“Tomboy” levanta implicações sobre normas de gênero

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A sexualidade é um aspecto fundamental da experiência humana, que envolve não apenas os aspectos físicos e biológicos, mas também os sociais, culturais e psicológicos. Ela é uma parte intrínseca da identidade de cada indivíduo e desempenha um papel significativo em suas relações interpessoais e na forma como as sociedades são estruturadas.

A sexualidade abrange uma ampla gama de questões, desde a atração sexual, o desejo e a intimidade até a orientação sexual, identidade de gênero e a expressão da sexualidade. Além disso, a sexualidade é influenciada por fatores como valores culturais, religião, educação e experiências pessoais.

Nas últimas décadas, houve uma maior conscientização e aceitação da diversidade sexual e de gênero, levando a discussões mais abertas e progressistas sobre sexualidade em todo o mundo. Isso tem promovido o diálogo sobre questões como igualdade de direitos, educação sexual e a importância do consentimento, contribuindo para uma compreensão mais ampla e respeitosa da sexualidade em todas as suas formas.

Nesta introdução, exploraremos mais a fundo os diferentes aspectos da sexualidade, sua evolução ao longo do tempo e seu impacto na sociedade contemporânea analisando a parti da perspectiva do filme Tomboy (Céline, Sciamma, 2012)

Ao estudar a história do sexo, e mesmo a história do comportamento sexual, descobrimos uma cena estranha: quão repetitiva, para não dizer monótona, tem sido essa história (Gregersen, 1983). Com exceção de certas formas de perversão, encontramos as mesmas expressões sexuais e as chamadas “identidades sexuais” em todas as culturas. A cultura ocidental tende a patologizar, chamando de “desvio” as subjetividades que se desviam dos padrões socialmente construídos – perversões, travestis, transexuais, bissexuais e, até algumas décadas atrás, a homossexualidade – entre todos os grupos podem ser observadas. Humanos, incluindo outras espécies animais (Bagemihl, 1999). A interpretação, justificação, aceitação e/ou condenação da expressão sexual responde à visão da cultura relevante sobre a sexualidade, particularmente a forma como ela é representada nos mitos de origem (CECCARELLI, 2012).

Além disso, a forma como os diferentes grupos humanos lidam com a expressão do comportamento sexual está basicamente relacionada a dois movimentos que afetam diferentes áreas psicológicas e são, na maioria dos casos, considerados da mesma ordem: a repressão sexual e a repressão da sexualidade. O primeiro movimento, a repressão, envolve a desordem do incesto, que nos obriga a abandonar o nosso primeiro objeto sexual: “as exigências culturais da sociedade” (Freud, 1905/1976a, 232). A repressão existe em todas as culturas e é uma condição inegociável da sua existência. É o movimento que distingue e organiza os seres humanos.

A repressão da sexualidade está profundamente relacionada com a moralidade sexual e com o sistema de valores que sustenta o imaginário social que sustenta a moralidade atual:

A infância nem sempre é vista como uma etapa importante da vida para a construção subjetiva e a formação da identidade. Durante muitos séculos podemos perceber a natureza não representacional dos espaços cognitivos das crianças, uma vez que foram tratadas ao longo da história como adultos em miniatura, sem distinções entre eles em termos de cognição, identidade e subjetividade. Segundo Ariès (2011), a infância é um conceito social historicamente construído e com raízes europeias. O autor acredita que este conceito ocidental revela as peculiaridades das crianças, distinguindo as suas características dos adultos. Durante a infância, será formado um autoconceito, uma compreensão da separação entre o próprio corpo e os corpos dos outros e uma introjeção das relações culturais, sociais e linguísticas no ambiente. Afastando-se de uma visão do corpo como entidade biológica universal e, por outro lado, aproximando-se de uma visão pós-estruturalista em que o corpo é visto como uma estrutura social, histórica e linguística que gera e é afetada por diversas relações.

                                                                                                                             Fonte: adorocinema.com

 O poder (MEYER, 2004) pode ver as relações e representações de gênero como determinantes estruturais e não biológicos. Desde o momento em que nascemos, estamos enredados numa relação de discursos normativos, em que as interpretações sobre o que devemos fazer com os nossos corpos e desejos pairam em perspectivas naturalistas ou mesmo divinas. Uma criança recebe ao nascer um nome que a rotula como mulher ou homem com base em seu sexo biológico. Para as meninas, são adquiridos vestidos, bonecas e itens rosa. Perfeito para meninos, carros, bonecos e tudo que é azul. As meninas têm que gostar dos meninos; e estes, para as meninas. Mas e quando as coisas não vão tão bem?

O filme Tomboy (2011) levanta implicações sobre normas de género e apresenta-se como uma importante ferramenta para pensar e estudar as representações de género, evitando questões sobre o que significa identificar-se como menino ou menina. e naturalmente. O termo “moleca” é um termo norte-americano usado para se referir a meninas que se vestem e se comportam de maneira consistente com as expectativas tradicionais dos meninos (PAULINO, NUNES, & CASTANHEIRA, 2013).

                                                                                                                        Fonte: adorocinema.com

Segundo o autor do filme, esta obra trata de indagações e implicações a respeito das questões normativas sobre gênero e se apresenta como um significativo (DOCKHAN, 2011,), tendo como protagonista Raul, uma menina de dez anos, revelando-se ao público. O espectador é mostrado vestindo roupas tipicamente masculinas e cabelos curtos, o que a leva a ser identificada como um menino com base nas intersecções culturais, sociais e linguísticas em torno de questões de gênero.

Segundo Meyer (2004), representação de gênero significa as formas como são representados os processos de construção social, histórica e linguística envolvidos na diferenciação entre meninas e homens, nos quais os efeitos das relações de poder são desencadeados e sofridos. Os corpos deles. Assim, tomamos como aspecto principal do filme Tomboy (2011) as relações entre meninos e meninas, dentro desse cosmo de representações de gênero, o encontro com o corpo em mudança e/ou o desejo por essas mudanças. Este trabalho não pretende apresentar filmes num quadro literário. Mas apenas para colocar essa literatura em conversa com as muitas possibilidades que o cine estimula em nós.

A obra começa com a mudança de Raul e sua família para um bairro do subúrbio francês, com novos vizinhos, uma nova escola, nossos amigos e novas oportunidades/possibilidades, trazendo consigo a ideia de instabilidade/mudança de vida. Nessa cena, o filme continua mostrando Raul conhecendo sua vizinha Lisa. Por suas roupas tipicamente masculinas e cabelos curtos, Raul é identificado como menino pela personagem Lisa. A protagonista parece aproveitar esse espaço, consegue caminhar entre os dois gêneros e, ao ser questionada sobre seu nome, se identifica como Michael.

                                                                                                                         Fonte: adorocinema.com

Por suas roupas tipicamente masculinas e cabelos curtos, Raul é identificado como menino pela personagem Lisa. A protagonista parece aproveitar esse espaço, consegue caminhar entre os dois gêneros e, ao ser questionada sobre seu nome, se identifica como Michael.

Para Louro (1997), género refere-se à forma como as diferenças de género são vistas e compreendidas numa determinada sociedade, num determinado grupo social ou num determinado contexto, ou seja, não são as diferenças biológicas de sexo que definem as questões de género, mas sim as diferenças de género. Como essas questões se manifestam na cultura. O trecho da cena explica a conversa acima com a literatura apresentada, enquanto Raul/Michael tenta recriar o comportamento masculino culturalmente aceito para ser considerado o verdadeiro gênero masculino dentro de seu grupo.

A infância é uma fase repleta de descobertas e questionamentos e é a partir disso que Tomboy (2011) nos faz refletir sobre a representação do gênero e seu significado na vida social. Raul/Michael parece estar em um período de tolerância para ambos os tipos e se sente à vontade para fazê-lo.

