Fora dos Eixos traz uma história que reflete sobre mudanças climáticas, territorialismo e limites éticos da ciência
Considerado o pai da ficção científica, Jules Verne é certamente um nome que marca a literatura mundial. O escritor francês, que viveu no século XIX, “previu” alguns avanços tecnológicos e outros acontecimentos que marcariam a história da humanidade, como a chegada do homem à lua. Em Fora dos eixos, livro que acaba de ser publicado pela primeira vez no Brasil pela Editora Aleph, Verne combina crítica social, ficção científica e uma fina ironia para abordar temas como a ambição humana, o imperialismo e a confiança cega no progresso técnico. A história gira em torno da fictícia North Polar Practical Association, uma sociedade americana que planeja mover o eixo da Terra.
Ao longo da narrativa, Verne ironiza a megalomania dos Estados Unidos e dos países europeus que disputam a posse de uma região inóspita como se estivessem em um leilão. O autor satiriza tanto a fé exagerada na ciência quanto os delírios de grandeza que moldaram o século XIX e que, de certa forma, continuam ecoando no século XXI.
Além do enredo provocativo, Fora dos Eixos encanta pela atualidade. Em tempos de debates sobre mudanças climáticas, territorialismo e limites éticos da ciência, o livro convida o leitor a refletir: até onde estamos dispostos a ir em nome da inovação? E quais são as consequências de brincarmos com as engrenagens do planeta?
Com pouco mais de 220 páginas, esta edição especial conta ainda com mais de 30 ilustrações originais assinadas pelo artista francês George Roux e integra um box comemorativo de clássicos do autor.
Capa do Box Jules Verne Foto: Divulgação
As obras de Jules Verne atravessa gerações e cruza realidade com ficção em diferentes tempos. Neil Armstrong, comandante da Apollo 11, o primeiro homem a chegar à lua, citou o autor ao relembrar da ficção criada por ele. Outras “coincidências” marcam as obras dele, como o valor gasto na missão Apollo 8, que custou mais de 14 bilhões, algo bem próximo dos 12 bilhões de dólares previstos por Verne, entre outros acontecimentos.
O box, que já está disponível na Amazon por R$ 114,37, vem com outras obras em capa dura do autor, como Da Terra à Lua e Ao Redor da Lua, além de brindes exclusivos. Todas traduzidas diretamente do francês por Sofia Soter, mantendo o estilo irreverente do escritor.
Sobre o autor: Jules Verne nasceu em Nantes, na França, em 1828. Foi para Paris para estudar Direito, mesma profissão do pai, e lá se apaixonou por literatura e teatro. Em 1862, Verne teve o primeiro livro publicado, Cinco semanas em um balão, que rapidamente virou um best-seller. Depois do acontecimento, o francês passou a dedicar-se apenas a literatura e escreveu mais de sessenta livros ao longo de quarenta anos. Entre suas obras mais conhecidas estão Viagem ao centro da Terra (1863), Da Terra à Lua (1865), Vinte mil léguas submarinas (1870) e Volta ao mundo em 80 dias (1873).
O escritor francês Jules Verne Foto: Félix Nadar/Divulgação
Sobre a Editora Aleph: Completando 40 anos no mercado, a Aleph é uma das poucas editoras brasileiras com foco em cultura pop e ficção científica – seja clássica ou contemporânea. Com sua abordagem inovadora, tornou-se referência nacional e uma das responsáveis pelo retorno do gênero às livrarias e ao grande público. Entre os principais nomes de seu catálogo estão autores clássicos como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, William Gibson, Ursula K. Le Guin e Philip K. Dick, além de contemporâneos como John Scalzi, Brandon Sanderson e Ann Leckie.
Análise do filme sob uma perspectiva psicanalítica.
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Em uma cena do filme, os personagens se transformam em duas pedras à beira do penhasco.
“Viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências”, afirmou certa vez o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre. Mas e se pudéssemos ter acesso às infinitas possibilidades de escolha e às vidas que elas desencadeiam – da mais glamurosa à mais pacata, onde nos materializamos em uma pedra à beira do abismo? Parece uma ideia tentadora, e é a partir dessa premissa que se desenvolve a divertida – e maluca – história do filme que se consagrou o grande vencedor da última cerimônia do Oscar.
Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, vencedor de sete estatuetas (inclusive a de melhor filme), parece uma síntese interessante dos nossos tempos, apresentando uma linguagem vertiginosa e um tanto caótica. Trazendo consigo a ideia de multiverso, a história transita entre diferentes realidades, ligadas através de um núcleo de personagens que aprende a “viajar” entre os múltiplos universos que constituem o infinito. Apesar de soar complexo, o filme trabalha o conceito de uma forma leve, proporcionando ao espectador uma experiência agradável e interessante.
A história acompanha Evelyn Wang, uma imigrante chinesa nos Estados Unidos, dona de uma lavanderia à beira da falência. Enfrentando problemas no casamento e uma relação atribulada com a filha, Wang parece estar vivendo o lado obscuro do american dream – o famoso sonho de vida americano, repleto de oportunidades e prosperidade. Enquanto se debruça sobre uma pilha de papéis a fim de salvar seu negócio, a protagonista se depara com uma questão que parece desafiar todos nós em algum momento da vida – como seria sua vida se tivesse feito outras escolhas?
É a partir desse momento que a história sofre uma reviravolta, ingressando na alucinante dinâmica do universo multidimensional. A figura até então pacata de Waymond, seu marido, dá lugar a uma versão vigorosa do personagem, vindo de um universo distante para alertá-la sobre a necessidade de lutarem para conter a ameçaca de Jobu Tupaki, personagem empenhada em instaurar o caos e extirpar a existência humana. Relutante e incrédula, Wang vai cedendo ao passo em que o absurdo toma conta de sua realidade. Então embarcamos juntos com ela nessa aventura.
Para sua surpresa, a figura que precisa enfrentar junto à nova versão do marido é ninguém menos que sua filha Joy, que em outra dimensão adquire poderes capazes de colocar em xeque a existência e o equilíbrio dos universos que compõem a intrincada trama de suas vidas. Assim o conflito entre mãe e filha toma outra proporção, abarcando nuances que mesclam realidade e fantasia, drama e comédia. Wang, uma pessoa um tanto conservadora, tem dificuldade em aceitar a sexualidade da filha, que está se relacionando com outra garota. Como pano de fundo desse conflito emerge a figura do pai, Gong Gong, que renegara Wang quando esta decidiu se casar com Waymond e tentar a vida nos Estados Unidos. Velho e debilitado, Gong Gong passa a viver sob os cuidados de Wang – uma lembrança pungente da vida que outrora abriu mão para viver o seu sonho.
Sob o pretexto de não escandalizar o pai, Wang tenta esconder sua dificuldade em lidar com a natureza subversiva e libertária da filha, que confronta seus próprios valores e convicções.
