“Os heróis são aqueles que tornam magnífica uma vida que já não podem suportar.” – Jean Giraudoux
Imagine heróis fora do comum, não apenas por terem super poderes, salvarem vidas e fazerem do mundo um lugar melhor. Heróis contemporâneos, controlados por uma grande corporação, que pensa nos heróis como algo rentável, cuidam do marketing para eles gerarem filmes, produtos com sua marca e procuram gerenciar toda a vida dos superes, desde sua popularidade com as pessoas, até tentam reparar seus erros na sociedade.
Esses são os heróis retratados na nova série da Amazon Prime Video. The Boys é uma série adaptada dos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson, é tida como uma das mais polêmicas e mais criticadas séries de 2019. Mesmo que não seja nem tão violenta e nem tão política quanto os quadrinhos em que é baseada, The Boys ainda assim é uma série que contempla muita tragédia e ao mostrar de forma explícita como heróis podem ser vítimas de violência extrema, ao mesmo tempo em que não se esquivam de discutir questões sociais importantes associadas à cultura de heróis. (FALANGE, 2019).
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No início a narrativa aparenta ser uma boa e velha adaptação de super heróis, contudo quanto mais se assiste, mais se percebe que os heróis na verdade podem ser os verdadeiros vilões da história. O que não seria nada mal em um mundo com muita violência, corrupção e injustiça, mas o que choca mesmo no enredo é o fato de que as pessoas parecem precisar dessa “esperança” que os heróis pregam e não importa tudo de ruim que façam, desde que no fim salvem o dia e possam postar fotos.
É inegável o fato de que os super hérois viraram moda, e embora eles sejam retratados como figuras grandiosas e repletas de moral, nem sempre suas performances foram dignas de heroísmo. Mas porque eles são tão atrativos nos dias de hoje, mesmo após péssimas adaptações de suas histórias ou quando eles não são retratados como super herois? Isso se deve ao fato deles carregarem a bandeira do bem e se consideram acima do mal. Porém, seria errado imaginar que todos tenhamos um lado sombrio? Obscuro, que absorva o lado egoísta e primitivo de nossa personalidade? Jung categorizou a sombra como um dos principais arquétipos do inconsciente.
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Dentro da perspectiva do desenvolvimento simbólico, e através do conceito unificado de sombra, vista na dimensão religiosa como pecado; na jurídica, como crime; na médica, como sintoma; na ciência, como erro; e na dimensão ética, como o mal (BYINGTON, 2006). Segundo Oliveira (2010), aquilo que rompe o papel instituído na coletividade e vivido na subjetividade se configura como o mal, o amoral e a sombra, o que não é aceito pela consciência. Assim, no mundo real ela é reconhecida na violência, na guerra, na exclusão e na criminalidade.
Na mitologia o herói seria o guardião, o defensor, o que nasceu para servir. Já na linguagem contemporânea ele tem o sentido de guerreiro, está ligado à luta e as outras funções como a adivinhação, a fundação de cidades além de introduzir invenções aos homens, como a escrita e a metalurgia. (BRANDÃO, 1987). Para Jung (1975) o herói seria o mais nobre de todos os símbolos da libido, a idealização de um ser física e espiritualmente superior aos homens, que o representaria em sua totalidade arquetípica. Por mais que tenhamos ideia de como é ou deveria ser um herói, para a Psicologia Analítica, somos nós que construirmos o nosso próprio arquétipo de herói com base em nossas vivências pessoais.
Os heróis da série retratam apenas o que pensamos ou fazemos nos dias de hoje, um mundo com pessoas mais ricas e poderosas do que outras e que são protegidas por grandes corporações, que controlam a mídia, o governo e até a justiça. e se preocupam apenas com a imagem que transmitem na frente das câmeras. Para Aristóteles (2007), no fim, quem escolhe e tenta combater um mal que ninguém imagina, são apenas pessoas tidas como “normais”, eles arregaçam as mangas para expor a fraude que são os “heróis” e o resultado não podia ser nada bom.
FICHA TÉCNICA
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Título Original: The Boys
Direção: Dan Trachtenberg, Jennifer Phang, Philip Sgriccia.
Elenco: Erin Moriarty, Karl Urban, Chace Crawford, Antony Starr.
Gênero: Ação,Drama, Ficção Científica.
País: EUA
Ano: 2019
REFERÊNCIAS:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2ª edição. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2007.
BRANDÃO, J.S. Mitologia grega. Rio de Janeiro, Petrópolis. Vozes, 1987.
BYINGTON. C. A. B. Psicopatologia Simbólica Junguiana.
FALANGE. [Crítica] The Boys: Que Morram Os Heróis. 2019. Disponível em: https://falange.net/critica-the-boys/. Acesso em: 14 de agosto de 2019.
JUNG, C.G. The practice of psychoterapy. Princenton: Princenton University Press, 1975. 2nd edition.
OLIVEIRA. A. W. SOCIEDADE E SOMBRA: EXPRESSÕES NA CRIMINALIDADE. 2010. Disponível em: http://www.symbolon.com.br/artigos/SOCIEDADE%20E%20SOMBRA-%20ALINE%20WERLE%20DE%20OLIVEIRA.pdf. Acesso em 15 de agosto de 2019
Nesse momento da jornada ele enfrenta seu inimigo e conhece seus aliados, que é o sexto passo da jornada do herói, é quando também ocorre a maior identificação com o público.
O filme Vingadores Ultimato está atualmente em uma briga pela maior bilheteria da história, e notícias de Kevin Feige – o grande chefão da Marvel – afirmam que uma outra versão do filme com cenas novas, chegará em breve aos cinemas. No mais, o personagem alvo desta análise é nada menos que Thor, o deus do trovão (apesar que ele solta raios, mas essa piada é velha). Thor, filho de Odin e Frigga, apresenta ser um filho mimado em que seus pais parecem depositar grandes expectativas. É perceptível em seus filmes um amadurecimento como pessoa, mas continuou com comportamentos que mostram uma grande dependência dos pais. (Spoiler abaixo!!!)
A análise em questão é a representação do arquétipo do herói e como Thor passou por toda a jornada. Segundo Dell (2014), a jornada do herói é a tentativa de narrar uma experiência humana, que tem um propósito muito profundo. Assim a primeira parte da jornada do herói é a apresentação do mesmo e de um cenário onde o público venha a se identificar com alguns pontos, mostrando que ele é tão humano quanto qualquer um.
No primeiro momento do filme é mostrado como Thor lidou com o final trágico de Vingadores Guerra Infinita. Hulk e Rocket fazem uma visita a ele, e o cenário é uma casa com pouca iluminação onde ele e uns colegas passavam o dia bebendo e jogando vídeo-game, e quando questionado sobre sua vida ele afirma que estava tudo bem.
Fonte: encurtador.com.br/axCFP
O chamado à aventura seria o convite que Hulk faz para Thor, onde fala sobre uma última chance de consertar as coisas, através de uma volta ao tempo com as Partículas Pym como recurso, e Thor seria peça-chave nesta empreitada. Dessa forma, o coloca em confronto com o que ele estava negando enquanto se escondia vivendo daquela forma, e o fazendo refletir sobre uma correção do seu erro, sobre as vidas que ele pode salvar.
Thor nesse momento no filme não se acha digno de empunhar nem o seu Machado, o Rompe-tormentas, pois acredita que falhou como deus, falhou como amigo e por ter fracassado diante da única chance de ter matado Thanos no filme anterior. Dessa forma ele recusa o chamado, por medo de enfrentar a si mesmo. Mas ao final ele acaba aceitando ir, mesmo que isso não significasse que ele estava pronto para a jornada.
O plano consistia em voltar no tempo em diferentes momentos e “pegar as joias emprestadas” para tentar reverter o estalar de dedos do Thanos. Então, foram divididos em duplas, no qual Thor e Rocket ficaram encarregados da jóia da realidade, e foram enviados para a época em que ela estava no corpo de Jane, em Asgard. Nesse momento o nosso herói não estava engajado, e se separou de Rocket dizendo que ia visitar a adega para beber, mas ele acaba esbarrando com sua mãe, que o reconheceu mesmo ele afirmando ser o Thor daquela época.
Então tiveram uma longa conversa e ele tenta avisá-la sobre sua morte, mas ela o interrompe e fala que ela já sabe o que a aguarda. Toda a conversa entre os dois pode se caracterizar como o encontro com o mentor, que é quando ele recebe algo que dá um empurrão, seja conselhos, um treinamento ou um objeto. E antes de partir ele estende a mão e o Mjolnir, seu antigo martelo que havia sido destruído, atende o chamado mostrando que ele ainda é digno e assim ele resolve seu conflito e o seu papel naquela jornada.
Fonte: encurtador.com.br/eGOSX
Quando todos os heróis retornam ao presente, eles utilizam uma manopla criada por Tony Stark; Hulk se oferece para ser quem vai estalar os dedos, pois a radiação das jóias é a mesma dele. A tentativa se mostra um sucesso, apesar do dano que o braço do Hulk toma, e eles conseguem trazer de volta a metade que havia sido transformada em pó. E nesse momento de distração dos heróis, o Thanos do passado consegue vir para o presente e traz consigo todo o seu exército na tentativa de pegar as jóias e desfazer a reversão do estalar.
Thor nesse momento se vê diante do seu inimigo, e estendendo a mão empunha tanto o Rompe-tormentas quanto o Mjolnir e parece ganhar poderes além do que tinha anteriormente, caracterizando a travessia do primeiro limiar, que pode ser a aquisição de uma nova habilidade ou poder. Ele, juntamente com o Capitão América, luta contra Thanos que mostra suas habilidades sem depender da manopla e que por muito pouco ele não perde.
Fonte: encurtador.com.br/cluGZ
E nesse momento, o mais épico e cogitado do filme, Capitão América empunha o Mjolnir, e dá uma surra em Thanos salvando a vida de Thor. A fala do nosso deus do trovão nesse momento foi: “Eu sempre soube”. Como afirma Campbell (1990), não precisamos correr os riscos da aventura sozinhos. Nesse momento da jornada ele enfrenta seu inimigo e conhece seus aliados, que é o sexto passo da jornada do herói, é quando também ocorre a maior identificação com o público.