Além disso, seus pais estavam dispostos a aceitar sua preferência por itens masculinos em detrimento de itens femininos, embora não apoiassem o fato de ela agir e se considerar um menino. O filme mostra-nos uma criança que expressa representações de género diferentes das representações de género normalizadas pela sociedade porque as suas roupas e cabelos são tipicamente masculinos e por vezes o seu comportamento é masculino. Diante dessa vontade de se vestir como menino e agir como menino, a protagonista levanta questões sobre sua identidade e representação de gênero. Antes de chegar à conclusão, o filme Tomboy levanta algumas questões. Da sua própria conclusão cinematográfica (que não permite ao espectador identificar Raul) às suas implicações teóricas sobre este universo, é um estudo de género, construção de identidade, condições sexuais e possível existência legítima não categorial, sem género, incondicional. As vivências “Tomboy” estão sempre em reticências.

Ficha Técnica

Ficha técnica do filme: Tomboy

Atores Principais: Laure/ Michael; Jeanne; Lisa; La mere; Lé Pere

Direção / Ano. Céline Sciamma/2011

Gênero do Filme: Drama

Tipo de Linguagem: Não recomendado para menores de 14 anos

Grau de entendimento(Fácil / Médio / Difícil): Médio

Temas abordados: Aborda o assunto da sexualidade na pré-adolescência.

Enredo(Resumo do filme): Laure (Zoé Héran) é uma garota de 10 anos, que vive com os pais e a irmã caçula, Jeanne (Malonn Lévana). A família se mudou há pouco tempo e, com isso, não conhece os vizinhos. Um dia Laure resolve ir na rua e conhece Lisa (Jeanne Disson), que a confunde com um menino. Laure, que usa cabelo curto e gosta de vestir roupas masculinas, aceita a confusão e lhe diz que seu nome é Mickaël. A partir de então ela leva uma vida dupla, já que seus pais não sabem de sua falsa identidade. 

 

 

REFERÊNCIAS

ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 2011.

Bagemihl, B. (1999). Biological Exuberance: Animal Homosexuality and Natural Diversity. New York: St. Martin’s Press.

Ceccarelli, P. R. (2012). Mitologia e perversão. In S. Pastori, & R. Nicolau (Orgs.), Encontro transcultural: subjetividade e psicopatologia no mundo. globalizado São Paulo, SP: Escuta.

DOCKHAN, J. “Tomboy”: Interview avec Céline Sciamma. Allo Cine. Paris, França. 2011. Disponível em: http://www.allocine.fr/article/fichearticle_gen_carticle=18603428.html/. Acesso em: 23/04/2014.

Gregersen, E. (1983). Práticas sexuais: a história da sexualidade humana. São Paulo, SP: Roca.

LOURO, G. Gênero e magistério: identidade, história e representação. In: CATTANI, Denise et al. (Org.). Docência, memória e gênero. Estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras, 1997.

MEYER, D. E. Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e desafios atuais. Revista Brasileira de Enfermagem. Brasília – DF, 2004.

PAULINO, A. G., NUNES, A. R., & CASTANHEIRA, M. A. M. Cinema e gênero nas lentes de tomboy. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X.

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“Eu não sou um homem fácil” – a inversão de papéis de gênero

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Damien (Vincent Elbaz) bate a cabeça e acorda em um mundo invertido onde o gênero masculino é o oprimido. A proposta francesa, inicialmente de comédia pastelão, subitamente nos imerge num mundo inverso onde as mulheres são o “sexo forte”, evidenciando a verdade do avesso. 

“Eu Não Sou um Homem Fácil” (título original: “Je ne suis pas un homme facile”) é um filme francês de comédia lançado em 2018. Dirigido por Eleonore Pourriat, o filme explora questões de gênero e igualdade através de uma premissa única. A história segue Damien (Vincent Elbaz), um mulherengo sexista que, após sofrer um acidente, acorda em um mundo onde os papéis de gênero foram invertidos. Neste mundo, as mulheres ocupam as posições de poder e influência, enquanto os homens são frequentemente objetificados e subjugados. Damien precisa se adaptar a essa nova realidade, enfrentando desafios que as mulheres enfrentam cotidianamente, como o sexismo no trabalho e o assédio sexual.

A sociedade retratada no filme evoca distopias frequentemente encontradas em filmes de ficção científica, sendo criações imaginárias usadas para satirizar e evidenciar aspectos da nossa realidade que uma parte da população talvez nunca tenha identificado – geralmente, aquela que não é oprimida. Em obras como ‘1984’, de George Orwell, é o cidadão comum que ousa vislumbrar além das limitações impostas. Em ‘Fahrenheit 451’, livro de Ray Bradbury adaptado para o cinema por François Truffaut, esse indivíduo tenta acessar algo proibido. Em ‘Jogos Vorazes’, de Suzane Collins,  vemos a espiral de opressão sendo quebrada por uma jovem que provém do estrato mais pobre daquela sociedade. No filme de Pourriat, um homem de nossa sociedade patriarcalista é transportado para uma realidade onde o matriarcado é uma norma estabelecida. Nessa sociedade, são as mulheres que detêm o poder, invertendo completamente os tradicionais papéis de gênero.

É possível observar, então, uma temática profundamente conectada ao sexo e à política, áreas que, segundo o filósofo Michel Foucault, são particularmente afetadas pela dinâmica de exclusão de discursos. Foucault exemplifica esse fenômeno de exclusão no artigo ‘A Ordem do Discurso’ ao discutir o descrédito historicamente atribuído à loucura. Desde a Idade Média, o discurso dos indivíduos considerados loucos é descartado como algo destituído de verdade e relevância. Essa mesma dinâmica de exclusão permeia o discurso feminista, visto que, na ótica machista, as mulheres são rotuladas como psicologicamente instáveis. Isso explica por que as reivindicações do movimento feminista frequentemente são descredibilizadas.

O filme aborda essa questão de forma direta. Em uma cena, por exemplo, Damien, já imerso no mundo invertido, renuncia ao seu cargo como assistente pessoal de Alexandra (Marie-Sophie Ferdane), uma escritora renomada. A resistência dela em aceitar sua demissão é acompanhada de acusações de que ele está se excedendo, atribuindo seu comportamento a uma crise de estresse. Quando ela se vê sem argumentos, recorre à desculpa de que ele está adotando um discurso “masculinista” (equivalente, neste universo, ao feminismo) como forma de justificativa para ignorar sua decisão.

                                                                                                                                  Netflix Brasil/reprodução

Um mulherengo sexista acorda em um mundo onde os papéis de gênero foram invertidos.

O longa possui algumas falhas, como a falta de exploração do fato de que, nessa sociedade “matriarcal”, os homens são livres para expressar emoções, deixando de abordar adequadamente a forma como o machismo prejudica, também, os homens. De acordo com os dados obtidos pela OMS em 2019, homens apresentaram um risco 3,8 vezes maior de morte por suicídio que mulheres, além de figurarem em uma estatística dez vezes maior de morte por crimes violentos. De acordo com os dados, as expectativas sociais em relação aos homens são capazes de aumentar o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, vícios, acidentes de trânsito e homicídios, além de contribuírem para o aumento das taxas de suicídio.

De tal forma que é possível apontar que o enredo dedica muito tempo ao relacionamento entre Damien e Alexandra. É compreensível que esse relacionamento sirva como pano de fundo para explorar a realidade invertida, oferecendo nuances às personalidades dos protagonistas, permitindo-lhes transcender os rótulos limitantes impostos pela sociedade. Porém, no universo criado há tantos pontos que poderiam ter sido mais explorados. A trama provoca temas como a religião em que, os personagens citam a divindade com pronomes femininos e como, historicamente, o matriarcado foi imposto a partir da visão de que as mulheres, por terem o poder de gerar uma vida em ventre, são o sexo mais forte.