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“Eu estava apenas à procura de alguem que pudesse ver o que eu vejo”
Enquanto se enfrentam nas mais diversas circunstâncias – até mesmo em um universo onde os indivíduos possuem salsichas no lugar de dedos -, os personagens que compõem o núcleo da história, Wang, Waymond e Joy, parecem nos mostrar que não importa o quão absurdo seja o cenário, é impossível que o indivíduo se furte ao impacto do contato com o Outro. Nesse caso, pai, mãe e filha buscam, através de uma jornada multidimensional, encontrar o equilíbrio necessário para não sucumbir ao caos da existência conjunta.
Envolvendo conflitos familiares, embates geracionais, crítica social e reflexões existenciais, o filme cumpre a ousada tarefa de ser tudo ao mesmo tempo, literalmente. Há momentos para rir, chorar, refletir – e tantos outros em que não se entende coisa alguma. Um tanto parecido com a vida, ousaria dizer. Afinal, se viver é algo mesmo muito perigoso, como diria Guimarães Rosa, é difícil que alguém saia ileso dessa aventura.
Diante de uma história tão engenhosa, há de se perguntar se Wang, ao percorrer inúmeras de suas vidas possíveis, não tenha encontrado alguma em que tenha se sentido completa. E o filme nos responde terminando onde tudo começou, com mãe e filha discutindo no estacionamento da lavanderia da família. Ao promover esse retorno, a dupla de diretores, Daniel Kwan e Daniel Scheinert, parece indicar, de forma tocante e com uma pitada de comicidade, que o ideal de liberdade (tão característico do sonho de vida americano) que tanto buscamos em nossas vidas implica invariavelmente em uma série de perdas, uma vez que ao realizarmos uma escolha, perde-se todas as outras possíveis, e a experiência de viver todas as possibilidades ao mesmo tempo emerge como um delírio enlouquecedor. Dessa forma, somos instados a reconhecer a necessidade de bancarmos as nossas escolhas – e as consequências que elas trazem consigo -, ao passo em que nos identificamos com a tentativa da protagonista de se acertar com a filha em seu universo original – o único possível.
A fantasia de que estamos somente a uma escolha da completa realização dá lugar à inexorável realidade de que somos seres faltantes, e portanto temos de nos haver com a falta, independente do universo em que estejamos. E que amar é, sobretudo, reconhecer no outro a falta que decidimos sustentar em nós mesmos. Tudo em todo lugar ao mesmo tempo pode sim ser um convite para olharmos para a falta, mas é também um chamado para o amor.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Everything Everywhere All at Once
Duração: 139 minutos
Ano produção: 2020
Estreia: 11 de março de 2022
Distribuidora: Diamond Films
Dirigido por: Daniel Scheinert, Daniel Kwan
Orçamento: U$ 25 milhões
Classificação: 14 anos
Gênero: Ficção Científica, Ação, Comédia
Países de Origem: EUA
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Em “Vivarium” o micro e o macrocósmico se encontram na prisão da família e do casamento
Vivarium é um filme simbolicamente ambicioso por tentar criar uma visão cosmológica integrada: macro e micro se encontram naquele subúrbio que mais parece lembrar a cidade cenográfica de Seaheaven do clássico filme gnóstico Show de Truman.
“Para onde foi todo mundo?”, pergunta-se um jovem casal que foi conhecer a casa perfeita para comprar em um subúrbio de classe média. Mas que se veem de repente presos em um misterioso labirinto em loop de casas idênticas, estranhamente hiper-reais, com suas cercas brancas, grama verde e um céu azul com nuvens perfeitas que lembram os quadros surrealistas de René Magritte. Será que estão presos em uma armadilha hiperdimensional? Uma metáfora da prisão do casamento e da família no qual o micro e o macrocósmico se encontram? Esse é o filme “Vivarium” (2019), um curioso híbrido de ficção científica e terror, co-produção belga-irlandesa-dinamarquesa. Um filme ambicioso que pretende explorar um grande arco simbólico que começa com o Paradoxo de Fermi na Cosmologia (“para onde foi todo mundo?”) até chegar as alusões ao pintor Magritte, ao misticismo do número nove e da cor verde que domina aquele subúrbio – a síntese do sonho da classe média americana. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.
Primeiro físico a controlar a reação nuclear, Enrico Fermi observou que existia uma contradição entre o crescente conhecimento do Universo e a ausência de contato com qualquer forma de vida existente: com bilhões de outras galáxias lá fora, muitas delas bilhões de anos mais velhas que a nossa, pelo menos uma não poderia já ter entrado em contato conosco?
“Onde está todo mundo?”, indagava o físico. Isso ficou conhecido como “Paradoxo de Fermi”. Agora, imagine um filme que construa um arco simbólico que ligue esse paradoxo com a natureza sufocante do casamento em um típico subúrbio de classe média.
Temos então o filme Vivarium (2019), dirigido e escrito por Lorcan Finnegan, um curioso híbrido de ficção científica e terror – um jovem casal está à procura da casa perfeita para iniciar uma vida a dois. Um excêntrico corretor de imóveis leva o casal para conhecer um lançamento suburbano de um conjunto de casas que mais parece uma obra do pintor surrealista belga Renné Magritte. Essa alusão será importante na compreensão do filme.
Inadvertidamente, o casal se encontrará prisioneiro em um misterioso labirinto de ruas e casas idênticas que sempre parecem se fechar em loop – repentinamente o casal se descobre prisioneiro em alguma dimensão fora do tempo e espaço, na mais típica atmosfera da série clássica Além da Imaginação.
O primeiro mistério: são dezenas e dezenas de sobrados, idênticos a se perder no horizonte. Porém, todos vazios e trancados. Aparentemente, só eles ocupam uma casa (a número nove, outra alusão simbólica). Sob um perfeito céu azul ensolarado, salpicado de nuvens ao estilo das obras de Magritte. E nunca chove. Só eles parecem ocupar aquele vasto condomínio de labirintos infinitos. Onde está todo mundo?
Também parece que aquela imensa estrutura foi criada especialmente para eles. Condenados a criar um bebê que surge do nada e viver todos os tropos e clichês da típica vida conjugal de classe média numa atmosfera claustrofóbica e sombria. Contraditoriamente, num cenário perfeito. Hiperrealisticamente perfeito em um subúrbio moderno pré-fabricado em dry wall.
A casa dos sonhos pode ser uma armadilha. A vida conjugal perfeita pode ser a prisão de uma rotina entediante e opressiva.
Como veremos, Vivarium é um filme simbolicamente ambicioso por tentar criar uma visão cosmológica integrada: macro e micro se encontram naquele subúrbio que mais parece lembrar a cidade cenográfica de Seaheaven do clássico filme gnóstico Show de Truman.
Assim como o Paradoxo de Fermi seria uma das evidências de que o Universo seria uma gigantesca simulação computacional para aprisionar a humanidade, da mesma forma a sociedade e, principalmente, sua célula central (a família e o modelo único de vida conjugal) seria um constructo de realidade para nos manter contidos e operacionais em um sistema.
