O psiquiatra, o psicólogo e o psicoterapeuta como barqueiros do inferno

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No filme “Amor além da vida”, de 1998, Chris (Robin Willliams) e sua esposa Annie (Annabella Sciorra) perdem os dois filhos em um acidente de carro. Annie, então, é internada em depressão grave. Chris passa a visitá-la regularmente, como se tentasse resgatá-la de um buraco sem fundo, de onde ela própria não tinha forças nem esperança para sair. O golpe final para Annie, quando já se recuperava, é a morte do marido num acidente quatro anos após a morte de seus filhos. Daí em diante o filme passa a ser contextualizado num universo extrafísico, apresentado como uma manifestação externa do ambiente intrapsíquico.

Portanto, o cenário em que Chris é recebido por um antigo amigo e mestre, Albert, parece pintado à tinta, como se estivessem dentro de um dos quadros que Annie pintava e Chris amava. “Este é o seu céu”, explica Albert. Quando descobre que Annie cometeu suicídio, Chris quer ir até ela de qualquer jeito e não há como impedi-lo. Albert leva-o à presença de um guia, alguém experiente e capaz de conduzi-lo ao estado de “inferno” psíquico em que Annie se encontrava, juntamente com outros de estado semelhante. Chris será guiado através de uma espécie de inferno de Dante pelo mundo que seria resultado de uma construção psíquica conjunta de seus “habitantes”. O velho e sinistro guia lhe diz: “Você teme o que? Perigo físico?” e adverte que todo perigo ali é – e obviamente só poderia ser – psíquico.

Fonte: encurtador.com.br/bfuG5

A viagem é norteada pela ligação mental entre Chris e Annie, mas é momentaneamente perturbada por uma lembrança de quando, ainda em vida, ele disse ao filho o quanto o admirava, “se eu tivesse que ir ao inferno, não ia querer outra companhia que não a sua”. Percebe então que Albert é na verdade seu filho, que diz ter escolhido aparecer como Albert para ele porque pensou que só assim seria ouvido. Os três atravessam grandiosos cenários de dor e aflição, onde corpos, rostos, seres pálidos se despencam, se amontoam soterrados ou afundam no chão ou na água. Chris pergunta ao guia o que ele fazia na sua vida. Ele responde: “Na última? Eu tinha um trabalho parecido com esse”. “Era psiquiatra” – conclui Chris.

Mostrando grande familiaridade com aqueles caminhos, o guia demonstra tensão e bom humor, como se conhecesse algum belo sentido secreto de tudo que se manifestava ali. Quando se aproximam no local em que estava Annie, uma versão retorcida e sombria da casa deles, espaço mental onde ela havia se sepultado em total alienação, o guia diz a Chris que ele só teria cerca de três minutos com ela antes de enlouquecer. Como enlouqueceria? “Quando a realidade dela se tornar a sua” (compreensão fundamental para todo aquele que comparece diante do sofrimento do outro). Segue-se o esforço se Chris de salvar Annie de seu inferno psíquico, como o fez em vida quando ela estava internada. E a resistência dela ao retorno a si e à consciência da dor.

Fonte: encurtador.com.br/nGJT0

Guia do ambiente psíquico em seus vários níveis subterrâneos, o profissional “da mente”, é navegante experimentado porque tem intimidade com sua própria escuridão, a ponto de perceber que essa não é outra que não a escuridão da humanidade. O mitologema do psicopompo faz referência a esse arquétipo que move o psicoterapeuta em geral, como aquele que transita entre os mundos, constituindo, portanto, seu elemento de ligação. Um representante mais explicito é o deus grego Hermes, responsável pela “condução das almas, uma atividade que se estende até mesmo além da vida”.

Fonte: encurtador.com.br/htuU6

Hermes é o próprio devir, “o espírito de uma configuração da existência que sempre retorna nas mais diversas condições”, neste mundo e no outro, pois não transita nos caminhos prontos marcados no chão, mas sim em caminhos outros, por onde passa pairando, volátil, pelos abismos de amores incríveis, ilhas e cavernas. Seu estado “é o de estar sempre em suspenso”. “Tudo ao redor se torna fantasmagórico-improvável para ele”, livre que está para percorrer todos os caminhos levando clareza e alinhavando os mundos. Assim Karl Kerényi (Arquétipos da religião grega) descreve esse mitologema, a quem Bolen (Os deuses e o homem), citando Murray Stein, chama “o deus das passagens significativas”, para evocar o mesmo papel para os psicoterapeutas, em seu caminho fora dos caminhos, além dos mundos, para guiar almas em liberdade de ir e vir entendendo em si próprio o jogo de luz e escuridão como o próprio e natural devir da existência.

