstrando comportamentos próximos aos de autoritarismo, em busca de aceitação, sendo o oposto das pessoas que possuem mente aberta, tendo uma autoestima elevada, disposta à evolução e a um continuo aprendizado.
  • Falar e Ouvir; as de mente aberta dão preferencia para ouvir, são atenciosas e possuem uma observação aguçada, conseguido gerar uma maior conexão com as pessoas que estão ao seu redor; as pessoas de mente fechada, forçam as relações a ponto de serem importunas em um dialogo, querem a qualquer custo ser o centro das atenções e interrompem os demais que também estão conversando.
  • Humildade; é uma característica de fácil identificação, comumente as pessoas de mente fechada costumam procurar ter uma falsa fachada de que possui humildade. “Geralmente, quando vão emitir uma opinião, elas costumam começar a frase da seguinte maneira: “Posso estar errado, mas…” e logo dizem o que pensam.” (MARQUES, 2021). Sendo uma opinião considerada desnecessária por ser contraditória. Em contrapartida, as pessoas de mente aberta preferem se colocar no lugar de aprendizes, preferindo calar-se possibilitando uma oportunidade para quem realmente poderá favorecer.
  • Compreensão e entendimento, quem possui mente aberta não vive em busca de obrigar as pessoas a aprovarem sua forma de pensar, são compreensíveis, abertas ao diálogo, promovem respeito e discussão saudável. Referindo-se a pessoas de mente fechada, trata-se de alguém que se esforça para que todos que estão em torno de si o entenda, chegando a ser insistente e repetitivo a fim de convencer a outra pessoa para que concorde com o que está sendo dito.
  • Afirmar e Perguntar, são características que indicam que quem tem a mente fechada vivem fazendo fortes declarações sobre qualquer que seja o assunto, mesmo que não tenha propriedade no que está comunicando. “Trata-se de indivíduos que adoram opinar, porém não têm a menor paciência para ouvir a opinião dos outros.” (MARQUES, 2021). Já quem possui mente aberta, só opinam sobre algo quando verdadeiramente conhecem, pois primam pelo aprendizado com o outro.
  • Ideias desafiadas, as pessoas de mentes abertas, aceitam sem nenhum problema as ideias que as diferem de sua forma de pensar, diferente das de mente fechada que não concordam em ter suas ideias afrontadas. Pelo contrário, o que elas querem, na verdade, é que todos concordem com o que elas sugerem, sem questioná-las.

Dessa forma, “A mente é, hoje, até fácil de descrever em seus aspectos mais gerais, mas a função mental em cada circunstância específica de nossas vidas continua sendo um mistério” (IZQUIERDO, 2004, p. 07). Faz-se necessário que estejamos sempre atentos a que tipo de mentalidade que desenvolvemos: mentes limitadas ou mentes dispostas a expandir.

É necessários nos desafiarmos, a fim de que tenhamos mais proatividade e consciência de si mesmo, obtendo crescimento pessoal e profissional; para nos adaptarmos melhor com quem estar a nossa volta, tornando importante reconhecer se o outro possui uma mentalidade aberta ou fechada para um melhor relacionamento.

Referências

IZQUIERDO, Iván. A mente humana. Centro de Memória do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUC-RS, 3 de Out. de 2004. Porto Alegre (RS), Brasil. Disponível em: <https://www.ufmg.br/online/arquivos/IZQUIERDO.pdf >Acesso em: 17, Jul. de 2021.

MARQUES, José Roberto. Quais as principais diferenças entre pessoas de mente aberta e mente fechada?. Instituto brasileiro de coaching. 17 de Fev. de 2021. Disponível em: <https://www.ibccoaching.com.br/portal/mudanca-de-vida/quais-as-principais-diferencas-entre-pessoas-de-mente-aberta-e-mente-fechada/>. Acesso em: 17, Jul. de 2021.

