Stuart Hall: nascimento e morte do sujeito moderno

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Na pós-modernidade há diversos questionamentos sobre uma chamada crise de identidade, que pode ser caracterizada por uma fragmentação das partes de um sujeito, que antes era unificada e dava uma base sólida para os indivíduos no mundo social. No livro de Stuart Hall (2006), “A identidade cultural da pós-modernidade”, o referido autor faz menção sobre as identidades culturais, sendo elas aspectos ligados ao nosso ambiente social como: etnias, raças, línguas, religião, etc e como ela nasceu na idade moderna e seu decorrer até a pós-modernidade que ele descreveria como a morte.

O escritor argumenta o quanto a identidade é algo mutável, sendo suscetível a mudanças, também pode ocorrer de decair a morte. Na modernidade surge a individualidade que é vivida agora de forma diferente dos tempos anteriores, pois o sujeito já não se apoiava mais em tradições ou posições estabelecidas divinamente da qual não se podia romper. Segundo Hall, isto se deve às influências dos movimentos do Humanismo Renascentista e do Iluminismo, entre os séculos XVI e XVIII, e também do protestantismo. Estes movimentos trouxeram consigo a libertação da visão dominante da Igreja Católica, o entendimento de que o homem era um ser capaz e centro de tudo e o pensamento racional e científico.

Fonte: http://zip.net/bhtNyr

Esta identidade poderia ser caracterizada segundo Willians (1976, p. 133-5), como indivisível, singular, distintiva, e única, mas pelo fato de o ceticismo metafísico estar presente na modernidade, Hall faz uma ressalva e nos lembra que ele pode não ser assim tão unificada como parece quando descrita. Quem demonstrou isto bem foi Descartes que em seus estudos colocou o sujeito individual e com capacidade de pensar e raciocinar no centro da mente, esta é então a concepção de sujeito racional ou digamos sujeito cartesiano.

O autor também traz a contribuição de John Locke (1967, p. 212, 213), que acreditava que a identidade estava diretamente ligada à proporção que a consciência da pessoa queria alcançar para suas ações. Então este indivíduo soberano era dividido em dois aspectos: o “sujeito da razão, do conhecimento e da prática e aquele que sofria as consequências dessa prática” (HALL, 2005, p. 28).

No século XVIII os grandes processos da vida moderna eram ainda vistos tendo como centro o indivíduo “sujeito-da-razão”. Mas essa concepção mudou a partir do momento em que se percebeu que as sociedades modernas estavam se tornando cada vez mais complexas, então foi adquirida uma forma não somente individual, mas social e coletiva. Emergindo uma concepção mais social do sujeito. A biologia darwiniana e o surgimento de novas ciências sociais foram dois grandes eventos que contribuíram para que fosse articulado um conjunto amplo de fundamentos conceptuais para o sujeito moderno.

Descentrando o sujeito

Aqui o autor argumenta sobre as mudanças sociais que afetaram diretamente a forma de agir das pessoas, reformulando como a individualidade se potencializou na era da  pós-modernidade. E neste contexto é apresentado concepções de cinco visões diferentes que vieram a influenciar nessa descentralização.

Marx é o autor do primeiro ponto sobre a descentralização do sujeito. O mesmo afirma que o homem é o responsável por fazer sua história, porém, deve submeter-se às condições que lhes são dadas. Em sua teoria ele visualizava o ser humano em dois pontos chaves. Uma é a essência universal do homem, e a outra é que essa essência é atributo de cada indivíduo singular, o qual é sujeito real. Embora sejam postulados que se complementam, Marx foi fortemente criticado por seu trabalho “anti-humanista”, trabalho este que influenciou fortemente o pensamento moderno.

A segunda teoria de grande impacto foi a de Freud, o qual afirma que a identidade, a sexualidade e todas as suas formas de desejo são processado pelo psiquismo de maneira inconsciente, que é o controlador e que não há conhecimento deste pelo indivíduo, pois todo o processo ocorre de maneira inconsciente. A teoria do inconsciente foi impactante, pois era muito diferente da forma que se tinha sobre o indivíduo até aquela época, dominando até a pós-modernidade com fonte principal do conhecer um indivíduo, que se constroi através das relações com outros, especialmente nas negociações psíquicas inconscientes, que a atribuída na infância com suas figuras paternas e maternas. E outro autor da visão psicanalítica foi Lacan, que potencializa esta teoria.

Fonte: http://zip.net/bttNpn

Enquanto que para Freud, tudo acontece por um processo inconsciente, Lacan traz a ideia de que a criança em sua formação depende ainda da convivência com outras pessoas para que assim possa se desenvolver. Lacan ilustra essa fase de desenvolvimento com a metáfora do espelho, onde a criança começa a se perceber no mundo através dos olhos dos outros, gerando assim um processo de desenvolvimento. 

O terceiro descentramento citado pelo autor foi retirado do trabalho de Ferdinand de Saussure, o qual argumenta que não somos autores do que falamos, pois a língua é preexistente a nós, e apenas nos expressamos através da fala. Diz ainda que, o ato falar de uma língua não representa somente a  expressão dos nossos pensamentos interiores, mas também ativa todo um acervo de significados inseridos em nossos sistemas culturais. Desta forma não temos controle sobre os significados que produzimos, pois em cada cultura há seus próprios significados.

Fonte: http://zip.net/bttN4d

O quarto descentramento é baseado na visão de Michel Foucault, que formula um novo poder sendo um poder disciplinar o qual se preocupa na regulação e vigilância da espécie humana. O objetivo desse poder disciplinar é basicamente produzir um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil. Assim os órgãos de poder têm mais facilidade para manter a vida de todos sob seu controle. Os locais de controle são as instituições, que visa o controle social, também conhecidas como “instituições de sequestro”, estas instituições são hospitais escolas quarteis, prisões e assim por diante.

O quinto descentralizamento foi o impacto do feminismo. O feminismo surgiu em paralelo a outros movimentos libertários. Esses movimentos se opunham politicamente tanto ao capitalismo ocidental quanto a política estalinista do Oriente. Tinham uma forma cultural forte. O feminismo questionou a distinção entre público e privado, trouxe para a política assuntos como família, a sexualidade, o trabalho doméstico etc. Defendiam não apenas os direitos da mulher na sociedade, mas também dos gays, lésbicas e outros movimentos, e assim surgiu a política da identidade.

Fonte: http://zip.net/bctNlR

Nos pontos acima foi mostrada a argumentação do autor sobre o descentramento do sujeito na modernidade. O qual antes de sofrer um bombardeio de informações e influências tinha identidade fixa estável, e a partir da era moderna, cercado por tantas influências sociais, culturais e políticas  adquiriu uma identidade fragmentada.