Thor fica no chão, pode tomar fôlego… esse momento se caracteriza como a caverna secreta, o instante onde o herói dá uma pequena pausa e que mostra o enfrentamento do seu grande medo, uma nova vitória do vilão. Mas nesse momento chegam os reforços mostrando a magnitude da batalha que estaria por vir e na qual ele se junta.
Chega o momento da provação, quando Thor aprende que precisa ir além e trabalhar em equipe dando tudo de si para que a jóias sejam enviadas para a época correta de cada uma utilizando a van do Homem-formiga. Mas no último momento ela é destruída e na tentativa de evitar que o vilão pegue a manopla nosso herói dá tudo de si em um golpe que atrasa o vilão dando chance para outros o deterem.
Ao final do filme ele nomeia a Valquíria como líder dos asgardianos restantes que estavam na terra, e a sua transformação ou retorno a sua confiança como herói pode ser a sua recompensa. Assim ele parte com os Guardiões da Galáxia como a representação de um caminho de volta onde ele escolhe um objetivo que beneficiaria de forma coletiva, e essa se torna sua ressurreição como deus do trovão.
Dessa forma, o retorno com o elixir que representa que nada será como antes, pode ser representado por essa nova jornada que ele opta por fazer, pois assim ele poderá proteger o universo juntamente com os Guardiões da Galáxia.
FICHA TÉCNICA:
VINGADORES: ULTIMATO
Título original: Avengers: Endgame Direção: Anthony Russo e Joe Russo Elenco: Robert Downey Jr, Chris Evans, Mark Rufalo, Chris Hemsworth, Scarlett Johasson; País: EUA Ano: 2019 Gênero: Ação, Aventura;
REFERÊNCIAS:
CAMPBELL, Joseph – O poder do Mito, São Paulo: Palas Athena, 1990.
DELL, Christopher. Mitologia: um guia dos mundos imaginários. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014.
No início de 2016 chegou aos cinemas um dos filmes mais esperados da temporada de arrasa quarteirões: Batman v Superman: Dawn of Justice, traduzido como A Origem da Justiça no Brasil, dirigido pelo diretor Zack Snyder com roteiro de David Goyer e Chris Terrio, tendo nos papeis principais os atores Ben Affleck (Batman) e Henry Cavill (Superman) além de outros nomes como Gal Gadot, Amy Adams, Jesse Eisenberg, Diane Lane e Laurence Fishburne. A premissa do longa gira em torno dos desdobramentos e consequências ocorridas após os eventos de Man of Steel (Homem de Aço, de 2013), além de uma nova leitura e abordagem do universo superheroico da DC\Warner para os sétima arte.
A DC\Warner Bros. definiu o tom dos seus filmes do subgênero super-herói a mais de dez anos, com o lançamento de Batman Begins (2005) de Christopher Nolan. Após a consagração de The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, de 2008) com a ajuda do malsucedido Green Lantern (2011), e, neste meio tempo, houve os resultados não tão expressivos atingidos pelo nostálgico Superman Returns (2006). Todas as investidas do estúdio em seus personagens deste estilo seriam definidas a partir da inclinação sombria, realista (ou, ao menos plausível) e inseridas nos longas do estúdio.
Mesmo com menor participação final do que no filme de 2013, Hans Zimmer (em parceria com Junkie XL) ficou no encargo da trilha sonora, um dos pontos altos do longa, nos entrega faixas como Beautiful Lie, Men Are Still Good e This is My World, fortalecendo ora o tom epopeico ora dramático da obra de 2016. Visualmente, temos a já conhecida acurácia de Zack Snyder em ambientar-nos às diferentes locações das filmagens, mesmo que tais detalhes aprecem somente na versão estendida. A fotografia e figurinos também se colocam com um ponto alto do filme, em comparação com o roteiro, que possui algumas falhas em seu desenvolvimento.
Num outro ponto da realização de Batman v Superman, a construção publicitária do longa já nos oferecia o que estava por vir, sempre frisando o conflito ideológico e psicológico entre os dois maiores heróis da DC Comics. Este embate já figurou em edições de diferentes revisas em quadrinhos, mas nunca tinha sido transplantado para a sétima arte, justamente por envolver uma demanda simbólica e de investimentos maior do que os estúdios (estima-se que o filme tenha ultrapassado a casa dos 400 milhões de dólares em custos), neste caso a Warner Bros., estariam dispostos a suprir ou apostar.
Importante destacar, também, que a análise aqui apresentada se pautará na versão definitiva do filme, que não chegou aos cinemas em abril de 2016, mas sim em formato de DVD e Blu-Ray no meio daquele ano, adicionando 30 minutos a já extensa cópia original, em suas mais de duas horas de duração. Esta ressalva merece espaço por esta versão completa ser superior e, mais do que isso, suprimir muitos dos problemas encontrados na versão exposta ao grande público.
Esta diferenciação entre as duas versões agora existentes só reforça a ideia de que estava em mãos um material rico e com substrato suficiente para se igualar ou até mesmo superar incursões maiores do gênero como a trilogia Cavaleiro das Trevas (2005-2012) de Christopher Nolan ou nos, já longínquos, Superman I e II (1978 – 1980) do final do século passado, protagonizados por Christopher Reeve, isso nos atendo aos dois maiores ícones da DC Comics e da cultura pop superheroica em geral.
A presença da Mulher Maravilha não colocada em relevo nesta análise, por dois motivos específicos. O primeiro deles de ordem mais pertinente diz respeito a ausência de importância em suas falas e situações no roteiro em relação ao personagem principal deste artigo. Na outra vertente vem a questão mais complexa de que sua inserção na trama não representar um mote de grande impacto na mesma, principalmente levando em consideração o peso próprio que a personagem já possui isoladamente, ganhando até mesmo uma adaptação própria nos cinemas.
Além destas questões, houve um grande debate, e cisão, entre críticos e público em geral a respeito do filme, seus personagens, história, enredo e tonalidade. É importante salientar que Dawn of Justice é, mesmo que não nominalmente, uma continuação direta dos acontecimentos de Man of Steel. Esta ligação entre os filmes será utilizada em alguns momentos neste artigo, cujo foco é o Superman – a falta de menção à Mulher Maravilha provém desta circunstância e, também, pela presença da personagem (apesar de agradável) não acrescentar ou alterar os cursos do filme – e os desdobramentos que este personagem carrega nas mais de três horas de duração da versão definitiva.
A mitologia da nona para a sétima arte
Já faz alguns anos, duas décadas ou três décadas, ao menos, que os estúdios de hollywood passam por uma crise criativa. Recentemente esta situação se tornou ainda mais visível devido a imensa quantidade de reboots (refilmagens), adaptações de livros, contos, expansões de curtas-metragens e falta de roteiros originais em obras fílmicas. Batman v Superman: Dawnof Justice segue uma tendência forte nos cinemas atualmente, constituindo a onda de adaptações cinematográficas advindas das histórias em quadrinhos, as comics books.
O aproveitamento destas estórias pelo cinema é de longa data, e ocorre pelo fato de, muitas vezes, já terem em si um andamento e organização dos acontecimentos da trama que facilitam sua transposição da plataforma escrita para a filmada. (REBLIN, 1992; REYNOLDS, 2012; SILVA, 2010). Se levarmos em consideração que o modelo das graphic novels possuem uma plasticidade imagética superior, em comparação com suas contrapartes tradicionais, fica mais fácil compreender a busca por estas obras como possibilidade de adaptações para o cinema.
No caso de Dawn of Justice esta transposição foi facilitada pela premissa de conflito já seminal à ideação do filme, ou seja, a divergência de ideias entre os super-heróis que dão título à obra. Como dito por Comparato (2000), a existência de um conflito base melhor pavimenta o desenvolvimento de um roteiro ou narrativa: “Construir a story line é determinar o conflito; escrever uma sinopse é descobrir as personagens; estruturar é organizar uma ação dramática; elaborar o primeiro roteiro é chegar aos diálogos e ao tempo dramático; trabalhar o roteiro final é manejar as cenas, isto é, a unidade dramática.” (COMPARATO, 2000, p. 29).
Nesse contexto de importância do escopo narrativo, apesar de apresentar algumas falhas em aspectos de sua montagem e edição, há momentos-chave em Batman v Superman com relação ao seu texto, as palavras, valorizadas por Comparato (2000). E são estas passagens que serão utilizadas no decorrer deste artigo de modo a enriquecer a análise, costurando os argumentos expostos com colocações teóricas específicas. Esta opção de olhar para a obra fílmica seguindo estas diretrizes analíticas tem como objetivo o foco no conflito matriz de sua exposição:
Mas a ideia audiovisual e dramática deve ser definida através de um conflito essencial. A este primeiro conflito, que será a base do trabalho do roteirista, chamaremos conflito-matriz. Embora a ideia seja algo de abstrato, o conflito-matriz deve ser concretizado por meio de palavras. Começa aqui o trabalho de escrever: fazemos um esboço e começamos a imaginar a história, tendo como ponto de partida uma frase a que chamamos story line. Assim, a story line é a condensação do nosso conflito básico cristalizado em palavras. (COMPARATO, 2000, p. 23 – grifo meu).
Portanto, a ideia de uma estrutura matriz, chamada por Comparato de conflito-matriz está presente na amplamente utilizada jornada do herói trabalhada, por exemplo, por Vloger (2006) ou na morfologia do conto maravilho de Propp (1977), dentre outras proposições de apuramento narrativo, na literatura, cinema, teatro, etc. Em suma, temos diferentes etapas, nas quais e pelas quais, o herói irá desenvolver suas habilidades, negar, em alguns momentos, seus encargos e assumir sua condição como tal ao fim do caminho percorrido em sua história.
Figura: O atos (ou etapas) da jornada do herói Fonte: (VLOGER, 2006, p. 159).
