Caiu na Net: a intimidade (des)velada

Já vai longe o tempo em que o namorado pedia à namorada que se entregasse a ele como prova de amor e, consumado o ato, em que muitas vezes uma virgindade era perdida, a despachava acusando-a como uma mulher sem vergonha.

Hoje, os namorados, as paqueras, ou as simples aventuras passageiras, pedem uma mostra (não necessariamente de amor) em formato digital: que se mostre os peitos na webcam, que se grave uma cena de sexo na câmera do celular, que se masturbe em frente à tela em uma troca de estímulos sexuais. E que se f… o mundo depois, ao que parece.

Sim, porque quando se trata de troca de informações comprometedoras na rede, e especialmente quando estas estão na forma de vídeos ou fotos, não é o céu que é o limite. É o inferno. O inferno em que se transforma a vida das pessoas vítimas deste processo. Inferno este que às vezes se torna insuportável.

“’Não tenho mais vida’, diz Fran sobre vídeo íntimo”.

“Vídeo íntimo vaza no WhatsApp e menina se mata no Piauí”.

“Mais uma jovem se mata após divulgação de imagens íntimas”.

Já vai longe o tempo em que os pais tinham que ensinar os filhos a não aceitar carona de estranhos, a não receber doces de pessoas desconhecidas, a desconfiar de quem chegasse perto com “conversas bobas”.

Hoje é tarefa dos pais alertar sobre os perigos que existem do outro lado da tela do computador, do notebook, do celular. Se antes não havia criança, adolescente ou jovem que não saísse de casa sem antes receber um sem número de recomendações, hoje se deve encher de alertas as mesmas crianças, adolescentes e jovens antes de saírem navegando pelo mundo da internet.

Não é uma questão somente de discutir os benefícios e malefícios da grande rede e sim de lembrar que: independente do quanto se concordasse ou não com a ida de um adolescente às antigas matinês, este só saia de casa muito bem recomendado (e põe recomendado nisso); independente do quanto se julgasse válida ou não a participação das crianças nas brincadeiras de rua, não havia um adulto que deixasse de passar inúmeras lições para a criança sobre as maldades do mundo antes delas saírem para a pracinha; independente do quanto se aceitasse ou não a necessidade dos jovens de se aventurar em acampamentos  com sua turma, estes só tinham a permissão concedida após severas instruções.

Se as crianças, os adolescentes ou os jovens aceitavam e seguiam as recomendações, aí são outros quinhentos, mas que iam sendo preparados para os perigos que se avizinhavam, ah, isso iam.

E por que agora os pais não fazem o mesmo em relação aos perigos advindos do mundo virtual? Simples. Porque, se antes os pais estavam tarimbados por experiências próprias, ou vividas por seus pais, seus avós, seus tios, em um mundo que evoluía constantemente, porém de forma paulatina, hoje eles se deparam com um novo enredo do qual parece que eles não fazem parte. Se os pais quase nada ensinam aos seus filhos sobre os perigos da rede é porque, simplesmente, eles quase nada sabem.

Até podemos, nós que estamos aqui defronte a este texto na internet, afirmar que essa é uma situação que já está mais do que batida e que todos já deviam ser “espertos” quanto a isso. Entretanto, vale lembrar que grande parte das pessoas que estão ao nosso redor não chega a ter o mesmo acesso que temos aos avanços tecnológicos e podem até ser consideradas analfabetas no que tange a sua relação com o meio virtual.

Poderíamos, então, responsabilizar os próprios jovens pela irresponsabilidade dos atos que acabam levando a estas situações. Afinal, quem, dos próprios jovens, nunca ouviu falar de um ou outro caso que “caiu na net”? E aí tem a questão: se mesmo sendo os jovens fartamente informados em casa, na mídia, nas escolas, sobre os perigos da falta de prevenção nas relações sexuais, ainda vemos uma quantidade enorme de gravidezes indesejadas e o avanço de algumas doenças sexualmente transmissíveis, o que se pode dizer sobre uma situação da qual ainda pouco se discute?