Ademais, “Eu não sou um homem fácil” retoma um tema frequentemente debatido pelo feminismo, mas o faz de uma perspectiva única, desafiando até mesmo aqueles que não são militantes do movimento a sair de suas zonas de conforto. Apesar da abordagem muitas vezes leve, ele lança na tela uma realidade desconfortável para o espectador — uma realidade cruel de violência verbal e física que as mulheres passam diariamente.

Em última análise, embora o filme apresente exemplos tangíveis de assédio e padrões estéticos aos quais as mulheres são frequentemente submetidas, é crucial reconhecer que o machismo vai muito além do que é retratado. Estupro, feminicídio, violência doméstica e a negação do direito ao próprio corpo são questões extremamente urgentes que os movimentos feministas expõem e combatem incansavelmente. O que não é retratado tão fielmente no filme.

FICHA TÉCNICA

  • Título Original: Je ne suis pas un homme facile
  • Duração: 98 minutos
  • Ano produção: 2018
  • Estreia: 13 de abril de 2018
  • Distribuidora: Netflix
  • Dirigido por: Éléonore Pourriat
  • Classificação: 14 anos
  • Gênero: Comédia; Romance; Drama;
  • Países de Origem: França

Referências:

COSTA, Juliana. “Eu não sou um homem fácil” traz ironia como arma. Palmas-TO. Disponível em <: https://www.folhape.com.br/cultura/critica-eu-nao-sou-um-homem-facil-traz-ironia-como-arma/68955/  >. Acessado em 27 out. 2023.

VIEIRA. Letícia. Feminismo de “Eu não sou um homem fácil” silencia seus próprios aliados. Palmas-TO. Disponível em <: https://medium.com/@mcarolinasoares_86413/feminismo-de-eu-n%C3%A3o-sou-um-homem-f%C3%A1cil-silencia-seus-pr%C3%B3prios-aliados-88c21c0dac95>. Acessado em 27 out. 2023.

(Sem autor definido) Os efeitos da masculinidade tóxica na saúde do homem. Disponível em <: https://summitsaude.estadao.com.br/desafios-no-brasil/os-efeitos-da-masculinidade-toxica-na-saude-do-homem/ >

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A construção social da maternidade

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No Brasil, o conceito de gênero também surge no século XX, e fora apresentado como uma categoria analítica, sendo o nome dado à imagem que a sociedade construiu do masculino e do feminino. Sendo assim, Safiotti (2006) pontua que a introdução do conceito de gênero ocorreu pela recusa do determinismo biológico, a repulsa sobre “a anatomia é o destino” que era imposto naquela época. Dessa maneira, a sociedade e os pesquisadores passam a dar uma atenção maior à relação estabelecida entre homem-mulher e suas implicações.

A partir disso, o sujeito passa a ser considerado como um ser histórico e social, onde suas relações são ponderadas pelo gênero, mas também reguladas pela classe social, raça/etnia e pela sua multiplicidade. Assim como Scott (1988) pontua, o gênero é não somente como uma categoria analítica, mas também histórica, estabelecendo a cultura, as instituições sociais, a subjetividade e a ordem social como mecanismos envolvidos pela disposição dele. A autora completa sinalizando o gênero como essencial para a dinâmica das relações de poder e para estruturar simbolicamente toda a vida social.

Concomitantemente, Badinter (2011) pontua que os movimentos feministas começaram a se articular para que a maternidade passasse a ser vista de acordo com as condições econômicas, sociais e culturais das mulheres e da família em geral. Ademais, Akotirene (2019) pontua que esse fenômeno permite que se possa questionar preconceitos, desigualdades, submissões de gênero, de classe e raça e as violências estruturais da matriz colonial moderna da qual surgem. Desse modo, a terceira onda do feminismo foi marcada pela luta por espaços de atuação nas políticas públicas, assim como atendimento qualificado às mulheres de todas as classes e raças, inclusive aquelas que viviam em vulnerabilidade social (Sousa, 2015). 

Ariès (1986) disserta que é ao longo do século XVI que surge a ideia de hierarquização da família de acordo com as idades e, a partir de então, começa a ser retratado nas obras cenas que ilustravam não apenas o sentimento de infância, mas também o sentimento de família. Em vista disso, as gravuras começam a demonstrar quais as funções instituídas a cada um do seio familiar, no qual a mulher cuidava dos filhos ou da casa e o marido fazia as contas enquanto as crianças brincavam. Daí começa a ser introduzida a imagem da mãe cuidadora, a que vigia o filho no berço, que amamenta, a que limpa a criança, entre outras funções, além disso, também é inserida a imagem dos criados e das amas junto à família (Ariès, 1986).

Diante disso, a partir do século XVII, Ariès (1986) disserta que as pinturas passam a ser caracterizadas pela vida privada, pelo que ocorria dentro do lar doméstico, além da família ser relacionada somente aos laços de sangue e às vivências dentro de casa. Ademais, “essa evolução reforça os poderes do marido, que acaba por estabelecer uma espécie de monarquia doméstica” (1986, p. 214), onde era amparado pela legislação real a retenção do poder no que refere-se à esposa e aos filhos. Desse modo, há uma mudança nos hábitos cotidianos e na ordem social. Toda essa dinâmica social fora muito influenciada pelo Catolicismo, que tinha Maria como a virgem pura, submissa e obediente ao seu Deus e ao seu marido José, tendo assim como base a Sagrada Família.

Considerando a autoridade do discurso religioso, a maternidade era tida como algo extremamente sagrado, assim, Moraes (2021) traz que a arte em meados do século XIX representava o feminino ligado à essência maternal, transcendendo uma decisão inegável, uma atuação limitada na sociedade. Logo, na dinâmica familiar, a maternidade era naturalizada, tida como um dever social às mulheres, enquanto os homens tinham participação através do domínio. Junto à isso, […] “vários moralistas, filósofos, médicos e legistas falavam em nome de uma natureza feminina; em defesa da nação, começaram a pensar como deveria ser uma mãe e o que se poderia esperar dela” (MORAES, 2021, p.38/39).

Daí em diante, o Estado, a igreja e a medicina passam a ser dispositivos de controle às práticas maternas, onde incentivaram o cuidado pelas mães biológicas e atribuíam sentido à idealização do amor materno, assim como Moreira (2009) aborda que a mulher passa a ser vista como responsável por passar a moralidade para os filhos, cuidar do lar e prover obediência ao homem. Desse modo, a Igreja torna-se um dispositivo de controle e ordem social, onde estabelecia normas de conduta para o casamento pautadas no sistema patriarcal que considerava a supremacia do homem sobre a mulher, doutrinando as práticas femininas e estimulando a reprodução (Venâncio, 2004).

Dessa maneira, infere-se uma construção do feminino a partir da maternidade, assim como discorre Badinter (1985) quando destaca que a mulher é designada para a maternidade, mas não somente o ser-mãe, mas ser uma excelente mãe para ser uma excelente mulher. Como afirma Colares e Martins (2016), os sentidos atribuídos à maternidade passam a ser ligados ao amor e cuidado, considerando um valor ideal a ser seguido, sendo assim introduzido o mito do amor materno. Para Resende (2017), o mito do amor materno operou como um fator determinante para a sistematização da sociedade, visto que, mediante a crença irrefutável do amor natural, foram desenvolvidas normas sociais de comportamento que interessavam ao Estado.

Fonte: Pixabay

Resende e Bedran (2013) atribuem o surgimento do mito do amor materno como essencial para um movimento de dimensão econômica que influenciará tanto as regras sociais quanto a relação entre os indivíduos. Temos que o amor materno fora idealizado juntamente com o modelo padrão de família burguesa, que inclusive era regido pelo modo de produção capitalista. Para Badinter (1985), o amor materno se configura como um mito a partir do momento em que surge a valorização da ideia de instinto maternal e do amor natural de toda mãe pelo filho.