FICHA TÉCNICA

AMOR ALÉM DA VIDA

Título Original: What Dreams May Come
Origem: EUA
Ano de produção: 1998
Gênero: Romance/Fantasia
Direção: Vincent Ward
Elenco: Robin Williams, Max von Sydow, Cuba Gooding Jr.

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A reencarnação é o inferno da repetição no filme “The Scopia Effect”

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Ideia central presente em diversos sistemas filosóficos e religiosos, a reencarnação muitas vezes é concebida como oportunidade de aprendizado, jornada de evolução espiritual ou simplesmente a oportunidade de uma segunda chance. Ao contrário, o filme de estreia do diretor inglês Christopher Butler, “The Scopia Effect” (2014), apresenta uma visão bem diferente: uma regressão hipnótica faz uma jovem ter acesso a partes do cérebro que contém detalhes de suas vidas passadas. E o resultado é a descoberta, da pior maneira possível, do porquê esquecemos nossas vidas anteriores. Aproximando-se de uma concepção gnóstica sobre a reencarnação e inspirado em animes japoneses, “The Scopia Effect” mostra não só como esquecemos os fantasmas não resolvidos de outras vidas, como também o esquecimento nos condena a revive-los em um eterno retorno.

Era uma vez duas lagartas que viviam na árvore mais alta da mais alta montanha. Tinham uma boa vida com todas as folhas verdes que pudessem comer. Então, chegou um dia em que elas se transformariam em borboleta. Enquanto entravam nos seus casulos, fizeram uma promessa: uma esperaria pela outra converter-se em borboleta para poderem voar juntas.

Porém, enquanto sonhavam em seu casulo veio uma forte tempestade que destruiu a floresta e atirou os casulos para longe, um distante do outro. A tempestade parou, saíram de seus casulos como borboletas deslumbrantes, mas se viram sozinhas e ficaram tristes. Sentiam muita falta uma da outra. Saíram à procura do seu amigo perdido. Mas, como se reconheceriam se tinham mudado suas formas? E continuaram em uma procura que nunca mais terminou.

Essa antiga fábula do folclore japonês que é contada em uma das linhas de diálogo do filme The Scopia Effect é a chave de compreensão para o espectador juntar o quebra cabeças proposto pelo diretor Christopher Butler – o próprio diretor fala que assistir ao filme é como “montar um quebra cabeças em um terremoto”.

Em sua estreia na direção de um filme longa metragem, o diretor (egresso do mercado de filmes publicitários) consegue fazer uma instigante fábula sobre a reencarnação partindo dessa alegoria japonesa sobre lagartas e borboletas.

The Scopia Effect vai muito mais além do que um filme sobre os perigos de se brincar de Deus como em filmes recentes que seguem a linha Dr. Frankenstein como Ex-Machina ou Transcendence. Butler mergulha fundo no cerne gnóstico dessa pequena fábula japonesa – morremos e quando retornamos somos condenados ao esquecimento, separando-nos uns dos outros, para recomeçar do zero uma busca do que foi perdido. Uma busca que jamais termina. Estamos condenados ao eterno retorno.

Esquecemos as vidas passadas. Porém, mesmo esquecidas nossas opções e traumas de existências passadas continuam nos determinando. Somos prisioneiros da morte, da reencarnação e do esquecimento.

O Filme

O filme acompanha a vida de uma jovem polonesa chamada Basia que vive e trabalha em Londres. Sua mãe morreu quando ainda era criança e ela ainda tenta lidar com esse trauma, que começa a se manifestar por crises depressivas e bipolaridade. Basia inicia sessões de hipnose e regressões como uma maneira de desenterrar problemas esquecidos da infância.

Mas algo começa a dar errado: ela não apenas começa a desenterrar traumas infantis, mas vai cada vez mais longe, mais para trás e regride para as suas vidas passadas. O problema é que suas outras personas, assim como seus inimigos do passado, começam a infectar o presente de uma forma cada vez mais assustadora: Basia torna-se assombrada por pessoas de suas vidas anteriores e começa a reviver os traumas e as mortes das suas outras encarnações.