Foi sintetizado o percurso trilhado desde o Iluminismo e denotado as suas influências sobre os aspectos do sujeito moderno. Essas influências estão diretamente ligadas a forma como os sujeitos da contemporaneidade vivem, a forma da liberdade desprendida das tradições, crendices e dogmas. A subjetividade hoje é experimentada sobre outras perspectivas, sobre outra óptica, sem modelos estruturais previamente prontos a serem seguidos, porém é importante ressaltar alguns aspectos dessa “liberdade” que em alguns casos pode tornar-se uma falácia, pois a liberdade que  acredita-se possuir, não é de fato inteiramente liberta, ou seja, há restrições, há regras e privações mesmo dentro do discurso “sou liberto”.

O principal intuito das presentes explanações sobre a problemática é de esclarecer mesmo que de forma sintetizada sobre a gênese do que é vivenciado hoje nos contextos atuais, pois o sujeito do Iluminismo (indivíduo humano, centrado), sujeito sociológico (indivíduo complexo) constituíram, definiram, alimentaram e fizeram surgir o sujeito moderno.

REFERÊNCIAS:

HALL, Stuart. Nascimento e morte do sujeito moderno. In: Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Guaraeira Lopes Louro – 11. Ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006. Disponível em: <file:///C:/Users/psipa/Downloads/Stuart%20Hall%20A%20identidade%20cultural%20na%20po%CC%81s-modernidade%20(1).pdf>. Acesso em: 22 de Maio de 2017.

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Jean-Jacques Rousseau: a razão ameaçando a inocência e a liberdade

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Jean-Jacques Rousseau foi um homem a frente de seu tempo, precursor das ideias do Romantismo em um tempo Iluminista, sendo até mesmo considerado um opositor ao iluminismo. As ideias do seu período eram fundamentadas na razão, e ele pregou a emoção e o natural como fundamental, transformando esta racionalização na grande vilã da vida humana. Rousseau acreditava que a natureza humana era boa e gentil, o que a corrompeu foi a sociedade civil, que iniciou o sistema de propriedade, e com ele vieram leis que afetam a todos com a finalidade de beneficiar apenas alguns poucos, gerando o maior problema dos homens, a desigualdade, baseada em um preceito de injustiça.

Em uma declaração no início de sua mais importante obra, o autor afirma em desafio a sociedade que “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se acorrentado”, segundo ele fato demostrado desde Adão e Eva quando adquiriram o conhecimento, passando assim a uma vida infeliz e egoísta, que os levou a uma escravização, e até hoje isto é passado de geração em geração através da educação, das ciências e das artes. As duas principais obras lançados pelo filosofo suíço em 1762 (O Contrato Social e Emilio), não só apresentam a sua visão dos problemas da humanidade, mas também a possível solução para eles, que seria uma mudança radical no sistema de governo, com fundamentos da democracia, na qual todos os cidadãos interferem na formulação das leis.

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Fonte: http://www.cefuria.org.br/2015/10/30/educacao-popular-trocando-saberes-construindo-sabedoria/

Anos após a morte de Rousseau sua filosofia de livramento de correntes, por assim dizer, serviu de apoio para a Nova República Francesa, que tinha como lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, o eternizando na história. Jean Jacques Rousseau (1712-1778) vê o homem como um ser naturalmente bom e essa bondade foi corrompida pela sociedade. Acreditava ainda que o estado da humanidade é inocente, feliz e independente e o homem nasce livre. E que as pessoas são dotadas de virtudes inatas como compaixão e empatia, porém quando a razão diferencia o homem da natureza, as pessoas se afastam de suas virtudes (BURNHAM, BUCKINGHAM, 2011).

Ferrari (s/d) acrescenta que, para Rousseau, uma das falhas da civilização em atingir o bem comum, é a desigualdade, que pode ser dividida em dois tipos: a que se deve às características individuais de cada ser humano e aquela causada por circunstâncias sociais. Para ele:

A imposição da sociedade civil sobre o estado de natureza resulta de um afastamento da virtude em direção ao vicio – e da felicidade idílica em direção a miséria. A sociedade impõe leis injustas, feitas para proteger a propriedade e infligidas aos pobres pelos ricos. O deslocamento de um estado natural para um estado civilizado ocasionaria deslocamento da Inocência e da liberdade para a injustiça e a escravização. A humanidade é corrompida pela humanidade e embora o homem nasça livre, as leis impostas pela sociedade condenam-no a uma vida “acorrentada” (BURNHAM, BUCKINGHAM, 2011, p.158).

Ferrari (s/d) corrobora com Burnham e Buckingham e acrescenta que para Rousseau, o homem, ao renunciar à liberdade, abre mão do que o define como humano e para recuperar sua liberdade perdida através das imposições da sociedade, o filósofo sugere um aprofundamento interior rumo ao autoconhecimento, que se dá por meio da emoção, com uma entrega sensorial à natureza.

Criador do Mito do Bom Selvagem, de forma geral, Rousseau defendia a prioridade da emoção e afirmava que o corpo social havia afastado o ser humano da felicidade; pregava a experiência direta, a simplicidade e a intuição em lugar da erudição; rejeitava o racionalismo ateu e recomendava a religião natural, pela qual cada um deve buscar Deus em si mesmo e na natureza (FERRARI, s/d). Suas principais obras são: O contrato social e Emílio (1762). Em o contrato social explicou sua concepção de sociedade civil alternativa, governada pelos cidadãos, que participariam da formulação das leis, ou seja, em sua visão os cidadãos operariam como uma unidade prescrevendo leis de acordo com a vontade geral.

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Fonte: http://carinzoca.tumblr.com/page/2

Para Rousseau, a realização do eu comum e da vontade geral implicam um contrato social, uma livre associação de pessoas, que resolvem formar certo tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência. Esse contrato social seria a única base legítima para uma comunidade que deseja viver de acordo com os pressupostos da liberdade humana (CHAUÍ, 1997). As leis proviriam de todos e se aplicariam a todos a partir de um princípio de igualdade, pois ele acreditava que a participação no processo legislativo levaria a uma eliminação da desigualdade e da injustiça e promoveria um sentimento de participação (BURNHAM, BUCKINGHAM, 2011).

De acordo com Chauí (1997), para Rousseau, a lei, vista como ato da vontade geral e expressão da soberania, é indispensável, pois determina o destino do Estado e dessa forma, os legisladores têm um papel importante no Contrato Social, é deles que o cidadão “recebe, de certa forma, sua vida e seu ser” e transforma-se superando a existência independente, que usufrui no estado natural, e para uma vida moral como um ser comunitário. Na obra Emílio, ou da educação, segundo Ferrari (s/d), Rousseau explicou que a educação era responsável por corromper o estado de natureza e propagar os males da sociedade moderna.

