Apropriadamente, o fenômeno psicológico chamado sombra é tão complexo que mesmo as melhores definições dele são frequentemente por padrão: nós definimos o que a sombra não é para ter uma noção do que ela pode ser porque, sendo sombra, é difícil de olhar diretamente. Então aqui vai uma tentativa. “Sombra”, que significa nossa sombra psicológica ou pessoal, é composta por qualidades, impulsos e emoções que não podemos suportar para que os outros vejam e, portanto, lançamos no domínio oculto de nós mesmos.
A sombra tem muitos rostos: ganancioso, zangado, egoísta, medroso, ressentido, manipulador, fraco, crítico, controlador, hostil – continuamente. Este lado escuro de nós mesmos atua como um local de armazenamento para todas as coisas que consideramos inaceitáveis em nós mesmos: coisas que nos envergonhamos e fingimos que não somos, aspectos que não queremos permitir que o mundo veja, e que nós muitas vezes não nos permitimos ver. Ele fica oculto, logo abaixo da nossa superfície, mascarado por nossos eus mais “próprios”, permanecendo um território indomado e inexplorado para a maioria de nós (CAETANO, 2018).
A sombra se desenvolve naturalmente em todos nós, quando crianças. A primeira vez que desenvolvemos um senso de identidade suficiente para registrar o perigo da desaprovação de nossa mãe é provavelmente a primeira vez que fazemos um “depósito das sombras” em nossa psique. “Divida os biscoitos com seu irmão, querido”, ela diz. Mas os biscoitos são poucos e poucos; nós queremos todos eles. Esperamos até que mamãe vire as costas e, avidamente, engolimos os biscoitos do irmãozinho e os nossos: um feito que devemos esconder porque sabemos instintivamente, mesmo que não possamos expressar bem, que fizemos algo inaceitável ou “errado”, e que o ato – e a parte de nós que foi impelida a praticá-lo – deve ser escondida, para não pôr em perigo a nossa existência continuada em nossa tribo: nossa família.
Ao mesmo tempo, nos identificamos com as características ideais de personalidade, como polidez, inteligência ou habilidade nos esportes, que recebem a aprovação de nosso ambiente. W. Brugh Joy chama essas qualidades de Auto Resolução de Ano Novo (GUIRADO, 2015); eles passam a fazer parte da persona que gostaríamos de ser e como desejamos ser vistos pelo mundo. Nossa persona é nossa roupa psicológica, mediando entre nosso “verdadeiro” (mais profundo) eu e nosso ambiente, assim como a roupa física apresenta uma imagem para aqueles que encontramos. Essas partes de nós mesmos que somos e sobre as quais conhecemos conscientemente chamamos de “ego”; a sombra é aquela parte de nós que deixamos de ver ou conhecer (QUILICI, 2017).
O que, você pode perguntar, determina quais partes de nós mesmos passam a ser ego (aproveitando a luz do dia) e quais são relegadas aos reinos nebulosos das sombras? Essa é uma boa pergunta, e uma que você, como terapeuta, pode estar envolvido em ajudar seus clientes que confrontam a sombra a averiguar. Muitas forças desempenham um papel na formação de nossa sombra e são essas que determinam, em última análise, o que expressamos em nossas vidas e o que não. Pais, professores, irmãos, amigos, instituições sociais e outros criam um ambiente complexo no qual aprendemos o que compreende comportamento moral, “bom” e apropriado e o que é mesquinho, vergonhoso ou totalmente pecaminoso.
A sombra tem sido chamada de nosso “sistema imunológico psíquico” (MONTEIRO, 2008), porque define o que é “eu” e o que é “não-eu” (p xvii). Mas aqui está o aspecto realmente interessante: o sistema imunológico é determinado em todos os níveis: intrapessoal, familiar, comunitário, nacional e internacional. O que é permitido em uma família ou cultura é desaprovado em outra, se não totalmente proibido.
Arquétipos são modelos universais e inatos de pessoas, comportamentos ou personalidades que desempenham um papel na influência do comportamento humano. Eles foram apresentados pelo psiquiatra suíço Carl Jung, que sugeriu que esses arquétipos eram formas arcaicas de conhecimento humano inato transmitido por nossos ancestrais (JUNG, 2016).
Na psicologia junguiana, os arquétipos representam padrões e imagens universais que fazem parte do inconsciente coletivo. Jung acreditava que herdamos esses arquétipos da mesma forma que herdamos padrões instintivos de comportamento (COELHO, 2006).
Jung foi originalmente um apoiador de seu mentor Sigmund Freud. A relação acabou se fragmentando com as críticas de Jung à ênfase de Freud na sexualidade durante o desenvolvimento, o que levou Jung a desenvolver sua própria abordagem psicanalítica conhecida como psicologia analítica (MURRAY, 2019)
Embora Jung concordasse com Freud em que o inconsciente desempenhava um papel importante na personalidade e no comportamento, ele expandiu a ideia de Freud do inconsciente pessoal para incluir o que Jung chamou de inconsciente coletivo (QUILICI, 2017).
Jung acreditava que a psique humana era composta de três componentes: o ego, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. De acordo com Jung, o ego representa a mente consciente, enquanto o inconsciente pessoal contém memórias, incluindo aquelas que foram suprimidas. O inconsciente coletivo é um componente único, pois Jung acreditava que essa parte da psique servia como uma forma de herança psicológica. Continha todo o conhecimento e experiências que os humanos compartilham como espécie (JUNG, 2016).
O inconsciente coletivo, acreditava Jung, era onde esses arquétipos existem. Ele sugeriu que esses modelos são inatos, universais e hereditários. Os arquétipos não são aprendidos e funcionam para organizar a forma como experimentamos certas coisas. “Todas as ideias mais poderosas da história remontam aos arquétipos”, explicou Jung em seu livro “The Structure of the Psyche”.
“Isso é particularmente verdadeiro para as ideias religiosas, mas os conceitos centrais de ciência, filosofia e ética não são exceção a essa regra. Em sua forma atual, são variantes de ideias arquetípicas criadas pela aplicação consciente e adaptação dessas ideias à realidade. É função da consciência, não só reconhecer e assimilar o mundo externo através do portal dos sentidos, mas traduzir em realidade visível o mundo dentro de nós ”, sugeriu Jung (MURRAY, 2019).
Jung rejeitou o conceito de tabula rasa ou a noção de que a mente humana é uma lousa em branco no nascimento, a ser escrita apenas pela experiência. Ele acreditava que a mente humana retém aspectos biológicos fundamentais, inconscientes, de nossos ancestrais. Essas “imagens primordiais”, como ele inicialmente as apelidou, servem como fundamento básico de como ser humano. Esses personagens arcaicos e míticos que compõem os arquétipos residem com todas as pessoas de todo o mundo, acreditava Jung. São esses arquétipos que simbolizam motivações, valores e personalidades humanas básicas (GUIRADO, 2015).
Jung acreditava que cada arquétipo desempenhava um papel na personalidade, mas sentia que a maioria das pessoas era dominada por um arquétipo específico. De acordo com Jung, a maneira real pela qual um arquétipo é expresso ou realizado depende de uma série de fatores, incluindo as influências culturais de um indivíduo e experiências pessoais únicas, não podendo ser negligenciadas (JUNG, 2016).
Jung identificou quatro arquétipos principais, mas também acreditava que não havia limite para o número que pode existir. A existência desses arquétipos não pode ser observada diretamente, mas pode ser inferida observando-se a religião, os sonhos, a arte e a literatura (MURRAY, 2019).
Os quatro arquétipos principais descritos por Jung, bem como alguns outros que são frequentemente identificados, incluem o seguinte. persona é como nos apresentamos ao mundo. A palavra “persona” é derivada de uma palavra latina que significa literalmente “máscara”. Não é uma máscara literal, no entanto (GUIRADO, 2015).
A persona representa todas as diferentes máscaras sociais que usamos entre os vários grupos e situações. Atua para proteger o ego de imagens negativas. De acordo com Jung, a persona pode aparecer em sonhos e assumir diferentes formas (CAETANO, 2018).
Ao longo do desenvolvimento, as crianças aprendem que devem se comportar de certas maneiras para se adequar às expectativas e normas da sociedade. A persona se desenvolve como uma máscara social para conter todos os desejos, impulsos e emoções primitivos que não são considerados socialmente aceitáveis.
A sombra existe como parte da mente inconsciente e é composta de ideias reprimidas, fraquezas, desejos, instintos e deficiências.
A sombra se forma a partir de nossas tentativas de nos adaptarmos às normas e expectativas culturais. É esse arquétipo que contém todas as coisas que são inaceitáveis não apenas para a sociedade, mas também para a própria moral e valores pessoais. Pode incluir coisas como inveja, ganância, preconceito, ódio e agressão.
Jung sugeriu que a sombra pode aparecer em sonhos ou visões e pode assumir uma variedade de formas. Pode aparecer como uma cobra, um monstro, um demônio, um dragão ou alguma outra figura escura, selvagem ou exótica.
Esse arquétipo é frequentemente descrito como o lado mais sombrio da psique, representando a selvageria, o caos e o desconhecido. Essas disposições latentes estão presentes em todos nós, acreditava Jung, embora as pessoas às vezes neguem esse elemento de sua própria psique e, em vez disso, o projetem nos outros.
Neste tocante, na área da psicologia, os clientes vêm até você por vários motivos: relacionamentos fracassados ou fracassados, problemas no trabalho, dificuldade em lidar com vícios, sentimentos de inadequação e muito mais. Se tivermos que citar um fator que destrói relacionamentos, mata o espírito de uma pessoa e impede a realização dos sonhos, é certamente a presença de sombra em nossas vidas. Pois é no lugar escuro dentro de nós que enfiamos as muitas mensagens – muitas vezes inconscientes no momento em que o cliente chega à sua porta – que nos dizem que não estamos bem; não somos amáveis; não somos merecedores ou dignos.
O problema é que acreditamos nas mensagens e não podemos desafiar o que não sabemos conscientemente. No entanto, sentimos medo ao pensar em seguir na estrada para uma consciência maior. Tememos o que podemos descobrir se realmente olharmos para dentro de nós mesmos. Suspeitamos que não seremos capazes de lidar com a situação, ou pelo menos não gostaremos do que encontraremos. Assim, nossa “bolsa” fica pendurada em nosso pescoço cada vez mais pesada, cada vez mais pesada, até que decidamos que devemos fazer algo. Então – na melhor das hipóteses – entramos na terapia.
CAETANO, Aurea Afonso M. O erro na psicologia analítica: sombra ou luz?. Junguiana, v. 36, n. 2, p. 39-46, 2018.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: Símbolos, mitos, arquétipos. Editora Paulinas, 2012.
GUIRADO, Marlene. Clínica e transferência na sombra do discurso: uma analítica da subjetividade. Psicologia USP, v. 26, n. 1, p. 108-117, 2015.
JUNG, C. G. Ao encontro da sombra. São Paulo: cultrix,
JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. HarperCollins Brasil, 2016.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.
MONTEIRO, Carolina Antunes et al. A inversão da sombra: um conto sob a perspectiva da psicologia analítica. 2008.
STEIN, Murray. Psicanálise Junguiana: Trabalhando no espírito de CG Jung. Editora Vozes, 2019.
QUILICI, Marcia Alves Iorio. Dramatização espontânea e psicologia analítica de Jung: consideração da sombra em um grupo de psico-sociodrama. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2017.
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Falcão e o Soldado Invernal: o sonho americano pode ser transmitido?
É curiosa a trajetória do Capitão América como um símbolo norte-americano. Concebido por Joe Simon (1913-2011) e Jack Kirby (1917-1994), a primeira encarnação do herói vem na pele de Steve Rogers. Sua origem nos quadrinhos, em The Avengers #4 (1964) é similar a apresentada no filme Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), um jovem franzino, frágil e debilitado, com muito amor por sua pátria deseja adentrar o exército norte-americano para combater as forças do Eixo em plena 2ª Guerra Mundial, um clássico herói da era de ouro dos quadrinhos.