Chega-se,então, ao que parece ser o cerne da questão: o que há é uma grande desinformação, que também pode ser entendida como uma grande ausência de discussão sobre o pouco de informação que existe.

E o pouco de informação que existe já daria pano pra manga em termos de discussões.

Em um primeiro momento, deve-se considerar que o que existe no mundo virtual é muito real. Se está lá, ainda que virtualmente, é porque existe. E, se existe, pode ser guardado, transmitido, publicado, compartilhado, curtido em um tão grande número de vezes que se torna praticamente impossível ter domínio sobre o alcance de sua existência. Se algo vai parar na rede dificilmente sairá de lá, por mais que se deseje e se tente, inclusive por meios legais. Um juiz pode até determinar que se retire uma determinada informação da internet e ela pode até parecer ter sumido, mas com certeza ela existirá, adormecida, como um arquivo em algum HD, pronta para, a qualquer instante, acordar e voltar a se mostrar ao mundo.

Outro ponto a ser apresentado é a inexistência de lugar seguro para se deixar alguma informação confidencial. Aquele vídeo existe somente em seu celular, mas seu celular pode ser perdido, roubado, ou até mesmo simplesmente emprestado a um amigo por alguns segundinhos. Aquelas fotos estão em um arquivo secreto guardado em uma pasta secreta em um ponto secreto do HD de seu computador que, veja só, foi parar no conserto e justamente nas mãos de alguém um tanto quanto inescrupuloso. Aquelas outras imagens ficaram guardadas em seu mail, do qual só você tem a senha, que por acaso é a data de seu aniversário. E assim, fácil, fácil o que era confidencial vira de domínio público.

Também se pode discutir a confiança no outro. Ah, mas pode-se dizer que é apenas um vídeo que você vai mandar somente pro teu namorado e ele te ama. Bom, pode até existir namorado que, ao terminar o relacionamento, devolve os presentes recebidos, mas vídeos enviados… ah, estes não são apagados (e têm uma grande tendência a se disseminarem facilmente). E aquele sua apresentação ao vivo para a pessoa amada? Ela pode estar sendo gravada e, o que era ao vivo, vira um arquivo que correrá por muitos computadores muito tempo após a sua primeira exibição, aquela mesma que você julgava que era só para quem você amava.

Mas a lei me protege, podem julgar os mais ingênuos. E até protege, é claro, mas somente até um certo ponto. Quando o vídeo é distribuído por alguém que teve relacionamento com a vítima, este pode, segundo alguns juristas, ser processado por difamação com base na Lei Maria da Penha porque existiu uma relação de afeto entre vítima e autor. No caso em que as imagens divulgadas foram roubadas de alguma forma pode-se aplicar a Lei 12.737/12, também conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, referência à atriz que teve fotos nuas divulgada na internet. Mas aí as imagens já se espalharam por toda a rede e, como já dito, dali não tem mais como sair; o estrago já foi feito.

E ainda há o grande grau de hipocrisia da nossa sociedade que prefere julgar e condenar as vítimas destas divulgações a procurar entender o conjunto de situações envolvidas.

Enfim, há um sem número de questões ainda a serem consideradas e, especialmente, disseminadas, discutidas e debatidas. E é somente este processo que possibilitará que se amplie o conhecimento sobre os riscos envolvidos em tudo o que tange a questão da privacidade na grande rede. Conhecimento este que deve ser alvo da atenção e do debate em casa, nas escolas e, especialmente, nas próprias redes sociais, para que nos tornemos não os disseminadores destas imagens e sim das informações que poderão tornar estas situações casos cada vez mais isolados. E não tenhamos que ler mais manchetes como estas:

“’Não tenho mais vida’, diz Fran sobre vídeo íntimo”.

“Vídeo íntimo vaza no WhatsApp e menina se mata no Piauí”.

“Mais uma jovem se mata após divulgação de imagens íntimas”.

Bacharel em Psicologia. Graduado, Especialista e Mestre em Ciência da Computação pela UFSC. Professor dos cursos de Ciência da Computação, Sistemas de Informação e Engenharia de Software so CEULP/ULBRA.