Não há escola em Emílio, mas a descrição, em forma vaga de romance, dos primeiros anos de vida de um personagem fictício, filho de um homem rico, entregue a um preceptor para que obtenha uma educação ideal. O jovem Emílio é educado no convívio com a natureza, resguardado ao máximo das coerções sociais. O objetivo de Rousseau, revolucionário para seu tempo, é não só planejar uma educação com vistas à formação futura, na idade adulta, mas também com a intenção de propiciar felicidade à criança enquanto ela ainda é criança (FERRARI, S/D, p. 02).

Para Rousseau, a criança devia ser educada em liberdade e viver cada fase da infância na totalidade de seus sentidos. Ele também preconizava que a educação tinha que se preocupar com a formação moral e política (FERRARI, s/d).

De acordo com BURNHAM e BUCKINGHAM (2011) Rousseau está ligado à Revolução Francesa, pois sua ideia de um contrato social no qual a vontade do corpo controlaria o processo legislativo ofereceu aos revolucionários uma alternativa viável ao sistema vigente. Além disso, sua influencia também se estendeu a filosofia, tendo maior alcance no século XIX. Corrobora com essa afirmação Ferrari (s/d) ao afirmar que não foi por acaso que Rousseau publicou simultaneamente, em 1762, suas duas principais obras, Do Contrato Social ­ em que expõe sua concepção de ordem política ­ e Emílio, tratado sobre educação, no qual prescreve a formação de um jovem do nascimento aos 25 anos.

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Fonte: https://jornaldaluz.wordpress.com/author/cacaide/

Em todas as suas obras, os processos educativos e as relações sociais são vistos a partir do ponto de vista da liberdade, que ele vê como direito e dever. Ele afirmou a liberdade como direito inalienável e exigência para a vida, principalmente, espiritual do homem. Assim, Rousseau se distancia do individualismo, pois propõe uma coletividade e o valor do individuo enquanto indivíduo. Ele postula a consciência da dignidade do homem em geral e valoriza a personalidade humana, que se traduz na universalidade do amor de si. O amor de si constitui a interioridade, é a ponte que liga o eu individual ao eu comum, a vontade particular à vontade geral. Dessa forma, todos os cidadãos poderão chegar a identificar-se com o Todo maior, sentir-se membros da pátria e amá-la (CHAUÍ, 1997).

Nota-se que em suas obras prevalece a ideia de que a razão ameaça a inocência, a liberdade e a felicidade humana e que para ele, liberdade não significa a realização de seus impulsos e desejos, mas uma dependência das coisas. Assim, em vista dos aspectos observados conclui-se que se Rousseau acreditava que o homem nasce livre, mas através das exigências coletivas, sua é bondade degradada. No entanto, para ele é possível readquirir essa autonomia através de uma investigação interior em direção ao conhecimento de si próprio, que acontece por intermédio da emoção, com uma rendição sensível à natureza.

REFERÊNCIAS:

 

BURNHAM, Douglas; BUCKINGHAM, Will. O Livro Da filosofia. Globo Editora, 2011.

 

CHAUÍ, Marilene. ROUSSEAU: Vida e Obra. Círculo do Livro LTDA, 1997.

 

FERRARI, Márcio. Jean-Jacques Rousseau, o filósofo da liberdade como valor supremo. Disponível em< http://novaescola.org.br/formacao/filosofo-liberdade-como-valor-supremo-423134.shtml>. Acesso em: 24 ago 2016.

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Immanuel Kant – O conhecimento e a razão na perspectiva kantiana

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Fonte:http://conceitos.com/wp-content/uploads/2014/05/Racionalismo.jpg

Immanuel Kant foi um grande filósofo iluminista nasceu em 22 de abril de 1924 em Konigsberg, Reino da Prússia, faleceu em 12 de fevereiro de 1804. O renomado autor alcançou destaque ao desenvolver uma síntese das teorias do conhecimento vigentes no século XVIII que eram opostas e se baseavam no racionalismo continental, fundamentado por autores como Descartes e Leibniz na qual imperava o raciocínio dedutivo e em oposição estava o empirismo inglês de Hume e Locke.

Veiga-Neto, 2002, apud Romagnoli, 2009, p.166, afirma

[…] Nessa proposta iluminista, o formalismo metodológico sustenta-se na neutralidade/objetividade, com forte mitificação da racionalidade. E o homem torna-se um ser basicamente racional, que usa sua capacidade unida a uma cuidadosa observação do mundo exterior, para a produção de conhecimento científico e o consequente domínio da natureza, tendo como meta abordar a natureza essencial das “coisas”, a partir da noção de verdade.

A partir de tais ideais Kant produziu uma nova perspectiva a respeito da metafísica. O saber maiêutico, ou seja, dado a luz por Immanuel foi de importante valia não só para sua época, mas para toda a modernidade, pois esse período histórico esteve fortemente vinculado ao renascimento da ciência.

A obra que será aqui explanada foi denominada pelo próprio autor de Revolução Copernicana Kantiana, pois faz uma alusão à revolução realizada por Copérnico que descentralizou a Terra do universo e passou a defender que esta girava em torno do sol e não o inverso como se defendia até então. Falar-se à de forma breve sobre o cenário científico da época bem como as principais influencias que motivaram o autor em sua composição critica. Por tanto, o objetivo deste trabalho é uma breve apresentação da teoria crítica de Kant. 


 Fonte: http://www.christianhumanist.org

 O LUGAR DA RAZÃO NA TEORIA KANTIANA

A filosofia teve um grande marco no século XVIII, com o filósofo iluminista Emanuel Kant (1724-1804) conforme foi supracitado. Este, influenciado por três correntes científicas, pela física (Newton), pelo racionalismo (Leibniz e Descartes), e pelo empirismo (Hume), desvencilha do aristotelismo por meio das teorias supracitadas como a de Newton, Copérnico, Bacon, e de filosofias como a de Descartes, Leibniz, Locke e Hume.

 Ele faz uma síntese das então teorias do conhecimento, mantendo elementos das duas teorias antitéticas que são o racionalismo e o empirismo, e coloca outro elemento criando uma teoria cujo objetivo era superar a contradição existente e solucionar a não abrangência dos fenômenos.  Assim, enquanto os racionalistas desconsideravam completamente a experiência do sujeito na aquisição do conhecimento, e os empiristas defendiam que a experiência é inerente ao processo e a origem do conhecimento humano, Kant, segundo Deleuze (1963) coloca como principio a necessidade de o objeto se submeter ao sujeito.