Assim, a organização das narrativas neste padrão de atos descrito por Vloger (2006) é visível em diferentes obras, não apenas no cinema. Em Batman v Superman, especificamente, tanto os limites, como as passagens entre os atos é bem visível, até porque com estas etapas do desenvolvimento da história e, levando em consideração a quantidade de temas e personagens, o caminho a ser seguido pela direção do filme se fortalece, no sentido de definição dos rumos a serem tomados, no desenrolar da obra. Estas funcionalidades presentes nos atos estoriais também são levantados por Propp (1977, 32-33), quando o autor disserta que:
Podemos decir, anticipando, que las funciones son extremadamente poco numerosas, mientras que los personajes son extremadamente· numerosos. Esto explica el doble aspecto del cuento maravilloso: por una parte, su extraordinária diversidad, su abigarrado pintoresquismo, y por otra, su uniformidad no menos extraordinaria, su monotonía. Las funciones de los personajes representan, pues, las partes fundamentales del cuento, y son ellas las que debemos aislar en primer lugar.
Este percurso clássico do heroi, com seus desafios, barreiras e superações, é um dos objetos de análise de Campbell (1997), quando este autor elucida uma visão mais histórica e antropológica do papel do heroísmo nas sociedades humanas. Nesta visão, há toda a carga mítica e mitológica de um ser excepcional em uma comunidade específica, daí a questão da diversidade modular do mito, por haver uma imensurável quantidade de adaptações dos passos a serem seguidos pelas figuras fantásticas destas histórias:
O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloqüência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu. (CAMPBELL, 1997, p. 13-14).
Por esta razão é que podemos dizer que estamos diante de grandes ritos, arcabouços mitológicos, criadouros de cânones e arquétipos passíveis de trânsito os diferentes tipos de manifestação simbólica e cultural ao redor do mundo. Em Batman v Superman, há uma tentativa de colocar em tela um exercício de lupa do micro situacional para o macro fenomênico, ou seja, a partir daquelas exposições cênicas, elaborar uma discussão maior alcance. Campbell (1997) também trabalha com esta ideia da mitologia como um reflexo do que a sociedade vê como caminho a ser seguido pelos seus pares, ou então numa amostragem das situações cotidianas e rotineiras das comunidades que cultuam ou reificam estes mitos e ritos ao longo do tempo.
No limite desta interpretação, a respeito do motor narrativo assegurado pelo conflito matriz da história\mito\fábula em questão, temos a dualidade entre o humano e o sobre-humano, o uso da moral individualista, mais figurativa em Batman, com os questionamentos de como não apenas enxergar, como colocar em prática uma moralidade universal e equilibrada para todos os viventes daquela sociedade, dilema vivido pelo Superman desde a sua criação no século passado:
A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás. Com efeito, pode ser que a incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorra do declínio, entre nós, desse auxílio espiritual efetivo. Mantemo-nos ligados às imagens não exorcizadas da nossa infância, razão pela qual não nos inclinamos a fazer as passagens necessárias da nossa vida adulta. (CAMPBELL, 1997, p. 9).
Seguindo as colocações de Campbell (1997), Flávio Kothe (1985), também lança um olhar analítico sobre o percurso tanto das narrativas fantásticas como do heroi, tendo como foco aspectos como o heroi– representado pelo Superman – e o anti-herói, aquele que enfrentará os deuses ou colossos para provar o seu valor diante do seu povo, como mostra da capacidade de contrariar o poderio das divindades – aqui a similaridade com Batman é mais clara.
Além da premissa básica do conflito entre Batman e Superman, há o aproveitamento e aumento das temáticas trabalhadas no primeiro filme do universo expandido da DC\Warner, Man of Steel, especialmente no que tange à chegada tanto de um ser de outro planeta como detentor de poderes inimagináveis à Terra. A fala de um dos personagens (ou melhor sai uma participação especial) do filme de 2016, o astrofísico Neil DeGrasse nos traz as reflexões sobre um alienígena com poderes de deus vivendo entre nós:
Neil deGrasse Tyson: We’re talking about a being whose very existence challenges our own sense of priority in the universe. And you go back to Copernicus where he restored the sun in the center of the known universe, displacing Earth, and you get to Darwinian evolution and you find out we’re not special on this earth; we’re just one among other lifeforms. And now we learn that we’re not even special in the entire universe because there is Superman. There he is, an alien among us. We’re not alone. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
E para fortalecer ainda mais os dois primeiros atos do filme, o diretor Zack Snyder faz uso de um recurso importante da história em quadrinhos de 1986 de Frank Miller – com alguns elementos também de sua versão cinematográfica de outro clássico: Watchman de 2009 –, na qual opiniões de especialistas, pessoas comuns e até mesmo de vilões a respeito do Batman são expostas. Em sua adaptação, os roteiristas, nos trazem a perenidade dos questionamentos a respeito da condição super-heróica do Superman na Terra, ou do modo de agir do homem morcego.
O peso destas obras é notado em várias passagens do longa, dando o tom de sua narrativa, desenvolvimento e consequências para os personagens envolvidos na trama. Esta carga das referências, inclusive, irá atrapalhar certos pontos de ligação e fluidez do filme, já que a grandiosidade e complexidade dos elementos envolvidos acarreta uma inevitável supressão na busca por uma forma coesa de contar a história que assistimos. No entanto, nota-se um tom de seriedade, dramaticidade e confronto com o real em um grau muito maior daquele visto em outros filmes do gênero.
Ponto e Contraponto: Batman
Superman e Batman, dificilmente, não serão listados entre os maiores super-heróis de todos os tempos. O último filho de Krypton foi criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shuster, já o Cavaleiro das Trevas veio um ano depois, 1939, pelas mãos de Bill Finger e Bob Kane. Ao longo dos anos os dois personagens foram sendo distanciados em suas ideações, identidades, representações e interpretações, ao ponto de vivenciarem inúmeros conflitos entre eles, mesmo sendo dois dos maiores líderes das aventuras da Liga da Justiça, união de todos os super-heróis da DC Comics.
Parte desta diferenciação entre os personagens de Dawn of Justice se incrusta numa grande trilha de popularização das histórias em quadrinhos ao longo das décadas. De um lado há um dos mais célebres fenômenos de popularidade e identificação imediata com um arquétipo tão fácil de encontrar em nosso mundo real como de representação em diferentes realidades culturais: Batman.
Do outro, apesar da premissa estar rechegada do seu tom ficcional originário da escalada tecnológica de seu tempo – e também com um subtexto menos denso dos imigrante judeus na América –, temos o primeiro e maior super-herói, carregando em si ideais de época, cargas simbólicas nacionais e todo um fundamento de representatividade ideológica de difícil transposição para nossos tempos: Superman.
Com base nestes extremos da composição dos personagens centrais do filme, neste trecho do presente artigo serão utilizadas, falas que remetem ou são diretamente extraídas do personagem Bruce Wayne\Batman em Dawn of Justice apesar de, teoricamente, o filme tratar dos acontecimentos centrípetos ao homem de aço, e não o contrário, como ocorreu na versão exibida nos cinemas, amplamente questionada por sua visão equalizadora da escuridão psicológica muito mais canônica ao morcego que sua contraparte alienígena do filme.
O baixio idealístico dos encapuzados chegou em seu extremo na década de 1980, em obras seminais produzidas por nomes como Frank Miller e Alan Moore. Com quase três décadas de atraso, esta percepção chega aos cinemas na junção de duas principais obras desta fase da nona arte: O Cavaleiro das Trevas de 1986 e A Morte do Superman de 1993.
Nesta mesma toada argumentativa, em seu ensaio sobre a diferença entre o heroísmo e super-heroismo, intitulado De Odisseu a Batman, Felipe Morcelli do portal Terra Zero, traz a reflexão tanto da concepção como dos atos entre o homem de aço e cruzador encapuzado. No primeiro caso, temos a situação clássica do filho de dois mundos que, para chegar ao panteão do qual fez parte um dia, precisa passar por desafios e provações e, também a aceitação do povo que faz parte.
Já no caso do homem morcego a situação é diferente, pelo fato de ter nascido e crescido num mundo já deteriorado, mesmo tendo saído de uma família abastada, numa similaridade a grandes heróis gregos como Odisseu, Dédalo ou Ajax, precisando provar-se em meio à sua realidade posta. Na mesma direção, sobre a questão do heroísmo clássico, Kothe (1985) expõe algumas considerações sobre o tema:
O clássico herói trágico nunca é um membro do povo ou da camada média. Dentro da filosofia de que, quanto maior a altura, maior também o tombo, ele geralmente está no topo do poder. Parece pertencer por direito natural ao plano elevado, mas aos poucos vai-se descobrindo o quanto ele está chafurdando no charco. Ele descobre a mão-de-ferro do poder, do destino, da história: descobre que o seu agir foi errado; descobre que não devia ter feito tudo o que fez; descobre que é o mais fraco na correlação de forças, embora aparente ser o mais forte, ou ainda que tenha acreditado ser o mais forte. E é lá embaixo que ele redescobre a sua grandeza, não significando isto, porém, que ele necessariamente deixe de morrer ou que venha a recuperar o poder perdido. Ele como que perde o poder terreno para conquistar um poder espiritual; ele como que se despe do agora, para, lá debaixo, resplandecer elevada sabedoria, transcendendo todos os seus juízes e algozes. A custa do próprio sangue, torna-se mensageiro do passado para o futuro, como as almas dos mortos eram evocadas, convocadas a comparecerem ao presente. O sangue trágico do presente conclama o passado para superar pela sabedoria a tragédia. (KOTHE, 1985, p. 26).