Quem criou tudo isso? Quem nos observa, atentos em nos manter vivos dentro desse horizonte de eventos que chamamos de realidade? Esse é o mistério que permeia Virarium e aguça a curiosidade do espectador.
Fonte: encurtador.com.br/yGNOZ
O Filme
O tema central de Vivarium é o típico subúrbio de classe média, símbolo do sonho americano de conformismo e alienação por trás de cercas brancas e gramados bem cuidados. Filmes como Blue Velvet, de David Lynch (uma orelha cortada achada no gramado é a ponta de um submundo muito além da normalidade) e Beleza Americana, de Sam Mendes (a descoberta do erotismo libertador para além da mediocridade cotidiana) são exemplos de narrativas de como necessidade s humanas podem ser suprimidas em relacionamentos coagulados.
Vivarium vai mais uma vez revisitar esse tema acompanhando o casal Tom (Jesse Eisenberg) e Gemma (Imogen Poots). Um casal comum: ela trabalha como professora em uma escola infantil – ama seu trabalho e ama crianças. Tom é um jardineiro que dirige para o seu trabalho, carregando suas ferramentas, no VW da mãe, embora planeje comprar um caminhão adequado.
Para eles, a vida e o trabalho ainda são divertidos nessa fase – nada ainda parece que foi oprimido pelo realismo das obrigações.
Até que um dia, depois da aula, Gemma encontra uma garotinha da sua turma muito triste: encontrou na grama um filhote de passarinho morto – parece que foi desalojado de seu ninho por um cuco predador (cuja ação predadora cruel vimos nos créditos iniciais). Esse início parece querer nos mostrar estranhos presságios para o que veremos adiante.
Fonte: encurtador.com.br/bBRTW
Pensando em morarem juntos para iniciar uma nova vida, eles encontram num estande de vendas um estranho agente imobiliário que os convence a visitar um lançamento chamado Yonder.
Chegando lá, vemos que Finnegan cria uma paisagem obviamente digitalizada de casas quadradas e idênticas pintadas de verde, criando uma pura hiper-realidade desorientadora. Visitando uma casa mobiliada, percebem que o corretor desapareceu… Bom, então vamos embora!, decidem.
Só que eles não conseguem mais encontrar a saída daquele labirinto de casas idênticas. Tom roda com o seu VW até a noite cair e a gasolina acabar. Eles apenas andaram em círculos, sempre parando em frente a casa número 9, na qual parecem terem sido condenados a morar para sempre.
Estranhas caixas de papelão surgem diariamente do nada na porta da casa, com alimentos congelados ou acondicionados à vácuo.
Até que um dia, chega mais uma caixa de papelão… dessa vez com um bebê com um bilhete: “Cuidem dele, para depois liberá-lo”.
A partir desse ponto, a dinâmica de Tom e Gemma naquela casa, cuidando do bebê, começa a assumir todas as situações e clichês do casamento: ela, cuidando do “pequeno mutante” (uma criança que cresce mais rapidamente do que o normal, tenta imitar as palavras e comportamentos dos “pais” e dá um grito ensurdecedor quando está com fome e reivindica comida) e Tom cavando obsessivamente um buraco no jardim para tentar encontrar uma saída daquele mundo.
Fonte: encurtador.com.br/cBCE0
Quando o micro e o macrocósmico se encontram – Alerta de spoilers à frente
É a metáfora da vida conjugal e das reponsabilidades da classe média: ela ocupada com o “filho” e ele no seu “trabalho” diário. Cavando, cada vez mais ansioso, estressado, desenvolvendo um comportamento obsessivo-compulsivo, enquanto vai desenvolvendo um problema respiratório “ocupacional”. É a própria condição profissional-existencial de muita gente insatisfeita e infeliz num emprego apenas para dar a segurança familiar da subsistência.
Literalmente cavará a própria sepultura para depois o garoto, agora adulto, falar para a “mãe” à beira da morte: “esse é o papel da mãe… cuidar do filho para o mundo, até liberá-lo”.
É a própria metáfora da “síndrome do ninho vazio” – depois que os filhos crescem e vão embora, simbolicamente os pais morrem.
A narrativa de Vivarium fundamenta-se em três simbolismos para fazer essa convergência gnóstica entre o micro e o macrocósmico: as sucessivas alusões ao surrealista René Magritte, a cor verde e o número 9.
As estranhas nuvens que emolduram a paisagem hiper-real (“elas não têm forma de nada, apenas de nuvens”, diz a certa altura Gemma) são uma óbvia referência à série de pinturas de Magritte chamada “Império das Luzes” (1947-1965). Magritte foi o mestre dos paradoxos visuais – embora o cotidiano possa dar a impressão de normalidade, existem anomalias em toda parte: uma esquisitice terrena que está por trás do dia-a-dia, e que deveria ser revelado pelo surrealismo.
Fonte: encurtador.com.br/GLN37
Esse é o propósito de Finnegan: o estranho lugar que Tom e Gemma ficaram prisioneiros por algum propósito inescrutável de um demiurgo alienígena, apenas revela o absurdo das relações conjugais institucionalizada pela ordem familiar que congelam e suprimem as necessidades humanas.
Ao lado do azul daquele céu surrealista, a cor verde é onipresente: gramados paredes das casas e ambiente. O verde está associado a algo quintessencial, a uma transmutação química que pode resultar tanto na vida quanto no envenenamento: de um lado a fotossíntese, ar e natureza; e do outro, processos tóxicos e veneno. Subúrbios de classe média são ambientes tóxicos e sufocantes.
E o número 9. Desde a música “Revolution 9” dos Beatles, esse número está associado na cultura pop a “loops” (da mesma forma como a música dos Beatles foi construída na engenharia de som), passando pelo filme Número 9 (The Nines, 2007) ou a animação 9 – A Salvação (2009).
Pela simbologia mística, o número 9 representa finais de ciclos – é o número de meses da gestação, por isso carregando o simbolismo do esforço e sinalizando o fim de um processo. Representa a jornada completa: seu início e término. Assim que termina, tem-se um novo início a partir do número 1.
Assim como o loop representado pelo final do filme no qual o garoto que cresceu compulsoriamente criado por Tom e Gemma assume o lugar do velho corretor de imóveis. Para levar mais jovens casais para a armadilha cósmica do subúrbio Yonder.
Aquele lugar que será a sua última casa, assim como o seu casamento, a família e o emprego.
Em “Traição”, segundo livro da série Krios, da doutora em Letras Clássicas Márcia Silva, Dora enfrenta uma aventura para resgatar sua mãe e manter a paz no Universo, acompanhada do seu amado extraterrestre Marvil
Dora Dias é apenas uma garota terráquea que sofre por um amor impossível, mas cabe a ela uma grande responsabilidade: a manutenção da paz interplanetária. A aventura está na obraTraição,segundo livro da trilogiaKrios, publicada pelaEditora Autografia para o público jovem adulto. A autoria é da doutora em Letras Clássicas e professoraMárcia Silva. No futuro distante em que se passa a trama, a Terra já não é mais a mesma, o Universo está conectado e a comunicação é a chave para a existência pacífica entre humanos e extraterrestres, mas algo ameaça esse equilíbrio.