Segundo Ferreira (2012), Kant realiza uma mudança na direção de ajuste das extremidades da cognição, deslocando o sujeito, mais especificamente a razão para o polo central. Então, se outrora era o indivíduo que deveria se ajustar ao objeto e um conhecimento verdadeiro era o que mais se aproximava da descrição do objeto externo, agora nessa nova perspectiva para que o conhecimento se dê o objeto é que deve ser regulado pelas capacidades cognitivas do sujeito.

Emanuel baseia-se na revolução Copernicana, marcada pela ruptura de uma visão de mundo alterando o entendimento entre o homem e o universo. Copérnico revolucionou ao defender a ideia de que o Sol era o centro do Universo e não a Terra como se acreditará até então. Tanto na Teoria de Conhecimento de Copérnico, como na teoria de Kant, observa-se uma similitude entre ambas. Como afirma o autor em sua obra Critica da Razão pura

[…] que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade de um conhecimento antecipado desses objetos, que estabeleça algo sobre eles antes nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira ideia de Copérnico (KANT, 2001, apud BATTISTI, 2013, p.39).

Sobre a revolução copernicana, Deleuze (1963) explicita que o racionalismo dogmático, na teoria do conhecimento se fundava na ideia de correspondência entre o sujeito e o objeto, tratava-se de um acordo entre a ordem das ideias e a ordem das coisas. Tal acordo tinha dois aspectos, implicava em si mesmo uma finalidade; e exigia um princípio teológico como fonte e garantia dessa finalidade. E numa perspectiva muito diferente, o empirismo de Hume questiona os pressupostos da metafisica afirmando acriticamente a capacidade humana de explicar a essência das coisas do mundo, Hume era direcionado a invocar explicitamente uma harmonia preestabelecida.

Ainda segundo o autor supracitado, a ideia fundamental de que Kant denomina a sua revolução copernicana consiste em substituir a ideia de uma harmonia entre o sujeito e o objeto pelo princípio de uma submissão necessária do objeto ao sujeito. Em sua perspectiva o conhecimento humano reside no próprio homem e não nas coisas que ele julga conhecer. Defendendo então que, a única forma de produzir conhecimento válido é restringir-se ao campo dos fenômenos, ou seja, o acesso às coisas tais como se apresentam para o individuo. A descoberta essencial é que a faculdade de conhecer é legisladora ou, mais precisamente, que há algo de legislador na faculdade de conhecer. Para Kant é a razão que faz as regras, estudando os limites da própria razão.

Kant queria demonstrar que há um mundo externo. Em que não há dúvidas sobre sua existência. Então deve- se ser capaz de dizer quando e por quanto tempo ele existe. Em relação com a consciência, que parece estar em constantes mudanças de pensamentos, e sensações. O “agora” é utilizado para dizer o que se acontece neste momento na consciência. Mas, “agora” não significa uma data ou um tempo determinada, então sempre que se diz “agora” muda-se a consciência. “…para que algo exista, deve ser determinável no tempo, isto é, devemos ser capazes de dizer quando ele existe e por quanto tempo” (BURNHAM; BUCKINGHAM, 2011 p.166).

Kant também investigou como a ciência entendia o mundo exterior. Ele se impressionava com a evolução da ciência. Kant junto com outros filósofos, indagava-se sobre o que era feito de maneira correta sobre a pesquisa científica. Os empiristas afirmaram que o recente sucesso da ciência se devia ao fato de os cientistas dedicarem muito mais cuidado as observações sobre o mundo do que tinha sido previamente também pelo fato de fazerem menos suposições injustificadas baseadas apenas na razão. “…todo o conhecimento provém da experiência dos sentidos, em outras palavras nada é priori… embora uma folha de árvore mude de verde para marrom, e finalmente caia da árvore, ainda é a mesma árvore”. (BURNHAM; BUCKINGHAM, 2011 p.169).

Kant argumenta a nossa experiência de mundo envolvendo dois elementos, a sensibilidade, capacidade de experimentas coisas específicas no espaço e no tempo, essa experiência direta o qual denomina “intuição”, o outro é o “entendimento”, capacidade de ter e usar conceitos. Burnham e  Buckingham (2011), o conceito caracteriza uma experiência indireta com os objetos do mundo externo. Dessa forma, sem conceito não saberíamos da nossa intuição/sensibilidade para tais coisas, e sem a intuição não saberíamos da existência das coisas que foram conceituadas.

Fonte: http://www.notapositiva.com/pt/trbestbs/filosofia/11_as_teorias_do_conhecimento_d.htm

Na sensibilidade está a intuição de uma coisa particular no espaço e no tempo, no entendimento está o conceito de “coisa” tal como o conheci empiricamente e o conceito de coisa como substância que possui um significado geral. Vários Autores, (2011), Logo a intuição e conceito de algum objeto são empíricos, pois como o sujeito poderia saber qualquer coisa a respeito de um objeto sem ter interagido com eles no mundo.

Porém a intuição de espaço e tempo e o conceito de substância são apriorístico, ou seja, é conhecido isolado de qualquer experiência empírica. Dessa forma o conceito de substância é uma precondição para a experiência.

A reflexão kantiana sobre o espaço é específica do seu tempo, circunscrita em um contexto de intensas discussões filosóficas para saber se o espaço é a condição da possibilidade da existência das coisas espaciais ou se é a consequência da relação entre as coisas espaciais, dito de forma mais clara, é uma discussão sobre a concepção de espaço absoluto e relativo. A existência do espaço e da extensão depende necessariamente das forças que as substâncias possuem para estabelecer relações fora de si, e mais, sem força não haveria enlace, sem enlace não haveria ordem, e, por fim, sem ordem, não haveria espaço. Nessa perspectiva, o espaço é concebido como um sistema de relações entre as coisas espaciais que estabelecem relações fora de si, impulsionadas por suas forças, em outras palavras, a estrutura do espaço dependerá da lei que regula as forças próprias de cada coisa espacial. “Para Kant, o espaço não uma substância, mas, sim, o fenômeno da ação dinâmica de uma substância sobre outra, e sua divisão ao infinito não implica na corruptibilidade da unidade constitucional dos corpos simples” (ROSSET, 2014, p. s/n).

Contribuições de Kant 

Partindo desse pressuposto, o autor – segundo Figueiredo (1991) – afirma de um lado não acreditar na capacidade de o homem conhecer a verdade absoluta das coisas em si, de outro toda a questão do conhecimento é radicalmente colocada em termos subjetivos, pois tudo que é conhecível repousa na subjetividade humana, e tal subjetividade não é particular de cada indivíduo, é a subjetividade transcendental e universal do Homem.