Sem aptidão física, mas com muita determinação, um membro de alta patente enxerga potencial no garoto e o transforma em voluntário para o projeto do Soro de Supersoldado, isso tudo leva o personagem a se transformar no super humano conhecido como Capitão América. Isso, no entanto, não quer dizer que ele foi o primeiro a vestir esse manto. No mundo entroncado das editoras de quadrinhos onde os roteiristas vêm e vão, modificando as histórias e o passado dos personagens com frequência, era de se esperar que isso fosse acontecer e antes de Steve Rogers outro homem vestiu as roupas e o escudo icônico do herói – mas mantenha esse fato em suspensão.
Anos após a criação de Rogers, em Captain America #117 (1969), um dos primeiros heróis negros seria apresentado ao mundo, este era Sam Wilson, de alterego Falcão. No universo cinematográfico Marvel contemporâneo, Wilson seria apresentado no filme Capitão América 2: o Soldado Invernal (2014), um militar de carreira, que fazia missões aéreas arriscadas. A partir daí eles construíram uma relação de amizade e companheirismo, culminando no fim do filme Vingadores: Ultimato (2019), onde Steve decide – após viver longos anos de uma aposentadoria e um casamento feliz que envolve uma viagem no tempo e muito roteiro complexo – passar o manto de Capitão América para Wilson.
Esse ato simbólico, que na cena em questão é muito característico por um Capitão, em forma de idoso, longevo e sábio, passando o escudo, um item poderoso e significativo carregado de significados para um Sam jovem e relativamente inexperiente; o Mestre que passa o item chave e seus conhecimentos para o aprendiz. Esse fato culmina na trama do seriado Falcão e o Soldado Invernal, que vai tratar da recusa de Sam Wilson ao chamado a Jornada do Herói.
Fonte: encurtador.com.br/dxAW1
O Arquétipo do Herói e a Recusa ao Chamado de Sam
Joseph Campbell (1904-1987) trabalha e disserta meticulosamente acerca do arquétipo do herói em seu livro “O Herói de Mil Faces” (1949). Neste livro, que antecede porém converge com as idéias de Carl Gustav Jung em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1959), o autor discorre acerca do monomito (jornada do herói), sendo esta uma narrativa plural e universalmente presente em todas as culturas, de maneiras diferentes de acordo com as influências de cada local. A jornada se dá em doze passos, fundamentais para o desenvolvimento do personagem, e crescimento individual, culminando na conclusão heróica de sua jornada.
Os passos dessa jornada, descrita por Campbell (2004) seriam em um primeiro ato: o Mundo Comum, o Chamado à Aventura, a Recusa do Chamado, o Encontro com o Mentor e a Travessia do Primeiro Limiar. A ordem dos fatores pode variar de acordo com as histórias, mas sem a alteração do produto. No caso de Sam Wilson vemos sua jornada como herói ser estabelecida em sua atuação como Falcão, porém ao ser defrontado com o manto de Capitão América, a responsabilidade e o significado do escudo o desmotivam a prosseguir.
No seriado Falcão e o Soldado Invernal (2021) é possível observar a continuidade desse processo, pois a série trata das consequências dessa fuga de Sam. Toda uma conjuntura é estabelecida, com a série tomando ponto de partida diretamente após a cena final de Vingadores: Ultimato (2019). Sam recebe o escudo, mas a única frase que consegue pronunciar acerca dele é “Parece que pertence a outra pessoa”.
Ricón (2006) descreve o processo da recusa como “o herói reluta em empreender a jornada”; Sam não somente recusa o manto de Capitão América como entrega o escudo, item emblemático, ao governo americano, ato que vai mover sua história ao longo dos episódios, pois vai sempre ser lembrado pelos personagens coadjuvantes que Steve Rogers o escolheu por bons motivos.
Nos capítulos finais da série, Sam Wilson deve lidar com seus demônios. A situação familiar na casa mundana do herói é uma analogia bonita para toda a narrativa complexa envolvendo super seres e política fantasiosa. Em sua casa no estado de Louisiana, uma problemática com o barco que pertenceu a seus pais, que está estragado e precisa ser vendido por sua irmã, é um dilema complexo.
Ao investigar mais a fundo o legado do Capitão América, descobre a trágica história de Isaiah Bradley, o primeiro a testar o soro de Supersoldado e a vestir o manto de Capitão América, um homem negro, que foi usado, injustiçado e logo após apagado da história como muitos outros semelhantes. Teria ele o ímpeto, como um homem negro que também é, de vestir o manto que representa um país que causou tanto sofrimento a seus semelhantes? Bradley revela a ele as atrocidades da guerra e impõe mais peso nos ombros de Sam.
Fonte: encurtador.com.br/ltyGJ
“O percurso padrão estabelecido por Campbell para a aventura mitológica é representado nos rituais de passagem: separação, iniciação e retorno. Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais, onde encontra forças e obtém uma vitória decisiva, o herói volta de sua aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. O herói composto do monomito é uma personagem dotada de dons excepcionais, frequentemente honrado pela sociedade de que faz parte, costuma também não receber reconhecimento ou ser objeto de desdém.” (GOMES, 2009, p.5)
O sofrimento do povo negro representado em Bradley, sua relação de amizade com Bucky Barnes e observar o mau uso que o governo fez do legado de Steve Rogers, o motivam a retomar sua jornada pessoal de heroísmo e o impulsionam a assumir outra Persona. Morre o Falcão e nasce um novo Capitão América. Sam finalmente é capaz de se libertar da fixação na fuga da jornada.
Fonte: encurtador.com.br/cejpx
REFERÊNCIAS
CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.
GOMES, Vinícius Romagnolli Rodrigues; ANDRADE, Solange Ramos de. Um retorno aos mitos: Campbell, Eliade e Jung. Revista Brasileira de História das Religiões-ANPUH-Maringá (PR) v, v. 1, 2009.
RICÓN, Luiz Eduardo. A jornada do herói mitológico. In: SIMPÓSIO DE RPG & EDUCAÇÃO. 2006. p. 2-4.
O Superman, como é conhecido hoje, foi a público pela primeira vez na publicação Action Comics (1938) concebido por Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992). Surge então da primeira leva de super heróis nos quadrinhos norte-americanos; o personagem é criado como um alienígena que haveria caído na terra vindo de um mundo distante, chamado Krypto.
Em sua terra natal, é conhecido como Kal-El, no planeta terra, ao ser adotado por um casal de idosos do Kansas recebe o nome de Clark Kent. Aqui este desenvolveria poderes sobre humanos e passaria a vestir as cores do país que o acolheu, combatendo o crime.
Outro fato importante acerca da criação de Superman é a origem étnica do mesmo, não aquela postulada nas páginas das histórias em quadrinhos; mas a origem de quem o concebeu e a carga cultural implícita na representação do personagem. O contexto histórico era o da ascensão do facismo e nazismo na Europa e as Américas eram por muitas vezes um refúgio para quem se movia para longe do caos europeu.
Siegel e Shuster, de batismo Jerome e Joseph respectivamente, eram judeus, e todo o contexto conturbado vivido por eles na década de 1940 iria influenciar imensamente na concepção das histórias e na visão de mundo dos personagens.
Superman no Cinema e a Visão de Heroísmo de Snyder
Ao longo das últimas décadas, diversas adaptações cinematográficas foram feitas da origem do Superman, ou mesmo tentativas de adaptação de novelas gráficas clássicas do herói. A filmografia se inicia na virada da década de 50 com Superman (1948), Atom Man vs. Superman (1950), Superman And The Mole Men (1951).
Na década de 70 surge o filme dirigido por Richard Donner e protagonizado por Christopher Reeves, Superman – O filme (1978), este que resultaria em três continuações com o mesmo ator, aclamado por fãs. Após longo hiato, somente em Superman – O Retorno (2006) é que o herói veria as telas cinematográficas novamente, através da visão do diretor Bryan Singer (Bohemian Rhapsody, 2018). Mas é em Man of Steel (2013), que o diretor Zack Snyder (Watchmen, 2009; 300, 2006) traz a adaptação mais recente do personagem e com ela algumas particularidades.
Acerca das adaptações cinematográficas de Snyder, vale salientar sua preferência por adaptar uma visão bem específica acerca do arquétipo do herói. Ao traduzir para as grandes telas o filme 300 (2006) – este derivado de uma graphic novel concebida pelo autor Frank Miller de nome “Os 300 de Esparta” (1998) – que é uma releitura da trajetória do mítico rei Leônidas, o diretor deixa mensagens claras acerca do lado humano do rei, seus erros e sua personalidade que em essência não eram divinas e imaculadas, mas humanas e passíveis de erro; Sua derradeira queda nas mãos do rei Persa Xerxes solidifica essa narrativa.
Em Watchmen (2006), o diretor já deixa pistas de como interpreta o papel dos super heróis perante a sociedade, adaptando mais uma obra de Miller e retratando um mundo onde os vigilantes são temidos de muitas maneiras, por sua imprevisibilidade e por serem não deuses, mas seres humanos usando máscaras. Essa mescla entre a visão de Frank Miller e a de Snyder pavimentaram uma estrada narrativa que o cineasta abordaria em seu filme que contaria a origem do herói, faria então um recorte quase pessoal de sua visão sobre o mito do Superman.
O desenvolvimento se dá ao longo de três filmes: Homem de Aço (2013), Batman V Superman (2016) e Liga da Justiça (2021). Nessa jornada você acompanha uma versão diferente da origem do Superman, muito semelhante a original dos quadrinhos porém com diferenças pontuais no que se diz respeito à personalidade do herói.
O Clark Kent mostrado no primeiro filme é um homem que desconhece seu potencial e mesmo ganhando habilidades especiais, toma atitude de herói tardiamente em sua vida, nesse caso após o conturbado final de Homem de Aço. Aquele final também guarda um fato que impõe diferença entre esse Superman do filme para o das histórias em quadrinhos, que é a despreocupação do personagem com a cidade a sua volta, sendo que este acaba por passionalmente destruir o ambiente a seu redor – a cidade inteira sucumbe desastrosamente, enquanto em uma cena de gosto duvidoso, Clark beija sua amada após quebrar o pescoço do antagonista.
É uma cena forte, e com certeza destoa do tom otimista geralmente adotado no retrato deste personagem. Snyder muda o status quo do Superman, o transfigura em um novo produto, diferente daquele já inserido na coletividade mudando o arquétipo pelo qual o ele era mais frequentemente apresentado ao público. A partir disso, diversas questões imperam acerca desta mudança e essa realocação arquetípica faz parte da narrativa desse novo personagem.
Primeiramente um breve apanhado acerca dos arquétipos. Para Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua publicação “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1957-2018), pode-se definir arquétipo como uma espécie de tendência instintiva que reside na psique dos seres humanos transmitida ao longo das gerações; como um instinto biológico que perpassa os ancestrais de uma espécie – o autor exemplifica com a tendência dos pássaros de fazerem ninhos ou viajarem para determinados locais em determinadas épocas do ano – assim também seria psicologicamente falando. Os humanos transmitem essas tendências a seus herdeiros e esses fenômenos são acessados através do inconsciente coletivo. Um desses arquétipos é conhecido como a Criança Sagrada.