O que era um tratamento psicológico acaba se tornando uma luta pela sobrevivência e manutenção da sanidade mental – ela deverá lutar para diferenciar o que é real ou delírio.

Basia é incapaz de defender-se de suas assombrações que surgem de diversas camadas narrativas das vidas passadas que se interconectam de diferentes séculos e países: Inglaterra, França, Japão, África, Ásia… O espectador é desafiado a organizar essas diversas existências e lugares em uma montagem e edição habilmente concebidas pelo diretor Christoper Butler.

Através da hipnose, Basia inadvertidamente conseguiu acessar uma parte da sua mente que mantem detalhes das vidas passadas e ao fazê-lo desencadeou algo que não pode ser controlado ou explicado.

Reencarnação, esquecimento e alienação

Ao acompanhar e tentar organizar os sucessivas narrativas de épocas e lugares diferentes, o espectador lembrará da série Netflix Sense8 das Wachowski pela simultaneidade das conexões. Assim como em Sense8, The Scopia Effect partilha de uma mesma visão gnóstica da condição humana: o homem encontra-se prisioneiro nesse cosmos graças a condições que o condenam ao isolamento e alienação.
Se em Sense8 o processo de iluminação espiritual vem da progressiva consciência de que todos os sensates estão conectados mentalmente apesar das distâncias, em The Scopia Effect a gnose de Basia vem da descoberta de que todas as existências em outras vidas estão conectadas, simultaneamente atuantes e influenciando o presente.

Basia vive um estado de alienação por causa da morte e do esquecimento que as reencarnações criam em todos nós. As situações traumáticas e separações se sucedem através do tempo. A cada morte e reencarnação, começa-se sempre do zero para os mesmos erros serem repetidos posteriormente e repercutidos através das sucessivas vidas futuras.

Tal como as lagartas que viram borboletas da pequena fábula japonesa, a tempestade (a morte) nos afasta uns dos outros, isolando-nos, para que o estado de alienação se perpetue através da eternidade.
Por isso, a princípio The Scopia Effect nos apresenta uma visão desesperançada da morte e da reencarnação, apesar da sequência final redentora.

Ao contrário das visões kardecistas que veem nas sucessivas reencarnações o palco de aprendizado e evolução ou a lei do Carma que promete garantir justiça e oportunidade de uma segunda chance, o ponto de vista gnóstico mostrado por The Scopia Effect mostra que a reencarnação não opera por soma, mas por subtração – esquecido o passado e isolados uns dos outros (sejam inimigos ou almas gêmeas), somos condenados à repetição o que nos mantém prisioneiros a esse cosmos sem possibilidade de transcendência.

O Inferno é a repetição

Em várias passagens do filme, Basia é exortada a acordar – “Acorde!”, a famosa exortação gnóstica que parte do princípio de que todos nós estamos em estado de sono e esquecimento.

Em um de seus livros Sthepen King disse que o Inferno é a repetição. Pois é esse, em síntese, o inferno pessoal que a regressão hipnótica revelou para Basia – revelou a própria condição espiritual humana, sempre condenada pela “tempestade na floresta” a esquecer e repetir os mesmos erros.

Essas conexões entre Gnosticismo e cultura oriental ficam ainda mais evidentes com a declaração do próprio diretor em entrevistas de que uma das inspirações para The Scopia Effect foram as animes japonesas, especificamente Evangelion de Hideki Anno, considerado pelos pesquisadores uma verdadeira bíblia gnóstica pós-moderna – sobre isso clique aqui…

Mas apesar desse núcleo gnóstico sombrio e trágico, The Scopia Effect cria uma atmosfera mágica de contos de fada, principalmente pela pontuação da narrativa por meio de uma trilha musical serena. A decisão do diretor em contrastar o interior psíquico sombrio de Basia com o exterior em cores pastéis e fotografia estourada com muita contraluz impede de o filme ser excessivamente deprimente.
Além disso, Christopher Butler foi hábil em criar uma protagonista simpática e humana. Basia é uma garota normal que trabalha, vai a aulas de danças e sai com amigas. Mas, ao mesmo tempo, o horror é capaz de irromper em qualquer uma das situações de normalidade – o passado esquecido parece ainda nos atormentar como um pesadelo na cabeça de nós, os vivos.