Em Batman v Superman a visão do Batman gira em torno da necessidade de se ter em mãos um dissuasivo frente a um ser de grande poder, caso assim as coisas caminhem, algo parecido com o personagem Ozymandias em Watchman, de Alan Moore – naquele caso, o papel de superman é emulado pelo Dr. Manhatham. Essa condição de poderio extremo do Superman, é um dos pontos levantados por Umberto Eco, em seu ensaio Apocalípticos e Integrados, endossando ainda mais a realidade da postura de Bruce Wayne, frente ao super ser que agora caminha entre nós:
Superman es prácticamente omnipotente. Su capacidad operativa se ‘extiende a escala cósmica* Así pues, un ser dotado con tal capacidad, y dedicado al bien de la humanidad (planteándonos el problema con el máximo candor, pero también con la máxima responsabilidad, aceptándolo todo como verosímil, tendría ante sí un inmenso campo de acción. De un hombre que puede producir trabajo y riqueza en dimensiones astronómicas y en unos segundos, se podría esperar la más asombrosa alteración en el orden político, económico, tecnológico, del mundo. Desde la solución del problema del hambre, hasta la roturación de todas las zonas actualmente inhabitables del planeta o la destrucción de procedimientos inhumanos (leamos Superman conel “espíritu de Dallas”: ¿por qué no va a liberar a seiscientos millones de chinos del yugo de Mao?), Superman podría ejercer el bien a nivel cósmico, galáctico, y proporcionarnos una definición de sí mismo que, a través de la amplificación fantástica, aclarase al próprio tiempo su exacta línea ética. En vez de esto, Superman desarrolla su actividad a nivel de la pequeña comunidad en que vive (Smallville en su juventud, Metrópolis ya adulto) y —como sucedía con el lugareño medieval, que podía llegar a conocer Tierra Santa, pero no la ciudad, encerrada en sí misma y separada de todo lo demás, que tenía a cincuenta kilómetros de su residencia— si bien emprende con la mayor naturalidad viajes a otras galaxias, ignora, no digamos ya la dimensión “mundo”, sino la dimensión “Estados Unidos” (ECO, 1984, p. 292).
A obscuridade de um Bruce Wayne cansado da luta incessante, e aparentemente sem resultados longevos, em sua cidade natal aparece em fortes falas na interpretação de Ben Affleck: “There was a time above… a time before… there were perfect things… diamond absolutes. But things fall… things on earth. And what falls… is fallen. In the dream, it took me to the light. A beautiful lie.” Esta mentira lamentada pelo homem morcego ocorre também no tempo despendido em Gotham City: “Twenty years in Gotham. How many good guys are left? How many stayed that way? He has the power to wipe out the entire human race. I have to destroy him.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
Já sobre o Superman, Wayne possui opiniões claras de contrariedade à sua presença e existência entre nós, principalmente após as milhares de mortes causadas na batalha de Man of Steel em Metrópoles: “ That son of a bitch brought the war to us two years ago. Jesus, Alfred, count the dead… thousands of people. What’s next? Millions?” a questão do uso e possibilidade de corrupção dos poderes pelo homem de aço recebem também ressalvas: “He has the power to wipe out the entire human race, and if we believe there’s even a one percent chance that he is our enemy we have to take it as an absolute certainty… and we have to destroy him.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n)
Nota-se uma alegoria do Superman como o poderio bélico dos Estados Unidos perante o mundo, mesmo que suas intenções iniciais sejam as melhores possíveis. Este senso alarmismo – alçado à pânico nacional nos EUA após os episódios de setembro de 2001 – será uma das matrizes do conflito entre os super-heróis: “ You’re not brave… men are brave. You say that you want to help people, but you can’t feel their pain… their mortality… it’s time you learn what it means to be a man.”
Outra metáfora explorada tanto na publicidade como também no filme é a diferenciação entre Gotham City e Metrópoles, cidades nas quais atuam Batman e Superman, respectivamente, reforçando as dualidades entre o simbolismo do anjo e demônio, luz e escuridão, esperança e pessimismo transcendido de ambos para as ruas destes centros urbanos:
Gotham City […] concentra todos os aspectos negativos que se podem encontrar num aglomerado urbano: decadência, sujeira, criminalidade, corrupção policial e muitos antros (muquifos e esconderijos para os criminosos da pior espécie). Metrópolis, ao contrário, destaca-se pela imponência: ela lembra um cartão postal, ou uma foto retocada na qual se visualiza apenas a imponência dos arranha-céus que parecem obedecer a uma disposição ordenada. Em contraste com obscuridade e sujeira de Gotham, Metrópolis é lima e ordenada, todos os serviços públicos parecem funicionar, e se ela necessita de um guardião, é para conter ameaças de origem alienígena ou catástrofes naturais, já que os criminosos que desafiam o Superman já estão, de saída, derrotados. Para muitos, Gotham City é Nova Iorque à noite, em contraposição à reluzente Metrópolis que seria a versão diurna da cidade. (RAMA, 2006, p. 58)
Outros elementos retratados pela autora, no que diz respeito à dualidade Gotham\Metrópolis, estão nas cores, tonalidades, representações gráficas – como no caso da presença de pombos e pássaros em praças e parques da cidade do Superman, em contraposição aos corvos e estátuas gárgulas nos prédios neogóticos de Gotham City.
O preto e o azul, anjo e demônio, dia e noite, a esperança e o pessimismo podem ser encontradas na dualidade dos herois e suas cidades. Estas máximas conotam o que será visto ao longo de Batman v Superman. Aqui reside um dos pontos cruciais de exploração do longa, quando temos diante da tela representações das cidades fictícias dos heróis: Gotham e Metrópoles. Como dito por Rama (2006) é notável como estes dois centros urbanos refletem as ideias de Clark Kent e Bruce Wayne, ponto forte de um dos diálogos do filme:
Clark Kent: What’s your position on the bat vigilante in Gotham?Bruce Wayne: Daily Planet, wait, do I own this one, or is that the other guy? Clark Kent: Civil Liberties are being trampled on in your city, good people living in fear. Bruce Wayne: Don’t believe everything you hear, son. Clark Kent: I’ve seen it, Mr Wayne, he thinks he’s above the law. Bruce Wayne: The Daily Planet criticizing those who think they’re above the law is a little hypocritical, wouldn’t you say? Considering every time your hero saves a cat out of a tree, you write a buff piece editorial about an alien who if he wanted to can burn the place down, and there wouldn’t be a damn thing we can about it. Clark Kent: Most of the world doesn’t share your opinion, Mr Wayne. Bruce Wayne: Maybe it’s the Gotham City in me, we just have a bad history with freaks dressed like clowns. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n – grifo meu)
As falas destacadas neste diálogo expõem de forma direta os pontos de vista diferenciados entre os personagens: de um lado os ideias, ou a crença neles, das liberdades civis e do outro o ceticismo extremado de um habitante urbano desacreditado dos porvires do meio em que vive. Este é sem dúvida um dos pontos mais ricos entre os dois maiores heróis dos quadrinhos, principalmente por representarem direta e objetivamente a vida nas grandes cidades, um sinal de nossos tempos. Quando voltamos nosso olhar para Dawn of Justice há uma distância entre o que foi mostrado na material promocional, principalmente nas imagens de divulgação das cidades e suas representações no filme.
Explica-se, há uma possiblidade riquíssima de antagonizar Gotham e Metrópoles pelos aspectos urbanos que as unem em suas diferenças, assim como na forma como tanto Clark como Bruce enxergam suas vidas nestes centros urbanos. Os Waynes representam as classes altas presente em centros urbanos decadentes pela criminalidade, desigualdade social e falta de horizonte de desenvolvimento para suas populações. Já os Kents, na figura de seu filho adotivo, veem na grande cidade àquela imagem eidética do mundo de possiblidades, o lugar ao qual o futuro espera quem lutar por ele, no velho arquétipo do imigrante do interior para o capital, da zona rural para a urbanidade.
Na versão estendida do filme é possível observar com maior clareza esta diferenciação dos heróis. Enquanto Bruce Wayne\Batman aparece em tela normalmente em ambientes noturnos e planos mais fechados, Clark Kent\Superman surge em planos mais abertos, faltando à direção de fotografia dar à estas cenas uma luminosidade mais condizente com a linguagem simbólica mais próxima do personagem, situação vista com maior vigor nos trailers, pôsteres e demais materiais de divulgação do filme, ótima ideia não aproveitadas no encontro destes titãs dos quadrinhos no cinema.
O (falso) deus?
Neste ponto, entramos no aspecto mais controverso e inquietante de Batman v Superman, ou seja, a representação do homem de aço no longa. A crueza e visceralidade desta adaptação de 2016 dificilmente será vista novamente, até mesmo pelas críticas abusivas ao filme, muitas vezes embasadas na aversão dos analistas do diretor da obra, mais do que sua criação em si.
Se uma tonalidade e panorama foram estabelecidos brilhantemente – ao menos até o porn destruction do terceiro ato, comum em filmes de heróis atualmente – em Man of Steel, ao final o mesmo soava incompleto pelas indecisões finais de Snyder. Três anos depois o diretor desperdiça uma oportunidade inigualável de superar o ciclo aberto em 2013. Esta perda de conclusão explica-se em um círculo narrativo clássico, mas eficaz: a tão estudada e desmembrada jornada do herói. Todos os passos de Clark Kent\Kal-El foram muito bem desenvolvidos no filme anterior, e cabia à esta continuação nos mostrar a maturação do ícone em que se tornou, mesmo que sem unanimidade.
Para facilitar o percurso mítico do Superman dos quadrinhos para o imaginário popular, como trabalhado por Reblin (2012) e Reynolds (1992), podemos traçar um breve retrospecto das “eras” do personagem ao longo do século XX e XXI, com auxílio de Silva (2010) nesta tarefa de síntese temporal. Começando então pelos anos dourados dos super-heróis temos o nascedouro de uma reificação titânica do kriptoniano em suas primeiras estórias, até mesmo com suas características humanais mais reduzidas:
Era de Ouro: O que importa não é como essa força se desenvolveu, mas a sua presença divinal na sociedade de agora. A própria faceta humana, a personalidade de Clark Kent, é mais apagada, pois sua utilidade na narrativa de aproximar a personagem divinal da humanidade tem menor importância. O Superman é quase um titã mitológico, uma força da natureza, que não reconhece as leis humanas nem o status quo social, tampouco se preocupa com gentilezas ou amabilidades. Ele é comprometido com a sua definição pessoal de justiça e não se prende a barreiras legais ou sociais. (SILVA, p. 27 – grifo meu).