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Cartola: o mundo é um moinho

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“Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve.” (Nelson Sargento)

Não conheci Cartola e nem Nelson Sargento. A música de Cartola me atiça a vontade de tê-lo conhecido, de lhe ter em minha presença, como se com isso, eu passasse a viver uma paz quase que absoluta. Essa é a visão que faço de quem foi Cartola – alguém que, não sei por qual maneira, inspirava paz e confiança em, senão todos, quase todos à sua volta. Às vezes imagino que o posso encontrar, olhar-lhe nos olhos por uma vez e, com isso, aprender a tocar samba. Daí eu, sem graça e sem palavras, lhe diria, com leves e descompassadas batidas no meu violão, palavras que são dele:

“A sorrir eu pretendo levar a vida… pois chorando eu vi a mocidade perdida.” (trecho da música “O sol nascerá”)

Depois disso, eu não diria mais nada; o escutaria tocando samba para o mundo, para quem o quisesse ouvir, passaria a tarde observando-lhe o jeito, as feições e as atitudes e depois iria embora; procuraria a beira do rio ou do mar, no fim de tarde, e, por um momento, eu não saberia distinguir meu choro de meu riso, nem meu riso de meu choro. E a sorrir continuaria levando a vida.

As músicas de Cartola tocam profundamente a alma de muitas pessoas. São letras, acordes, arranjos, harmonias e dissonâncias belíssimas, pulsantes, simples, estupendas, emocionantes…

Cartola morreu em 1980 e a única forma de lhe conhecer é escutando suas músicas e lendo as biografias e os trabalhos que as pessoas fizeram e fazem em seu nome. Pretendo contar sobre o que li a respeito de Cartola com o intuito de partilhar minha admiração.

Os trabalhos que dão suporte a esse texto são: “Cantarolando Cartola”, de Carneti et all (2011); “Que samba é esse malandro? – Uma análise teológico-existencial de sambas de Cartola a partir da teologia da cultura de Paul Tillich”, de Elton Vinicius sadao Tada, de 2010; “O trabalho de arte e de grupos com jovens no Centro cultura Cartola – Comunidade da Mangueira RJ”, de Regina Gloria Nunes Andrade e Cibele Mariano Vaz de Macêdo;  “Samba e autoconservação: possibilidades para a sala de aula”, de Christian Muleka Mwewa e “De dentro da cartola: a poética de Angenor de Oliveira”, de Nilcemar Nogueira, neta de Cartola, sobre o qual julgo que é a referência mais completa dos trabalhos disponíveis na internet.

Nilcemar, ao falar sobre sua dissertação, diz assim:

Atualmente, alio meu apego à memória do mestre sambista a outro grande compromisso, contraído recentemente: o Centro Cultural Cartola. Instalado em um prédio cedido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (lBGE), localizado na Mangueira, a edificação está em processo de reforma, de maneira que possa contar com áreas adequadas ao funcionamento de um arquivo, de uma biblioteca e salas de consulta, onde o público interessado no tema possa aprofundar ou adquirir novos conhecimentos sobre este ícone da Música Popular Brasileira, bem como sobre a história do samba e de outros pioneiros. Lugar também destinado à preservação de nossa memória, história e cultura, em um momento em que já se admite o samba como identidade cultural do brasileiro. Esta pesquisa dará origem ao primeiro banco de dados da obra de seu patrono e a montagem de uma exposição, ambos no referido espaço cultural. Os depoimentos de seus parceiros (e suas respectivas gravações em áudio) também serão incorporados ao acervo do Centro de Documentação e Pesquisa do Centro Cultural Cartola.