Como Jesus para os cristãos, ou o Imperador de Jade em algumas narrativas ancestrais chinesas, é a representação de uma criança que vem carregada de expectativas, imaculada, de futuro promissor. Jung, ao falar acerca desse arquétipo, nos diz:
Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial. Por isto, a ocorrência do motivo da criança na psicologia do indivíduo significa em regra geral uma antecipação de desenvolvimentos futuros, mesmo que pareça tratar-se à primeira vista de uma configuração retrospectiva. (…) Não admira portanto que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às experiências da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a “criança” prepara uma futura transformação da personalidade. (JUNG, 1957-2018, p.165)
Logo, relacionar a Criança Sagrada com a narrativa do Superman, tendo como ponto de partida a cultura judaico-crisã, não é difícil e na verdade esse se demonstra um arquétipo recorrente. Como Moisés que é colocado em um cesto no Nilo – rio esse carregado de simbologias e mitos pelos Egípcios – e enviado a um futuro profético destinado a salvar os Hebreus, Kal-El é colocado por seus pais em uma nave e enviado a Terra a partir de seu planeta natal Krypton, com um destino heróico a sua frente. Esse paralelo deve ser aqui estabelecido para demonstrar o poder da simbologia judaica do Superman clássico e seus criadores fizeram ali impressão da ancestralidade de sua cultura.
Conclusão
A versão do Superman de Snyder trilha o começo do caminho da criança sagrada, mas por ser criado por seres humanos isso implica diretamente na maneira como este vê o mundo, ele está longe de ser o ser divino retratado em outras mídias onde ele paira sobre a humanidade como um ser protetor, muito pelo contrário.
Este Clark Kent voa longe para se isolar, pois se sente um pária, deslocado. E o peso do heroísmo cobra duras penas, pois no início de sua jornada, este se vê não aclamado por salvar o mundo dos invasores, mas temido por suas habilidades excepcionais e olhado com desconfiança por todos à sua volta. A promessa da criança sagrada não se cumpre, restando apenas um ser em meio a uma jornada heróica que passa pelo vale mais obscuro.
“O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir”, diz terapeuta junguiano
Falar de Psicologia Analítica geralmente é um fascínio, pois é uma abordagem que nos remete ao estudo dos símbolos, mitologias, arquétipos e da própria psique humana, temas esses que ao longo da humanidade sempre estiveram em alta e que trazem consigo uma forma de entendimento através dos seus significados e a importância dos mesmos para nossa vida.
Nessa entrevista o psicólogo, professor e terapeuta junguiano Luis Paulo Lopes destaca algumas perspectiva da abordagem, bem como suas percepções acerca do cenário atual e o contexto histórico de construção da Psicologia Analítica no Mundo e no Brasil. Também comenta de forma clara sobre vários mal entendidos e pré-conceitos acerca da abordagem e do seu fundador, Carl Gustav Jung, bem como sobre a sua ruptura com Sigmund Freud, pai da psicanálise.
(En)Cena – Por que você trilhou esse percurso? O que foi que te interessou nessa área?
Luís Paulo Lopes – Cheguei em Jung quando era ainda bastante jovem. Após o segundo grau, entrei para a faculdade de biologia, quando tive uma crise psicológica muito intensa e desagregadora que eu não saberia nomear através da psiquiatria, e nem acho que seria o caso. Nessa ocasião, fiquei muito invadido por conteúdos do inconsciente que me tiraram completamente a liberdade; o que me levou a uma reclusão de praticamente um ano em casa, e em meio à muitas questões; certamente aquelas grandes questões da humanidade. Este momento, talvez tenha sido o mais difícil da minha vida até hoje; era um desafio tremendo sair de casa e me relacionar com outras pessoas. Eu vivia aprisionado num mundo de imagens difíceis; era como se eu tivesse sido dilacerado, como Osíris, quando Seth o desmembra e espalha seu corpo pelo Egito. No mito, Isis é quem faz o trabalho de reunir, aos poucos, os pedaços do corpo de Osíris para poder reconstituí-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo nesta época, e aí começa então, uma busca que definiria meus caminhos.
Inicialmente, era uma busca para sair daquela condição aterradora, como se um forte instinto de sobrevivência tivesse despertado em mim e me dizia para encontrar um caminho; do contrário eu ficaria para sempre preso naquela condição. Vida ou morte, esta era a minha sensação. Comecei a me interessar pela psicologia transpessoal, e encontrei um autor muito interessante chamado Stanislav Grof. Naquela época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos. Grof mencionava Jung, e fiquei interessado em conhecer o que o sábio de Zurique dizia. Comecei a ler alguma coisa de Jung; no início comprei o “fundamentos de psicologia analítica”, que hoje integra “a vida simbólica vol.1”; são os 5 primeiros capítulos (as conferências de Tavistock). Eu não conseguia entender nada do que estava escrito ali, mesmo sendo um texto onde Jung tem uma linguagem um pouco mais acessível. Eu lia e não conseguia entender, mas fiquei com uma “pulga atrás da orelha” e então comecei a ler livros de comentadores, introdutórios, como “introdução à psicologia junguiana” e coisas do tipo. Assim, fui começando a entender um pouquinho melhor aquela teoria difícil, estranha e fascinante. Após estes estudos introdutórios, consegui começar a ler alguma coisa de Jung nas “Obras Completas”; embora meu entendimento não fosse muito bom, continuava estudando mesmo sem conseguir compreender totalmente. Minha sensação era a de que havia encontrado um grande tesouro, e foi isso que me manteve insistente apesar das dificuldades que tive inicialmente para compreender a teoria junguiana.
Com o tempo, fui me apropriando deste olhar e conseguindo compreender melhor; até que chegou um momento da minha trajetória em que precisei fazer uma escolha. Até então, cursava a faculdade de biologia e estudava psicologia por conta própria; e finalmente decidi começar a cursar psicologia. Durante um tempo, fiz os dois cursos ao mesmo tempo; cursava biologia a noite e psicologia de dia; e foi um ano dessa forma, até me formar em biologia e, alguns anos depois, em psicologia.
Quando me formei em biologia, comecei uma pós-graduação em psicologia junguiana, e cursei junto com a graduação em psicologia. Cerca de um ano após concluir a pós-graduação, fui chamado para ser professor no mesmo curso, que era na Universidade Veiga de Almeida, na época. Como professor, as coisas começaram a ficar mais sérias e precisei estudar ainda mais para poder ensinar, e, com certeza me ajudou a aprofundar muito mais na teoria junguiana. Ainda nesta época, tive algumas experiências muito significativas que, no entanto, mantinha em total sigilo em relação às pessoas que estavam a minha volta. Estas experiências me exigiam elaborar algumas questões muito fundamentais, como por exemplo “o que é a realidade?” ou “o que é a consciência?”. Minhas elaborações sobre essas questões eram bastante incomuns e cheias de paradoxos; o que me levantou a suspeita de que talvez estivesse enlouquecendo, pois não encontrava nada parecido com as minhas conclusões em lugar nenhum. Entretanto, tive um grande alívio quando, por acaso, descobri o advaita vedanta, ou vedanta não-dual, de Shankaracharya. Encontrei aí, com muita surpresa, elaborações sobre a realidade muito semelhantes as minhas próprias e pude respirar tranquilo; pois alguma outra pessoa já havia visto as coisas que eu também estava vendo. Esse momento marcou o início do meu interesse pelas tradições espirituais e a mitologia; que são muito importantes para mim até hoje.
Voltando a Jung… seu pensamento me chamava atenção pela grande profundidade. A sensação que eu tinha era de que Jung possuía uma vivência muito profunda e autêntica naquilo que ele ensinava. Ele não olhava o fenômeno a partir de fora, mas falava de dentro. Possuía uma vivência do inconsciente; o que ficou claro posteriormente com a publicação do “Livro Vermelho” e, agora dos “Livros Negros”, que trazem registros das vivências mais íntimas de Jung neste vasto e misterioso campo chamado inconsciente.
Fonte: Arquivo Pessoal
(En) Cena – Luis, você falou uma coisa, que foi um diferencial do Jung em relação a psicanálise, ele não nega a análise redutiva do Freud principalmente no que se refere às neuroses, mas aí ele aposta também na perspectiva teleológica, que é para onde aponta esses sintomas. Nesse momento que ele fez a ruptura com Freud parece que ele inaugurou uma psicologia bastante moderna, ele dizia que para ser analista tem que ser analisando também, o analista tem que se submeter ao seu próprio processo de análise também, por um colega. Você acha que a psicologia se perdeu muito nesse processo? Isso é mais uma regra da psicologia analítica, da psicanálise por exemplo? Porque ele (Jung) diz que você não pode pedir para o seu cliente/paciente ir além do que você mesmo foi. Como você vê isso? E foi ele que inaugurou isso, o Jung?
Luís Paulo Lopes – Eu gosto do termo terapeuta, prefiro até do que analista. Me vejo como um terapeuta que pode estar como analista se a situação assim exigir. Jung coloca como sendo uma questão ética de grande importância que o terapeuta viva a própria vida com seriedade. Estou me referindo à vida com V maiúsculo; com a participação do inconsciente. Portanto, não me refiro à vida estéril de sentido como nos é ensinada pelo espírito desta época; onde temos como único objetivo tornamo-nos boas engrenagens de uma máquina cega. Me refiro à Vida que realiza o seu próprio sentido, isto é, que realiza quem realmente somos; e que para tal, exige que passemos pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis e, também, pelo terrível desamparo que faz nascer um sentido a partir de nosso centro interior; nos forjando, gradualmente e na medida do nosso ato, em um individuum. Penso que é justamente isso que Jung quer dizer quando afirma que “ser normal é a meta dos fracassados”; isto é, a individuação me parece uma condição indispensável para que se realize com qualidade o ofício de terapeuta. É a questão do curador ferido. Aquilo que realmente somos está profundamente mergulhado no inconsciente e como que anseia ardentemente ser realizado conscientemente. Perceba que me refiro a um inconsciente bastante distinto daquele preconizado por Freud, ou o inconsciente do recalque; mas a um inconsciente criativo, como algo vivo, que intenta a construção de um caminho no sentido de sua própria realização e que, para isso, precisa da colaboração do ego. Esta é uma gigantesca diferença entre Freud e Jung. Note que não se trata mais de curar um problema específico, tal qual o pensamento médico tradicional preconiza e que está presente também em Freud (embora a psicanálise o tenha superado atualmente). A cura, em nosso caso, é como que um processo vivo, com um curso que lhe é próprio, que nasce a partir do inconsciente e é catalisada, por assim dizer, pela relação com o terapeuta e o trabalho clínico. Não se trata, absolutamente, de acessar conteúdos sexuais reprimidos, embora possa também envolver isso.
Se analisarmos os famosos casos clínicos discutidos por Freud, veremos se tratar de neuroses que foram supostamente curadas a partir da técnica psicanalítica. Havia a ideia de um procedimento quase médico – a psicanálise –, que prometia a cura das enfermidades psíquicas através de seu método quase infalível. Não deixo de notar o caráter de propaganda que está implícito nas discussões dos casos clínicos de Freud; o que pode ser perfeitamente compreendido se considerarmos o contexto histórico em que Freud se esforçava para mostrar o valor científico da psicanálise. O método freudiano, era focado na anamnese e, na redução das fantasias transferenciais a suas causas biográficas, comumente associadas ao complexo de Édipo. Entretanto, o inconsciente vivo ou criativo formulado por Jung muda a forma como se entendia o processo analítico; pois, não se trata mais de voltar ao passado para encontrar a origem do problema no conteúdo recalcado (análise redutiva), mas, além disso, em nos indagarmos sobre a finalidade do processo inconsciente; isto é, a análise deixa de apontar unicamente para o passado e passa a apontar para o futuro; quer dizer, para a construção de um caminho em colaboração com o inconsciente, no sentido da realização da finalidade deste último em colaboração com o ego. É isso o que Jung chamava de cura da cisão neurótica da personalidade.
O foco não é mais eliminar um problema, mas (em muitos casos) atravessar estados psíquicos difíceis e, assim, produzir uma renovação da personalidade. Jung traz várias definições sobre a neurose, a partir de vários ângulos distintos, por isso, não há como definir de uma forma simples a neurose na perspectiva junguiana. Apesar disso, Jung nos permite pensar a neurose como uma espécie de doença sagrada; nesse sentido, uma experiência iniciática criada pelo inconsciente com a finalidade de produzir uma passagem; isto é, que aponta para um fim específico. Essa é uma diferença importante entre Jung e Freud; o inconsciente junguiano, por assim dizer, abarca o inconsciente do recalque freudiano e vai além, pois é também um inconsciente criativo que aponta para uma finalidade e busca produzir uma totalidade, quer dizer, uma nova atitude que una a consciência e o inconsciente.