Na chamada “Era de Prata”, superando parte do trauma das grandes guerras mundiais, houve um grande aumentos dos superpoderes super-heróis, aproximando-os ainda mais das referências gregas. O ponto de inflexão deste período foi a influência da obra Seduction of the Inocent[1]publicada em 1954 por Max Collins e Fredric Wertham, condenando a “má-influência” dos personagens dos quadrinhos nos jovens, em resposta vários códigos de edição e elaboração foram efetuados pelas editoras, em resposta a este movimento criado em torno de seus personagens. Superman sintetizou bem esta época, na qual ganhou boa parte de seus poderes mais conhecidos como o voo e aumentando para si o arquétipo altruísta em sua composição de personalidade:
Ao Superman ainda cabe a criação de outro conceito importante nos comic books: o arquétipo do super-herói paragon (original). Essa atribuição é dada por dois motivos principais: primeiro, pois a personagem é o super-herói original, o primeiro, e, em segundo plano, porque Superman é um personagem único, sendo ele o último e o melhor dos kryptonianos. O paragon como conceito, além de se referir ao melhor exemplar de um povo, é, nos comic books, representado por um conjunto de poderes específicos como: super-força, invulnerabilidade e vôo, cuja origem é curiosamente atribuída aos estúdios de Max Fleischer. O poder do vôo foi um acréscimo necessário para os animadores, pois a concretização das cenas de movimentação do herói por saltos demandaria a produção de várias cenas de corrida de impulso. A solução mais simples foi fazer com que a personagem voasse. (SILVA, 2010, p. 45).
A Era de Bronze foi marcada pela revisão de vários parâmetros e conceitos dos super-heróis. Muitos heróis mais jovens e urbanos foram criados neste período, de modo a buscar uma aproximação com a sociedade em geral, a editora Marvel nos trouxe exemplos como Demolidor, Homem-Aranha e os X-Men, criados ainda na alvorada dos anos 60.
Na outra vertente, do Superman, há o aumento do simbolismo cristão entorno do homem de aço, efeito aumentado pelo sucesso dos filmes protagonizados por Christopher Reeve: “O Pai e o Filho são pares do mesmo ciclo e, assim como Deus envia seu único filho, que é parte de seu ser, para purgar os pecados da humanidade, Superman chega das estrelas em sua manjedoura celeste, enviado por Jor-El, para se tornar futuramente o salvador diário de Metrópolis e do mundo.” (SILVA, 2010, p. 53).
Esta sobrecarga sobre o último filho de Krypton acabará na Era Moderna dos quadrinhos, ou também chamada de fase de Ferro, com a sua morte em 1993. Durante mais de cinco décadas as camadas simbólicas do homem de aço abraçaram elementos como o sonho americano juntamente com belicismo imperialista, emulações explícitas com deuses e semideuses gregos e Jesus Cristo, além, é claro, da adoção da jornada do herói como padrão para os demais encapuzados criados a partir de sua concepção ainda na década de 30.
A morte do Superman representou a queda do último dos grande heróis contemporâneos, já com inscritos no imaginário coletivo, e ainda hoje buscam uma nova abordagem ao personagem para nosso cético século XXI. Todos estes elementos, juntos, contribuem para este afastamento dos autores em oferece novas e construtivas histórias sobre o primeiro super-herói. A dificuldade em se trabalhar com o Superman vem na esteira destes óbices, já que tratar de uma entidade praticamente divina envolta nas mais idealizadas visões morais e ideológicas de nossa sociedade, é algo difícil de se propor.
Este paradoxo criativo ganha ainda maior peso, pressão e rico quando há adaptações do personagem em mídias como cinema e televisão, sempre havendo um temor pela frustração nestas representações: “Se e algo marca tudo que ganha o “S” é a “frustração”, […] A ideia é a seguinte, a marca “Superman” é tão grande, tão forte, tão vendável que qualquer coisa que contenha seu nome produz de imediato uma expectativa imensa em qualquer um.” o editor de um dos mais respeitados portais de quadrinhos brasileiros completa ainda: “Não necessariamente uma expectativa boa ou ruim, mas sempre uma grande expectativa.” (PENHA, 2016, p. s\n)
Mas, a pergunta principal de Batman v Superman: Dawn of Justice reside na questão sobre a vinda e existência de um alienígena super-poderoso entre nós e, em maior profundidade, quais seriam nossas reações diante deste cenário fictício. Nos últimos anos apenas dois outros filmes trouxeram uma reflexão com este nível de complexidade: Corpo Fechado de e Poder Sem Limites lançados em 2000 e 2012, respectivamente, filmes nos quais a máxima das consequências perante os atos de indivíduos com habildiades especiais é levado a desdobramentos máximos diante de seus mundos.
A visão extremada e pessimista com relação ao kriptoniano ganha força nas falas de Lex Luthor Jr. (numa interpretação exagerada e, por vezes, sem direcionamento adequado de Eisenberg). Fazendo uso de referências no paradoxo de Epicuro o personagem nos apresenta suas visões: “See, what we call God depends upon our tribe, Clark Joe, ‘cause God is tribal; God takes sides! No man in the sky intervened when I was a boy to deliver me from daddy’s fist and abominations.” E o bilionário reforça este questionamento sobre a divindidade do Superman quando afirma que: “I figured out way back if God is all-powerful, He cannot be all good. And if He is all good, then He cannot be all-powerful. And neither can you be.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
Esta questão do aspecto divino dos super-heróis é definido por Reblin (2012) quando o autor diz que a marca teológica é indelével e inescapável ao Superman, independente da versão que se tenha do personagem quase octogenário. E, novamente, a inerência do referencial divino é trazido por Lex Luthor no filme, seguindo estes parâmetros teóricos:
The problem of you on top of everything else. You above all. Ah. ‘Cause that’s what God is. Horus. Apollo. Jehovah. Kal-El. Clark Joseph Kent. See. What we call God depends upon our tribe, Clark Jo. Because God is tribal. God take sides. No man in the sky intervened when I was a boy to deliver me from Daddy’s fist and abominations. Mm mm. I’ve figured it out way back, if God is all powerful, he cannot be all good. And if he’s all good then he cannot be all powerful. And neither can you be. They need to see the fraud you are. With their eyes. The blood on your hands. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n)
No filme há uma contraposição clara entre estes extremos de visão sobre seres super-poderosos. O próprio Superman questiona sua posição diante da humanidade, lembrando da projeção feita por seu pai adotivo Jonathan Kent: “All this time I’ve been living my life the way my father saw it. Righting wrongs for a ghost, thinking I’m here to do good. Superman was never real. Just the dream of a farmer from Kansas. Superman: No one stays good in this world.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
Questionar-se sobre a presença ou auto-representação de falso heroísmo é um dos pontos levantados por Propp (1977) como passíveis de exploração nas etapas da jornada do herói, especialmente nos dias de hoje, em um campo tão mais cheio de camadas e possibilidades de interpretações a respeito de um fato ou fenômeno, como a chegada de um extraterrestre com super poderes ao nosso mundo:
Una cuestión que concierne a los esquemas típicos… los esquemas transmitidos de generación en generación como fórmulas ya dispuestas, capaces de animarse con un nuevo sentido, de hacer nacer nuevas formaciones? ‘La literatura narrativa contemporánea, con la complejidad de sus argumentos y su representación fotográfica de la realidad, parece descartar la posibilidad de esta cuestión; pero cuando se encuentre ante los ojos de las futuras generaciones, en una perspectiva tan lejana como para nosotros lo está la Edad Media, cuando la sínteses del tiempo, ese gran simplificador, haya pasado sobre la· complejidad de los fenómenos y los haya reducido al tamaño de um punto que se pierde en las profundidades, sus líneas se fundirán con aquellas que ahora descubriremos nosotros, cuando nos volvemos para contemplar esa lejana creación poética -y el esquematismo y la repetición se instalarán por todo el recarrido” (PROPP, 1977, p. 134).
Essa nova complexidade do heroísmo pode ser observado, no caso do Superman, tanto em Man of Steel como em Batman v Superman. No primeiro caso, as falas de Jonathan Kent, a respeito de como a sociedade reagiria ao saber da existência de um ser com poderes de um deus, entre nós. Já no filme de 2016, esse papel é deixado para a mãe adotiva de Clark, Martha – além de Bruce Wayne e Lex Luthor, em tons mais pessimistas, deixando ao filho o arbítrio do que ele queira ou não ser para o povo da Terra.
Tentando dar um suporte ao seu filho nesta crise existencial e de identidade, Martha Kent sentencia seu posicionamento, muito próximo ao do que foi visto no primeiro filme do herói neste universo: “People hate what they don’t understand. Be their hero, Clark, be their angel, be their monument, be anything they need you to be… or be none of it! You don’t owe this world a thing, you never did.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
A colocação da mãe do super-herói não contesta o julgamento público, mas adverte seu filho perante a nocividade de tais juízos sobre a relação que o mesmo terá com a humanidade, mesmo que haja um porta-voz nomeando-o como um demônio entre nós, e não um deus enviado dos elísios, como entoado por Luthor em outro momento do longa: “We know better now, don’t we? Devils don’t come from hell beneath us. They come from the sky.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
Esta crítica exacerbada vinda das falas de Luthor é refletida em momentos chave – poucos, infelizmente na versão dos cinemas do filme – em que vemos um Superman com profundos problemas em relação à sua identidade, em uma mistura do falso herói proposto por Propp (1977), a relação entre sua condição sublime ou monstruosa como trabalhada por Hugo (1990)[2] ou, até mesmo, enxengando em si mesmo um aspecto muito mais grotesco que divino, como suporia seu pai Jor-El ao enviar-lhe à Terra. Não há, por parte de Clark Kent uma indecisão à lá Hamlet entre o ser ou não ser o herói, mas sim, o porque de não haver a possibilidade de excluir este juízo, pois não há lugar para ele neste mundo, e sua terra natal sequer existe.
A inserção destes temas de maior camada sociológica e até mesmo filosófica são marcas das HQs nas quais o filme se embasa, principalmente em Cavaleiro das Trevas, A Morte do Superman e o Reino do Amanhã (esta última marcada por seu luto e reclusão perante os seres humanos), obras nas quais o Superman possuiu seu maiores abalos psicológicos até hoje, em conjunto com as otimistas histórias presentes em Superman: As Quatro Estações (de 1998) e Superman: Grandes Astros (de 2006).