No primeiro tomo da série, lançado em 2018 sob o títuloInterferência, o leitor foi apresentado à personagem principal, Dora, e a sua mãe, Dra. Helen Dias – a cientista responsável por um importante aparelho chamado de “Comunicador”. Também conheceu seu amado extraterrestre Marvil e o pequeno planeta Krios.
Agora, emTraição, Dora e Marvil tem que lidar com as diferenças culturais e biológicas interplanetárias que a impedem de ficar com Marvil.
“Os marvilenses [moradores de Krios] são fisicamente iguais aos terráqueos, exceto pela cor dos olhos de alguns, que podem ser de um mel intenso, como o de Marvil, e até lilases, e pela orelha mais fina. Biologicamente, contudo, nos constituíamos em espécies diferentes, o que tornava impossível a concretização do nosso amor. (…) Aceitamos o que o destino nos preparava. Não adiantava lutar contra ele.” (Traição, pág. 11)
Por meio dos olhos de Dora, personagem narradora, o leitor reflete sobre a ambição do homem pelo domínio e seu egocentrismo. Tudo isso com uma linguagem leve e fluida, com certo humor e uma série de referências à literatura, à filosofia, à cultura clássica e à mitologia grega. EmTraição, Márcia Silva, que leciona Língua e Literatura Latina e Cultura Clássica há 20 anos, também recorre a fontes etnográficas romanas, proporcionando ao texto uma leitura enriquecedora no quesito histórico e antropológico.
“Estariam os deuses me dando uma escolha? Mostrando-me que havia outros caminhos? Ou apenas queriam me confundir? Brincar comigo? Fazer com que sofresse ainda mais? Afastar-me de Marvil? Eu seria uma heroína trágica grega? Lembrei-me dos destinos catastróficos de Fedra, apaixonada pelo enteado; (…) de Helena que provocou a guerra de Troia ao seguir sua paixão por Páris.” (Traição, pág. 32)
A sérieKriostraz à tona, ainda, assuntos extremamente importantes na época atual, como desigualdade, discriminação, preconceito e preservação da natureza, projetados em um futuro em que, aparentemente, essas questões haviam sido superadas e que a humanidade desfruta de tudo o que precisa. Tudo isso em meio a uma história recheada de aventura, ficção científica e amor. Para a felicidade dos leitores, o terceiro livro da trilogia,Transformação, já está sendo escrito pela autora.
Sobre o livro I –Interferência: Em um futuro distante, a Terra muda radicalmente após um longo período de guerras. A unificação proporciona o desenvolvimento de tecnologia suficiente para descobrir vida em outros planetas e viajar até eles, mas o convívio pacífico ente humanos e extraterrestres depende da comunicação. Qualquer interferência é perigosa. Uma série de eventos pode ameaçar a paz. Sua manutenção, agora, depende de uma jovem terráquea que mora em um pequeno planeta. Ela será capaz de desvendar todas as pistas para solucionar os problemas? Poderá confiar em alguém para ajudá-la? Conseguirá aliados entre os terráqueos ou sua vida e seu futuro dependerão de um extraterrestre? Não há tempo para pensar nas respostas. É preciso correr atrás delas.
Sobre o livro II –Traição: A vida de Dora não podia estar mais complicada. Pelo menos era o que ela achava. Depois de chegar a Krios, descobriu uma conspiração, teve sua vida ameaçada, sua mãe sequestrada e passou a viver um complicado e impossível caso de amor com Marvil. Tudo o que ela queria, agora, era um resgate bem-sucedido, mas uma descoberta sobre seu passado complica ainda mais as coisas e faz com que ela repense tudo em que acredita. Os novos acontecimentos têm o poder de mudar seu futuro e podem, até mesmo, provocar uma guerra intergaláctica.
Sobre a autora:Márcia Silva é graduada em Letras com doutorado em Letras Clássicas. Leciona Língua e Literatura Latina e Cultura Clássica há vinte anos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Depois de se dedicar ao ensino, à pesquisa, à extensão e à administração, decidiu realizar o desejo de escrever romances. Como amante da Literatura de todas as épocas e para todas as idades, iniciou sua produção literária com o romance de ficção científicaInterferência(2018), primeiro livro da sérieKrios, uma trilogia para jovens leitores, cuja continuação,Traição, foi lançada em 2019. No momento, compartilha sua dedicação à docência de Língua Latina e Cultura Clássica com a tarefa de escrever o último livro da sérieKrios.
Nesse verdadeiro tratado sobre a solidão no espaço, “tabu” e “reciclagem” são conceitos-chave para entender High Life.
Uma nave em algum lugar no espaço profundo, para além do sistema solar, ruma a 99% da velocidade da luz na direção de um buraco negro. Um homem dedica-se a cuidar da sua pequena bebê, em meio aos corredores escuros e um desordenado jardim de onde tira alimentação e oxigênio. Como pararam ali? De quem são os cadáveres mantidos em uma câmara criogênica? Quais os efeitos da viagem na velocidade da luz em uma tripulação perdida no vazio em uma missão potencialmente suicida? High Life (2018), da diretora francesa Claire Denis, não é propriamente um sci-fi convencional: em uma narrativa elíptica e em flash-backs tentamos reconstituir o passado e estimar o futuro daquela estranha missão. Uma viagem estranha e surreal pelos profundos vales da galáxia e da solidão humana. No espaço cósmico o homem nada descobrirá, a não ser a si mesmo. E isso pode não ser uma boa coisa.
No momento em que foi comprovada a existência de buracos negros pela primeira foto real de um dessas misteriosas entidades cósmicas, assistir ao filme High Life (2018) é uma experiência oportuna. Não pela curiosidade científica, mas pelo simbolismo cinematográfico ou mundano desse fenômeno astrofísico: aquilo que se esconde por trás do horizonte de eventos de um buraco negro poderia ser uma nova oportunidade de renovação. Mais precisamente, de “reciclagem”.
Ao lado da palavra “tabu”, são os dois conceitos centrais para entender o que representa o buraco negro no primeiro filme falado em inglês da diretora francesa Claire Denis – Deixe a Luz do Sol Entrar (2017), Bastardos (2013).
High Life emula os sci-fi cerebrais dos anos 1970, mas a comparação com 2001: Uma Odisseia no Espaço é inevitável. Não temos mais um HAL 9000 que dizima a tripulação de uma nave, mas uma cientista obsessiva com suas experiências em reprodução humana no espaço – a “xamã do esperma”, como diz cinicamente um dos astronautas de uma nave cujo nome é apenas um número: “sete”.