Essa alusão ao amor materno espontâneo perpassa gerações e possibilita ao Estado, através do capitalismo e do patriarcado, controlar os comportamentos das mulheres. Assim, a partir da crença irrefutável do amor materno, era possível além de controlar, punir aquelas que não seguiam a ordem social estabelecida, seja através da Igreja (pecado) ou do determinismo médico (patologia). Dessa maneira, o mito do amor materno é um dos maiores dispositivos de poder do sexo masculino sobre o sexo feminino.

Moreira (2009) destaca que no final do século XIX, com a ascensão do sistema capitalista e o advento da Revolução Industrial, a função da mulher que até então era privada à maternidade, começa a ser exercida em espaços públicos. Essa mudança se dá pelas modificações nos modos de produção, onde houve a necessidade da mão de obra feminina nas fábricas com intuito de aumentar a produtividade. Além disso, o autor aponta que no século XX, com as Guerras Mundiais, houve um aumento da mulher no mercado de trabalho, visto que os homens eram recrutados para lutar na guerra e as mulheres tinham que assumir as finanças familiares. 

Esses acontecimentos históricos foram necessários para que a mulher pudesse ter outras possibilidades além da maternidade, passando de um modelo tradicional para um modelo moderno de maternidade (Moreira, 2009). Dessa maneira, com o acesso à educação, ao mercado de trabalho e com a autonomia nos negócios, a mulher passa a ter variáveis funções na sociedade, mesmo que a figura feminina do lar ainda fosse predominante. Em vista disso, Simone de Beauvoir declara que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade” (2009, p. 312).

Para a autora citada, o amor materno é constituído a partir da relação estabelecida entre mãe-filho e não algo natural que decorre de todas as mulheres, bem como o ser-mulher, sendo algo construído socialmente a partir das relações e do trabalho. E é por isso que Akotirene (2019) disserta sobre a interseccionalidade como fator importantíssimo para o questionamento da mulher universal, visto que, de acordo com a cor/raça e classe, essa maternidade pode ser afetada positivamente ou negativamente, mesmo a maternagem obrigatória sendo um aprisionamento imposto pelas mazelas sociais para todas as mulheres.

Para Badinter (2011), foi a partir dessa mobilização feminista que a maternidade passou a ser desassociada ao destino feminino, podendo ver novos sentidos no ser-mulher para além da maternidade. Para isso, foram constituídos os princípios e normas dos direitos reprodutivos pela Constituição Federal do Brasil e pelos Direitos Humanos. Posto isso, Scalone (2001) destaca que no fim do século XX, com o surgimento dos métodos contraceptivos, há uma renúncia significativa da maternidade, proporcionando para as mulheres a possibilidade de escolha no âmbito pessoal e profissional. Desse modo, os avanços tecnológicos surgem como grande aliado das lutas feministas, uma vez que através das pílulas anticoncepcionais e dos métodos contraceptivos, permitiu-se a prevenção e escolha sobre ter filhos ou não (Barbosa; Rocha, 2007).

Ademais, o surgimento dos utensílios de apoio para cuidados dos bebês, como a mamadeira e o carrinho de mão, permitiam que as mães pudessem dividir as tarefas com terceiro e permanecer nas atividades do mercado de trabalho para além das domésticas. Daí em diante, no século XXI, Badinter afirma: “é como se a criança não fosse mais a prioridade das prioridades” (2011, p. 31). Sendo assim, pode-se atribuir outro valor à maternidade, que surge não como destino social, mas como uma escolha que divide espaço com diversas variáveis sociais e pessoais, bem como o adiamento da maternidade ou optar por não ser mãe. Todavia, essa escolha não é tão espontânea assim, visto que sofre influências externas o tempo inteiro. 

Além disso, Badinter (2011) aborda sobre o ressurgimento silencioso da visão naturalista a partir das práticas médicas e religiosas. Essas práticas circundam muito no âmbito da moralidade, que gira em torno do que é certo ou errado para determinada instituição social. Desse modo, vemos que a postura naturalista pode convocar novamente a ideia de amor instintivo, inato de mãe para filho, em que ela fica totalmente responsável pelo desenvolvimento saudável do filho e deve ser uma “boa mãe”. Em contraste, aquelas que não seguirem tal modo são atravessadas pela culpa moral.

Concomitante a isso, percebe-se, no século XXI, duas visões de mundo diferentes sobre a maternidade. Enquanto os discursos naturalistas e religiosos introduzem que a mulher mãe tem que ficar mais tempo com os filhos durante seu crescimento e desenvolvimento, o discurso capitalista aponta a necessidade de aumento de produção através da mão de obra feminina. Por isso, é preciso considerar na contemporaneidade, a pluralidade de discursos sobre as maternidades para que não reincida no determinismo biológico e nas armadilhas do capitalismo. 

Assim, entende-se que a maternidade é uma condição de instabilidade de sentimentos, pois pode ser gerada pelo meio e pelo que é internalizado a partir do meio, sentimentos satisfatórios ou insatisfatórios sobre o ser mãe. Por isso, é preciso compreender a maternidade em sua totalidade, considerando em como a maternidade foi construída, nas relações interpessoais da mãe e do filho, se há ou não rede de apoio, entre outros aspectos. Ademais, considerando a perspectiva interseccional, é importante pensar que a maternidade será vivenciada de modos diferentes, visto que são pessoas diferentes e em contextos diferentes de vida.

REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Pólen Produção Editorial Ltda, 2019.

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985

BADINTER, E. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record, 2011.

BARBOSA, P. Z.; ROCHA, M. L. Maternidade: novas possibilidades, anti-gas visões. Psicol. clin. Rio de Janeiro , v. 19, n. 1, p. 163-185, 2007

COLARES S. C. S; MARTINS R. P. M; Maternidade: uma construção social além do desejo. Revista de Iniciação Científica da Universidade Vale do Rio Verde, Três Corações, v. 6, n. 1, p. 42-47, 2016

MORAES, M. Maternidade: Uma Análise Sociocultural. Editora Appris, 2021.

MOREIRA, R. Maternidades: os repertórios interpretativos utilizados para descrevê-las. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Uberlândia, 2009.

RESENDE, D. K. Maternidade: uma construção histórica e social. Pretextos-Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas, 2(4), 175-191, 2017

RESENDE, D. K., BEDRAN, P. M. As construções da maternidade do período colonial à atualidade: uma breve revisão bibliográfica. Revista Três Pontos, 14(1), 2013.

SAFFIOTI, H. I. B. Ontogênese e filogênese do gênero. 2006.

SCAVONE, L. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Cadernos pagu, 137-150, 2001.

SCOTT, J. W. (1986) Gender: A Useful Category of Historical Analysis, American Historical Review, Vol. 91, Nº 5. Também publicado em HEILBRUN, Carolyn G., MILLER, Nancy K. (orgs.) (1988) Gender and the Politics of History. Nova Iorque: Columbia University Press, p. 28-50. Versão brasileira: Gênero: uma categoria útil de análise histórica, Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS, 1990.

SOUZA, S. MARTINS, T. Patriarcado e capitalismo: uma relação simbiótica. Temporalis, v. 15, n. 30, 2015.

VENÂNCIO, R. P. A maternidade negada. In: PRIORE, M.D. (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, cap. 6, p.159-186; 2004.

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O poder dos homens sobre a sexualidade das mulheres

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Um conceito derivado do machismo que durante muitos anos foi ensinado a sociedade fortalecido desde os tempos antigos, é de que a mulher deve ser vista como um suporte ao homem, que deve sempre lhe dar apoio, e que ao mesmo tempo se torna menos que o mesmo.  Tal característica é apresentada desde a Idade Antiga quando houve início a sociedade patriarcal, que tem como forte aspecto a supremacia do homem, no poder, na política, nas decisões etc. As decisões e escolhas das mulheres eram negadas a elas, e o poder sobre o seguimento de suas vidas era hora destinado ao pai que decidia com quem a filha iria se casar, hora ao marido que lhe dava a casa e filhos para que ela pudesse cuidar e hora a igreja que falava sobre o que era certo e o que era errado (CARELLI, 2017).