Conclui-se que, por não ter o seu caminho de retorno exposto adequadamente em Man of Steel, a provação máxima existente no terceiro arto de Batman v Superman se mostra muito mais em potencial do que em execução profícua e eficiente, para a trama em geral, e ao Superman especificamente, por não haver uma construção empática suficiente para provocar o efeito emocional desejado, em sua morte, como ocorrido na banda desenhada em 1993:
Esse sacrifício é reforçado como o motivo da perda no próprio leitor, pela perda do herói da narrativa que fecha um ciclo narracional e estabelece um ponto final para a história. Esse final ultrapassa as características normais da narrativa quando pensada fora da diegese. Porque a morte do Superman se torna uma edição multimilionária, dado o caráter mítico que a personagem possui. A morte do mito industrial atraiu milhares de leitores e vendeu muitas cópias para aqueles que não acompanhavam a narrativa da personagem, relacionando a morte da personagem na narrativa como o fim da história desta e, dessa forma, o fim do ícone que ela representa. (SILVA, 2010, p. 64).
Na jornada do heroi de Vloger (2006) este passo final é representado pelo sacrifício, retorno e catarse do protagonista, trazendo consigo o amadurecimento, aceitação, ao menos da maioria, e um novo estágio de sua condição para com seus iguais. A opção de Batman v Superman: Dawn of Justice se dá pelo círculo original da caminhada, principalmente na referência ao salvador cristão, a partir do qual o enviado dos céus retornará em sua glória após o sacrifício pelos humanos:
A Provação nos mitos significa a morte do ego. Agora o herói se torna, plenamente, uma parte do Cosmos, morrendo para a velha visão limitada das coisas e renascendo para uma nova consciência de conexões. Os antigos limites do “Eu” foram ultrapassados ou aniquilados. De certa maneira, o herói torna-se um deus, possuidor da capacidade divina de pairar acima dos limites normais da morte, e é alguém capaz de ter aquela visão mais ampla que revela como todas as coisas estão ligadas. Os gregos chamam esse momento de apoteose — um degrau acima do entusiasmo, quando meramente se tem o deus dentro de si. No estado de apoteose, somos o deus. Ter experimentado o gosto da morte permite que nos sentemos na cadeira de Deus por algum tempo. O herói que enfrenta a Provação mudou-se do ego para o self, mudou-se para sua parte mais semelhante ao deus. Pode haver também um deslocamento do self para o grupo, na medida em que o herói aceitar maior responsabilidade, em vez de ficar apenas cuidando de si. Um herói arrisca sua vida individual por amor à vida coletiva maior e conquista o direito de ser chamado Herói. (VLOGER, 2006, p. 174).
Este é o estágio final e derradeiro, necessário para a completude do ciclo do herói em sua jornada: “Os heróis precisam passar por uma purgação final, uma purificação, antes de ingressar de volta no Mundo Comum. Mais uma vez, devem mudar. O truque do escritor, nessa ocasião, deve ser explicitar a mudança em seus personagens, no comportamento e na aparência, e não apenas falar sobre ela.” (VLOGER, 2006, p. 195).
Este é ponto de maior destaque para Umberto Eco (1984) em relação ao Superman, que é a melhor maneira, e muitas vezes a mais complexa, de trazê-lo para nossa era, com toda suas nuanças morais, políticas e culturais, já que a égide social na qual o personagem nasceu, diluiu-se há muitos anos, transformando esta transmutação ainda mais difícil para os nossos dias:
Es curioso observar cómo, entregándose al bien, Superman dedica enormes energías a organizar espectáculos benéficos, donde se recaudan fondos destinados a huérfanos e indigentes. El paradójico despliegue de medios (ta misma energía podría ser empleada en producir directamente riqueza o en modificar radicalmente situaciones más vastas), no deja de asombrar al lector, que ve a Superman perennemente dedicado al montaje de espectáculos de tipo parroquial. Si el mal asume el único aspecto de atentado a la propiedad privada, el bien se configura únicamente como caridad (25). Esta simple equivalencia bastaría para caracterizar el mundo moral de Superman. Pero, en realidad, nos damos cuenta de que Superman se ve obligado a mantener sus operaciones dentro del ámbito de las mínimas e infinitesimales modificaciones de su actuación, por los mismos motivos mencionados a propósito de la estaticidad de su trama: cualquier modificación general empujaría al mundo, y al propio Superman, hacia la consumación. Por otra parte, sería inexacto afirmar que la juiciosa y dosificada virtud de Superman depende, únicamente, de la estructura de la trama, y con ello de la exigencia de no hacer derivar de ella excesivos e irrecuperables desarrollos. Lo contrario es también cierto: que la metafísica inmóvilista contenida en esta concepción de la trama es la directa, y no deseada, consecuencia de un mecanismo estructural complejo, el cual se nos aparece como el único idóneo para comunicar, a través de una temática individualizada, una determinada enseñanza. La trama debe ser estática y eludir cualquier clase de desarrollo, porque Superman debe hacer consistir la virtud en varios actos parciales, nunca en una toma de conciencia total. Y la virtud, por su parte, debe de estar caracterizada por el cumplimiento de actos únicamente parciales, para que la trama resulte estática. Una vez más, el relato depende, no de la voluntad de los autores, sino de su posibilidad de adaptarse a un concepto del “orden” que insinúa el modelo cultural en que viven, y del cual fabrican, a escala reducida, maquetas “análogas”, con funciones de representación. (ECO, 1984, p. 294-295)
Esta dificuldade mencionada por Eco é suscitada em dado momento por Perry White em Batman v Superman, questionando os posionamentos de Kent, sobre a figura do justiceiro da Gotham City. A questão posta é justamente em que tempo e lugar não apenas o Superman, mas também o Batman, conseguirão se adaptar aos novos tempos, os conflitos desse movimento se tornam tanto inevitáveis quanto maiores, a medida que o caminho dos dois personagens começam a se cruzar no filme de 2016 e em quaisquer obras que venham a trabalhar com esta temática do embate de ideias e posturas que fundam seus pensamentos e ações.
A imagem ultrarrealista de Alex Ross parece colocar o próprio personagem no dilema de sua criação e falta de ajuste temporal ao nosso mundo contemporâneo. É difícil trazer um personagem criado a quase um século para nosso tempos sem que o mesmo não pareça anacrônico ou deslocado da realidade. Outros exemplos deste cenário são vistos em outros ícones do início da cruzada super-heróica como Zorro, Conan, Tarzan, Fantasma, Spirit, e John Carter, todos com sofríveis adaptações cinematográficas.
No caso do Superman o que surpreende é o completo subaproveitamento do personagem, mesmo como aporte crítico de traços sociais em que vivemos. Há poucas, mas ótimas incursões de arcos em que o personagem se sai bem, ironicamente quando seus poderes ficam em segundo plano, dando lugar aos seus dramas existências, psicológicos e questionamentos de seu lugar em nosso mundo, ou não.
A fala do homem de aço no clássico Reino do Amanhã aparece, ao mesmo tempo, como um apelo e pedido ao povo de toda a Terra, pois já que não o deixaram descansar em paz após sua morte – artifício utilizado para salvar o próprio mercado de histórias em quadrinhos, diga-se de passagem – que ao menos reconheçam sua relevância numa possível união de contrários entre o que se quer como herói e o personagem tem a oferecer àqueles que o criaram:
Quero esquecer os erros do passado. Quero que pensemos no amanhã… juntos. Os problemas ainda existem. Nós não vamos resolvê-los pra vocês… vamos resolvê-los com vocês. Não governando acima da humanidade… mas vivendo entre ela. Não iremos mais impor nosso poder… vamos conquistar sua confiança usando a sabedoria que um homem nos deixou. Eu lhe pedi que escolhesse entre os humanos e os super-humanos, mas ele sabia que essa era uma divisão falsa, e fez a única escolha que realmente importa, a vida. Para que o seu mundo e o nosso pudessem ser um só novamente. (WAID; ROSS, 2010, p. 59).
E, com essa fala do próprio personagem, reside o ponto de maior debate, e críticas, a este filme de Zack Snyder – mesmo com a coragem narrativa, política e estética apresentada – já que, novamente, o ciclo do Superman não é fechado, algo semelhante ao ocorrido em seu filme de origem de 2013, do mesmo diretor e, ao que tudo indica, dificilmente será finalizado adequadamente neste universo cinematográfico vigente, já que uma continuação de Man of Steel não parece estar no horizonte próximo de prioridades dos estúdios Warner Bros.
O peso da primogenia e alcance do ícone criado por Siegel e Shuster é a sua maior riqueza e fardo, afinal de contas caso assim não fosse o mesmo não teria resistido por tanto tempo no pico do panteão super-heróico. Esta ressalva sobre a importância deste signo inegável da cultura pop é importante por sua marca na jornada do herói, mesmo quando não aceita, e não uma subversão de sua existência numa jornada do vilão, caminho trilhado até pelo universo cinematográfico da DC comics.
O ídolo crepuscular
Figura: cenas de Batman v Superman: Dawn of Justice
Há quase 80 anos um mito moderno foi criado, uma síntese simbólica, social e ideológica de uma era que hoje se mostra tão distante quanto apartada demais de nosso mundo contemporâneo. Não chegamos, ainda, aos cenários pós-apocalípticos entoados por livros e filmes das últimas décadas, mas é evidente que um portento moral e cívico, fundamentos basais da criação do Superman, estremeceriam ou simplesmente ruiriam diante de nossos extremos céticos, alienistas ou niilistas.
Estamos em um cenário muito mais complexo e cheio de camadas interpretativas e representativas do que foi visualizado por Wertham em seu A sedução dos inocentes de 1954, não sendo mais possível utilizarmos visões unilaterais ou social e culturalmente apartadas a respeito da nona arte e seus derivados, como é o caso dos filmes inspirados nestas obras.