E nem o destino da missão é nobre: a tripulação não passa de cobaias em uma missão suicida: ex-condenados, alguns deles à morte, pela justiça na Terra e que aceitaram fazer essa jornada sem volta no espaço profundo. A missão: comprovar o chamado “Processo Penrose”, teoria do matemático Roger Penrose de que é possível extrair energia de um buraco negro em rotação.
Mas tudo isso é apenas o pano de fundo científico para discutir o “demasiado humano” – a solidão humana no espaço como o momento em que a espécie se confronta consigo mesma. Quanto mais longe da Terra, mais o homem encontrará a si mesmo. E isso pode não ser uma boa coisa.
Fonte: encurtador.com.br/hlwM3
O Filme
Em algum lugar do espaço profundo, muito além do sistema solar, uma nave viaja em direção a um buraco negro. No seu interior, uma tripulação que há muito morreu, mas todos estão conservados em sacos de plásticos criogênicos e tubagem industrial.Ainda há vida remanescente a bordo, um homem chamando Monte (Robert Pattinson) e sua bebê chamada Willow (Sacarlett Lindsey). Por entre corredores escuros e jardins desordenados em grandes estufas que fornecem oxigênio e alimentação, Monte ensina sua pequena filha a andar, alimenta-a e dedica toda sua atenção a sua única companheira viva.
No mesmo dia em que retira os cadáveres da sala criogênica e joga-os para fora no vácuo do espaço, Monte sintetiza sua sabedoria para sua pequena filha: “nunca beba o próprio mijo e a própria merda, mesmo que esses excrementos estejam reciclados e apresentando outra forma em que nada se assemelhem à forma original… isso se chama tabu”.
Nesse verdadeiro tratado sobre a solidão no espaço, “tabu” e “reciclagem” são conceitos-chave para entender High Life.
Fonte: encurtador.com.br/uy159
Como compreenderemos nos constantes flash-backs em uma narrativa não-linear (Claire Denis está menos interessada em explicações e muitos mais em dar pistas elípticas), toda a tripulação é composta por condenados – os mais diferentes tipos de desajustados e excluídos numa sociedade sobre a qual não temos muito detalhes. Uma coleção de seres humanos reciclados e transformados em cobaias numa missão suicida. O número que carregam nos uniformes (“sete”) parece indicar que eles não são os únicos: outras naves-prisões também foram enviadas.
Os sistemas de suporte vital da nave devem ser renovados a cada 24 horas e se eventualmente não restar ninguém vivo para fazer esse trabalho, a nave se autodestruirá.
Havia um piloto e supostamente o capitão da nave, mas quem parecia realmente comandar a tripulação era a Dra. Dibs (Juliette Binoche), médica encarregada de cuidar de todos a bordo. Porém, na verdade está obcecada com a colheita de óvulos e sêmen de todos para suas próprias experiências de reprodução e fertilidade humana.
Com seus cabelos longos e aparência obsessiva, Dibs mais parecia uma bruxa, a “xamã do esperma”, como
E mais: ela ainda conta com uma máquina chamada “fuckbox” – uma câmara no qual os tripulantes se masturbam e Dibs recolhe os preciosos fluidos humanos. Ela tenta sucessivas inseminações de óvulos fertilizados, porém os fetos tendem a morrer devido ao envenenamento pela irradiação espacial.
Fonte: encurtador.com.br/ixzBU
Monte é o único que se recusa a fornecer esperma à Dra. Dibs. Ele quer “guardar os fluidos para si mesmo” numa espécie de celibato proto monástico. Por isso, Monte é chamado de “monge” por todos. Apesar de serem criminosos tirados do corredor da morte das prisões, suspeitam que Dra. Dibs deva ter cometido crimes bem além da imaginação de todos.
Perversão, religião e ciência
O que é marcante em High Life é que não há relação sexual naquela nave composta por homens e mulheres. Não há cópulas, apenas perversões e muitos fluidos como leite materno, esperma e sangue menstrual.
Monte e Dra. Dibs criam a polaridade Ciência versus Religião para abordar os conceitos de reciclagem e tabu. A obcecada Dibs vê naquela tripulação de condenados à morte as cobaias perfeitas para suas pesquisas obscuras – a plasticidade da vida e as possibilidades infinitas de reciclagem e mutação são os paradigmas das suas pesquisas eticamente condenáveis.
Enquanto o “monge” Monte procura manter a integridade individual diante da máquina científica enlouquecida – condenados no espaço em uma missão suicida para buscar uma fonte infinita de energia nas bordas de um buraco negro. Sua abstinência e renúncia a desejos e emoções é quase uma atitude estética para fazer frente às frenéticas experimentações da Dra. Dibs.
Fonte: encurtador.com.br/kvHO7
Para Monte, são necessários tabus para criar algum tipo de limite ético entre as possibilidades infinitas da Ciência e o indivíduo mortal.
Para quem procura ficção-científica com efeitos especiais, design de áudio com assobios, blips, explosões e muito design futurista, High Life é a produção errada: sua força está muito mais no roteiro elíptico que lentamente vai cobrindo os espaços em branco dos porquês, do que nas convenções do gênero – o design da nave, da vestimenta dos astronautas e painéis da nave parecem desgastados, velhos, parecendo muito mais um escritório comercial abandonado.
High Life lembra em muitos aspectos 2001, só que numa odisseia muito mais obscura: o destino não é uma lua de Júpiter no qual a humanidade encontrará o seu futuro “Starchild”. Aqui, não: a nave-caixão ruma para o seu fim num buraco negro perdido no espaço profundo.
Claire Denis reserva ao espectador um final ambíguo, para além do horizonte de eventos daquele aspirador cósmico – Monte e sua filha Willow, agora crescida (Jessie Ross), verão no buraco negro a morte ou o renascimento. Ou será apenas uma reciclagem?
FICHA TÉCNICA DO FILME:
HIGH LIFE
Título original: High Life Direção: Claire Denis Elenco: Robert Pattinson, Juliette Binoche, André Benjamin País: França, Alemanha, Reino Unido, Polônia Ano: 2018 Gênero: Ficção científica
Pedra no Céu, publicado em 1950 por Isaac Asimov, configura mais um de seus romances intergalácticos com reflexões pertinentes que ultrapassam as fronteiras de tempo e espaço. Temos aqui preconceito, ganância, intolerância, bondade, ódio e tantos outros sentimentos que permeiam a experiência humana.
O primeiro momento do livro se passa em Chicago, no mundo que conhecemos hoje. O alfaiate Joseph Schwartz passeia por uma ruela, concomitantemente é realizado um experimento num laboratório de pesquisas nucleares na cidade. Por algum incidente não compreendido relacionado à radioatividade no experimento, Schwartz é transportado de um passo para o outro, literalmente, para um mundo desconhecido.