Jung traz inovações que são absolutamente relevantes e tornam a psicologia junguiana bastante distinta em relação à psicanálise freudiana. Em grande medida isso ocorreu pelo fato de Jung ter tido uma grande influência do romantismo alemão, por suas experiências do inconsciente (como as descritas no livro vermelho), e por ter bebido das tradições espirituais do mundo inteiro e, especialmente do esoterismo ocidental. Jung conhecia mitologia, conhecia os textos sagrados e esotéricos das principais religiões do mundo. Existe uma busca milenar muito mais antiga do que a psicologia contemporânea por isso que os antigos sintetizavam no símbolo da ressurreição, da salvação, da iluminação, do ouro filosófico dos alquimistas ou outros símbolos análogos. A mentalidade contemporânea, impregnada de racionalismo e materialismo, entende esses símbolos de forma extremamente concreta e poderíamos até dizer, ingênua. Jung permite um novo olhar, simbólico, sobre toda essa literatura; e assim, podemos extrair uma espécie de tintura extremamente valiosa para o campo psicológico. Há elaborações riquíssimas em outras tradições que são absolutamente úteis para a psicologia contemporânea. Penso que nossos esforços devem considerar tudo isso que já foi produzido no campo do espírito e não vejo sentido em querer inventar novamente a roda. Toda árvore precisa ter as raízes saudáveis e Jung tinha excelentes referências em sua biblioteca particular. A psicologia junguiana está afinada com esse material muito mais antigo e podemos ver essas fontes citadas pelo próprio Jung ao longo de sua obra; principalmente em seus escritos sobre a alquimia, que mostram um Jung mais maduro e com um conhecimento enciclopédico sobre essas tradições. Apesar de considerar Jung como fazendo parte de uma tradição mais antiga, acho que seu grande trunfo foi ter desenvolvido uma ciência psicológica moderna e com bases epistemológicas extremamente sólidas. Ele traz uma bagagem importante de milênios de experiências acumuladas; apesar disso, não aborda nenhuma dessas tradições a partir de uma perspectiva metafísica, mas, aplicando com rigor uma perspectiva simbólica, observa todo esse material como imagens psíquicas; isto é, como um fenômeno estritamente psicológico.
Fonte: Arquivo Pessoal
(En) Cena – Você concorda que a resistência que o Jung obteve, parece que agora vem diminuindo, de certa forma? Há a ampliação de espaços de diálogo com a psicologia analítica, principalmente na academia, nas universidades, talvez de forma tardia em relação a psicanálise freudiana… Você acredita que o Jung ainda hoje é incompreendido? Pois em artigos científicos é muito comum ver as pessoas se referindo à psicologia analítica como uma espécie de misticismo, elas aparentam não entender o sentido mais profundo inclusive do que seria o Místico e de que forma isso pode ser analisado pelo prisma psicológico.
Luís Paulo Lopes – Com certeza. Jung é não somente mal compreendido, mas, também utilizado para justificar formas de pensar que são absolutamente distintas da dele. Podemos ver isso com clareza na apropriação da teoria junguiana pelo movimento new age; o que somente acentua o preconceito em relação à psicologia junguiana e dificulta sua inserção nas universidades. Sou supervisor clínico em uma universidade e quando inicio uma turma nova, costumo perguntar: “o que vocês pensam sobre Jung?”. Já escutei algumas lendas, no mal sentido do termo, como uma ideia de que Jung aborda coisas mágicas ou metafísicas. Uma ideia de que a psicologia junguiana não é tanto psicologia assim e, por isso, não deveria ser tomada com seriedade. Esse mal entendido normalmente é desfeito com facilidade depois da primeira aula. Quando os alunos conhecem um pouco da teoria junguiana, costumam se interessar bastante e, não tenho dúvidas, começam a levar a sério como qualquer outra abordagem psicológica. Acho que isso em parte se dá por uma campanha difamatória que se iniciou no passado e, até hoje, ainda se estende. Quando houve a ruptura da sociedade psicanalítica de Zurique (Jung) com a de Viena (Freud), iniciou-se uma verdadeira guerra difamatória abastecida por calúnias. Jung não foi o único que sofreu por isso; poderíamos trazer outros autores que foram alvos de campanhas difamatórias como Ferenczi, Adler, Reich e vários outros. Inclusive há um livro do Shamdasani, “Os arquivos Freud”, onde o autor faz uma maravilhosa pesquisa historiográfica utilizando principalmente cartas escritas pelos psicanalistas do Círculo de Viena e de Zurique da época; e você percebe este falatório. Predominavam os argumentos a partir de falácias, “ad hominen”.; tentava-se desacreditar o homem, a pessoa, a personalidade, para descreditar toda sua obra. Freud tinha a pretensão de que sua psicanálise fosse considerada como única possibilidade de psicologia profunda e sentia-se profundamente incomodado com as dissidências de seus antigos colaboradores.
Entretanto, parte da fama de Jung como místico provinha do próprio Jung; precisamos reconhecer isso. Depois da publicação do “Livro Vermelho” tivemos acesso a uma série de experiências místicas do próprio Jung e pudemos perceber o quanto essas experiências foram cruciais para a criação de sua psicologia. Agora, com o lançamento dos “Livros Negros”, este debate certamente será novamente aquecido no campo junguiano. Hoje, está muito claro que o interesse de Jung pelo esoterismo e por místicos de várias épocas e tradições não era somente uma curiosidade intelectual, visto que ele mesmo viveu uma série de experiências extraordinárias que poderíamos muito bem denominar como experiências místicas. Entretanto, este é um fato absolutamente rodeado por preconceitos, mesmo dentro do campo junguiano. Alguns chegam a chamar as experiências de Jung de psicóticas, o que é uma flagrante falta de compreensão sobre a natureza da experiência mística; muito embora, ambas sejam experiências do inconsciente coletivo, por assim dizer. A questão, portanto, não é negar as experiências místicas de Jung, mas de considerar a experiência mística a partir da perspectiva psicológica do próprio Jung. Ele nos permite considerar estas experiências a partir de uma perspectiva que não é nem psicopatológica, nem metafísica. Jung considerou com seriedade estas experiências e, inclusive, reconheceu a importância delas para o campo da saúde mental. Quando passou a utilizar o método da imaginação ativa, na prática, introduziu a experiência mística no setting analítico a partir de uma perspectiva absolutamente psicológica. Os antigos gregos utilizavam a palavra “gnose” para designar um tipo de conhecimento que, poder-se-ia dizer, provém diretamente do inconsciente coletivo e que teria um efeito absolutamente transformador. A “gnose” se refere a um conhecimento que não cabe nas palavras e que, embora seja anterior à própria imagem, só pode ser exprimido e ampliado através das imagens. Penso que deveríamos levar isso muito mais a sério, pois o próprio campo junguiano contemporâneo passou a ver com preconceito este aspecto do pensamento de Jung, por pura ignorância. E, na tentativa de proteger Jung das acusações de místico, passou a minimizar a importância da experiência mística na vida e na obra de Jung; jogando, quase que literalmente, a criança fora junto com a água do banho.
Fonte: encurtador.com.br/adlG6
(En) Cena – Já havia, naquela época, uma política de cancelamento, sim?
Luís Paulo Lopes – Havia sim. Freud tinha pretensão de criar uma psicologia que oferecesse uma resposta única para o problema da psique. Hoje sabemos o quanto essa pretensão era fantasiosa. A pluralidade do campo psicológico contemporâneo está aí para provar. Freud, por exemplo, considerava a libido como tendo uma qualidade fundamentalmente sexual, e não estava disposto a aceitar qualquer outra possibilidade de olhar que dissesse o contrário. Este tipo de posição de Freud fez com que Jung, várias vezes, o acusasse de dogmatismo. A questão da libido é um bom exemplo de um ponto de divergência radical entre Freud e Jung que acabaria colaborando decisivamente para a ruptura entre ambos. Jung afirmava, por exemplo, que o instinto de nutrição era anterior ao instinto sexual e, além disso, que outros instintos eram igualmente importantes, inclusive o que chamou de instinto religioso. Jung traz o inconsciente coletivo com sua multiplicidade de formas arquetípicas como sendo o fundamento psíquico mais radical e a libido como energia pura e simples em seu movimento de progressão, represamento e regressão; impulsionando a transformação das imagens em um processo que parte de uma causa e busca uma finalidade específica. Para Freud, isso era uma ameaça sem precedentes, pois questionaria toda a sua psicanálise. Imagine este fato em um contexto onde a psicanálise sofria constantes ataques e tentativas de desqualificação; e, ainda lutava para se estabelecer como um campo que gozasse de algum prestígio social.
(En)Cena – E como fica a Psicologia analítica, neste ínterim? E no Brasil, qual o perfil acadêmico dos adeptos da teoria?
Luís Paulo Lopes: Podemos pensar na chegada da psicologia junguiana aqui no Brasil com a Dra. Nise da Silveira. Ela organizou grupos de estudos em sua casa que atraíram muitas pessoas interessadas em estudar Jung; e isso, muito antes da tradução das obras completas de Jung para o português. Meus principais professores de psicologia junguiana estudaram com a Dra. Nise, que foi a grande ponte para a chegada da psicologia junguiana no Brasil. Graças a ela e à importância do trabalho que ela desenvolveu com a psicose no antigo Hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a obra junguiana passou a ser estudada com seriedade no Brasil. Não fosse isso, talvez não estaríamos tendo esta conversa aqui hoje.
A psicologia junguiana teve uma difusão lenta no Brasil. Os junguianos sempre foram pouco numerosos e somente alguns se dedicaram a seguir uma carreira acadêmica. Hoje em dia, não é fácil pensar no mestrado em psicologia junguiana, principalmente a depender do estado em que resida; pois, são poucos os professores que orientam pesquisas neste campo. Mas, esse cenário vem mudando muito rapidamente. Cada vez mais, há professores junguianos nas universidades. Os cursos de pós-graduação em psicologia junguiana se alastram por todo o país, assim como muitos institutos junguianos que não têm ligação com alguma universidade. Percebo que a possibilidade do virtual e das plataformas online, herança da pandemia do coronavírus, tem permitido uma expansão ainda maior do campo junguiano. Muitos eventos importantes como palestras, grupos de estudos, aulas pelo youtube, lives, seminários e congressos têm acontecido através destes novos recursos. Hoje, é muito fácil para o estudante encontrar algum grupo ou curso para iniciar os estudos na teoria junguiana; basta procurar pelo facebook. Entretanto, advirto para que procurem analistas ou professores sérios, pois não é incomum encontrarmos coisas pela internet que não são de qualidade. Veremos como isso vai caminhar. Mas, tudo aponta para um grande crescimento do pensamento junguiano no campo da psicologia brasileira. Há um programa de pós-graduação em psicologia junguiana na PUC-SP, por exemplo. Creio que isso é algo muito significativo sobre a penetração da teoria junguiana nas universidades brasileiras.
(En)Cena – Tem um pela Universidade Federal do Paraná, tem também pela Universidade Federal do ABC Paulista, há também algo na UNIP, mas são poucos em relação a quantidade de programas de Mestrado, porque Doutorado é mais difícil ainda… pois bem, Luís, mudando um pouco de assunto, aparentemente há uma disputa muito grande dentro do próprio Brasil entre as diferentes formas de fazer a leitura do Jung. Qual sua opinião sobre isso?