Como forma de exercer poder sobre as mulheres e sobre a legitimidade dos filhos, o sexo era pregado pela igreja durante a Idade Antiga e a Idade Média, como pecado. Para a mulher casada era visto como algo sujo e errado, já para os homens, um pecado que podia ser cometido com mulheres em prostíbulos, para assim manterem suas esposas puras. Existiam nessa época diferentes tipos de acompanhantes, inclusive mulheres que tinham acesso ao estudo e ao aprendizado sobre música e arte para que pudessem entreter seus acompanhantes (LINS, 2012).

Durante a Idade Moderna, a ideia de amor romântico surge, e a mulher é levada a crer desde a sua infância na existência de príncipes encantados, que iriam conquista-las, e a quem deviam seu amor fervoroso e lealdade. A virgindade da mulher passa a ser vista como um presente que deve ser dado a uma pessoa especial. Já aos homens a ideia de conquista desse presente guardado a sete chaves, era visto como um ato de virilidade, e que a conquista de vários e o desejo das mulheres sobre esse homem, relacionava a ideia de certo poder (LINS, 2017).

Nos dias atuais, falar sobre sexualidade ainda é de certa forma um tabu. Não é permitida a educação sexual nas escolas, embora possam ser encontradas facilmente notícias sobre abuso sexual. Em alguns meios religiosos, ainda são apontados como pecado a procura do prazer sexual, ou a masturbação. E a mulher ainda sofre muitos preconceitos e pode ser considerada uma mulher sem valor, por querer exercer sua sexualidade da forma que deseja.

De acordo com Castro (2009), é perceptível entre os jovens ainda a ideia de que a meninas que exercem sua sexualidade, ou demonstram seus interesses afetivos e sexuais, são vistas pelos meninos, como sem valor e vulgares. Os jovens ainda apontam que essas meninas apenas servem para relacionamentos passageiros ou ficadas. Apesar disso, meninos da mesma idade, apresentando os mesmos comportamentos são vistos como conquistadores, e recebem certo conhecimento por terem muitos relacionamentos.

Leal (2003) coloca que há uma preocupação entre as jovens mesmo nos dias atuais, a relacionarem sua primeira relação sexual a um relacionamento afetivo, ou sentimentos de paixão e amor. Isso pode ocorrer devido a ainda nos dias atuais, a mulher ser levada a crer também desde a infância na ideia de que a mulher que exerce sua sexualidade ser mal vista.

Segundo Francisca e Luis (2008), é possível notar que a mulher quando exerce os mesmos comportamentos esperados do homem, como na normalização do adultério, ou a busca pela satisfação conjugal quando insatisfeita na relação em que se situa, pode ser ainda mal vista pela sociedade em que se encontra, e questionada ou influenciada a retomar uma relação que decidiu pôr um fim.

É apontado ainda, segundo Rodrigues (2008), que as mulheres nos dias atuais podem exercer maior controle sobre as finanças, e conquistam a estabilidade financeira antes de seus cônjuges. Apesar disso, podem ser percebidos sentimentos de baixa autoestima por parte dos homens que se sentem como se não tivessem obtido sucesso ou das mulheres sobre como se sentem estando ao lado de homens que dependem financeiramente dela, isso pode ocorrer devido a busca de papéis em que o homem é colocado como detentor do poder, o que pode influenciar na intimidade do casal.

Sendo assim, é percebido que as mulheres apesar de conquistarem muitos direitos, e poderem escolher sobre seus desejos e vontade, acabam por serem influenciadas a conceitos antigos que colocam a mulher como uma figura pura, e que será levada a sério se manter-se recatada. As mulheres acabam por cobrarem e vigiarem seus comportamentos com receio de serem julgadas, ou cobram de si mesmas, retorno a papéis em que o homem seja o detentor do poder.

REFERÊNCIAS

CASTRO, R.J.S. Violência no namoro entre adolescentes do Recife: em busca de sentidos. 2009. 119 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2009. Disponível em:<https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/13609> Acesso em 23 de setembro de 2021.

DIEHL, A. VIEIRA, D. L. Sexualidade – do prazer ao sofrer. 2. ed. São Paulo: Roca, 2017.

FRANCISCA, L.A.; LUIS, F.R.N. Homens cornos e mulheres gaieiras: infidelidade conjugal, honra, humor e fofoca num bairro popular de Recife/Pe. 2008. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. Disponível em:<https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/471> Acesso em 23 de setembro de 2021.

LEAL, A.F.. Uma antropologia da experiência amorosa: estudo de representações sociais sobre sexualidade. 2003. Disponível em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/2098/000364088.pdf?sequence=1>. Acesso em 16 maio de 2021.

LINS, R.N., 1948. O livro do amor, volume 1 [recurso eletrônico] : da Pré-história à Renascença / Regina Navarro Lins. Rio de Janeiro: Best Seller, 2012.

LINS, R.N. Novas formas de amar / Regina Navarro Lins. São Paulo: Planeta do Brasil, 2017.

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Divisão sexual do trabalho: desigualdade e desvalorização da mulher

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A divisão sexual do trabalho ocorre devido a divisão do trabalho social relacionado a questões de gênero. Desde a Antiguidade, o homem era responsável pela caça, enquanto a mulher conhecida como única responsável pela reprodução era encarregada pelo cuidado e zelo dos filhos. Porém com o passar do tempo e a revolução industrial, a mulher passa a lutar pelo seu espaço no meio social e trabalhar nas fábricas, a força já não era um requisito principal para a prática do trabalho fora do âmbito familiar (KERGOAT, 2000).

Nos dias atuais, embora as mulheres estejam cada vez mais conquistando seus direitos e lutando pela diminuição da desigualdade entre homens e mulheres, o que se percebe é que o papel da mulher continua relacionado ao cuidado do lar, e dos filhos. Apesar de terem a possibilidade de ocuparem lugares como a construção civil e exercerem profissões ditas como “profissões para homens”, ainda recebem salários menores que os homens.

Essa situação se intensifica quando falamos sobre as mulheres negras. As mulheres negras sofrem ainda com o preconceito por sua cor de pele, e na maioria das vezes são relacionadas à profissão de empregada doméstica. Levando em conta as estatísticas que apontam o baixo nível de escolaridade, acabam por terem ainda mais dificuldade em conseguir cargos melhores, ganhando menos ainda nas suas funções que as mulheres brancas (LIMA; CARVALHO, 2016).

Fonte: encurtador.com.br/jvyAC

Existem profissões em que as mulheres possuem uma maior facilidade em dominar a liderança nas contratações, porém, até neste ponto é nítido o estereótipo criado em volta da mulher. Geralmente são profissões voltadas ao cuidado, ou semelhantes às atividades domésticas, como por exemplo, professoras ligadas ao cuidados e educação de crianças, enfermeiras ligadas ao zelo, demonstram discursos colocando a mulher como direcionada para essas profissões ditas femininas devido a fragilidade, delicadeza e feminilidade (SILVIA; MENDES, 2015).

Dessa forma, a pirâmide de rendimentos no qual no topo dela está o homem branco seguido de homens negros, depois de mulheres brancas e por fim de mulheres negras ainda continua em manutenção de forma bem evidente, atual e cruel. Com isso, negras ganham menos, mesmo com vários anos de estudos ou o ramo no qual exerce sua profissão, pois está sobreposto a duas condições: a de ser mulher e a de ser negra (raça e gênero).

Com o contexto atual, a luta das mulheres seja através do feminismo ou na vivência do trabalho a cada dia que passa nas atitudes de questionar desigualdades ou buscar melhorias, procura cada vez mais, mais conquistas para as mulheres, buscando dessa forma diminuir a desigualdade entre homens e mulheres. Tentando dar à mulher a oportunidade de ocupar seu espaço de forma justa, sem ocupar os lugares dos homens, mas sim o seu próprio lugar.