A partir desse momento, somos apresentados a este novo mundo. Nele, Schwartz começa a questionar sua própria sanidade, uma vez que um segundo antes estava a caminho de sua casa. No intuito de procurar e reconhecer algo ou alguém, sai à procura pela vasta floresta até que encontra uma casa. Seu primeiro contato aturdido com aquelas pessoas o deixa devastado: ninguém fala sua língua, todos se vestem de maneira diferente, a própria casa parece ser feita de porcelana.
As pessoas nessa Terra vivem sob a tutela do Império, o qual dita os Costumes que as pessoas devem seguir e para qual todos devem prestar contas. Um dos Costumes é o Sexagésimo. Nele, quando qualquer pessoa completa 60 anos de idade, têm de ser morta, pois é considerado um peso que não pode produzir, devendo dar espaço no mundo aos jovens. A família que recebe Schwartz oculta do Império a existência de um idoso cadeirante em sua casa e, necessitando de um membro a mais para ajudar na produção, se aproveita do surgimento misterioso de Schwartz. Com esse objetivo em mente, eles o levam ao Dr. Shekt na cidade de Chica, capital da Terra, para se submeter ao Sinapsificador, um aparelho que diz poder aumentar as habilidades intelectuais das pessoas. As consequências dessa modificação mudarão o curso da galáxia.
Um dos problemas notáveis na Terra é a superlotação e Asimov se apropria dessa preocupação de forma muito inteligente. Considerando-se que o medo da morte é um dos temas centrais da existência humana, cabe esperar que as pessoas encarassem o Sexagésimo com temor, ansiedade, quem sabe horror. No entanto, a perspectiva é amplamente aceita por todos com certa apatia: entendem que morrer aos 60 anos é extremamente necessário para o mundo.
Isaac Asimov – Fonte: https://goo.gl/qDmqG6
O Império presente neste livro é o mesmo da Trilogia da Fundação do autor e Asimov escreveu e editou seus livros posteriormente para que as linhas temporais e as referências pudessem estar presentes. Fruto de um Império ainda novo, vivendo no ano 827 da Era Galáctica, Bel Arvardan nos é apresentado como um arqueólogo e pesquisador imperial interessado em estudar a Terra e sua radioatividade, pois acredita que toda a humanidade se originara de um único planeta e que a radioatividade presente na superfície da Terra nem sempre estivera ali, mas fora fruto de atividade humana. É interessante a descrença que Asimov promove nas pessoas da Terra: é inconcebível que nós, que vivemos nesse mundo, utilizássemos de armas nucleares para com os nossos. A referência é clara, uma vez que em 1945, cinco anos antes da publicação do livro, os EUA atacam Hiroshima e Nagasaki e deixam milhares de mortos e afetados pela radiação. É de fato inacreditável para as pessoas da Terra que seja possível tamanha abominação contra a raça humana, mas a história nos diz o contrário.
Bel Arvardan, um personagem que vive suas próprias contradições durante o livro, tenta resolver o conflito de preconceito que vê em si mesmo e nos outros. Em Pedra no Céu, as pessoas são classificadas como terráqueos ou forasteiros e lidera um forte sentimento antiterrestrialista por parte desses últimos, pois a Terra agora é um lugar altamente radioativo, ridicularizado e seus descendentes sinônimos de perigo. Um dos objetivos de Arvardan é demonstrar a possibilidade de que, apesar de todo ódio e desdém com que os forasteiros tratam os terráqueos, todos tenham descendido de um único planeta e que as pessoas podem se tratar não por uma relação de medo e ódio, mas de cordialidade.
Ilustração de Isaac Asimov – Fonte: https://goo.gl/kTNooa
O personagem de Arvardan é claramente identificado com o Eterno Andrew Harlan descrito por Asimov no livro O fim da Eternidade, publicado cinco anos mais tarde. Os dois personagens vivem os próprios conflitos na sua personalidade austera, focada no trabalho e buscando a todo custo ignorar os seus sentimentos. Assim como o fracasso de Harlan se deu com o surgimento de Noÿs Lambent, uma não-Eterna, o de Arvardan se dá quando conhece Pola Shekt, uma terráquea, filha do inventor do Sinapsificador. A vida do Dr. Shekt, Pola, Arvardan e Schwartz se interligam de uma maneira surpreendente e cada superação de um obstáculo pessoal, seja de Arvardan a se entregar aquilo que sente, seja de Schwartz a processar o luto pela vida que vivia, converge para que o futuro da humanidade seja salvo.
Vivendo o eminente perigo de um vírus relacionado à radioatividade, Schwartz começa a desenvolver os vetores presentes nas contribuições de Pichón-Rivière sobre os grupos operativos, aqueles centrados na resolução de uma tarefa. Para que a tarefa seja realizada, devem ser elaborados dois medos básicos que surgem no processo de mudança: o medo da perda (quando existe o temor de perda pelo o que já se tem) e o medo do ataque (temor do desconhecido). Enfrentando a incerteza sobre tudo o que viveu e o que haveria de viver, com a esperança de rever sua família e angustiado pela perspectiva de que isso poderia não acontecer, Schwartz lida com o medo do ataque estando frente a situações radicalmente diferentes em sua vida, com pessoas das quais não conhece e em um mundo estranho para ele. Motivado pela tarefa de combater esse vírus, Schwartz passa pelo primeiro vetor de afiliação num processo mais demorado, pois implica o envolvimento do sujeito com a tarefa e com as demais pessoas do grupo. Guiado por tamanha desolação pela perda da família e seu mundo, um forte sentimento de raiva se apodera dele, o que dificulta tal envolvimento. Num processo mais rápido passa para o segundo vetor, chamado pertenência, em que pondera sobre sua participação, chegando então à pertinência e cooperação.
Nesse livro podemos observar aspectos mais cômicos se comparado aos livros posteriores do autor, o que torna a leitura muito agradável, além de reflexiva pelos pontos já citados. É comum nos surpreendermos rindo de algumas situações ou ficarmos apreensivos de tamanha imersão na psiquê dos personagens, fazendo com que repensemos conceitos que aplicamos à nossa vida cotidiana de maneira tão natural, sem nos questionarmos sobre. Uma obra que demonstra mais uma vez o talento de Asimov em nos fazer adentrar num mundo tão diferente e ao mesmo tempo tão próximo de nós.
FICHA TÉCNICA
Nome do livro: PEDRA NO CÉU
Editora: Aleph Gênero:Romance, Ficção Científica Autor: Isaac Asimov Ano de lançamento: 1950 Idioma: Português Ano: 2016 Páginas: 312
Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado (Eric Heisserer), Melhor Diretor (Denis Villeneuve), Melhor Fotografia (Bradford Young), Melhor Mixagem de Som (Bernard Gariépy Strobl e Claude La Haye), Melhor Edição de Som (Sylvain Bellemare), Melhor Design de Produção (Patrice Vermette ‘design de produção’ e Paul Hotte ‘decoração de set’) e Melhor Edição (Joe Walker).