Os argumentos de Kant mostram que o espaço é uma intuição a priori, para conhecer algo externo ao sujeito, é preciso conhecer que existe um mundo externo a ele, para isso faz-se necessário conhecer o que significa o externo a ele. Esse conceito traz uma implicação admirável, pois se o espaço é a priori não pertence às coisas do mundo em si.

Então, uma coisa em si, separada da nossa sensibilidade e exterior a nossa mente pode não ter nada haver com o espaço. Burnham e  Buckingham (2011), ao dedicar-se a provar a existência de conceitos a priori Immanuel distingue dois tipos de alteração, variação que diz respeito às propriedades que as coisas têm exemplo a cor de um camaleão, e a mudança que diz respeito a alteração de cor do mesmo camaleão. Nessa perspectiva, a substância muda e suas propriedades sofrem variação.

Kant inicia a ideia de “idealismo transcendental”, ele definiu que espaço, tempo e alguns conceitos são característica do mundo que experimentamos, o qual denominou mundo dos fenômenos, e paralelamente pontua as características do mundo em si que estão desassociados da experiência dos sentidos o qual denomina mundo numênico.

Fonte: http://divagacoesligeiras.blogs.sapo.pt/immanuel-kant-22-de-abril-de-1724-12-490050

As arguições a respeito do conhecimento a priori apresentadas por Immanuel destacam consequências positivas e negativas, a positiva é que a natureza a priori de tempo espaço e alguns conceitos torna possível a experiência de mundo, espaço e tempo proporcionam a experiência matemática na natureza, podendo medi-la conforme valores conhecidos. Vários Autores, (2011), o conceito a priori como substância permite fazer perguntas sobre a natureza, tal como se é uma substância e que propriedades existem de acordo com quais leis. O idealismo transcendental permite que a experiência empírica seja considerada útil para a ciência. Do lado negativo, certos tipos de pensamento, se nomeiam ciência e até parecem ciência mas falham totalmente. Isso acontece porque aplicam a coisas em si intuições como de espaço, tempo e substância, o que é válido para a experiência empírica porém não tem validade para as coisas em si.

A partir do estudo desenvolvido no presente trabalho pode-se destacar em um contexto geral a relevância da composição de tais autores como Kant para o acumulo do conhecimento científico. E em um contexto específico, sistematizado nas ciências humanas como a Psicologia, a teoria Kantiana manifesta-se precursora do que atualmente compreende-se como subjetividade.

Referências

BATTISTI, F. A revolução copernicana kantiana como metáfora para se pensar a construção da autonomia do sujeito que aprende. URIAUM. Frederico Westphalen, 2013.

BURNHAM, Douglas.; BUCKINHAM, Will. O livro da Filosofia. Editora Globo, São Paulo, SP, 2011.

DELEUZE, G. Filosofia Crítica de Kant. Edições 70. Lisboa, 1963.

FERREIRA, A. Kant e a Revolução Copernicana do Conhecimento: uma Introdução. Existência e Arte. Revista Eletrônica do Grupo PET. Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei. Ano viii. Número vii, 2012.

ROMAGNOLI, R. C. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia & Sociedade; 21 (2): p. 166-173. Belo Horizonte, 2009.

ROSSET, L. O Problema da natureza do espaço em Kant. Rev. Paradigmas. Ed.09. São Paulo, 2014.

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Eckhart é um elo com o Oriente

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“E digo mais, que todo sofrimento provém do amor àquilo de que a perda me privou. Portanto, se a perda de coisas exteriores me faz sofrer, eis aí um indício seguro de que tenho amor às coisas exteriores e, por conseguinte, de que na verdade eu amo o sofrimento e o desconsolo. Com efeito, que há de estranhável em que eu me depare com o sofrimento se amo e busco o sofrimento e o desconsolo? O meu coração e o meu amor apropriam à criatura o Ser-Bom que é propriedade de Deus. Volto-me para a criatura, fonte natural de desconsolo, e viro as costas a Deus, fonte de toda consolação. E acho estranho que entre a sofrer e a sentir-me triste. Em verdade, nem Deus nem o mundo inteiro seriam capazes de proporcionar verdadeira consolação ao homem que procura consolo nas criaturas. Mas quem na criatura só amasse a Deus e só em Deus amasse a criatura, este encontraria, em toda a parte, consolação verdadeira, merecida e sempre igual.”

MESTRE ECKHART (1260-1328), EM “O LIVRO DA DIVINA CONSOLAÇÃO”.

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Na imanência, o homem é co-partífice da totalidade

Por sua abordagem que, em alguma medida, coloca em xeque a visão clássica que se tem da transcendência, Eckhart muitas vezes foi mal interpretado e chegou a ser investigado pela Inquisição. Em Le Goff apud Guerizoli, “Eckhart é fundamentalmente um místico que, como tal, na crescente dissociação entre razão e fé que teria marcado o panorama intelectual dos séculos XIII e XIV, faz uma clara opção por esta em detrimento daquela”, no que seria (de forma indireta) uma explícita aproximação com a abordagem contida no Budismo, notadamente em sua vertente japonesa (Zen), que rechaça o uso do intelectualismo (ou mesmo da razão) como mecanismo de compreensão do mundo. “Aliás, pelo contrário, o excesso de informação [por parte do praticante budista] e a tendência deste de querer demonstrar que sabe, acaba por lhe afastar de um entendimento que é essencialmente decorrente da prática e dos anos de experiência [meditativa]” (CHALEGRE, 2015).

Ainda sobre este tema, vale ressaltar que

Eckhart nos deixou uma extensa obra em médio-alto-alemão onde os principais temas daquilo que, em certa medida, pode-se chamar uma doutrina da união entre criatura e criador são desenvolvidos e assumidos como parte fundamental de seu pensamento. Não obstante, ainda que possa parecer legítimo aplicar-se à obra eckhartiana o adjetivo “místico” e a Eckhart o epíteto de um autor interessado no problema da unio mystica, isso ainda não é motivo para que, de imediato, tachemos sua doutrina como antiintelectual. (GUERIZOLI, 2008, pág. 65)

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Pseudo-Dionísio: deificação do homem

Guerizoli ressalta que dentre os autores que mais influenciaram Eckhart destacam-se Orígenes, Gregório de Nissa e Pseudo-Dionísio Areopagita (no chamado neoplatonismo), e algumas das características marcantes de sua abordagem é “a ‘deificação’ do homem e sua ‘união’ – ou ‘unificação’ – com Deus, que se daria somente através do reconhecimento de sua filiação divina” (idem, pág. 66). Há de ressaltar, no entanto, que esta visão teológica, do medievo tardio, acabaria por desembocar no próprio humanismo nascente no Iluminismo. Não por menos, como destaca o professor, escritor e monge Cláudio Miklos (2015), o budismo (notadamente em sua vertente Zen), antes mesmo de ser classificado como religião, é uma espécie de humanismo, pois resgata um conjunto de preceitos cujo eixo, em alguma medida, está inserido no reconhecimento da autogestão [do homem] e da imanência.