Quando Diego Penha elucida sua rica visão do ciclo sisífico inerente às adaptações de Kal-El podemos compreender o seu debate proposto, temos referências a mitos greco-ocidentais como Prometeu, Atlas e Hérculos, traduzidos nos feitos fantásticos do homem de aço. O peso carregado pelo personagem ficou maior à medida que suas cores escureciam, seus incessantes reboots ocorriam ou sua atemporalidade incomodava àqueles cuja a invenção de um nêmesis qualquer (como ocorrido em 1993) resolvesse a incompreensão de sua existência em nossa era apenas torturando-o e matando-o.
Infelizmente, esta última alternativa foi utilizada em Batman v Superman: Dawn of Justice de diferentes maneiras. Mesmo que haja o conflito, incompreensão ou não-aceitação da existência de um alienígena superpoderoso entre nós, é preciso que sejam respeitadas suas características canônicas, neste caso, o otimismo, esperança e brilho inerentes a concepção do ícone que se tornou o alter ego de Clark Kent. No fundo temos um, juntando as duas peças fílmicas de 2013 e 2016, o ciclo que não se fecha, prometendo um ápice dramático jamais alcançado, em uma escalada cada vez maior de espessura entre os protagonistas envolvidos, alcance da narrativa e peso dos símbolos que carrega nos heróis que entremeiam seu desenvolvimento.
No entanto, como dito na abertura desta conclusão, mesmo não intencionalmente, o Superman se tornou uma síntese de nossa era, e assim o será até que, o modo de produção estabelecido se mantenha como tal, que seus contrapontos super-heroicos persistam ou simplesmente corajosas e inesperadas estórias a seu respeito continuem sendo contadas, apesar de tudo, tais como Superman Grandes Astros, Identidade Secreta, ou o mais recente e elogiado Alienígena Americano. A força de um mito persiste mesmo quando a razão de sua existência resida, ainda, na negação de sua concepção ou encaixe nos parâmetros espaço-temporal que o circundam, assim continuará sendo com a história de Kal-El\Superman.
Referências
BATMAN V SUPERMAN: DAWN OF JUSTICE. (Ultimate Edtion) Zack Snyder (Direção), David Goyer, Chris Terrio (Roteiro) Warner Bros. 181 min. 2016.
CAMPBELL. Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.
COMPARATO, Doc. Da Criação ao Roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
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[1] Nesta obra uma das preocupações do autor era a da incitação das histórias em quadrinhos à subversão dos jovens à ordem e costumes. A relação entre Batman e Robin, por exemplo, é atacada como sugestão à orientação homosexual.
[2] Há, com grande esforço e alguns deslizes, essa discussão no âmbito do filme, focando na figura do Superman, já que por um detalhe do arbítrio ao qual Clark Lente está sujeito, o mesmo ser visto em seus trajes super-heroicos como um enviado dos céus ou nêmesis da humanidade.
FICHA TÉCNICA
BATMAN V SUPERMAN: A ORIGEM DA JUSTIÇA
Diretor: Zack Snyder Elenco: Henry Cavill, Amy Adams, Ben Affleck, Diane Lane, Jesse Eisenberg, Jeremy Irons, Holly Hunter, Laurence Fishburne País: EUA Ano: 2016 Classificação: 12
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Loucos ou heróis? Educadores sociais e adolescentes em situação de rua
Apesar de passados alguns anos da pesquisa1, as lembranças do processo de aproximação com a escola e seus educadores, sempre me faz pensar muito sobre os processos de trabalho, afetos e o significado de tudo isso em nossas vidas.
A potência encontrada nos profissionais que cotidianamente trabalhavam com crianças e adolescentes, em situação da mais absurda miséria e descaso, era uma constante. Ao mesmo tempo, a dificuldade na construção de ações que fossem efetivas era fruto de um permanente questionamento e desafio.
No ano de 2006, me aproximei da Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre (EPA), para a busca de materiais do que seria a “pré-pesquisa” em Psicodinâmica do Trabalho (DEJOURS, 1999, 2004). Estive com os professores em sala de aula, em conversas informais, participei de atividades no pátio da escola, ações culturais e recreativas e juntei documentos do processo de construção deste espaço.
No processo de encontros do grupo, inicialmente, as falas trataram da história individual do trabalho de cada integrante, e de como chegaram à escola. Verdadeiras histórias de vida! Além disso, uma construção de como era trabalhar ali. Dos grupos iniciais, com apresentação de posições mais “queixosas”, e depoimentos individuais, foi se construindo passagem para manifestações coletivas, com a escuta da fala do outro, com muitas falas complementares. Foram realizados 13 encontros, durante 4 meses, semanalmente, por aproximadamente 1h e 30 min de duração. E quando veio finalmente o dia do último grupo, estava constituído um desejo pela continuidade deste trabalho, deste espaço que significou a possibilidade de ressignificar muitas coisas e/ou simplesmente começar a pensá-las.
As bases para a discussão
Acredito na perspectiva do trabalho como constituidor da identidade do sujeito e como forma de realização no campo social, na medida em que articula esta esfera e a vida privada do trabalhador. Então, utilizo o conceito proposto por Dejours (2004, p. 65), que nos diz que “[…] trabalho é a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda não está prescrito pela organização do trabalho.” Assim o trabalho, segundo o autor, é sempre “trabalho de concepção” e “por definição humano”, na medida em que o prescrito nunca é suficiente para dar conta da realidade. É necessário que seja criado, inovado, fazendo uso da inteligência e da capacidade inventiva do trabalhador.
A construção que cada trabalhador faz sobre seu sofrimento está ligada diretamente ao seu engajamento no social. E este engajamento, por sua vez, está em associação com o reconhecimento, advindo de sua contribuição, como sujeito, o que é uma retribuição fundamentalmente simbólica. Quando este reconhecimento permite ao sujeito, em relação ao sofrimento ou até mesmo à doença, adquirir um sentido nas relações sociais, o sujeito tende a se mobilizar para questões mais amplas, no espaço público. Mas se, ao contrário, este reconhecimento estiver muito aquém do esperado, o sofrimento só vai encontrar sentido no espaço privado, numa posição individual.
Em seus escritos, Dejours (2004, p. 62) apresenta dimensões do trabalho que não podem ser prescritas: “[…] todos os preceitos são reinterpretados e reconstruídos: a organização real do trabalho não é a organização prescrita.” O autor ainda afirma que “[…] a organização do trabalho em si é repleta de contradições.” (p. 63)
A construção de regras, normas, sua reconstrução e o aumento de sua complexidade chegam, muitas vezes, ao limite da impossibilidade da execução do trabalho. Para que a organização do trabalho seja ajustada à realidade de sua execução é necessária a interpretação (DEJOURS, 2004). Essa interpretação é múltipla, na medida em que há diferentes sujeitos envolvidos em sua construção. E para que essa interpretação ocorra são necessários debates e discussões entre os trabalhadores.
Segundo Dejours (2004), os trabalhadores constroem as “regras de ofícios” que compreendem a construção de acordos coletivos, a partir da cooperação. O espaço de aprimoramento da reorganização do trabalho necessita que haja visibilidade das dificuldades encontradas na execução do trabalho, assim como do sofrimento proveniente para os ajustes necessários entre o prescrito e o real. É necessário, então, que exista confiança entre seus pares para a exposição, muitas vezes, de questões delicadas relativas ao trabalho.
A partir da visibilidade do fazer2 do trabalhador, da confiança no grupo e da cooperação, é possível negociar e construir novos acordos normativos e éticos. Além disso, essa visibilidade também proporciona o reconhecimento do trabalhador pelo seu trabalho.
Dejours (2004) alerta, porém, que, para a cooperação ser efetiva é necessário que o trabalhador esteja disposto a renunciar a alguns aspectos subjetivos e a consentir com o coletivo.
Retomando o exposto anteriormente, é possível observar que o processo de trabalho funciona quando os trabalhadores mobilizam sua inteligência, individual ou coletivamente, em benefício da organização do trabalho. Vale salientar novamente, contudo, que é necessária a construção de um espaço em que os trabalhadores possam discutir o trabalho, resolver e deliberar em conjunto.
O Educador Social
Considero aqui o educador social que realiza trabalho de abordagem diretamente nas ruas, ou presta atendimento dentro de instituições. Este trabalhador também deve ser capaz de “responder a uma multiplicidade de demandas”, pois é convocado ao trabalho com pessoas marcadas pelo uso de substâncias psicoativas, atos infracionais, questões sobre a sexualidade, entre muitas outras, presentes na vida cotidiana destes sujeitos com histórias de vida na rua. Além disso, os educadores convivem com a privação de direitos básicos deste público, tais como alimentação, saúde, educação, moradia, lazer e a convivência familiar.
Segundo Freire (1985, p. 11), o trabalho do educador é político, ideológico e pedagógico e deve possibilitar que pense a prática: “Este pensar ensina também que a maneira particular como praticamos, como fazemos e entendemos as coisas, está inserida no contexto maior que é o da prática social.” Para o autor (1996), o processo de ação-reflexão-ação (práxis) possibilitará que o trabalhador social venha a ser um educador social, tendo consciência do inacabamento e apresentando rigorosidade metódica, criticidade, reconhecimento e assunção da identidade cultural. Igualmente, Freire (1996) demonstra a necessidade da apreensão da realidade, comprometimento, compreensão de que educação é uma forma de intervenção no mundo, liberdade e autoridade, bem como tomada consciente de decisões e disponibilidade para o diálogo.
A realização da pesquisa
Os objetivos da pesquisa envolveram a proposta de investigar a dinâmica saúde/sofrimento mental vivida pelos educadores sociais que atendem adolescentes em situação de rua, além de compreender a relação de prazer e/ou sofrimento no trabalho desses profissionais, bem como identificar as estratégias individuais e coletivas, construídas para o enfrentamento do cotidiano do trabalho.
Com o método em Psicodinâmica do Trabalho, que busca a compreensão dos aspectos psíquicos e subjetividade mobilizados nas relações de trabalho, e sua organização, foi possível construir respostas aos objetivos da pesquisa a partir dos encontros realizados com os educadores na escola.