 

FICHA TÉCNICA

THE SCOPIA EFFECT

Diretor: Christopher Butler
Roteiro: Christopher Butler
Elenco: Joanna Ignaczewska, Louis Labovitch, Akira Koieyama, Jessica Jay, Genevieve Sibayan
Produção: Big Eye, Flynn Etertainment
Distribuição: independente
Ano: 2014
País: Reino Unido

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Dois Dias, Uma Noite: o inferno são os outros

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Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Atriz

 

Sandra, após um tempo afastada do emprego por motivos de saúde, descobre que perdeu sua vaga em uma votação onde seus colegas deveriam escolher entre seu retorno ou um bônus salarial. Ao conversar com o seu patrão para tentar reverter a situação, recebe uma nova chance: no início da semana ele fará uma nova votação, se nove dos dezesseis trabalhadores votarem a favor de mantê-la no emprego, ela será aceita de volta. Agora cabe a Sandra ir atrás de cada um deles e convencê-los a desistir de seus bônus salariais a favor de sua readmissão.

Ao longo dos noventa minutos de “Dois dias, uma noite”, assiste-se a odisseia de Sandra para tentar salvar um dos poucos elos que a mantêm ligada a sociedade após um diagnóstico de depressão. Para alguns, deve ser extenuante ver uma protagonista que na maioria das cenas está a choramingar e prestes a desistir da empreitada que, a julgar pelos esforços, pode definir sua vida. Quando muito pressionada, Sandra recorre aos remédios e ao recolhimento, dormir é sua fuga não só do mundo externo mas, principalmente, do que há no seu interior, do que julga não conseguir superar. Prefere se enfiar debaixo das cobertas a, em suas palavras, “mendigar” por seu emprego, pois inicialmente, lutar não é uma opção nobre, mas degradante.

 

Ao seu lado está Manu, firme e confiante, que a motiva a continuar sua busca. Seu marido, ao incitá-la a ação não está preocupado com as contas que deve pagar, ele sabe que além das demandas cotidianas, outras coisas estão em jogo. Seu papel de pai e marido está ligado ao resultado desse processo de Sandra em se perceber indivíduo antes de reassumir os papeis de mulher e mãe.

 

“O inferno são os outros”

E, dentro do drama de Sandra, temos outros orbitando á sua volta. A cada encontro uma surpresa, uma chama de esperança, uma palavra de apoio seguida de ações tempestivas de rejeição e violência. Do mesmo jeito que ela luta por seus direitos, cada um dos seus colegas tem motivações para aceitar o dinheiro em detrimento do bem-estar da colega. Quem estaria agindo com egoísmo e avareza, aqueles que optaram pelo bônus ou Sandra que “mendiga” que todos se sacrifiquem por ela?

 

A odisséia individual de Sandra é a espinha dorsal de “Dois dias, uma noite”; não é difícil torcer por ela e ficar contra aqueles que escolhem o dinheiro ao invés da sua permanência no emprego. Mas toda a consistência do filme é baseada não só em como nossas escolhas tem efeitos além do conforto das nossas residências, e sim em como colocamos em prática conceitos morais e suas influências na nossa ética.

Cada um dos trabalhadores faz parte de uma sociedade que optou por certas regras para manter a “política da boa vizinhança”. Não chega a ser um papel a ser interpretado, mas sim uma máscara a ser usada. Podemos ser contra a pena de morte, ao desmatamento e ao trabalho escravo. Posso deixar comentários em redes sociais, opinar veementemente na roda de amigos, mas, em termos de consistência, muito pouco sabemos dos resultados das nossas escolhas, principalmente quando não temos consciência da sua extensão.

A votação no filme é um momento em que o indivíduo é forçado a identificar seu papel. A máscara não serve mais, agora é necessário um posicionamento. Uma ação é solicitada, cabe ao indivíduo uma escolha que irá gerar uma reação, aí terá materializado nossa moral, que muitas vezes não condiz com a ética vigente. Sartre dialoga sobre a responsabilidade dos nossos atos. Para o filósofo francês, estamos “condenados a ser livres” porque nossas escolhas moldam o mundo que nos rodeia. Assim, o resultado que esperamos de um mundo “bom” ou “mau” estaria estrito a estas escolhas. Mas o que seria uma escolha correta?