A abordagem de Eckahrt (1999), como já destacado anteriormente, não passou incólume às tensões internas que permearam a efervescente produção intelectual da Idade Média. Ele é uma das provas, diriam alguns estudiosos, que nem todos os doutos e clérigos que compunham as fileiras das universidades cristãs eram meramente “orgânicos”. No entanto, havia um preço a ser pago pela visão “destoante” em relação à escolástica:

Através da condenação do “averroísmo latino”, a Igreja fecha as portas da universidade ao mais expressivo movimento anticlerical da alta escolástica. A consequência desse ato é o aumento, ao longo do século XIV, do fosso que separa a cultura universitária, da qual o intelectual é o representante por excelência, e a cultura laica que experimentava um grande enriquecimento com o desenvolvimento das línguas vulgares as quais, posteriormente, tornar-se-iam línguas nacionais.10 O século XIV assiste, portanto, ao crescente enclausuramento da figura do intelectual, que, segundo Le Goff, acaba formando com seus poucos pares uma “tecnocracia” cada vez mais isolada da realidade urbana, possibilitando, assim, o surgimento, a partir do século XV, de um novo tipo social letrado, solitário e atrelado preferencialmente ao poder temporal: o humanista. (Guerizoli, 2008, pág. 60)

Haveria na filosofia de Eckhart, no fundo, uma “tentativa de supor a real possibilidade de superação de todas as diferenças entre divindade e humanidade”. Um dos exemplos máximos desta teoria seria a doutrina da “existência de algo de incriado na alma, a qual entreabriria a possibilidade de reconhecer nesse “algo incriado” uma instância que fugiria à condição de ‘criatura’ e de pôr em xeque […] o próprio sentido de Deus como criador de tudo o que existe” (idem, pág. 69).

Mesmo se tecido sobre um pano de fundo teológico, o pensamento de Eckhart não se faria como descrição de uma experiência religiosa pessoal – tendo por base uma pura cognitio dei experimentalis – mas trafegaria, antes, por discussões, demonstrações e argumentos. No fundo dessa possibilidade estaria, mais uma vez, a convicção de que a revelação bíblica poderia ser descrita em argumentos racionais, de que teologia e filosofia, fé e razão, longe de se contraporem, integrar-se-iam, formando um todo compreensível”. (Guerizoli, 2008, pág. 68)

Assim, numa leitura sobre Le Goff, Guerizoli (2008) diz que, do todo, seria um equívoco entender a abordagem eckhartiana como meramente anti-intelectualista/antirracionalista, ou mesmo estritamente mística.

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Ainda na abordagem eckhartiana, em Dourado (2009), constantemente o homem se (re)posiciona em relação ao Todo e, neste movimento, o Criador não submete as criaturas ao que é basicamente seu, homogeneamente falando. Essas criaturas também não são substâncias fixas, mas a repercussão de Deus que se dá através das pluralidades. Haveria uma “plenificação” da natureza dos homens/mulheres, mesmo no movimento. Portanto, a vontade própria reposiciona-se em relação à vontade maior, numa troca incessante, ora com aspectos imanentes, ora transcendentes. Ou seja, o ser humano se relacionaria com o mundo numa perspectiva de presença e partilha, e não vê o homem como um fim em si mesmo (como aborda correntes do humanismo). Há, portanto, um fundo comum entre todas as criaturas. Na Bíblia, diz Dourado (2009), isso se apresenta no Sermão 12, quando se espera que

Ao homem que assim tivesse saído de si mesmo, de tal modo que fosse o Filho unigênito, a ele seria próprio o que é próprio ao Filho unigênito (…). Quando Deus vê que somos o Filho unigênito, ele se precipita e se lança ao nosso encontro com tanta veemência, (…) como se seu ser divino se lhe fosse  despedaçar e quisesse tornar-se  nada em si mesmo, a fim de nos revelar todo o abismo  de  sua  deidade e a plenitude do seu ser e da sua natureza; Deus se apressa para ser totalmente o nosso próprio, assim como é o seu próprio. (Sermão 12, I, pág. 102)

Eckhart (1999) ainda defende que esta dimensão do homem, na constituição mesma de sua ontologia, implica em sujeição, obediência e humildade. Em Dourado (2009), essa sujeição quer dizer, analiticamente, que todas as coisas estão sujeitas (subjectum) à uma totalidade, inclusive as coisas que não dispõe de consciência.

Todos os entes são criaturas, e por isso mais pertencem à totalidade do real, à doação integral de Deus enquanto criador, do que a si próprios. Ou seja, os entes são o que suas naturezas delimitam,  e por isso possuem algum nível de substancialidade, mas são o que são pela presença de Deus, e não pela pulsão de sua autonomia. Neste sentido, todas as criaturas são submetidas à totalidade. (DOURADO, 2012, v.6, n.2)

Na concepção budista, notadamente através da expressão da Soto Zen, não são os homens/seres que vivem a vida. É a vida que vive o ser. Em súmula, há um enfraquecimento do homem (enquanto unidade separada e autossuficiente) em detrimento da unidade. Essa visão de interdependência (do ser humano em relação à totalidade da vida) coloca os seres em total dependência de algo absoluto. Haveria, portanto, uma negação do “eu” provisório, que ora se manifesta (ou o não-eu budista). Sobre isso, Eckhart (1999) foi enfático: “As criaturas todas não têm ser, pois o seu ser depende da presença de Deus. Se Deus, apenas só por um instante, desviasse sua face das criaturas, elas seriam aniquiladas” (ECKHART, Sermão 4, I, p. 59). No entanto, parece paradoxal, mas cada criatura manteria resguardada o “criador no bojo de seu ser” (DOURADO, 2012, v.6, n.2), e assim como ocorre na concepção budista, a vida se apresenta como compartilhamento de Deus (ou do Dharma, na visão de Buddhadasa) em todas as criaturas. Assim, “as coisas são em Deus, e, por isso, ao serem, sinalizam toda a divindade” (idem).

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A anulação do ego, no Cristianismo, é uma “disposição para Deus”

Neste ínterim, a sujeição (ou aniquilamento do ego) é um mecanismo para que o ser humano (ou toda a criação, numa visão mais abrangente), ultrapasse a sua própria natureza, o que possibilita a comunhão com a totalidade. Aliás, mais que uma comunhão, como lembra Dourado, trata-se aqui de uma forma para que a totalidade possa passar.