REFERÊNCIAS

KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. Trabalho e cidadania ativa para as mulheres: desafios para as políticas públicas. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, p. 55-63, 2003. Disponível em:<https://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/05634.pdf#page=55>. Acesso em 08 julho de 2021.

LIMA, R. M.; CARVALHO, E. C. Destinos traçados? Gênero, raça e precarização e resistência entre merendeiras do Rio de Janeiro. Revista da ABET, v. 15, n. 1, p. 114-126, 2016. Disponível em:<https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/31263> Acesso em 15 julho de 2021.

SILVA, M.C.; MENDES, O.M. As marcas do machismo no cotidiano escolar. Caderno Espaço Feminino, v. 28, n. 1, 2015. Disponível em:<http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/31723>. Acesso em 23 maio de 2021.

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Bravura e sobrevivência – (En)Cena entrevista a advogada Flávia Paulo

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“Mesmo antes da pandemia, o Brasil já era o 5º país do mundo no índice de feminicídios [1], há anos figura entre os piores em termos de desigualdade de renda e é considerado o país que mais mata pessoas LGBTQI+ [2]. Após a pandemia esses índices irão demonstrar cenários complicados para nós mulheres”.
Flávia Paulo

Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de Campinas aponta que a população LGBTQI+ se sentem mais vulneráveis ao desemprego e à depressão por causa da pandemia. Segundo dados do Núcleo de Gênero e Diversidade – NUGEN [3], divulgados em 2020, dos dez mil brasileiros entrevistados 44% das lésbicas; 34% dos gays; 47% das pessoas bissexuais e pansexuais; e 42% das transexuais temem sofrer algum problema de saúde mental durante a pandemia do novo coronavírus.

O estudo revela ainda que 21,6% dos LGBTs entrevistados estão desempregados enquanto que o índice total no Brasil é de 12,2%, segundo o IBGE.

Neste contexto, a revista (En)Cena entrevista a advogada, militante ativista do movimento lésbico e usuária ativa das redes sociais Flávia Paulo aponta sua perspectiva sobre os desafios de ser mulher, LGBTQI+, atuar como jurista e ter sucesso profissional no Brasil da pandemia. Destaca, ainda, os impactos positivos de saber a hora de parar, desligar-se do trabalho e manter uma vida pessoal equilibrada para manter saúde mental e reinventar formas de sobrevivência no pós-pandemia.

Flávio Paulo. Foto – Arquivo pessoal

(En)Cena – Considerando o seu lugar de fala, de mulher, advogada, ativista do movimento lésbico e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID 19?

Flávia Paulo – As limitações dentro desse padrão no qual faço parte, são evidentemente sentidas no cotidiano. Para ser mulher neste contexto precisamos encarar de frente e com muita bravura todas as limitações que são impostas a nós. A pandemia gerada pelo novo Corona vírus intensificou todas as crises que já faziam parte das realidades aqui no Brasil. Um dos temas que a covid-19 trouxe à tona para a sociedade brasileira foi a dimensão da divisão sexual do trabalho em relação ao trabalho não-pago realizado no interior das famílias. No cenário brasileiro, a crise sanitária se soma à crise de governança, resultando num pandemônio que produz mais precariedades e violências contra as classes minoritárias. A voz da mulher merece ter além de espaço, força, pois nada adianta os disfarces de oitivas seguidos de engavetamento de suas ideias e pensamentos. As redes sociais estão cada vez mais sendo utilizadas para demonstrar essas realidades. Utilizo as minhas redes sociais para o fim comercial e também para a criação da minha persona, mulher, lésbica, advogada e independente para que com isso eu consiga gerar sentimentos de acolhimento para aquelas que se sentem muitas vezes desestimuladas a serem quem elas querem ser ou se sentem indiferentes e possam ter coragem de assumir uma vida livre ou pelo menos tentar.

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(En)Cena – Como a saúde mental (sentimentos e emoções) das mulheres interfere em tomadas de decisões acertadas ou equivocadas em termos de direito?

Flávia Paulo – Acredito que seja de forma individual, pois temos mulheres técnicas nas quais nada ou quase nada interfere suas emoções e sentimentos nas tomadas de decisões, como temos também em contrapartida mulheres que se deixam levar por sentimentos e emoções que acabam influenciando em decisões que deveriam ser tomadas apenas por critérios técnicos. Mas entendo, que seja algo mais relacionado à capacidade humana do que a distinção entre gêneros. Conheço homens, advogados, juristas, extremamente emocionais e que se deixam ser influenciados a ponto de tomarem decisões técnicas baseadas em sentimentos. Já recebi decisões judiciais baseadas claramente em sentimentos pois não se enquadram no código de processo civil, no direito material e sim na mais pura opinião pessoal do magistrado.

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(En)Cena – Quais estratégias você indica para que as mulheres mantenham saúde mental no curso de um processo judicial?

Flávia Paulo – O que você faz quando desliga o seu computador é um fator que irá determinar se terá saúde mental ou não. Com o computador aberto, sofrendo as pressões tanto de clientes, como de colegas e magistrados, eu entendo ser muito improvável que a mulher consiga ter saúde mental. Me refiro a máquina (computador) pois estamos em pandemia, e a advocacia hoje acontece de forma virtual, na máquina. E desligar a máquina e tentar ter sua vida pessoal longe dela, eu vejo como primordial para uma saúde equilibrada, caso contrário você será consumida aos poucos. Mas a máquina pode ser estendida a qualquer tipo de objeto ou pessoas que te liguem ao seu trabalho. Ter sua vida pessoal é primordial.

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(En)Cena –  Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?

Flávia Paulo – Importante destacar que na história, toda crise social atingiu com mais intensidade as mulheres e isso será sentido no mundo pós-pandemia. Isto porque esse impacto é maior nas mulheres e isso está ligado ao machismo estrutural. A sobrecarga e acúmulo de funções, a carga mental invisível. Isso tudo terá uma consequência nos próximos anos que será perceptível. É preciso, ainda, contextualizar que mesmo antes da pandemia, o Brasil já era o 5º país do mundo no índice de feminicídios, há anos figura entre os piores em termos de desigualdade de renda e é considerado o país que mais mata pessoas LGBTQI+. Após a pandemia esses índices irão demonstrar cenários complicados para nós mulheres. Essa polarização de mulheres contra homens, feministas contra não feministas, isso tudo já está muito mais ativado agora no cenário epidêmico e terá graves consequências contra os direitos das mulheres e contra sua própria dignidade, o que será externamente sentido quando a pandemia não for mais o foco e a sociedade entender o que as mulheres tiveram que se submeter durante a pandemia. E como nos ensinou Angela Davis: “Precisamos nos esforçar para erguer-nos enquanto subimos”. E com isso as mulheres mais uma vez terão que reinventar formas de sobrevivência.

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Notas:

[1] Mapa da Violência de 2015, organizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).

[2]Observatório de assassinatos trans.  https://exame.com/brasil/pelo-12o-ano-consecutivo-brasil-e-pais-que-mais-mata-transexuais-no-mundo/

[3]https://wp.ufpel.edu.br/nugen/2020/09/02/pesquisa-da-ufmg-e-unicamp-aponta-que-populacao-lgbt-esta-mais-vulneravel-ao-desemprego-e-a-depressao-por-causa-da-pandemia/

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Aceitação e resiliência – (En)Cena entrevista a pesquisadora Dra Flávia Matos

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“Dá até vontade de chorar, porque eu estou em teletrabalho, só que eu sou uma pesquisadora e minhas pesquisas são no campo. Está tudo atrasado: recurso, entregas, contrato de estagiários, a pandemia que impede a gente de ir para campo”.
Flávia Tavares de Matos

Para explicitar o cenário da pesquisa no Brasil de hoje, o documento acadêmico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul intitulado Produtividade Acadêmica Durante a Pandemia: Efeitos de gênero, raça e parentalidade conclui que 13% do total das pós-graduandas possui filhos. E que muitas delas tiveram sua produção acadêmica comprometida por causa das suspenções das creches e escolas, do isolamento compulsivo, do ensino remoto e da assunção de múltiplas tarefas domésticas.