 

“Digo-lhes que não deixem passar um dia sem falar da bondade…”

Para Sócrates, o virtuosismo está ligado à paz de espírito. Em linhas gerais, uma pessoa boa é sábia, diferente de alguém que age com maldade, classificada como uma pessoa ignorante. Assim, a virtude não é relativa, já que é inerente ao ser humano, porém é necessário um esforço de autoconhecimento para exercê-la e expressá-la na forma de bondade. Um exame árduo e contínuo é necessário para chegar a esse estágio, que seria definitivo; se ainda há dúvidas sobre o que é bom ou mal é porque o indivíduo ainda permanece ignorante sobre quem é. Os irmãos Dardenne compreendem o voto dos colegas de Sandra como uma escolha de sábios e ignorantes. Um argumento comum entre aqueles que decidem votar a favor do bônus é a necessidade do dinheiro, o que tornaria a jornada de Sandra egoísta, mas os problemas financeiros deles são pré-existentes, o bônus não.

 

O que fica subentendido é a capacidade que alguns têm de sacrificar o que for necessário em prol das suas demandas pessoais enquanto outros tendem a defender suas questões morais, independente dos meios. Àqueles que aceitam o bônus parece não passar pelas suas consciências que eles podem estar em uma situação parecida. Em uma abordagem pragmática, podemos citar o professor e escritor afro-americano William Du Bois, que afirma que “não importa os pensamentos e crenças, mas também as implicações práticas delas”.

 

As avaliações não se limitam a duas vertentes, ao positivo e ao negativo. A consciência das implicações é perceptível em vários dos votantes a favor do bônus ou que se arrependeram. Em contraste, no meio termo temos aqueles que reconhecem “a virtude” mas não são “virtuosos”. Essa virtude que Aristóteles prega, é a mesma que pais tentam impingir nos filhos, mas que por vezes não é experienciado. Bons exemplos são a mulher que pede para a filha atender e dizer que não está e o homem que, ao encontrar Sandra, pede para o seu pequeno filho sair antes de colocar seu ponto de vista. São os pais que definem parte dos nossos conceitos morais e éticos, e ao serem incapazes de demonstrar isso na prática, fica perceptível sua falta de bondade.

 

“Eu não sou nada, eu não existo”

A personagem central, Sandra, em um momento de desolação, se vira para o marido e diz, cabisbaixa: – “Eu não sou nada, eu não existo”. Essa declaração pode, aparentemente, expor uma vitimização da protagonista, que se nega a lutar pelos seus direitos. No entanto, o que observamos é o sintoma de uma das doenças mais mal compreendidas do nosso século: a depressão.

As informações sobre quem é a mulher Sandra são esparsas. Sabemos que é casada, mãe de dois filhos e que acabou de financiar uma casa. Sobre seu estado de saúde descobrimos aos poucos que foi diagnosticada com depressão e, provavelmente, com agorafobia, devido a alguns ataques que ela tem durante sua busca. Em outro momento, um dos seus colegas agradece por ela ter levado a culpa em seu lugar, situação que exemplifica o caráter da protagonista. Mas, o que a levou a esse estado? Não nos é informado. O estado depressivo não é como as outras doenças, com um diagnóstico e medicamentos definitivos. Assemelha-se mais como uma nuvem de tempestade, quando você olha para o céu, antes azul, de repente aparece aquela massa negra a cobrir tudo o que tem vida; só que essa nuvem é interna. O roteiro é claro ao associar o uso de remédios controlados ao desejo de fuga de Sandra; todas as vezes que ela fala em desistir ela está ingerindo Xanax.

 

A busca da protagonista por sua aceitação, metaforicamente, é uma luta interna por sua existência. Se expor a cada um dos dezesseis colegas é um exercício de firmação, não haveria possibilidade de uma luta externa se ela não travasse, concomitantemente, essa batalha interna. O emprego é o estopim do seu movimento, mas é essa jornada externa que colocará em perspectiva sua vida e suas escolhas. Quem é Sandra? Sentada do lado do marido ela observa um passarinho cantar e deseja ser como ele: cheio de contentamento, porque a natureza, independente do que ocorra ao redor, simplesmente é.