Praticamente todas as pessoas que se referem a Cartola o chamam de gênio. (Nogueira, 2005; Carneti et all, 2011; Mwewa, 2011; Carneiro, 2008). Por suas músicas, conclui-se isso. A letra da música “O sol nascerá” continua da seguinte maneira:

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida

Finda a tempestade
O sol nascerá
Finda esta saudade
Hei de ter outro alguém para amar

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida

Cartola a compôs com Elton Medeiros. Elton conta a história dessa música em depoimento a Nilcemar Nogueira. Ele diz que Cartola a compôs em 40 minutos em resposta a uma provocação de Renato Agostini. Nas palavras dele:

Nisso, chega o Renato Agostini com a Glorinha, que era a mulher dele na época. Aí, “tudo bem, pessoal?” que era a turma que já habituava passar na casa do Cartola. Ainda não existia o Zicartola. Aí, “tudo bem, tudo bem”. O Cartola: “pô, acabamos de fazer um samba aqui”. De provocação, o Renato disse assim: “vocês não sabem fazer samba coisa nenhuma”. Aí, “ouve aqui” e cantamos o samba pra ele. Aí, “canta de novo”. Nós cantamos de novo. “Esse aí vocês não fizeram. Esse aí vocês ouviram de alguém, compraram”. Provocação dele, e nós estávamos sacando que era provocação do Renato. “Eu só acredito que vocês tenham feito essa música, que são sambistas mesmo, se vocês fizerem um samba na minha frente”. Aí, o Cartola olhou pra ele e disse assim pra mim: “você topa?”. Eu: “se você está topando, não vou topar? Topo”. Aí, Cartola pegou o violão e não pensou muito. Ele já saiu: “a sorrir … “. Eu digo: “eu pretendo levar a vida … “. Já saiu cantando isso. Aí, eu fui … ele botou o papel na frente. O samba dizia: O Sol Voltará, depois que mudou para O Sol Nascerá. Na gravação da Nara que mudou para O Sol Nascerá. (Elton Medeiros citado por Nilcemar Nogueira, 2005, p. 72)

Para ela, Cartola era um

Homem do morro e da cidade baixa, da labuta e do carnaval, do asfalto
e da Mangueira, leitor de Guerra Junqueiro e de Olavo Bilac, lavador de carros e funcionário público, foi fiel à verde-e-rosa e ao eterno aprendizado do sentimento. Sem dele escapar por um único compasso, produziu dentro de seu tempo, carregado de seus infortúnios, sem se deixar levar por querelas ideológicas, e compôs, no seu ritmo, no âmbito de sua individualidade incorruptível, talvez as mais belas canções de nosso repertório musical. Sentimento e poesia, mais que letra e canção, harmonizou profusão e qualidade.

A família de Cartola passou pelo mesmo problema por que passam as famílias nos morros cariocas de hoje. O centro do Rio de Janeiro modernizava-se no início de 1900 e a milícia expulsava moradores pobres que foram morar nos morros (que hoje estão sendo tomados). A família de Cartola se estabelece no Rio de Janeiro por meio de seu avô materno, pai de Aída Gomes de Oliveira, sua mãe. Aída casou-se com o seu primo, o carpinteiro Sebastião Joaquim de Oliveira, com quem teve mais nove filhos além de Cartola.

Cartola nasceu em 1908. Sua família passou por duas casas, antes de se acomodar no morro da Mangueira, quando Cartola tinha 11 anos. Nesse lugar, Cartola conheceu o samba. Trabalhou como tipógrafo até seus 15 anos, quando passou a trabalhar como pedreiro. Para evitar o cimento lhe grudar no cabelo, começou a usar uma cartola que limpava todos os dias. Gostava tanto do acessório que usava o dia todo. Disso vem o seu apelido.

Em 1926, ano da morte de sua mãe, por conta de conflitos com o pai, que lhe exigia o soldo completo no fim do mês, Cartola foi expulso de casa; Cartola dormia no trem da Central, fazendo viagens a noite toda. Quando voltou à Mangueira, deparou-se com o seguinte bilhete do pai: “Vou-me embora deste morro, mas deixo aqui um Oliveira para fazer a vergonha da família.” (Nogueira, 2005, p.17). No documentário dirigido por Lírio Ferreira, chamado “Cartola – música para os olhos”, lançado em 2007, Cartola canta “O mundo é um moinho” para seu pai, muitos anos depois desse episódio.