Luís Paulo Lopes – Acho que as diferentes abordagens são inevitáveis, pois, em psicologia, o objeto de estudo é também o sujeito do mesmo estudo. Temos essa interessante peculiaridade em relação às demais ciências, o que torna a psicologia algo extremamente plural e complexo. É possível olhar para a alma a partir de diferentes perspectivas e, apesar da possibilidade da objetividade, o componente subjetivo, ou equação pessoal (como chamou Jung), tem grande importância na elaboração da teoria. Por isso, ao falar sobre psicologia, precisamos falar sempre no plural – psicologias. O psicólogo, devido a essa pluralidade, costuma estar à vontade para lidar com diferentes epistemologias; com diferentes pontos de vista. Podemos considerar que embora todas as abordagens psicológicas tenham uma validade relativa, nenhuma jamais terá validade absoluta. No campo junguiano não é diferente. Jung fez um trabalho definitivamente monumental; o que permitiu diferentes linhas de desenvolvimento teórico a partir deste ponto inicial. Podemos considerar três principais correntes de pensamento dentro do campo junguiano: a psicologia junguiana clássica (principalmente os autores que estiveram mais próximos de Jung), a psicologia junguiana desenvolvimentista (que produziu mais diálogos com a psicanálise) e a psicologia arquetípica (de James Hillman). Há, atualmente, um grande autor chamado Wolfgang Giegerich, que traz uma abordagem distinta em relação às outras três e parece ter força para criar uma quarta corrente de pensamento no campo junguiano; veremos. Essa pluralidade dentro de um mesmo campo não é sem tensões, como seria de se esperar. De qualquer forma, as disputas e alfinetadas mútuas entre os diferentes autores são sinal de saúde; pois, significa que a psicologia junguiana está bastante viva e pulsante, produzindo novos conceitos e ideias. Isso quer dizer que a psicologia junguiana não se enrijeceu em um dogmatismo e, é exatamente isso que garante que nosso campo prospere e avance para o futuro.
É importante avançar, pois estamos no século XXI e não mais na primeira metade do século XX. Quais são os problemas da nossa época? O quanto nós, hoje, conseguimos enxergar e que o próprio Jung não podia, devido ao limite imposto por sua época? Por exemplo, hoje, temos um pensamento feminista dentro da psicologia junguiana que não seria possível na época de Jung. Essa corrente traz algumas críticas importantes em relação ao machismo do próprio Jung. As críticas internas são sempre mais poderosas do que as críticas que vem de fora e, pelo mesmo motivo, são potencialmente mais transformadoras. As críticas de psicanalistas em relação a Jung, por exemplo, costumam ser risíveis; sem fundamento e baseadas em lendas criadas pelas campanhas difamatórias do passado. Coisas do tipo que não se deve nem perder tempo para responder. Mas, as críticas internas são diferentes, pois vem de quem realmente conhece a teoria junguiana. São estes autores que podem fazer críticas bem fundamentadas e, pelo mesmo motivo, criar desdobramentos teóricos.
Fonte: encurtador.com.br/xCIN3
(En)Cena – Em termos de produção de literatura junguiana no Brasil, como você considera que está no momento?
Luís Paulo Lopes – Acho muito importante que haja uma produção robusta de literatura junguiana nacional; e, principalmente que considere as especificidades da psique brasileira. Todo povo tem uma história que influencia radicalmente a psicologia do indivíduo. Quais são os fantasmas que habitam esta terra chamada Brasil e que ainda hoje nos assombram a todos de uma maneira ou de outra? Vivemos, por exemplo, numa terra que, há não muito tempo, foi palco de uma brutal de escravidão. A tortura pública e a brutalidade eram banais nestas terras há não muito tempo atrás e permanecem bastante vivas nas periferias e presídios, por exemplo. Seria mais fácil se esquecer de tudo isso e continuar como se nada estivesse acontecendo; não à toa dizem que o brasileiro tem pouca memória. Entretanto, o inconsciente se recusa a esquecer aquilo que a consciência preferiria fingir que nunca existiu. Quais são os nossos traumas culturais? E como eles nos influenciam ainda hoje? Tenho visto um esforço significativo entre alguns junguianos brasileiros no sentido de produzir pesquisa e literatura exatamente nesta área tão importante. Destaco Walter Boechat e Roberto Gambini. É bastante animador perceber este movimento na psicologia junguiana nacional. As editoras Vozes e Paulus são grandes colaboradoras na difusão do pensamento junguiano, nacional ou internacional; e temos revistas de psicologia junguiana ligadas a SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e a AJB (Associação Junguiana do Brasil). Mas, apesar disso, em termos gerais, penso que ainda escrevemos pouco no Brasil e, ainda estamos longe de poder ostentar uma produção de literatura junguiana significativa e capaz de dialogar com os principais autores internacionais.
(En)Cena – Em relação à Anima Mundi, como é que você vê esse resgate da alma do mundo?
Luís Paulo Lopes – O conceito junguiano denominado como processo de individuação me parece um caminho para pensar esta questão, muito embora seja um conceito que levante certas polêmicas e divergências no pensamento pós-junguiano. Particularmente, considero que para uma correta compreensão sobre o que Jung chamou de processo de individuação é preciso mergulhar no pensamento dos antigos alquimistas; e nesta área, somente a experiência em seu próprio e privado laboratório e a gnose que daí pode nascer, poderia trazer alguma elucidação. Por exemplo, considero o conceito de “cultivo da alma”, em Hillman, como algo absolutamente distinto em relação ao que Jung chamava de processo de individuação. Tenho pensado, embora ainda não tenha chegado a uma conclusão definitiva, se não poderíamos considerar “o cultivo da alma” hillmaniano e a individuação junguiana como formas distintas de subjetivação, válidas para diferentes tipos de pessoas. Isso teria importantes desdobramentos clínicos.
O mito da queda de Sophia trazido pelos antigos gnósticos nos ajuda a pensar essa questão. Sophia teria gerado filhos sem o consentimento do Pai e sem a participação de seu consorte, o Cristo. Sophia e Cristo como uma sizígia, refere-se ao tema largamente desenvolvido pelos alquimistas da união entre a Alma e o Espírito. A Alma, portanto, originalmente estaria indissociavelmente unida ao Espírito, porém, quando decidiu gerar filhos sem a participação deste último, deu à luz aos Arcontes, seres ignorantes em relação aos desígnios do Pai. Os Arcontes, por sua vez, são comumente representados pelos sete planetas que estão associados aos metais que o alquimista deveria transmutar para a produção do ouro. O mito narra como Sophia foi aprisionada na matéria e como é violentada e oprimida pelos Arcontes que a impedem de retornar à sua morada eterna; até que não podendo mais encontrar consolo nas ilusões da matéria, em estado de profunda privação, Sophia se arrepende de seu erro e implora por seu consorte e salvador, o Cristo. Somente após esta união da Alma com o Espírito, Sophia é gradualmente liberta da submissão em relação aos Arcontes e se aproxima de seu verdadeiro fundamento. Esta é a Sophia discutida por Jung como sendo o quarto grau de desdobramento da anima e associada ao Eterno Feminino ou à Sabedoria Divina. Embora as imagens sejam muito mais enigmáticas do que os conceitos, penso que exprimem muito melhor uma ideia universal.
(En)Cena – Isso é o próprio processo de individuação?
Luís Paulo Lopes – Certamente. O processo de individuação não tem nenhuma relação com o que o senso comum chama de “auto realização”. Pelo contrário, o que se entende hoje como “auto realização” seria equivalente a estar totalmente perdido e definido pelo espírito da época; por isso, está longe de ser uma solução, mas, na verdade é um sintoma do problema que desafia a humanidade, a ignorância. O processo de individuação, ao contrário, fala sobre a transformação do homem no sentido de seu próprio centro e que só pode ser realizada a partir do indivíduo. Me lembro de uma passagem em que Jung diz que o maior trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é integrar a nossa própria sombra e, assim, parar de projetá-la nos outros. Tendo a concordar com esse ponto de vista. Nossa cultura dominou a técnica como nunca na história da humanidade, entretanto, espiritualmente somos como crianças birrentas disputando pelos melhores brinquedos. Veja o perigo desta situação se considerarmos a existência da bomba atômica.
É preciso mergulhar profundamente no passado para que as raízes de nossa cosmovisão se estabeleçam na terra fértil dos grandes espíritos da humanidade. Nos tempos atuais, é preciso ter muito cuidado com a novidade, que tenta vislumbrar o homem a se perder na superficialidade; tornando-o ainda mais escravo da ignorância. Assim como a flor arrancada logo perece por ser privada de suas raízes, também o homem contemporâneo adoece quando é desligado de seu passado e privado da sabedoria dos antigos sábios. Precisamos de uma nova pedagogia, não somente para as crianças, mas sobretudo aos adultos. Uma pedagogia enraizada na tintura dos grandes espíritos que passaram por este mundo; para que a tão importante novidade de que tanto necessitamos hoje seja um novo ramo nesta antiga árvore da sabedoria. Mas, a pretensão pueril do homem moderno olha para o passado com desdém, afirmando se tratar de um tempo obscuro de superstição e ignorância; e assim, vangloria-se com suas próprias invenções como se fossem tremendamente superiores. Entretanto, a maioria não passa de vãs distrações que fazem com que o homem se perca cada vez mais no lodo escuro da ignorância; e assim, segue destruindo o mundo. O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir (normalmente a problemática da segunda metade da vida). Se a cosmovisão não tiver longas raízes que penetrem profundamente no passado, na terra dos grandes espíritos da humanidade, ficará restrita à superfície desta época. O homem permanecerá como uma criança mimada, a doença mental crescerá como erva daninha e o mundo continuará a ser destruído. Esta é a minha definição para a miséria espiritual da nossa época.
(En)Cena – Aos 63 a 64 anos, Jung falava continuamente que o que diferencia muito ele – inclusive de Freud – é que ele era um homem ambivalente, imperfeito. Como você enxerga isso?
Luís Paulo Lopes – Ele e todos nós; sem dúvida nenhuma. Jung deixa claro que a individuação não é um caminho para a perfeição, mas para uma maior integridade. Integridade implica ter consciência da própria escuridão, das próprias imperfeições; e conviver com elas de forma consciente. Entretanto, ao tentarmos ser perfeitos, fechamos os olhos para tudo aquilo que não se encaixa na perfeição que imaginamos e, por isso, nos alienamos de nós mesmos; precisamente, a definição de neurose para Jung. Mas, convenhamos, admitir nosso lado sombrio é algo tremendamente difícil e nós joga em conflitos penosos e no desamparo arquetípico. Entretanto, este mesmo desamparo pode ser muito bem o início de um processo (penoso, é verdade) de nascimento de um individuum; isto é, fala sobre a possibilidade da cura de cisão neurótica da personalidade. Esta cisão neurótica faz com que a mão direita haja sem saber como a mão esquerda está agindo, como Jung certa vez afirmou; entretanto, mesmo com a superação da cisão neurótica, o homem continua tendo uma mão direita e outra esquerda, muito embora, agora elas possam estabelecer uma relação. Esta é a nossa ambiguidade fundamental e insuperável. Há uma boa passagem bíblica atribuída a Jesus que serve bem como imagem simbólica para essa verdade psicológica: “Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17). Quem conhece as discussões de Jung sobre a relação simbólica entre Cristo, o conceito de Self e o processo de individuação, compreende essa analogia sem nenhuma dificuldade.
Fonte: encurtador.com.br/frvAI
(En)Cena – Pode ser que alguns terapeutas junguianos tenham um sistema pré-moldado, pré-definido, um sistema cognitivo, do ponto de vista da compreensão dele do mundo, e ele não consegue fazer essa separação, fora do espectro da autoridade, e as vezes ele passa a impressão de que o processo de individuação se aproxima daquele “Ideal Asceta” que o Nietzsche criticava dentro do Cristianismo. Você enxerga dessa forma? Como é que se pode desmistificar isso, ou como o paciente pode perceber isso?