E ao final, Sandra prova sua virtude indo além do seu objetivo. Sua última escolha a liberta e define sua existência. Na última cena, ao fazer planos, sonhar novos rumos, com uma coragem adquirida de uma pessoa que sabe qual é sua verdadeira natureza, Sandra sabe de onde tirar suas forças. E a câmera, antes em uma conjunção quase epidérmica, a abandona, deixa-a caminhar sozinha rua abaixo. Ao fundo podemos escutar passarinhos cantando despreocupados.

 

Trailer:

FICHA TÉCNICA DO FILME

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DOIS DIAS, UMA NOITE

Título Original (França): Deux Jeurs, une nuit

Direção & Roteiro: Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne
Elenco:Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée
Produção: Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne
Fotografia: Alain Marcoen
Duração: 135 minutos
Ano: 2014

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Caiu na Net: a intimidade (des)velada

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Já vai longe o tempo em que o namorado pedia à namorada que se entregasse a ele como prova de amor e, consumado o ato, em que muitas vezes uma virgindade era perdida, a despachava acusando-a como uma mulher sem vergonha.

Hoje, os namorados, as paqueras, ou as simples aventuras passageiras, pedem uma mostra (não necessariamente de amor) em formato digital: que se mostre os peitos na webcam, que se grave uma cena de sexo na câmera do celular, que se masturbe em frente à tela em uma troca de estímulos sexuais. E que se f… o mundo depois, ao que parece.

Sim, porque quando se trata de troca de informações comprometedoras na rede, e especialmente quando estas estão na forma de vídeos ou fotos, não é o céu que é o limite. É o inferno. O inferno em que se transforma a vida das pessoas vítimas deste processo. Inferno este que às vezes se torna insuportável.

“’Não tenho mais vida’, diz Fran sobre vídeo íntimo”.

“Vídeo íntimo vaza no WhatsApp e menina se mata no Piauí”.

“Mais uma jovem se mata após divulgação de imagens íntimas”.

Já vai longe o tempo em que os pais tinham que ensinar os filhos a não aceitar carona de estranhos, a não receber doces de pessoas desconhecidas, a desconfiar de quem chegasse perto com “conversas bobas”.

Hoje é tarefa dos pais alertar sobre os perigos que existem do outro lado da tela do computador, do notebook, do celular. Se antes não havia criança, adolescente ou jovem que não saísse de casa sem antes receber um sem número de recomendações, hoje se deve encher de alertas as mesmas crianças, adolescentes e jovens antes de saírem navegando pelo mundo da internet.

Não é uma questão somente de discutir os benefícios e malefícios da grande rede e sim de lembrar que: independente do quanto se concordasse ou não com a ida de um adolescente às antigas matinês, este só saia de casa muito bem recomendado (e põe recomendado nisso); independente do quanto se julgasse válida ou não a participação das crianças nas brincadeiras de rua, não havia um adulto que deixasse de passar inúmeras lições para a criança sobre as maldades do mundo antes delas saírem para a pracinha; independente do quanto se aceitasse ou não a necessidade dos jovens de se aventurar em acampamentos  com sua turma, estes só tinham a permissão concedida após severas instruções.

Se as crianças, os adolescentes ou os jovens aceitavam e seguiam as recomendações, aí são outros quinhentos, mas que iam sendo preparados para os perigos que se avizinhavam, ah, isso iam.

E por que agora os pais não fazem o mesmo em relação aos perigos advindos do mundo virtual? Simples. Porque, se antes os pais estavam tarimbados por experiências próprias, ou vividas por seus pais, seus avós, seus tios, em um mundo que evoluía constantemente, porém de forma paulatina, hoje eles se deparam com um novo enredo do qual parece que eles não fazem parte. Se os pais quase nada ensinam aos seus filhos sobre os perigos da rede é porque, simplesmente, eles quase nada sabem.

Até podemos, nós que estamos aqui defronte a este texto na internet, afirmar que essa é uma situação que já está mais do que batida e que todos já deviam ser “espertos” quanto a isso. Entretanto, vale lembrar que grande parte das pessoas que estão ao nosso redor não chega a ter o mesmo acesso que temos aos avanços tecnológicos e podem até ser consideradas analfabetas no que tange a sua relação com o meio virtual.