O citado estudo destaca, ainda, que quanto às submissões de artigos, mulheres negras (com ou sem filhos) e mulheres brancas com filhos (principalmente com idade até 12 anos) são os grupos cuja produtividade acadêmica foi mais afetada pela pandemia. Por outro lado, a produtividade acadêmica de homens, especialmente os sem filhos, foi significativamente menos impactada ela pandemia. Nessa entrevista a pesquisadora da Embrapa em pesca e aquicultura e professora no Mestrado Profissionalizante em Engenharia Ambiental (Universidade Federal do Tocantins-UFT) Dra Flávia Tavares de Matos. Ela que destaca sua perspectiva sobre os desafios de ser mulher, mãe e produzir ciência no Brasil da pandemia. Destaca, ainda, os impactos das triplas jornadas de trabalho e das aulas online das crianças na saúde mental das mulheres pesquisadoras.

Flávia Tavares de Matos. Foto: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Considerando o seu lugar de fala, de mulher, profissional, pesquisadora, mãe e professora dos filhos em aula online e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID 19?

Dra Flávia Matos – É uma situação muito desafiadora e ao mesmo tempo sem saída. A gente simplesmente tem que fazer o esforço de aceitar que a situação é essa. E pelos nossos filhos, a gente tem que se esforçar ao máximo e seguir adiante. É muito difícil mesmo a pessoa se dividir entre o trabalho doméstico, teletrabalho e aulas online. Então é muito complicado, muito mesmo porque as vezes a gente não tem a didática necessária para ensinar as crianças e tem o cansaço, enfim.

Fonte: encurtador.com.br/gTW46

(En)Cena – Como a saúde mental (sentimentos e emoções) das mulheres, no contexto de pandemia, interfere em tomadas decisões acertadas ou equivocadas no trabalho?

Dra Flávia Matos – A saúde mental não interfere só no trabalho. Ela interfere aqui na vida pessoal, interfere nas aulas online também. A gente perde o equilíbrio e rende menos. A gente deixa de produzir um paper, deixa de fazer uma ligação que é necessária, deixa de mandar um email, deixa de participar de uma reunião por causa da aula online e isso tudo vai refletir no trabalho obviamente. A pessoa acaba que toma decisão errada, com emoção. Não usa tanto a razão para tomar decisões. A gente fica um pouco desequilibrada mesmo.

Fonte: encurtador.com.br/hlrRZ

(En)Cena –  Elizabeth Hannon, editora do British Journal for Philosophy of Science, destaca que durante o mês de abril de 2020, durante a primeira onda da COVID 19, quase não recebeu pedidos de submissões de trabalhos realizados por mulheres (https://revistapesquisa.fapesp.br/maes-na-quarentena/, recuperado em 29 de julho de 2020). Diante disso, pergunto: quais os desafios de produzir ciência sendo mãe e mulher, durante a pandemia?

Dra Flávia Matos – Dá até vontade de chorar. Porque eu estou em teletrabalho, só que eu sou uma pesquisadora e minhas pesquisas são no campo. Está tudo atrasado: recurso, entregas, contrato de estagiários, a pandemia que impede a gente de ir para campo.  Então comprometeu tudo da produção científica.

Fonte: encurtador.com.br/oBWZ1

(En)Cena – Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?

Dra Flávia Matos – Eu acho que as mulheres no pós-pandemia, primeiro têm que procurar uma psicóloga para abrir o coração. Eu tenho amigas psicólogas que estão atendendo muitos pacientes que tiveram COVID, pois a doença pode deixar sequelas físicas e psicológicas também.  No trabalho, as pessoas vão ter que ter compreensão e tentar ajustar da melhor forma. É preciso dar tempo ao tempo. Investir em trabalhos de autoajuda. E no nosso caso, de mães pesquisadoras, é importante que sigamos uma ajudando a outra e nos apoiando sempre.

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Exaustão e exclusão – (En)Cena entrevista a professora Dra Camila Craveiro

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A cada ano, no mês março, em que se comemora o “Dia da Mulher” em diversos países, é praticamente impossível não esbarrar em textos, frases de efeito e uma infinidade de produções na mídia e nas redes sociais que se propõem a discorrer sobre a dor e delícia de ser mulher. Em muitos casos, “A mulher” é retratada como a mãe devotada que se aproxima da uma figura sagrada da Virgem Maria. Ou ainda, aparece como a heroína dos filmes e quadrinhos criados por homens, que enfrenta suas batalhas sempre sorrindo e luta, habilmente, usando uma maquiagem perfeita e um salto agulha.

Entretanto, essa época do ano também convida a refletir sobre desafios tipicamente atribuídos ao feminino: feminicídio e violência doméstica; dupla ou tripla jornada de trabalho; equilíbrio entre maternagem e mercado de trabalho; indústria da moda e da beleza e outros temas. A partir de tais problemas, é preciso pensar: o que é ser mulher? Será possível reduzir e resumir toda pluralidade do feminino em um conjunto de palavras ou conceitos?

Lacan, psicanalista francês do século XX, afirma que “a mulher não existe”, por não haver um constructo que abarque todas as parcialidades do sujeito feminino. Existem muitas mulheres distintas e é preciso considerá-las uma a uma, em suas especificidades e nos seus lugares de fala. Com isso, diante da necessidade de saber sobre a saúde mental das mulheres, no Brasil e durante a pandemia, apresentam-se entrevistas com sujeitos femininos que falam de si e do seu lugar neste contexto plural.

Dra Camila Craveiro

Na primeira entrevista da “A mulher não existe! O que significa ser mulher, no Brasil, na pandemia?”, o Portal (En)Cena conversou com a professora Dra Camila Craveiro para entender mais sobre:  o que é ser mulher, no Brasil, durante a pandemia da COVID 19.

Camila Craveiro é PhD em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho, em Portugal, coordenadora do curso de Publicidade da UNIGOIÁS, corresponsável pelo podcast Meia Taça e se dedica aos estudos descoloniais de gênero e migração.

(En)Cena – Camila, considerando o seu lugar de fala, de mulher, professora, publicitária, mãe e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID 19?

Dra Camila Craveiro – Quando falamos de mulheres, enquanto um grupo, essa necessariamente é uma superinclusão. Ainda que seja uma estratégia também de criar coletividade, uma ação grupal. Dentro do meu lugar de fala, da minha mulheridade, eu sinto um cansaço mental e psicológico muito grande durante a pandemia. Primeiro porque ela “starta” diferentes medos: da ausência, da morte, do desemprego, de não produzir a contento…E lidar com esse medo cotidianamente é muito complicado. Além disso, há os papéis sociais que eu desempenho enquanto mãe, professora, usuária das redes sociais e produtora de podcast. Tudo isso precisa ter minha atenção, dividida e focada ao mesmo tempo, algo que não é fácil. Mas eu sou uma mulher branca, de classe média alta, no Brasil, durante a pandemia e estou totalmente ciente dos privilégios dos quais eu gozo dentro dessas categorizações.

(En)Cena – Depois de ter estudado mulheres migrantes por 5 anos, na sua opinião, como podemos compreender o sofrimento emocional das venezuelanas que chegam ao Brasil, durante a pandemia?

Dra Camila Craveiro – Eu acho que a gente precisa rever algumas questões que são mesmo do campo da Sociologia das Migrações. A primeira delas diz respeito à dupla vulnerabilidade de ser migrante e ser mulher. Neste caso, destaca-se especialmente as migrantes econômicas.  Segundo Sassen (2003), a feminização das migrações, ou seja, a tendência de aumento da migração de mulheres em relação ao número de homens, deve-se, na verdade, à feminização da pobreza, à feminização da sobrevivência. Então, são mulheres que deixam as suas casas e, em alguns contextos, deixam suas famílias, para migrarem para países em que haveria maiores recursos de emprego e recursos materiais, para que elas possam também enviar dinheiro aos seus lares de origem. (…) À vulnerabilidade das venezuelanas, sexual e econômica, se soma o estereótipo negativo, pois criou-se no Brasil a ideia de uma invasão. Uma invasão de venezuelanos famintos, miseráveis e que aqui estão para concorrer pelos postos de trabalho e por alguns dos benefícios sociais dos quais gozamos.