Sua vida, aos 17 anos, era feita de biscates, farras e fome. Nas palavras de Cartola:

Eu estava na pior. Todo engalicado. Eu tinha gonorréia, cancro duro, cancro mole, mula, cavalo, o diabo. Gemia o dia inteiro naquela cama. Aí, uma vizinha, com pena, passou a cuidar de mim. Fazia sopinha, trazia. Lavava minha roupa. M e dava remédio. Como uma verdadeira mãe. Era a Deolinda (Nogueira, 2005, p.17).

Deolinda era casada e tinha uma filha de dois anos. Apaixonou-se por Cartola que passou a morar com ele. Aos 18 anos, de repente, saiu da “pior” e estabeleceu uma família. Era considerado o melhor pedreiro do morro, mas o sustento da casa era mantido por Deolinda.

Em1928, Cartola, com mais uma porção de gente, fundou a Estação Primeira de Mangueira, nome e cores escolhidos por ele próprio. O primeiro samba de desfile da Mangueira é chamado “Cheia de demanda” e a autoria é de Cartola. Durante o final dos anos 20 e início dos 30, Cartola vendeu algumas músicas à recente e crescente indústria de rádio, sem mesmo lhe ficar crédito por elas. No início dos anos 40, fez parte de um projeto com Villa-Lobos e desapareceu do ambiente musical. Como diz Nogueira (2005),

A partir dessa época, desapareceu do ambiente musical, transformando-se em figura mitológica dos anos iniciais das Escolas de samba. A auto-imposição desse recolhimento propiciou a desastrada notícia de que teria falecido. Nessa época, e com a morte daquela que havia sido sua companheira por mais de vinte e três anos, Deolinda, resolveu deixar o morro. “Quando ela morreu [Deolinda], ele ficou desgostoso. Morreu do coração [ … ] Então ele ficou desgostoso, sumiu.Mas ele era moço e arranjou outra mulher, a Donária, ela tinha muito ciúme dele, não gostava dele no morro que ele tinha muita mulher. Então, sumiu com ele que ele era muito mulherengo, né, aí ele também se viu envolvido com ela e aí sumiu. (Moura citado por Nogueira) (Nogueira, 2005, p.27)

Nas décadas de 60 e 70 virou-se como pôde, entre um biscate e outro. Em 1952, iniciou seu romance com Euzébia Silva de Oliviera, conhecida como Dona Zica. Voltou à Mangueira, mas não se contentou com o estilo adquirido pela escola de samba que ajudou a fundar. Em 1956, encontrou-se com Sérgio Porto, enquanto lavava carros. Sérgio o levou para tocar em rádios e lhe arrumou um emprego no Jornal Carioca. Em 1964, Cartola e Zica inauguraram o restaurante chamado “Zicartola” local que movimentou culturalmente a capital nacional, o Rio de Janeiro, com boa comida e música; serviu como um ponto de resistência e como escola de reconhecimento de vários artistas.

A reconstituição de tais informações leva-nos à conclusão de que o Zicartola representou um momento de integração entre autênticos sambistas e a reprimida classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro. [a re-ascensão] de Cartola deve-se em momento de exacerbação do nacionalismo, no começo dos anos 60. Nesses tempos alguns estudantes, especialmente Carlos Lira, procuravam alternativas nas chamadas “músicas de raiz”, com que queriam contrapor a música popular elaborada pelos jovens burgueses da bossa-nova com a realidade brasileira. [ … ] Apesar do sucesso, o Zicartola durou pouco (de setembro de 1963 a maio de 1965). (p. 28)

Nas décadas de 70 e 80, Cartola conseguir melhores condições de vida e reconhecimento de sua música. Em 1970, gravou o trabalho “Cartola Convida”. Sobre esse período, ele disse:

Essa fase, eu estou achando a fase mais importante da minha vida. Hoje sou rodeado de amigos, mas amigos que eu fiz. Plantei e agora estou colhendo, porque eu sou um sujeito muito humilde, não tenho vaidade. E não há quem não goste de uma pessoa que não seja vaidosa. Porque a vaidade prejudica muito. Sobe à cabeça e a gente perde tudo que pode ganhar. Então, eu trato todos com humildade, considero os meus amigos, sou considerado por eles, e acho que tudo que eu faço não é nada. (Nogueira, 2005, p. 30)

Em 1974, gravou o seu primeiro LP que o consagrou na crítica de música brasileira. Em 1979, descobriu que tinha câncer. Faleceu em 1980, no dia 30 de novembro, ocasião na qual João Batista Figueiredo, o então presidente da República, enviou o seguinte telegrama à Dona Zica:

Consternado com a morte de seu marido, poeta e compositor que cantou de forma tão bela os encantos da vida, envio-lhe sincero abraço de solidariedade e certeza de que Cartola viverá para sempre na alma singela do povo brasileiro, na imortalidade de suas canções e na saudade de seus amigos e admiradores. (Figueiredo citado por Nogueira, 2005, p. 34).

Nogueira (2005) divide a produção de Cartola em fases, assim:

1- Primeira Fase: 1928 – 1949 – Cartola: o compositor da Escola de Samba;
2- Segunda Fase: 1950 – 1969 – O retorno ao meio artístico e a criação do Zicartola;
3- Terceira Fase: 1970 – 1980 – A consagração de Cartola como artista brasileiro

A partir do capítulo II, Nogueira analisa e conta as histórias das músicas de Cartola, leitura que é fascinante. Por exemplo, ela conta que a música “O mundo é um moinho”, diferente de como se pensa, não foi feita à sua filha. De qualquer maneira, é uma letra linda. O fim da poesia diz-se por si:

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés.

A poesia de Cartola diz-se por si só. Deixo aqui minha admiração por essa poesia e pela pessoa que conheci através desses relatos. Mwewa (2011), ao analisar o documentário de Lírio Ferreira, afirma que Cartola foi uma pessoa essencial para a construção do samba como um estilo cultural. Para o autor,

(…)Cartola se torna um mediador entre as pessoas do seu entorno e o samba, a partir de uma relação intersubjetiva. Ou seja, Cartola se torna uma peça fundamental na relação que as pessoas do seu contexto estabeleciam com o samba. Claro está que não sugiro aqui que, se Cartola não existisse, as pessoas que o cercava não teriam estabelecido uma relação frutífera com o contexto do samba. Não! Mas, seguramente seriam outras pessoas. Não digo isso, mas sim que, da forma como se apresenta o documentário, Cartola exerce um papel fundamental para os seus amigos em relação ao samba. E esse papel, de alguma forma, é que nos revela o Cartola que é conhecido. (Mwewa, 2011, p. 33).

Cartola medeia até hoje. Andrade e Macêdo (2012) relatam acerca de um projeto que desenvolve a cultura da arte em grupos com jovens no Centro Cultural Cartola, uma ONG que “se dedica à educação musical e artística de jovens e adultos, e realiza atividades como a Orquestra de Violino, Curso de Flauta e Ação Griô.” (p. 23).

As palavras do próprio Cartola sobre sua música é a forma mais acertada, para mim, de encerrar esse texto:

“Minha música é uma coisa muito séria. Eu componho devagar para trabalhar bastante cada composição. Eu não fabrico sambas. Se alguém quiser cantar minha música, é só porque sentiu o que eu quis dizer, não porque fiquei insistindo. Se eu peço, o sujeito pode até cantar, mas sai tudo errado, e acaba estragando tudo. Não me interesso em fazer uma coisa que o povo saia cantando, mas que ele sinta minha obra. Faço música para você guardar dentro de si, eternamente, no seu coração e não apenas na sua coleção de discos. (Cartola citado por Nogueira, 2005, p. 122)

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