Ressalto a seguir alguns aspectos dos comentários verbais feitos pelos trabalhadores que se destacaram na pesquisa, apresentados aqui resumidamente:
Sobre O trabalho do educador social, destaca-se A escolha, pois a maioria expressou o desejo de fazer parte desta escola e disse tê-la escolhido. Essa possibilidade de escolha sinaliza para certo nível de liberdade dos trabalhadores, ainda que a decisão sofra a interferência de diversos fatores. Conforme afirma Dejours (1999, p. 20), o sofrimento faz com que o trabalhador busque, no mundo e no trabalho, condições de auto-realização “[…] essa busca assume a forma específica de uma luta pela conquista da identidade no campo social.”
Há também uma questão ideológica em relação à escolha do local de trabalho, pois muitos educadores em seu percurso profissional já participavam de outros grupos ou serviços que tinham como principal atividade a garantia de direitos de crianças e adolescentes.
Nós estamos aqui para garantir os direitos do outro.
Quanto ao trabalho de educador social, afirmam que é muito mais do que ser professor. Conforme afirma Freire (1985), o trabalho do educador social vai além da formação para ser professor. Este educador vai se construindo numa prática mediada na relação com seu educando. Neste processo, há uma transformação que acontece em ambos. Há um constante repensar sobre a atividade de educador, a necessidade de estar planejando e acompanhando a dinâmica de vida dos alunos.
A proposta da escola é a de trabalhar a construção de um projeto de vida para os estudantes. Neste projeto, está incluída a possibilidade de saída da rua, com a formação para o trabalho, através de oficinas, e a inserção em espaços de formação profissional. Ao mesmo tempo em que querem que esse estudante possa ser independente e sair da escola, contudo, os educadores sabem da dificuldade que é inseri-lo em um trabalho externo à escola, principalmente, por sua história de vida. Está sempre presente a proposta de redução de danos, como um grande benefício para os estudantes. Além de a escola trabalhar nesta perspectiva, em relação ao uso e abuso de substâncias psicoativas, os educadores acreditam que a permanência, no espaço protegido, já faça essa redução, na vida do adolescente.
Para o grupo de trabalhadores, é quase unânime que há um prazo máximo de permanência na escola, podendo, com a saída desse serviço, evitar o adoecimento. Seria como um “prazo de validade psíquico”, anterior ao adoecimento. Um educador trouxe a questão do vencimento do “prazo de validade”.
Eu acho que as pessoas aqui na EPA têm um tempo. Eu não sei qual é o tempo de cada um. Vou falar do meu tempo, e esse tempo que eu estou na EPA eu já passei por alguns lugares da EPA, que me deram mais prazer, e outros onde eu tive mais sofrimento […]
Todos os relatos referem que não há como não sofrer com as situações de vida dos adolescentes. A mobilização psíquica que causam as situações relatadas e vividas pelos alunos é fator importante no sofrimento dos educadores.
É meio impossível deixar de sofrer com o sofrimento deles. O dia que eu deixar de sofrer com o sofrimento deles, eu não consigo mais trabalhar aqui dentro.
Um dos pontos que esteve presente, em grande parte das discussões do grupo, foi a relação com os colegas de trabalho. Apesar da mobilização, pela situação dos adolescentes, os educadores acreditam que grande parte dos problemas da escola são referentes à relação entre os adultos.
Os educadores discutiram como é possível querer que os alunos se entendam e tenham respeito com os demais, se os trabalhadores não conseguem dar o exemplo. Aparentemente, as questões de conflitos, entre os adultos, se expressam mais entre os educadores, os que estão nas atividades mais diretas com os estudantes, principalmente da sala de aula.
É importante que se tenha confiança no trabalho do colega e que as atividades sejam realizadas conforme o planejado, mas isso nem sempre acontece, porque as pessoas não confiam nos encaminhamentos dados e nem respeitam os espaços de decisão.
Conforme afirma Dejours (2004, p. 68), a confiança diz respeito a “[…] construção de acordos, normas e regras que enquadram a maneira como se organiza o trabalho.” Para que haja cooperação, é necessária confiança entre os colegas, nos subordinados e nas chefias. Ainda afirma que “[…] sem cooperação, a situação seria equivalente ao que se observa em uma operação padrão; em outros termos, corresponde a um ato de bloqueio da produção.” (DEJOURS, 2004, p. 67)
Apesar das situações relatadas de sofrimento, os educadores conseguem associar situações prazerosas no trabalho com a execução de atividades bem sucedidas.
E hoje a gente consegue realizar trabalhos bem bacanas, bem legais, e há alguns depoimentos, assim, que realmente acabam me realizando um pouco como educador.
Mesmo com o sofrimento individual, saber que outros integrantes do grupo compartilham dos mesmos sentimentos é algo reconfortante. Ter a dimensão que o sofrimento individual pode ser compartilhado com o coletivo faz com que o trabalhador não se sinta só e possa compartilhar aquilo que é comum ao trabalho, e nem sinta que esta é uma vivência apenas individual. (DEJOURS, 2004)
Os educadores sentem a falta de reconhecimento, por parte de alguns colegas e da instituição. Ao mesmo tempo, relatam que outros serviços da prefeitura e sociedade em geral não conhecem e, portanto, não reconhecem seu trabalho. Segundo Dejours (2004, p 77), é possível a transformação do sofrimento em prazer, a partir do reconhecimento. Mas, se “[…] falta reconhecimento, os indivíduos engajam-se em estratégias defensivas para evitar a doença mental, com sérias consequências para a organização do trabalho, que corre o risco de paralisia.”
É a coisa de ser valorizado, no lugar que tu tá ocupando, tanto pelo produto que aparece ali porque é espontâneo, quanto do reconhecimento dos que tão perto de dizer: “que bacana”, que não é só nos dedos. Daí é uma situação muito ruim.
Os educadores relatam que a sociedade e outras escolas têm uma visão distorcida sobre o trabalho realizado. São vistos como anjos, santos, ou, ainda, interessados em “trabalho fácil”, por terem poucos estudantes, ou por estarem no centro da cidade, com outras facilidades.
Interessante observar que esta visão ambivalente, muitas vezes, é dirigida às pessoas em situação de rua (FERREIRA; MATOS, 2004; LEMOS, 2002, 2004; LEITE, 2001). Os educadores ressaltaram, também, a imagem de vagabundo, de quem “mata o serviço”, atribuída aos profissionais, assim como a ideia de ineficiência, relacionada ao serviço público.
Eu não consigo ter mais esta relação de diálogo com as escolas regulares, porque eles colocam a gente no patamar de anjo, santo, Madre Tereza. E não, a gente tenta ser profissional, ninguém é anjo, etc.
Tem dois conceitos, entre loucos, anjos e vagabundos.
Tu és rechaçada, eu me senti muito isolada, ou era louca.
Os educadores relatam a criação de mecanismos, para enfrentarem o cotidiano do trabalho, muitas vezes até brincando com as situações. A banalização, amortecimento e anestesia são estratégias citadas, como formas de evitar o sofrimento vivido junto aos adolescentes, ou como forma de suportar as situações a que são expostos os adolescentes. Ao mesmo tempo, estas estratégias são colocadas como pejorativas, quando relacionadas a outros educadores que não participaram do grupo. Mas também aparece uma forma de mobilização positiva, que não causaria anestesia ou paralisia, mas, sim, enfrentamento das situações.
Quando os integrantes do grupo foram convidados a falar sobre a experiência de participação na pesquisa, integrando o grupo e as possíveis repercussões desta participação, em relação ao seu trabalho, suas falas remeteram à possibilidade de reflexão sobre o seu fazer cotidiano e de construírem, coletivamente, novas possibilidades para o enfrentamento de conflitos no âmbito da escola. Também foi utilizado o termo de “espaço de verdade”, expresso no último comentário, para os encontros do grupo, como um momento para se conhecerem melhor e saber com quem é possível contar. Ao mesmo tempo, os educadores apresentaram a preocupação pelo fato de o período da pesquisa não ser suficiente para o aprofundamento de algumas questões, apresentadas no grupo.
Também relataram terem refletido sobre novas possibilidades para o trabalho, tanto da ordem individual quanto coletiva, a partir dos encontros do grupo, e de terem levado propostas, que surgiram a partir das discussões para as reuniões em outros espaços.
Considerações
A Metodologia que propõe a formação de coletivos de discussão, ou sua reorganização no espaço de trabalho, visa a reconstruir, através do grupo, o engajamento do trabalhador, na busca de reformular a organização do trabalho, com movimentos de tessitura da confiança e cooperação. Vale dizer que esse movimento segue na contramão do que tem se constituído, atualmente, em nossa sociedade, em relação ao individualismo exacerbado e à competição, cada vez mais valorizada.
Acredito que fazendo uso de uma abordagem qualitativa, que pressupõe a participação dos envolvidos, em todos os momentos do processo da pesquisa, pode contribuir na discussão de novas possibilidades, para pensarmos melhorias nas condições de trabalho e saúde para os trabalhadores. É o que se evidencia, pois essa perspectiva trata de questões relativas à subjetividade, ao trabalho, suas relações com a saúde e à vida dos sujeitos, bem como sua implicação política e social. É importante salientar que a pesquisa feita em um determinado momento, diz respeito, a um período no tempo. Portanto, situações aqui apresentadas já devem ter sofrido modificações.
Nota:
1 Pesquisa realizada durante o Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGPSI/UFRGS, defendida no ano de 2009 (BOTTEGA, 2009). Este texto é uma compilação do artigo e capítulo originais publicados pela autora, citados nas referências.
2 Aqui a referência ao fazer do trabalhador, remete à expressão savoir-faire como é utilizada por Dejours. (1992, 2004)
Referências:
BOTTEGA, C. G.; MERLO, A.R.C. . Prazer e sofrimento no trabalho dos educadores sociais com adolescentes em situação de rua. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho (USP), v. 13, p. 259-275, 2010
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LEITE, Lígia C. Meninos de rua: a infância excluída no Brasil. Coord. Wanderley Loconte. São Paulo: Atual, 2001. (Espaço e Debate)
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