No contexto de pandemia, as mulheres imigrantes encontram um país fechado em termos de oportunidades, especialmente, no caso das mulheres indocumentadas. Isso quer dizer de mais uma vulnerabilidade, ou seja, as assimetrias sociais que elas vivenciam as colocam numa posição de vulnerabilidade e de restrição do seu poder de margem de agência, de estratégia de sobrevivência, o que, sim, causa um dano emocional e uma subjetividade ferida.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?

Dra Camila Craveiro – Eu torço, eu espero, eu anseio que o caminho pós-pandemia seja um caminho de ressurgimento. Ressurgimento da capacidade de mobilização, de estratégias de luta, da força que se perdeu ou que foi minada durante a pandemia. Essa exaustão que a gente falou anteriormente, foi uma exaustão sentida em todas as camadas sociais de mulheres. Eu espero que uma vez superado este contexto (quando estivermos todas vacinadas), que possamos retomar planos, sonhos e estratégias. Eu espero que a gente ressurja mais fortes, dispostas a lutar por aqueles que são nossos direitos, para garantir a promoção daquilo que já foi assegurado e pela conquista do que ainda está no nosso horizonte. Minha esperança é uma esperança de luta e de resiliência, para que a gente comece também a construção de uma sociedade que promova a igualdade de gêneros, ou seja, a igualdade de oportunidades.

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A nova She-Ra: mudanças bem-vindas para nossa realidade

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A série de animação She-Ra: A Princesa do Poder, criada por Larry DiTilio e J. Michael Straczynski durante os anos de 1985 a 1986, conta a história da princesa Adora, sua descoberta do poder de She-Ra e sua luta contra os vilões da Horda para libertar o platerna Ethernia do ditador Hordak. O desenho dos anos 80 é um spin-off com a mesma proposta da animação He-Man e os Mestres do Universo, também exibido na televisão durante os anos 70 a 80. A ligação entre as duas séries é que Adora (She-Ra) e Adam (He-Man) são irmãos gêmeos.

http://abre.ai/bv0n

O design dos personagens dos anos 80 seguem um padrão corporal, heteronormativo e étnico, com apenas UMA personagem negra, que possui pouquíssimo tempo de tela em comparação com os outros, mas a série não deixou de fazer sucesso por causa desses detalhes.

No ano de 2019, uma nova versão de She-Ra foi lançada na plataforma Netflix, tendo como produtora e criadora Noelle Stevenson, chamada de She-Ra e as Princesas do Poder. Essa nova versão da princesa dos anos 80 tem uma proposta totalmente inovadora e inclusiva, dando visibilidade para diversos outros grupos étnicos, orientação sexual e até mesmo gênero, saindo de um olhar nada dentro da caixa. A nova She-Ra expandiu seus horizontes com mudanças quentinhas, bem-vindas e muito importantes para nossa atual realidade. Uma realidade de subjetividades abertas.

http://abre.ai/bv0D

Até mesmo a protagonista, Adora, se mostra, inicialmente, seguir totalmente os padrões impostos pela sociedade, sendo uma mulher segura de si, bonita e sem defeitos, como mostra nos desenhos dos anos 80. No entanto, a Adora de 2019, é uma adolescente, com suas inseguranças, expondo seus ideais, se revoltando com injustiças, mudando de opinião e descobrindo sua sexualidade. Resumindo, é uma personagem imperfeita e isso é lindo, pois se aproxima do que é real e de situações que muitas meninas e adolescentes passam ou que mulheres adultas já passaram.

http://abre.ai/bv0W

Muito se discutiu em fóruns na internet que a nova She-Ra não era uma boa personagem por simplesmente não ter o “sex-appeal” muito esperado e desejado por homens. O que as pessoas se esqueceram simplesmente foi que a Adora de 2019 é uma adolescente de 16 anos, criada não para satisfazer vontades sexuais. E até mesmo a Adora dos anos 80, apesar de ter o ar de “perfeição”, nos mostra uma personagem forte e dona de si mesma. A sexualização das mulheres em desenhos animados, programas em live-action e games é um problema mundial que deve ser debatido e problematizado adequadamente.

A Princesa Cintilante também alterou seu design, deixando a personagem mais real. A etnia do personagem Arqueiro também se modificou. Agora ele é negro e tem dois pais.

http://abre.ai/bv1e

A Princesa Serena também mudou sua etnia, sendo uma mulher negra.

http://abre.ai/bv1l

A Princesa Perfuma, é uma mulher trans. Essa informação foi confirmada pela criadora e produtora da série Noelle Stevenson, no entanto, isso não foi abordado na série pois ainda existem muitos tabus e preconceito envolvidos diante de personagens transsexuais.

http://abre.ai/bv4Q

Temos mais presença de personagens homoafetivos como Spinerella e Netossa. O casal é interacial e Spin é uma mulher gorda.

http://abre.ai/bv4R

Temos também a presença de personagens não binários como Double Trouble.

http://abre.ai/bv4Y

A Princesa Gélida, diferente das outras, foi representada por uma criança.

http://abre.ai/bv41

A Princesa Scorpia é uma mulher lésbica e apesar de seu design ameaçador, é meiga, empática e super preocupada com seus amigos.

http://abre.ai/bv43

A rival de Adora, Felina, teve suas modificações em comparação com o desenho antigo, mas o principal é que esta tem sentimentos de ódio e de amor com a protagonista, motivados por sentimentos de abandono, já que Adora deserda da Horda para se juntar à Aliança das Princesas e ser a She-Ra.

http://abre.ai/bv44

Até mesmo Hordak, vilão da animação, foi bem desenvolvido, mostrando suas inseguranças em relação ao “Mestre da Horda”, seu irmão, por ser uma falha.

http://abre.ai/bv46

A motivação de Hordak a conquistar o povo e o planeta Ethéria, além de fazer isso para ter a confiança de seu irmão e se mostrar “merecedor” de respeito, pode ser analisado de forma que Hordak é considerado uma falha, um mero erro, e a dominação deste planeta, onde sua população é fora do comum e onde possui a “magia”, é uma forma de mostrar como ditaduras funcionam. Como algo que é diferente não é bem aceito pela sociedade, mas isso foi feito de modo sutil para que ficasse subentendido pelos espectadores.

Esse desenho me fez lembrar de uma infância onde Princesas não eram negras, e que muito menos podiam ser fortes. Que meninos não choram. Que casais homoafetivos não existiam. Sou grata por essas modificações terem acontecido, pois imagino crianças, adolescentes e até mesmo adultos como eu, vendo esse desenho e pensando “Que bom que isso está sendo abordado. Agora me sinto representada(o) por X personagem” e isso é maravilhoso.

http://abre.ai/bv5a

She-Ra e as Princesas do Poder é uma animação que ultrapassou as barreiras do preconceito e mostrou que o poder da amizade e principalmente do amor são armas poderosas para transformar as pessoas e nações. É um desenho necessário e indicado para todas as idades, sem restrições. Não é apenas mais uma animação sobre Garotas Mágicas. É muito mais.

FICHA TÉCNICA

http://abre.ai/bv5c

Título Original: She-Ra and the Princesses of Power
Direção: Adam Henry, Jen Bennett, Lianne Hughes, Roy Burdine e Stephanie Stine
Duração: 24 minutos por episódio (5 Temporadas)
Classificação: Livre
Ano: 2018 – 2020
Gênero: Animação, Aventura
País: Estados Unidos da América
Onde assistir: Netflix

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