Exibido no final de 2016 em todo o Brasil, o filme A Chegada, do prestigiado diretor canadense Denis Villeneuve, é baseado no livro The Story of Your Life, de Ted Chiang, e conta a estória da Dra. Louise Banks (Amy Adams), uma linguista que é convidada por militares para descobrir as intenções de um grupo de alienígenas que chega simultaneamente a estratégicos pontos da Terra, e pairam literalmente sobre nossas cabeças. “Conforme aprende a se comunicar com os aliens, ela começa a experienciar flashbacks que se tornam a chave para desvendar o propósito da visita”, escreve o site Omelete, especializado em cinema.
O enredo se dá pela lógica da combinação de um luto pessoal (o da Dra. Louise) com o intrigante processo de aproximação com uma civilização completamente estranha e mais avançada que a nossa. Neste contexto, não basta se utilizar de um aparato tecnológico de ponta para tentar mediar este contato e entender uma nova língua. É preciso recorrer à linguística para, então, ter um vislumbre de comunicação e um entendimento da linguagem em seu sentido mais lato.
Fica clara a influência – direta ou indireta – do pensamento do austríaco naturalizado britânico Ludwig Wittgenstein sobre a narrativa, tendo em vista que os limites da linguagem, expressas primorosamente no longa, também significam os limites do mundo. Portanto, mais que um processo comunicativo ou de comportamento, a linguagem seria intrinsecamente ligada à consciência e, entendida como uma forma lógica possibilita que as ambiguidades das proposições sejam extintas.
No caso do filme, a Dra. Louise tinha como desafio entender as reais intenções da chegada dos alienígenas. Vieram em missão de paz, ou queriam explorar os humanos? Esta dúvida só poderia ser debelada se se compreendesse a linguagem dos visitantes, num processo não apenas de reconhecer o fato em si (a chegada dos alienígenas ou os códigos da fala, a língua), mas a totalidade que está por trás de tal visita. Desta forma, o filme apresenta mais que um contato alienígena, ele remete a um alargamento de consciência a partir da mediação/decifração pela linguagem.
Também sobre esta temática, Quine diz que, no contato com outras formas de linguagem, somos perpassados pela “indeterminação da tradução”, fonte de instabilidade e incômodo, como fica claro no filme. Isso ocorre porque, para o autor, as palavras não tem significado próprio, mas estariam inteiramente ligadas a nossos padrões de comportamento. Além disso, aprende-se a linguagem como uma dinâmica social viva, e ao nos depararmos com um grupo de falantes cujos códigos linguísticos são radicalmente diferentes, surge uma barreira a ser transposta, sob pena de não se entender a visão de mundo destes falantes, e de não ampliarmos a nossa própria visão de mundo, a partir deste contato.
Comte-Sponville (2011, p. 352) diz que
A linguagem não fala, não pensa, não quer dizer nada, e não é uma língua; é por isso que podemos falar e pensar. A linguagem é apenas uma abstração: somente as falas, mas traduzidas em atos, são reais, e elas se atualizam apenas numa língua particular. Assim, a linguagem é mais ou menos para as línguas e para as falas o que a vida é para as espécies e para os indivíduos: sua soma.
Por fim, não por menos a Dra. Louise teve de encarar este desafio em uma fase da vida fortemente perpassada pelo luto. O filme, em parte, expressa as ideias cognitivistas de Gordon Bower, para quem os estados emocionais determinam a ênfase dada aos padrões de pensamento. Dra. Louise estava triste, com medo e confusa, estados que perpassavam as dinâmicas gerais de toda a humanidade, a partir do contato alienígena. Assim, o filme é um exemplo perfeito, para além de mentalismos, da associação entre estados de humor e os fatos externos, emoções e informações concretas.
A Chegada é, antes mesmo de uma ficção científica rebuscada, uma obra de pegada existencialista, é um vislumbre de panaceia futurista em que a língua, e depois a linguagem, além das emoções e das mudanças vertiginosas porque passa o mundo, se bem decifrados, podem conter a chave para mudanças verdadeiramente substanciais, individualmente e coletivamente falando.
REFERÊNCIAS:
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
O Livro da Psicologia (Vários autores). São Paulo: Globo, 2013;
Imagine só um lugar onde você pudesse fazer tudo o que quisesse e no qual fosse possível dar vazão aos seus impulsos mais secretos, pecaminosos e violentos sem quaisquer riscos ou consequências? Você consegue imaginar um lugar assim? Você gostaria de ir para um lugar como esse? Feliz ou infelizmente tal lugar ainda não existe na vida real, onde diversões possuem riscos e, muitas vezes, efeitos colaterais. Mas na ficção ele se chama Westworld, um parque de diversão para adultos que é tema de uma série de mesmo nome lançada em outubro pelo canal HBO.
Inspirada em um filme homônimo lançado em 1973 – no Brasil ele se chama Westworld – Onde ninguém tem alma (um ótimo subtítulo!) – a série possui um argumento semelhante mas tenta (e consegue) ir além, muito além da produção que a inspirou, tanto no enredo quanto no visual. A história básica de ambos é praticamente a mesma: em um parque voltado para adultos, especialmente para homens, androides com aparência humana atuam como anfitriões de “convidados” humanos que desejam viver romances e grandes aventuras no Velho Oeste – no filme original, além do Velho Oeste existem outros dois cenários: o mundo medieval e o mundo romano.
A grande questão tanto do filme quanto da série é que os androides são tão incrivelmente semelhantes aos seres humanos, que é praticamente impossível distingui-los – Westworld se configura, neste sentido, como um imenso Teste de Turing (na verdade, os androides são tão reais que seria mais correto dizer que o parque venceu o Teste de Turing).
Uma diferença crucial, no entanto, é que somente anfitriões podem se “ferir” e “morrer” – na realidade, nenhum é de fato ferido ou morto, pois são máquinas e não seres vivos, apenas o parecem sê-lo; os convidados estão, pelo menos em um primeiro momento, protegidos (o filme de 1973 deixa claro que os revólveres possuem sensores que impedem anfitriões e convidados de atirarem em convidados, mas não parece haver qualquer impedimento para que convidados firam ou matem convidados com outras armas; já a série, pelo menos até onde assisti, não deixa claro se anfitriões podem de fato ferir convidados com socos ou facas, por exemplo, ou se convidados podem atirar em convidados).
De fato há uma grande preocupação dos administradores do parque com a segurança dos convidados. No filme há uma cena em que uma cobra robótica morde um visitante, o que deixa a equipe transtornada. Um dos administradores então afirma ser “imperdoável ferir um hóspede”; e complementa: “Se não pudermos garantir a segurança dos hóspedes teremos sérios problemas”. A preocupação é legítima. Se os convidados pagam caro para ir a este parque (o filme fala em U$1000,00 por dia), o mínimo que esperam é que voltem inteiros da experiência.
Mas se a expectativa dos administradores diz respeito, dentre muitíssimas outras coisas, à segurança dos convidados, as expectativas destes vão muito além. O que eles esperam é não só voltarem vivos, mas também e principalmente viverem experiências intensas de sexo e violência que não podem colocar em prática na vida real com pessoas reais. Em Westworld tudo é permitido. Se quiserem roubar, podem; se quiserem matar, podem; se quiserem estuprar, podem.