E a insistência no verbo ‘poder’ e não simplesmente no ‘passar’ é o seguimento de uma indicação de Mestre Eckhart, ao concluir a questão da doação de Deus: ‘Ele se doa como Deus, como ele o é  em  todos  os  seus  dons,  à  medida  que  há  disposição  em quem gostaria de recebê-lo (DOURADO, 2012, v.6, n.2).

Vale ressaltar que esta “disposição para Deus” só pode ocorrer, no Cristianismo, a partir da noção de que existe algo de caráter totalizante, que une e precede toda a existência. Campbell diz que, desta forma, para que todos os povos se redimam, para que haja a apreensão da mensagem salvífica, é necessário ter um entendimento mínimo de alguns conceitos, como temporalidade, contingência e interdependência. Ou seja, assim como ocorre no Budismo (para quem é preciso haver um aspecto mínimo de senciência para adentrar o Sagrado), no Cristianismo sob o viés eckharteano Deus apesar de ser onipotente, respeita os limites de cada criatura, que só pode reestabelecer o caminho de comunhão à medida que reconhece a fagulha divina que há em todos.

Para os budistas, quem não se reconhece como expressão do Sagrado está inebriado pela ignorância (não no sentido intelectual, mas de sutileza em relação à identificação do aspecto de co-dependência) e pela concepção de cegueira e afastamento. O “ser búdico” já o é desde sempre, mas por não reconhecer-se como tal (por não permitir a aproximação com Deus), acaba por distanciar-se de sua real natureza. Em Eckhart, quando isso ocorre (este afastamento), supõe-se que o homem vem cobrindo o seu coração de terra, criando camadas com respaldo meramente mundanos, tornando-se ele mesmo (o homem) obstáculo de sua própria vida, já que “… quando o olho está doente em si mesmo, e enfermiço, ou velado, é-lhe impossível perceber o brilho” (ECKHART, O homem nobre, O livro da divina consolação…, pág. 93). Impossível não comparar esta assertiva eckharteana à abordagem budista que compara um homem ignorante de seu aspecto divino com alguém que teve os olhos atingidos por flechas.

REFERÊNCIAS:

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

BUDDHADASA, Ajah. Ensinamentos de Cristo, Ensinamentos de Budha. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1ª. Edição, 2014;

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Editora Vozes, 4ª. Edição, 1999;

GUERIZOLI, Rodrigo. Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”? – Cadernos de Filosofia Alemã (nº 11 | P. 57 – 82 | JAN-JUN 2008). Disponível em < http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/download/64788/67405 > – Acesso em 06/09/2015;

NORBU, Lama Zopa. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube de Autores, 1ª. Edição, 2010;

USARSK, Frank. O Budismo e as Outras. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2009;

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1995;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013;

DOURADO, Saulo Matias. A distinção entre vontade própria e desprendimento em Mestre Eckhart. Revista de Filosofia v.6, n.2, dezembro/2012;

WILKINSON, P. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. Tradução de Beth Vieira. 2ª edição. São Paulo. Publifolha. 2002;

WATTS, Alan. Budismo. Barcelona: Editora Kairós, 2ª. Edição, 2005;

Vaticano: Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Disponível em < http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/interelg/index_po.htm > – Acesso em 07/09/2015.

MARQUES, Leonardo Arantes. História das religiões e a dialética do sagrado. São Paulo: Madras, 2005;

O Movimento Focolares. Disponível em < http://www.focolare.org/pt/in-dialogo/grandi-religioni/ > – Acesso em 15/07/2015;

MONTEIRO, J. A. Ensaios Filosóficos, Volume XI. Disponível em < http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo%2011/JoaquimAntonioMonteiro.pdf > – Acesso em 13/09/2015;

NETO, Antonio Florentino. Heidegger e o inevitável diálogo com o mundo oriental. Disponível em < https://anaiscongressofenomenologia.fe.ufg.br/up/306/o/ConftFlora.pdf > – Acesso em 14/09/2015;

MONTEIRO, Joaquim. Budismo e Filosofia (audiolivro). São Paulo: Universidade Falada, 2009;

XAVIER, Maria Leonor. O Cristianismo e a Filosofia Ocidental – I Colóquio sobre Filosofia da Religião (2001). Disponível em < http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html > – Acesso em 15/09/2015;

SCHUON, Frithjof. De l’Unité transcendante des Religions. Disponível em < http://www.frithjof-schuon.com/unite.htm > – Acesso em 26/09/2015;

MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

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Voltaire – Toda teoria pode ser desafiada

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Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser,
mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.

Voltaire

Conhecido por expressar o ceticismo de forma engenhosa durante certa fase do Iluminismo (embora esta “corrente” exista desde a filosofia grega clássica), Voltaire (1694-1778) engrossou o coro dos que desafiaram as autoridades constituídas de seu tempo, notadamente a Igreja e a Monarquia, e questionou o cânon vigente, colocando em xeque as explicações “prontas” oferecidas até então por estas instituições.

Voltaire, na verdade, era o pseudônimo do pensador parisiense François Marie Arouet, nascido de família classe média e amante da escrita. Com ele, pôde-se concluir que todo fato ou teoria “na história foi revisto em algum momento”, uma vez que seria inconcebível “nascer com ideias e conceitos prontos em nossas cabeças”. Estas observações, não por menos, são precedidas das ideias do filósofo britânico John Locke, para quem a experiência sensorial (e não a reminiscência platônica) “permite a crianças e adultos adquirir conhecimento confiável sobre o mundo externo”.

A partir desta concepção “libertadora” para a época, Voltaire diz que “toda ideia ou teoria pode ser desafiada”, e apesar de as “certezas” oferecidas pelas instituições serem acalentadoras, “por ser mais fácil aceitar as declarações oficiais”, se analisadas a fundo, [tais certezas] não passam de um completo absurdo. Ora, se não existem ideias inatas, tão pouco é concebível um escopo teórico/prático que esteja além da construção cultural, e que vem sendo preservado pela “tradição” e pela história. Daí sua “rebelião” contra as instituições tradicionais.

O leitor já deve ter percebido que em Voltaire é a “dúvida” que se configura como “único ponto de vista lógico”. Como esta postura pode levar a um relativismo e “desacordo sem fim […], Voltaire enfatizou a importância da ciência para estabelecer o acordo (mediação)”. E a educação é outro ingrediente indispensável para esta receita que, segundo o francês, “levam ao progresso material e moral”.

O que diferencia céticos como Voltaire dos sofistas? Para Comte-Sponville, há no ceticismo uma busca pela verdade, o que afasta o viés sofista e configura-se como trajeto tipicamente filosófico, no entanto nunca estão “certos de tê-la encontrado [esta verdade]”. Assim, [os céticos] também se distanciam dos dogmáticos. “Não é a certeza que eles amam, mas o pensamento e a verdade. Por isso gostam do pensamento em ato, e da verdade em potência”. Esta visão, para vários pensadores como Jules Lagneau (1851-1894), é a que deveria nortear todos os filósofos.