Luís Paulo Lopes – Quanto mais o homem se aproximar de um ideal, mais distante estará de si mesmo. Por isso, os ideais de perfeição necessariamente produzirão uma sombra de igual intensidade que tenta compensar o ideal sobre o qual a consciência está identificada. Veja o exemplo do nazismo na Alemanha; o ideal de perfeição, beleza e pureza ariana carregava de forma subterrânea o horror, a feiura e a sujeira da sombra alemã. Enquanto o povo alemão estava possuído por este ideal de pureza, era incapaz de perceber que ele mesmo era o monstro repugnante que tentava derrotar, e assim, o perseguia projetado em seus inimigos. Vivemos algo muito semelhante hoje em dia no Brasil com o ideal do cidadão de bem, por exemplo. Veja o quanto é sedutor um ideal como esse; pois afirma que aquele que se identifica com ele é uma pessoa perfeita, como se estivesse salva do diabo que habita a sua própria casa. Qualquer ideal deste tipo, não importa se é político, religioso, ou de qualquer outra natureza, produz este mesmo efeito. A integração da sombra, para Jung, significa tornar-se humano, ou seja, um pecador. Veja como poderia ter sido salutar se o povo alemão tivesse tomado consciência do pecado que carregava, mas que era incapaz de reconhecer. Nesse sentido, a individuação não significa “subir no pódio” como o espírito desta época gastaria de pensar, mas ao contrário, é “cair do cavalo”. É levar um tombo do alto de sua inflação. A identificação com esta persona heroica ou santa é desfeita e o ego precisa confrontar a natureza sombria da alma. É necessário manter a tensão entre os opostos para que a integração aconteça; nesse sentido é exigida coragem para encarar a verdade de que somos todos pecadores.
(En)Cena – Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre o “necessário manter a tensão” para, a partir disso, integrar…
Luís Paulo Lopes – Manter a tensão, suportar a tensão… Jung discute o conceito de função transcendente, como uma função que unifica a consciência e o inconsciente, os opostos, em um terceiro termo, uma nova atitude. Quando o ego finalmente encara os aspectos sombrios da alma, um conflito irrompe. O conflito tende a ser uma experiência aflitiva e, por isso, a tendência natural é que o oposto inconsciente que está incomodando as pretensões unilaterais da consciência, seja reprimido novamente; e assim, o conflito cessa sem qualquer resolução. Não quero dizer com isso que os conflitos devam ser solucionados, pois como Jung nos ensina, os grandes conflitos humanos são contradições insolúveis. Tentar encontrar uma solução para eles é impossível, pois a consciência é naturalmente unilateral e, portanto, incapaz de considerar uma solução que inclua ambos os opostos. Tudo o que a consciência pode fazer é suprimir o conflito. Este é o motivo pelo qual é preciso sustentar ou suportar o conflito; pois se não podemos solucioná-lo, só nos resta suportá-lo para que não nos alienemos de nosso lado sombrio. Se o conflito for sustentado tempo suficiente, da tensão entre os opostos surge um terceiro elemento que unifica os opostos, a função transcendente. Há uma ampliação da consciência devido a integração do inconsciente e, a partir desta nova perspectiva da consciência, agora ampliada, o antigo conflito perde a importância; e mesmo que não tenha sido definitivamente solucionado, realizou o seu propósito.
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Puella Aeterna: consequências da fixação feminina na eterna juventude
Ao longo da história e dos mitos que a humanidade traz consigo, muito se foi dito acerca da eternidade, da beleza e da juventude do ser humano, que em tantas histórias e contos se referenciou nos deuses, comumente representados como figuras eternas e que na psicologia analítica são vistos como arquétipos.
Os arquétipos são figuras que remetem a um conteúdo específico, uma forma, como por exemplo, o arquétipo materno representado por a grande deusa, a virgem, a esposa, a vó e também pode ser atribuída à lua e a terra, dentre tantas outras representações que são formadas no inconsciente (JUNG, 2002).
O arquétipo do Puer Aeternus se construiu em várias culturas através dos mitos, tanto orientais como ocidentais, sendo associado à beleza, juventude e eternidade, retratado em diversos deuses; sua maior associação é com o arquétipo do deus menino, sendo comumente atribuído aos deuses gregos Dionísio e Eros, seu significado é descrito como “juventude eterna” enquanto que na psicologia analítica pode ser também atribuído ao jovem que tem algum complexo materno incomum (VON FRANZ, 1992).
Portanto o indivíduo que se vê tomado pelo arquétipo do Puer Aeternus é retratado da seguinte maneira:
Em geral, o homem que se identifica com o arquétipo do puer aeternus permanece durante muito tempo como adolescente, isto é, todas aquelas características que são normais em um jovem de dezessete ou dezoito anos continuam na vida adulta, juntamente com uma grande dependência da mãe, na maioria dos casos (VON FRANZ, 1992, p. 3-4).
Na clínica junguiana, muito se trabalha com os aspectos arquetípicos nos quais encontram-se no inconsciente coletivo e podem levar aos complexos a partir das experiências pessoais que são atribuídas ao inconsciente individual, sendo melhor explicados por Jung (2002, p. 53) da seguinte forma:
O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade.
A partir da breve explicação, falaremos então acerca de um caso clínico relacionado ao Puer Aeternus, porém, aqui postularemos como a Puella Aeterna, ou a eterna menina, que é o aspecto feminino do Puer com algumas características que podem se diferenciar, sendo geralmente caracterizada como uma mulher que ainda vive com aspectos infantis, geralmente por consequência de pais passivos e em sua maioria por mães controladoras. Sendo assim Leonard (1998, p. 64) conclui:
[…] a eterna menina em geral adquire sua identidade a partir das projeções feitas pelos outros sobre ela, entre as quais: a mulher fatal, a boa filha, a esposa e anfitriã encantadora, a princesa maravilhosa, a musa inspiradora, e até mesmo a heroína trágica. Em lugar de assumir a força e o poder do potencial que lhe é inerente, e as responsabilidades que o acompanham, a eterna menina permanece frágil. Como uma boneca, permite aos outros fazerem de sua vida o que bem quiserem.
A partir de tal conceito, podemos seguir ao caso clínico que envolve uma paciente jovem de 18 anos na qual chamaremos de Hebe (nome fictício), que ao chegar no consultório se mostrou muito receptiva e falou acerca de seu acompanhamento clínico anterior, da sua vida familiar, um pouco da sua história, dos seus sentimentos e vivências, foi conversado com ela acerca da abordagem que seria utilizada na terapia (Psicologia Analítica), e questionamentos acerca de inclinações para artes e hobbies que a mesma poderia ter. A paciente relatou gostar de filmes “clichês” e também antigos. Outro aspecto relevante retratado foi acerca do gosto por desenhar, onde ela revelou gostar bastante, mas que não o fazia há algum tempo por receber críticas negativas da mãe acerca de alguns dos seus desenhos, que inclusive foram jogados fora por Hebe.
Podemos observar aqui um aspecto muito comum da Puella, onde a paciente demonstra reminiscências da infância tendo suas decisões tomadas a partir de influências dadas pela mãe, que notavelmente exerce um controle exacerbado sob a vida de Hebe, como citado por ela em um exemplo acerca de sua vontade de fazer uma faculdade fora, mas que não seguiu adiante com a ideia após sua mãe reforçar que ela não daria conta por ser uma pessoa de “mente frágil” para lidar com uma vida longe.
Hebe confirma verbalmente o que sua mãe disse a respeito dela, fala que se sente uma pessoa frágil emocionalmente e que sempre está sendo afetada por algo, portanto quando ocorre um evento que lhe afete negativamente ela costuma ir para um canto e ficar sozinha, ela relatou ser uma pessoa que não demonstra seus problemas, que geralmente se sente culpada em incomodar os outros e sente culpa até mesmo por problemas que são inevitáveis, como por exemplo uma doença recente que sua mãe passou, no qual Hebe disse de alguma forma sentir-se culpada por toda aquela situação. Acerca disso Leonard (1997, p. 81) nos traz que:
Um elemento comum a todos os padrões pueris é o apego a uma inocência ou uma culpa absolutizada que são os dois lados de uma moeda capaz de alimentar a dependência de outrem que reforce ou condene os atos. Existe em todos a relutância de responsabilizar-se pela própria existência, a ausência de tomada de decisões e discriminações; é o outro que se incube disso.
A paciente relata ter tido fortes crises de ansiedade e as situações nas quais teve, como por exemplo quando foi visitar sua mãe que estava internada e durante a crise que teve ela se viu tomada por um pânico que a deixou paralisada tendo inclusive que ser atendida por enfermeiras que estavam no local. Nesse momento ela diz ter tido muito medo de que sua mãe viesse a falecer. Esse aspecto muito nos fala acerca do medo terrível de separação da paciente com sua mãe, onde há visivelmente uma ausência de ruptura e o medo de encarar o mundo, sendo esse último aspecto relacionado à introversão.
Hebe diz que sua timidez é tamanha, que ela não costuma fazer amigos por dizer que não gosta de sair, tendo como explicação o fato de que todos que querem ser seus amigos sempre chamam para ir a festas e ela prefere não fazer amizades a ter que recusar os convites. Von Franz (1990, p.11) nos fala que:
No caso da atitude introvertida […] a pessoa tem a impressão de que um objeto opressor quer constantemente afetá-la, objeto do qual ela deve afastar-se de maneira contínua. Tudo se abate sobre a pessoa, que é constantemente oprimida por impressões, embora não perceba que secretamente está tomando energia psíquica do objeto e passando-a a ele através da sua extroversão inconsciente.
A paciente relata que não costuma conversar muito com os irmãos, pois são pessoas que levam tudo na brincadeira, também não conversa muito com seus pais, porquê sua mãe é muito fechada e o seu pai, devido ao histórico do divórcio também não é muito amável. Segundo a paciente sua mãe passou a tratá-la de forma diferente após a separação dos pais, que as coisas ficaram diferentes, pois ela sente muita falta da época em que os pais moravam juntos.
O Pai de Hebe mora em outro estado, e por vezes abandonou a família sem dizer quaisquer coisa, isso, nas palavras da paciente, deixou-a insegura, e contou que certa vez o pai propôs que sua mãe, ela e os irmãos fossem morar com ele, ele deu o dinheiro para irem, porém, ao chegar lá ficaram cerca de dois meses e o pai os abandonara novamente em uma casa pequena sem dar quaisquer satisfações, deixando-os inclusive sem dinheiro algum até mesmo para voltar, e que apenas conseguiram voltar após contato com a família na cidade que moravam.
Essa história nos remete em partes ao que Leonard (1997) discorre acerca do padrão da Puella da “menina de vidro”, fazendo uma análise da peça “Zoológico de Vidro” de Tennessee Willians (1945) onde se observa a protagonista Laura, marcada por uma relação de um pai ausente que se mostra como uma garota de extrema timidez, com uma mãe que faz suas projeções nela tomando partido por suas decisões:
Para Laura, não existia relação com o masculino, não havia nenhuma influência ativa e consciente do pai, nenhum relacionamento com o mundo exterior […] Desprovida de projeções masculinas e de uma relação com o masculino, Laura cria seu próprio mundo, uma vida de fantasia que compensa seu isolamento em relação ao mundo exterior. (LEONARD, 1997, p.70)
Durante o atendimento com Hebe, ao mencionar que provavelmente falaríamos de sonhos, perguntei se ela costumava sonhar, e se recordar dos sonhos, ela mencionou que sim, logo após questionei se ela tinha algum sonho específico, logo ela me contou de um sonho que já se repetiu algumas vezes segundo ela, no qual ela se via em um apartamento que era somente dela, dado por sua mãe, com tudo para ela. Infelizmente não foi possível uma análise mais aprofundada do sonho, pois Hebe não pôde mais comparecer à terapia.
Portanto, após os relatos da paciente, podemos encontrar uma evidência no sonho de que o apartamento é a casa dela, representa seu ego. E apesar de ser algo próprio dela, quem deu foi sua mãe, isso pode nos revelar acerca da dependência materna por parte de Hebe, que demonstra fixação em uma fase anterior do desenvolvimento, na qual podemos novamente relacionar com a Puella.