Fonte: http://migre.me/vyfnp
Os convidados – majoritariamente homens – podem tudo. Como bem afirma Robert Ford, criador e administrador de Westworld na série, “os convidados gostam de poder. Como não podem tê-lo lá fora, eles vem aqui”. Os anfitriões foram criados – embora não o saibam – justamente para atender, entreter e satisfazer os convidados. Um dos protagonistas do filme afirma, nesse sentido, que “essas máquinas são servas do homem”. Pois é disto que se trata: de um exercício de poder, de dominação, de soberania e de masculinidade (de fato não há ambiente mais masculinizado e viril do que o Velho Oeste do parque).
Em Westworld os convidados são deuses que tudo podem. Lá, ao contrário da vida real, eles não estão submetidos a regras, a leis, a tradições, a rotinas e a constrangimentos de qualquer tipo. Lá eles podem ser e fazer o que quiserem, quando quiserem e da forma como quiserem. Como afirma Ford para sua equipe, os convidados “não querem histórias que lhes digam quem são. Eles já sabem quem são. Eles vem porque querem vislumbrar quem poderiam ser”. É possível ver nesta fala de Ford que um dos objetivos do parque é propiciar uma experiência de autoconhecimento para seus clientes.
Mas para além disso, a ideia central é que consigam colocar em prática, pelo menos no tempo em que estiverem no parque, tudo aquilo que não conseguem fazer no mundo real. Se na vida cotidiana, não conseguem ou não podem se aproximar de certas mulheres, lá todas estão à sua inteira disposição; elas foram concebidas justamente para atender aos desejos dos homens – e com uma “vantagem”: elas não se lembrarão de nada no dia seguinte, aconteça o que acontecer.
Se na rotina do dia-a-dia não convém esmurrar e muito menos matar as pessoas que lhe incomodam, lá isto é permitido e mesmo estimulado. Foi contrariado, questionado ou ironizado por alguém? Então atire! E pode atirar à vontade, pois no dia seguinte todos os anfitriões estarão novos em folha, prontos para serem mais uma vez alvejados por tiros. Quer roubar um banco e ainda sequestrar e estuprar a filha do banqueiro? Pode fazer sem medo, pois em Westworld você não será punido e não haverão consequências reais. Lá não há leis, não há moral, não há restrições. Lá, ao contrário do que ocorre na vida real, todos os convidados possuem total ou, pelo menos, grande controle do rumo dos acontecimentos. Eles sabem que tudo terminará bem e que eles serão, pelo menos por um instante, protagonistas e heróis de alguma história grandiosa. Lá eles são especiais.
Fonte: http://migre.me/vyfpW
De uma forma geral, o filme e a série possuem uma visão bastante negativa (ou será realista?) do ser humano. Liberto das amarras da sociedade, o homem livre é um ser puramente sexual e violento, parece nos dizer Westworld. E talvez seja realmente assim. Em sua clássica obra O Mal-estar na civilização, Freud argumentou justamente nesta direção. Segundo ele, viver em sociedade implica necessariamente na repressão e sublimação de grande parte de nossos impulsos sexuais e agressivos, o que traz como consequência uma permanente e inevitável sensação de mal estar.
Em sociedade não conseguimos e provavelmente nunca conseguiremos nos sentir plenamente satisfeitos. Viveremos eternamente frustrados e incompletos, sempre desejando aquilo que não temos e nem podemos ter. E talvez por isto todos ou muitos de nós nutramos internamente um enorme desejo de liberdade, um anseio permanente de nos libertarmos de tudo e de todos para que possamos viver e ser e fazer o que bem entendermos. Talvez por isso também nos regozijemos com obras de arte ou jogos (e Westworld é, em sua essência, um jogo) que permitem que vivamos experiências radicais e perigosas em ambientes controlados e seguros.
É como se ao assistirmos um filme de terror, por exemplo, pudéssemos dar vazão aos nossos medos mais profundos sem que de fato sejamos afetados. Como afirma um criador de jogos de terror realistas no episódio Playtest da série Black Mirror, “sempre gostei de fazer o jogador pular. Assustado. Se assustar e pular. Depois você se sente bem. Fica radiante. Por que? Por causa da adrenalina? Sim. Mas principalmente por ainda estar vivo. Você encarou seus maiores medos em um ambiente seguro. É uma libertação do medo. Você se liberta”. O objetivo de Westworld é semelhante: permitir ao convidado vivenciar experiências radicais em um ambiente controlado e seguro e possibilitar, com isso, que ele se sinta livre, leve e solto.
Fonte: http://migre.me/vyftO
No entanto, uma importante lição dos filmes de ficção científica é que nada é totalmente controlado e seguro, especialmente aquilo que é criado pelo homem. Desde a publicação do livro Frankenstein em 1818, esta ideia de que artefatos criados pelo homem podem sair do controle e se voltar contra o próprio homem, é repetida continuamente em inúmeras obras de arte. Pense por exemplo nos filmes Jurassic Park, Blade Runner, A mosca, O Exterminador do futuro, Inteligência artificial, Eu robô, O planeta dos macacos – A origem, Ex Machina, Transcendente, dentre muitos outros. Embora estas obras sejam muito diferentes entre si, todas compartilham da mesma premissa: quando o homem resolve bancar Deus e criar ou modificar a vida, inevitavelmente sua obra sairá do controle e ele acabará por pagar um alto preço por sua ousadia. Westworld não escapa desta premissa.
No filme de 1973 a situação começa a sair o controle quando uma cobra morde um convidado. A partir daí tudo vira um completo caos e os anfitriões acabam por matar todos os convidados, à exceção do protagonista. Já na série, o desenrolar do descontrole ocorre de uma forma mais lenta. Os anfitriões aos poucos começam a demonstrar comportamentos não-programados e a apresentar memórias de antigas atualizações.
Até o último episódio que assisti, a situação ainda não saiu totalmente do controle mas já dá para imaginar que isso ocorrerá em breve. E isto nos traz de volta à questão de se realmente é possível conceber um ambiente totalmente controlado e seguro. A resposta de Westworld e de toda uma tradição de filmes e livros de ficção científica é clara: não, o homem nunca terá total controle, nem do próprio destino e nem do destino daquilo que cria. As criações humanas serão sempre imperfeitas e incontroláveis, à imagem e semelhança de seus criadores.
Observação: eu acabei esquecendo de mencionar, mas as enormes semelhanças entre Jurassic Park e Westworld não são simplesmente mera coincidência. As histórias de ambos foram criadas pela mesma pessoa: Michael Crichton, que é autor do livro original e do roteiro de Jurassic Park assim como do roteiro do filme Westworld, que inspirou a série. O canal College Humor fez uma compilação das incríveis semelhanças entre as duas obras – veja aqui.