Desta forma, é descarta – em linhas gerais – uma eventual inclinação do ceticismo ao pessimismo e/ou negativismo epistemológico. “Cético não é aquele que afirma que a verdade não existe, mas sim aquele que confessa não conhecê-la, sem com isso desistir de procurá-la”, define o pós-doutor Paulo Jonas de Lima Piva, da Universidade São Judas Tadeu.

A Queda da Bastilha, durante a Revolução Francesa, foi um evento fortemente influenciado pelo pensamento de Voltaire

O pensamento de Voltaire influenciou de forma direta a Revolução Francesa, que viria a ocorrer 11 anos após a morte do filósofo – também exerceria a mesma influência sob a Independência dos Estados Unidos. No bojo das demandas apresentadas pelos revoltosos, havia outra concepção voltairiana poderosa: uma preocupação com a liberdade, notadamente a liberdade de pensar. Desta forma, era necessário garantir que as pessoas pudessem expressar seus pontos de vista, mesmo que estes fossem conflitantes com o “establishment”. Daí surge a popular frase atribuída a Voltaire: “Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”¹.

Vida pessoal

A mãe de Voltaire morreu durante o parto, e o filósofo foi criado com certa “liberdade” pelo pai. De saúde frágil, o francês foi pajem do marquês de Châteauneut, o que lhe possibilitou viajar para a Holanda (Haia), local aonde viria a ocorrer a primeira “peripécia” de Voltaire, o envolvimento com a jovem Olympe Runoyer. Mandado de volta à França, logo se envolve em novo “romance”, desta vez com Susanne de Livry, e inicia uma frutífera produção de escritos, que variaram de poemas a peças teatrais. Numa das obras, com teor sátiro, acaba por ofender ao rei Henrique 4º, o que lhe rendeu um ano preso na Bastilha, local onde recebeu o nome pelo qual ficaria mundialmente conhecido.

Já em liberdade, se envolve numa briga com um cavaleiro da corte e tem que se exilar por três anos na Inglaterra. Lá, conhece pensadores como Young Pope e Berkeley, e lhe chama a atenção como a “liberdade de expressão, a tolerância religiosa e a filosofia” eram nutridas naquele país. Vários anos depois, numa gradativa reaproximação com a França, Voltaire torna-se historiógrafo real e, em 1749, já em Paris, é eleito para a Academia Francesa. Neste ínterim, é convidado para dar aulas de francês ao rei Frederico 2º, da Prússia. “Tudo ia bem até que Voltaire publicou um panfleto atacando Malpertuis, protegido do rei e presidente da academia de Berlim”.

Fugitivo mais uma vez, Voltaire passa a morar em Genebra, e é de lá que ele termina suas maiores obras: “Um Ensaio sobre o Costume e o Espírito das Nações e sobre os Principais Fatos da História, de Carlos Magno a Luís 13”; e “A Era de Luís 14”. Em 1764, em Ferney, publica o “Dicionário Filosófico”.

Diferenças

É interessante observar que não se pode confundir o ceticismo filosófico de que trata Voltaire com o ceticismo científico, para se evitar que se tome “como cético todo o homem que adota para si e sobre as coisas uma postura crítica”. O cientista, ao abraçar uma atitude cética, “faz uso de metodologia específica para criticar conceitos estabelecidos ou fatos tais como se apresentam à investigação científica”.

A separação entre Ciência e Filosofia, no entanto, não é uma questão simples. O método científico, cujo fundamento bebeu de fontes primárias do pensamento universal, consideradas na Filosofia da Ciência, dizem, parece ter perdido muito com esse distanciamento. Questiona-se a divisão entre Ontologia (estudo da natureza do ser) e Epistemologia – afastando questões metafísicas das investigações – e o estabelecimento de certo cientificismo no desenvolvimento da própria Filosofia, influenciado pelo positivismo. Pensadores como Rousseau, Marx e o próprio Gramsci chegaram a mostrar que o avanço científico linear é insuficiente no auxílio à humanidade e seus problemas de toda ordem.²

Voltaire é um dos filósofos mais conhecidos durante o “resgate”, a seu modo, do ceticismo no Renascimento. E os ideais cristalizados pelo francês se tornam, desta maneira, barreiras a serem superadas. Do lado cristão, quem tomou para si esta empreitada foi o filósofo Blaise Pascal (1623-1710), para quem “o ceticismo teria consequências desesperadoras no plano existencial, como o ateísmo”.

Quando morreu, em 1778, Voltaire provavelmente jamais imaginaria que suas posturas sobre as instituições fossem influenciar gerações de estudiosos. Foi através de seus posicionamentos que várias mudanças ocorreram na França, notadamente em relação à liberdade de imprensa, a diminuição dos privilégios do clero e à tolerância religiosa (num país marcado pela luta entre católicos e protestantes). O pensamento de Voltaire também causou grande impacto sobre o que viria a ser a aplicação da proporcionalidade tributária. Curiosamente, a mesma Revolução Francesa que Voltarei ajudaria a eclodir (post mortem), acabou por instaurar o aumento de impostos “para financiar guerras, tanto coloniais quanto napoleônicas”. Enfim, tudo o que se desfruta hoje em termos de liberdades (em todos os sentidos) se deve, e muito, ao filósofo parisiense, que se imortalizou, dentre outras coisas, por acreditar que se deve julgar um homem “mais pelas suas perguntas que pelas suas respostas”.

Primeiro encontro de Voltaire com Frederico, o Grande (Harper’s New Monthly Magazine)

Notas:

¹ – Disponível em http://pensador.uol.com.br/posso_nao_concordar/ – Acesso em 20/01/2014.

² – Trecho da matéria “A evolução do pensamento Cético”, publicada na Revista Filosofia Ciência & Vida – Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/imprime87204.asp – Acesso em 21/01/2014.

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

Voltaire – Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Voltaire  – Acesso em 20/01/2014.

Filósofo e escritor francês Voltaire – Disponível emhttp://educacao.uol.com.br/biografias/voltaire.jhtm – Acesso em 19/01/2014.

Ensaios Sobre o Ceticismo / [organizados por SMITH, PLINIO JUNQUEIRA; SILVA FILHO, WALDOMIRO J.]. – São Paulo: Alameda, 2007.

PIVA, Paulo Jonas de Lima. A evolução do pensamento Cético – artigo publicado na Revista Filosofia Ciência & Vida – Disponível emhttp://portalcienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/imprime87204.asp – Acesso em 21/01/2014.

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