Há também um constante medo inconsciente de encarar o mundo, uma necessidade de mudar a imagem amedrontadora que a paciente tem da mãe. Hebe demonstra uma recusa de buscar desenvolvimento de auto apoio para se tornar uma pessoa apta à vida adulta, é preciso dar-se conta de que esse trabalho não pode ser realizado por sua mãe, mas sim por ela mesma e para tanto a figura do terapeuta atua juntamente nesse processo.
Sendo assim para a transformação desse padrão de Puella, é interessante que o terapeuta convide à paciente, em primeiro passo, a tomar consciência de que está fora de contato com o self, ao reconhecer e sentir a existência da mais dimensões no próprio íntimo, um poder maior que a força dos impulsos do ego, onde ainda não se tem um vínculo, que pode ser revelado nos sonhos, essa conscientização gera sofrimento e então o segundo passo refere-se à aceitação desse sofrimento, tendo por fim o último passo, perceber que, apesar da nossa fraqueza há uma força interior que acessa esse poder superior, é uma aceitação do poder do self mas que parte das escolhas da própria paciente (LEONARD, 1998).
Vale ressaltar que na clínica Junguiana, o terapeuta irá atuar como aquele que estará ali para andar junto durante esse processo, vivenciar junto com o paciente e dar o suporte buscado na terapia para que o indivíduo possa lidar com as adversidades por si só, ou seja, até que o paciente possa caminhar sozinho. O analista por sua vez deve estar em constante aprimoramento, se possível, realizar também seu próprio processo terapêutico. Acerca disso Jung (1998, p. 6) discorre que “aquilo que não está claro para nós, porque não queremos reconhecer em nós mesmos, nos leva a impedir que se torne consciente no paciente, naturalmente em detrimento do mesmo.”
Podemos reafirmar então, que os arquétipos regem nossas vidas, mesmo que não tenhamos a consciência de sua existência, ainda assim, fazem parte do inconsciente coletivo, de uma forma ou outra, entram em contato com nosso inconsciente pessoal e acabam por interagir com os complexos pessoais. A terapia sob a luz da psicologia analítica nos ajuda a entender como funcionam os movimentos de nossa psique, nossa alma, e nos convida a nos compreender melhor e a trazer os aspectos inconscientes à consciência, com o intuito de auxiliar no processo de individuação e na busca do self que é pessoal à cada indivíduo.
Carl Gustav Jung nasceu em 26 de julho de 1875, em Kesswil, na Turgóvia (Suíça). A partir de seus estudos, Jung elaborou sua visão acerca da psique humana, a partir das observações das associações “complexas” ou emocionalmente carregadas.
Sua observação o levou a formular, ou reformular, segundo Bertrand (2019), diversos conceitos, como o inconsciente, arquétipos, complexos, persona, anima e/ou animus, compensação, sonhos, sincronicidade, criatividade, sintomas, tipos e funções psíquicas, a “numinosidade”, o self, e um sistema psíquico bem estabelecido.
Jung fundou a psicologia analítica, cuja base fundamental é os arquétipos e o inconsciente coletivo, a energia psíquica, os complexos e o processo de individuação. A partir desses temas derivam inúmeros outros que complementam seu modelo de psique humano. Jung publicou muitas obras durante sua vida, e suas ideias frutificaram para muito além do campo da psiquiatria, estendendo-se também à arte, literatura, religião física, quântica, biologia (BERTRAND, 2019).
A Psicologia Analítica, como qualquer teoria científica, surgiu e se desenvolveu em um determinado contexto histórico e cultural, a partir do qual deve ser compreendida. Jung situa a sua teoria em um longo processo histórico que teve início com a ativação do inconsciente coletivo no período da Revolução Francesa (SANT’ANNA, 2019).
O termo arquétipo, pauta principal deste trabalho, segundo Pieri (2002, p. 44), “é tirado da filosofia, onde ocorre para indicar o modelo, o exemplar originário ou, simplesmente, o original de uma série qualquer”. Etimologicamente, a palavra arquétipo é formada pela raiz arché, cujo significado é arcaico, antigo; e typos, que significa impressão, marca.
A palavra arquétipo, para Hall; Nordby (2014, p. 33), “significa um modelo original que conforma outras coisas do mesmo tipo”, são os conteúdos do consciente coletivo e acrescentam (2014, p. 34): para uma correta compreensão da teoria junguiana dos arquétipos, “é muito importante que eles não sejam considerados como representações plenamente desenvolvidas na mente, como as imagens de lembranças de experiências passadas em nossa existência”.
Os arquétipos são universais, ou seja, herdam as mesmas imagens arquetípicas básicas e agindo como centro de um complexo, funcionam (os arquétipos) como um imã, atraindo para si as experiências significativas a fim de formar um complexo (HALL; NORDBY, 2014). Os arquétipos são dados à estrutura psíquica na forma de possibilidades latentes como fatores biológicos e/ou fatores histórico culturais. São prontidões psíquicas, tendências inatas à realização de determinadas ações e/ou imagens, que são resultado do processo evolutivo da espécie humana. Estão, portanto, limitados às experiências universais como nascer, morrer, a maternidade, a paternidade, a infância, a velhice, o desenvolvimento, a sobrevivência etc. (SANT’ANNA, 2019).
Apresentam uma condição estrutural da psique que, sob determinada constelação, interna ou externa, são capazes de produzir as mesmas formações, o que não tem a ver com a transmissão hereditária de imagens. As imagens têm semelhanças porque se baseiam no mesmo princípio formador e enquanto conjunto de prontidões vazias de conteúdo, o arquétipo em si se situa na esfera psicoide, ou seja, anterior à psique (SANT’ANNA, 2019).
Para que seja reconhecido e integrado à consciência, o arquétipo precisa ganhar apresentabilidade por meio de uma imagem (imagem arquetípica) cuja forma se constitui por meio de elementos oriundos da experiência do indivíduo e podem se manifestar simultaneamente em vários planos, fisiológico (emoção, comportamento), no plano psicológico (imagem) e no plano social (cultura) devido ao fenômeno da sincronicidade (SANT’ANNA, 2019).
Do ponto de vista do desenvolvimento humano, à medida que os processos maturacionais passam a exercer menor influência no comportamento e no funcionamento mental no final da adolescência, os processos de natureza psíquica e social passam a ser elementos reguladores mais importantes.
Sendo o arquétipo em si uma possibilidade e não uma manifestação, para que ele seja ativado e presentificado na psique são necessárias duas condições: um fator ativador, que pode ser de diversas naturezas (biológica, intrapsíquica, interpsíquica, histórica e cultural), e uma forma correspondente à sua dinâmica e ao seu campo de experiência. Por isto, não é possível pensar no desenvolvimento psicológico como um desdobramento natural da matriz arquetípica no plano intrapsíquico.
Alguns arquétipos têm importância grande na formação da nossa personalidade e do nosso comportamento, aos quais Jung dedicou especial atenção. Estes serão descritos a seguir.
A palavra persona, segundo Hall; Nordby (2014), significava originalmente uma máscara usada por um ator e que lhe permitia compor uma determinada personagem numa peça. Na psicologia junguiana, o arquétipo de persona atende a um objetivo semelhante, isto é, dá ao indivíduo a possibilidade de compor uma personagem que necessariamente não seja ele mesmo. Por ser compreendida como a máscara ostentada publicamente com a intenção de provocar a impressão favorável a fim de que a sociedade o aceite, ela também pode ser denominada de arquétipo da conformidade.
Ainda nas palavras de Hall; Nordby (2014, p. 36), “A persona é imprescindível à sobrevivência. Ela nos torna capazes de conviver com as pessoas, […]. Pode levar ao lucro ou a realização pessoal. É a base da vida social e comunitária”. E mais, “O papel da persona na personalidade, tanto pode ser prejudicial como benéfico”.
A Anima e o Animus
Enquanto a persona é qualificada por Jung como a “face externa” da psiquê, por ser vista pelo mundo, segundo Hall; Nordby (2014), a “face interna” recebeu o nome de anima nos homens e animus nas mulheres. Assim, “O arquétipo de anima constitui o lado feminino da psiquê masculina; o arquétipo de animus compõe o lado masculino da psiquê feminina” (p. 38).
Para Jung, de acordo com Hall; Nordby (2014), os arquétipos anima e animus tem valor importante para a sobrevivência e foram desenvolvidos no convívio e interação com o sexo oposto, ou seja, o homem desenvolveu seu arquétipo no relacionamento continuado com mulheres durante muitas gerações, e a mulher desenvolveu o seu arquétipo pelo relacionamento com os homens.
Por fim, cabe destacar que para que a personalidade seja bem ajustada e harmonicamente equilibrada, “o lado feminino da personalidade do homem e o lado masculino da personalidade da mulher devem poder expressar-se na consciência e no comportamento”, assevera Hall; Nordby (2014, p. 38).
O filme é de grande relevância para a compreensão do idoso em uma dimensão biopsicossocial.
O filme “Um senhor estagiário” conta a história de Ben Whittaker, um viúvo e executivo aposentado de 70 anos, que trabalhou durante 40 anos em uma empresa que produzia listas telefônicas. Ao sentir sua vida monótona, o aposentado vai em busca de um novo projeto de vida, e é nesse momento que descobre um programa de estágio voltado para a terceira idade oferecido pela Startup online, uma empresa que vende roupas pela internet e que teve um grande crescimento em seus primeiros 18 meses de funcionamento. Assim, Ben se inscreve no programa, pois enxerga essa oportunidade de estágio como uma possibilidade para mudar a sua rotina e se reinventar.
Ao ser aprovado na seleção para estagiários da terceira idade Ben começa a trabalhar como estagiário pessoal de Jules Ostin, a fundadora da empresa. Jules é uma jovem empresária que leva uma vida bastante atarefada devido às exigências do cargo que ocupa e por gostar de manter certo contato com o seu público de investidores e clientes. Ao conhecer seu estagiário a jovem fica desconfiada e se sente até mesmo desconfortável por achar Ben muito observador. Porém, com o passar dos dias, Ben se mostra um grande aliado por ser muito sábio em suas ações, e Jules passa a enxergá-lo como um amigo.
Outro ponto marcante no filme é o fato de Ben ter conquistado seus colegas de trabalho de forma muito rápida, os quais se mostram disposto a ajudar o idoso nesse novo desafio, bem como se mostram abertos a aprender o que Ben tem a ensinar com suas vivências. O filme se trata de uma comédia leve que tem 109 minutos de duração, e nele podemos analisar alguns aspectos que marcam a vida do idoso na sociedade e que podemos relacionar com o que já foi explanado na disciplina de Psicologia do idoso voltada a uma perspectiva Junguiana aplicada ao 9º período de Psicologia, e dirigida pela professora Ana Letícia Guedes.
De acordo com Anastácio (2019), a psicologia analítica trata-se de um ramo da psicologia, que apresenta conceitos específicos, tais como os conceitos de arquétipos, inconsciente coletivo e processo de individuação, pois, para Jung, a psicologia analítica é singular. Desse modo, utilizaremos alguns desses conceitos como método de análise das problemáticas enfrentadas pelos personagens do filme.
Analisando Ben Whittake,r o personagem principal, podemos afirmar que ele passa pela fase madura, a qual é caracterizada por ser um momento onde a pessoa faz um balanço de tudo o que se passou, além de romper laços com um trabalho formal e redimensionar o seu tempo. Silvestre (2019, p.16) pontua que “é um momento difícil de ser superado, essa reorganização do tempo e do espaço. Viver, como envelhecer, é saber renascer muitas vezes ao longo de uma caminhada pessoal e original.” Os aposentados sentem falta dos amigos e dos papéis desempenhados no trabalho, e por isso, procuram se ocupar (SANTOS E DIAS, 2008). Dessa forma, podemos dizer que Ben fez o balanço de sua vida e redimensionou o seu tempo ao estágio, pois o mesmo o fazia se sentir útil, uma oportunidade de socializar com pessoas de todas as idades e de compartilhar suas experiências.