Poderíamos, então, responsabilizar os próprios jovens pela irresponsabilidade dos atos que acabam levando a estas situações. Afinal, quem, dos próprios jovens, nunca ouviu falar de um ou outro caso que “caiu na net”? E aí tem a questão: se mesmo sendo os jovens fartamente informados em casa, na mídia, nas escolas, sobre os perigos da falta de prevenção nas relações sexuais, ainda vemos uma quantidade enorme de gravidezes indesejadas e o avanço de algumas doenças sexualmente transmissíveis, o que se pode dizer sobre uma situação da qual ainda pouco se discute?

Chega-se,então, ao que parece ser o cerne da questão: o que há é uma grande desinformação, que também pode ser entendida como uma grande ausência de discussão sobre o pouco de informação que existe.

E o pouco de informação que existe já daria pano pra manga em termos de discussões.

Em um primeiro momento, deve-se considerar que o que existe no mundo virtual é muito real. Se está lá, ainda que virtualmente, é porque existe. E, se existe, pode ser guardado, transmitido, publicado, compartilhado, curtido em um tão grande número de vezes que se torna praticamente impossível ter domínio sobre o alcance de sua existência. Se algo vai parar na rede dificilmente sairá de lá, por mais que se deseje e se tente, inclusive por meios legais. Um juiz pode até determinar que se retire uma determinada informação da internet e ela pode até parecer ter sumido, mas com certeza ela existirá, adormecida, como um arquivo em algum HD, pronta para, a qualquer instante, acordar e voltar a se mostrar ao mundo.

Outro ponto a ser apresentado é a inexistência de lugar seguro para se deixar alguma informação confidencial. Aquele vídeo existe somente em seu celular, mas seu celular pode ser perdido, roubado, ou até mesmo simplesmente emprestado a um amigo por alguns segundinhos. Aquelas fotos estão em um arquivo secreto guardado em uma pasta secreta em um ponto secreto do HD de seu computador que, veja só, foi parar no conserto e justamente nas mãos de alguém um tanto quanto inescrupuloso. Aquelas outras imagens ficaram guardadas em seu mail, do qual só você tem a senha, que por acaso é a data de seu aniversário. E assim, fácil, fácil o que era confidencial vira de domínio público.

Também se pode discutir a confiança no outro. Ah, mas pode-se dizer que é apenas um vídeo que você vai mandar somente pro teu namorado e ele te ama. Bom, pode até existir namorado que, ao terminar o relacionamento, devolve os presentes recebidos, mas vídeos enviados… ah, estes não são apagados (e têm uma grande tendência a se disseminarem facilmente). E aquele sua apresentação ao vivo para a pessoa amada? Ela pode estar sendo gravada e, o que era ao vivo, vira um arquivo que correrá por muitos computadores muito tempo após a sua primeira exibição, aquela mesma que você julgava que era só para quem você amava.

Mas a lei me protege, podem julgar os mais ingênuos. E até protege, é claro, mas somente até um certo ponto. Quando o vídeo é distribuído por alguém que teve relacionamento com a vítima, este pode, segundo alguns juristas, ser processado por difamação com base na Lei Maria da Penha porque existiu uma relação de afeto entre vítima e autor. No caso em que as imagens divulgadas foram roubadas de alguma forma pode-se aplicar a Lei 12.737/12, também conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, referência à atriz que teve fotos nuas divulgada na internet. Mas aí as imagens já se espalharam por toda a rede e, como já dito, dali não tem mais como sair; o estrago já foi feito.

E ainda há o grande grau de hipocrisia da nossa sociedade que prefere julgar e condenar as vítimas destas divulgações a procurar entender o conjunto de situações envolvidas.

Enfim, há um sem número de questões ainda a serem consideradas e, especialmente, disseminadas, discutidas e debatidas. E é somente este processo que possibilitará que se amplie o conhecimento sobre os riscos envolvidos em tudo o que tange a questão da privacidade na grande rede. Conhecimento este que deve ser alvo da atenção e do debate em casa, nas escolas e, especialmente, nas próprias redes sociais, para que nos tornemos não os disseminadores destas imagens e sim das informações que poderão tornar estas situações casos cada vez mais isolados. E não tenhamos que ler mais manchetes como estas:

“’Não tenho mais vida’, diz Fran sobre vídeo íntimo”.

“Vídeo íntimo vaza no WhatsApp e menina se mata no Piauí”.

“Mais uma jovem se mata após divulgação de imagens íntimas”.

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