Como visto durante a disciplina de Psicologia do Idoso, a velhice por muitas vezes é ligada a uma imagem estereotipada representada pela mídia, o cinema por meio de suas exibições e exerce influência nos valores, opiniões e comportamentos da sociedade. Silva (2009, p.14) afirma que “Ser idoso significa que foi possível sobreviver e adaptar-se com mais ou menos saúde mental e, portanto, com maior ou menor bem-estar e desafios específicos de outras fases da vida.” Desse modo, podemos afirmar que o filme aqui retratado é de grande relevância na desconstrução dessa imagem, pois o mesmo apresenta a velhice não como uma questão centrada na faixa etária, mas como um estilo de vida, onde o personagem principal tem 70 anos e uma vida autônoma, um envelhecimento ativo e saudável.
Durante o filme foi possível perceber questões relacionadas aos conceitos estudados dentro da teoria Junguiana, tais como: o processo de individuação, o chamado, o velho sábio, a metanóia etc. Esses aspectos são percebidos nos comportamentos e vivências dos personagens. Um exemplo disso, é a personagem Jules que enfrentava uma grande dificuldade em sua vida profissional por ser julgada inexperiente para comandar uma grande empresa e ao mesmo tempo, via seu casamento em crise, sentia que estava dedicando pouco tempo para seu marido e filha e descobriu que estava sendo traída pelo marido.
É no processo de individuação que acontece a integração do Eu com as demandas arquetípicas, e com as necessidades e exigências impostas pelo mundo externo no qual o sujeito está inserido (PENNA, 2003). Dessa forma, podemos afirmar que Jules estava passando pelo seu chamado, ou seja, por momentos difíceis para os quais teve que experimentar soluções e mudanças e assim, avançar em seu processo de individuação.
Nesse contexto podemos identificar Ben Whittaker como o velho sábio, pois o mesmo representa uma figura sábia e mais vivida para outros personagens do filme, como por exemplo, para os seus colegas de trabalho e para a própria Jules que desabafa sobre seus obstáculos profissionais e problemas pessoais em busca de um direcionamento. Nesse contexto, Anastácio (2019) aponta que o arquétipo idoso apresenta-se na forma de um idoso sábio, ou seja, personagem que lembra a figura paterna ou materna seria alguém que ilumina a vida de outros ao seu redor, pela sua bondade e sabedoria, acrescentando ao personagem, o conhecimento pessoal, além da experiência da vida. Nesse sentido é importante ressaltar que o velho sábio pode ser se expressar em uma pessoa, porém ele também existe dentro de cada um de nós, de forma arquetípica.
Os personagens Ben Whittaker e Jules Ostin nos deixam valiosas lições, como a importância de não abrir mão dos próprios princípios, apontada pelo personagem Ben que mesmo ao ser inserido em um novo ambiente, com novas pessoas e diferentes formas de enxergar o mundo, maneiras essas que por vezes o considerava atrasado ou antiquado, não abriu mão de seus princípios, de sua autenticidade e fez com que os outros o respeitasse em sua singularidade. Além disso, Ben nos mostra a importância de agarrar as oportunidades quando surgem e superar os obstáculos que vem junto com tais oportunidades, pois mesmo sabendo que teria que reorganizar sua rotina, aprender a manusear objetos que não faziam parte de sua vida (como por exemplo, passar e-mails), e enfrentar o preconceito daqueles que enxergam a velhice como um período de estagnação, o personagem foi firme em todos os seus objetivos e obteve sucesso.
Fonte: encurtador.com.br/ctJX0
Outro ponto importante a ser destacado são as provações enfrentadas pelo herói, ou neste caso pela heroína Jules, onde a mesma teve que enfrentar sozinha, investidores que duvidavam da sua capacidade de comandar uma empresa em crescimento, bem como perdoar a traição do marido, pois queria sua família ao seu lado presenciando o seu crescimento profissional, por esse motivo, buscou por mudanças e estabeleceu a comunicação com o seu parceiro incluindo mais ele e a filha em seus projetos de vida e buscando ser incluída nos projetos dele. De acordo com Anastácio (2019, p.138) ‘O arquétipo do herói busca provar o valor para alguém, por meio de atos de coragem, buscando ser forte e competente para realizar feitos que provem o seu valor heroico, em prol da mudança do mundo, para um outro melhor.” Dessa forma, no término dessa jornada, aliás, desse ciclo de provações, Jules conseguiu se manter na liderança de sua empresa e salvou seu casamento, e foi recompensada ao mostrar-se mais sábia e feliz, e preparada para uma nova jornada.
Diante do exposto, conclui-se que a análise do filme “Um senhor Estagiário” é de grande relevância para a compreensão do idoso em uma dimensão biopsicossocial, já que a velhice pode ser uma fase da vida humana cheia de altos e baixos e de grandes realizações pessoais assim como outras fases da vida e do desenvolvimento humano. Dessa forma, é válido apontar que a sociedade deveria se preocupar em preparar-se para a velhice como uma fase ativa, e não com uma visão estereotipada como se observa na atualidade.
FICHA TÉCNICA
UM SENHOR ESTAGIÁRIO
Título Original: The Intern Origem: EUA Ano de produção: 2015 Gênero:Comédia Direção:Nancy Meyers Elenco:Robert De Niro,Anne Hathaway,Adam DeVine,Christina Scherer,Zack Pearlman
REFERÊNCIAS
ANASTÁCIO. Albertina Maria. Os mitos do cinema: Uma análise contrastiva da linguagem imagética cinematográfica, à da Psicologia Analítica de Jung, quanto ao estudo dos arquétipos. Revista Lex Cult, Rio de Janeiro, 2019.
PENNA, Eloisa Marques Damasco. Um estudo sobre o método de investigação da psique na obra de C. G. Jung. 2003. 225 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.
SANTOS, Ivanilza Etelvina dos; DIAS, Cristina Maria de Souza Brito. Homem idoso: vivência de papéis desempenhados ao longo do ciclo vital da família. Revista Aletheia, vol.27, 2008.
SILVA, Sara Gabriela Moura da Rocha Nunes da. Qualidade de vida e bem-estar psicológico em idosos. Universidade Fernando Pessoa, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2009.
SILVESTRE, Maria José Ponciano Sena. Psicologia Junguiana na contemporaneidade: estereótipos sobre velhice como negação do processo de envelhecimento. Faculdade de Ciências da Saúde de São Paulo, 2019.
Beleza americana, filme ganhador de cinco oscars no ano de 2000, (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Roteiro Original e Melhor Fotografia), inicialmente nos deixa em conflito, ficar ao lado do Lester, personagem interpretado por Kevin Spacey, um pai de família “fraco” que se sente atraído pela amiga adolescente da filha, essa sendo o típico estereótipo adolescente: insegura, irritada e confusa, ou ao lado de sua esposa Carolyn, interpretada por Annette Bening, que é extremamente controladora, gananciosa e mãe ausente, formando uma família americana comum e feliz, com certeza o sonho de todos os jovens apaixonados.
Logo no começo, Lester se encanta por Angela, vários fatores contribuem para isso, a insatisfação com seu casamento, a monotonia da rotina, o desejo de se arriscar, a saudades da sua juventude. Esse novo sentimento o faz perceber que nunca é tarde demais para recomeçar, em busca disso, ele pede demissão, começa a se exercitar, compra um carro.
Época conhecida na Psicoterapia Junguiana como processo de Individuação, onde o adulto intermediário reconhece que a vida tem fim e tenta dar voz as atividades que uma vez teve que negligenciar, envolvendo momentos decisivos para o self, e ao contrário das metas do relógio social, não são impostas pela sociedade.
Fonte: https://bit.ly/2D0kIf7
De acordo com a Teoria da personalidade de Sigmund Freud, o Id são os instintos irracionais, as punções selvagens que nascem com o indivíduo, o Ego é responsável por satisfazer esses instintos de forma racional e menos imediatista, o Superego são esses instintos se adequando a vivência em sociedade, percebe-se esses três aspectos no maior conflito do protagonista: o relacionamento com uma adolescente menor de idade, sendo considerado moralmente errado, e para piorar ele é um homem casado e pai de família, esse também foi o motivo de tanto fascínio e inquietação por parte do público. Tal dilema de fazer o que eu quero versus o que a sociedade impõe que eu faça, não afligem somente Lester mas todos os demais personagens.
Lester tem 42 anos, nessa idade, a maioria das pessoas costumam pensar que já viveram tudo que tinham para viver, só resta auxiliar os filhos na jornada deles e esperar a morte. Contudo, Lester foge do padrão socialmente estabelecido para a idade dele, busca reestruturar sua vida e reconstruir projetos, cenário exemplificado na frase de Simone de Beauvoir: “Um futuro limitado e um passado a ser resgatado”. Como também, não há problema algum em seguir o padrão, o problema é quando começa a acreditar que esse é o único caminho, e você não será feliz se não o alcançar.
Fonte: https://bit.ly/2R7L5mw
Angela, amiga da filha de Lester, é o estopim para mudança de vida dele e consequentemente de toda a família. Ao contrário da imagem de popular, destemida e conquistadora que tenta passar, Angela, como a maioria das adolescentes, é inexperiente, insegura com o corpo, e seu maior medo é ser uma garota comum. Carolyn, esposa de Lester, parte do mesmo princípio de Angela: viver uma vida à espera da aprovação alheia, tentando vender uma imagem de suas vidas pessoais, vivendo de aparências e transformando suas vidas em uma grande propaganda.
A personagem Carolyn reveza entre momentos do puro autocontrole, contendo seus sentimentos, á momentos de surtos emocionais. Ela busca fugir da sua própria representação de falsa felicidade, ao ter um caso com um corretor de imóveis famoso, que oferece o que ela aspira: liberdade e identificação, por ele ser alguém ambicioso como ela.
Fonte: https://bit.ly/2CwEIoJ
Filme criado em 1999, à 19 anos atrás, mas não deixa de ser atual. Visto que tal situação vivenciada por Angela e Carolyn é uma característica marcante das relações da sociedade contemporânea. É imensamente perigoso fazer escolhas baseadas no consentimento alheio, isso nos coloca dentro de uma caixa, limitando e oprimindo, ficando cada vez mais longe da autossatisfação e autoestima adequada.
Outro exemplo dentro do próprio filme, e ouso dizer o mais surpreendente ao mesmo tempo que é obvio, é sobre o vizinho Coronel Fitts, sua frieza e crueldade são uma máscara para esconder seus desejos, sua homofobia uma capa para esconder sua homossexualidade. O que reforça a ideia que aquilo que você odeia nos outros é o que você reprime, Sigmund Freud chama isso de Projeção, um mecanismo de defesa no qual você, inconscientemente, se reconhece no outro e passa a repudiar tal característica, retirando uma carga que seria originalmente sua e projetando no outro.
Fonte: https://bit.ly/2JeP3a3
A única beleza da vida é mostrada através do namorado da filha de Lester, que passa seu tempo livre filmando as pessoas, tentando captar sua vulnerabilidade, através das lentes de uma câmera. Ele apresenta uma nova maneira de ver a arte, um olhar peculiar sobre a beleza, que está em coisas simples e até mesmo consideradas feias. Quando ouvimos que temos que aproveitar os pequenos momentos, e admirar a beleza da vida, ainda somos superficiais, por isso há estranheza quando o filme mostra que a real beleza está no vento, na morte de um pássaro, na morte de alguém. Lester percebe isso no momento de sua morte, o sorriso do personagem principal ao saber que a filha estava bem, transmite como ele poderia ter sido feliz se tivesse escolhido ser feliz e não só se deixar levar pela maré.
O que causa maior identificação do público com o filme é o fato de não ter a típica divisão de mocinhos e vilões, representando a realidade nua e crua, com alguns exageros para ressaltar o aspecto cômico e dramático do filme, mostrando que todos têm defeitos e acertos. Através da letargia envolvente sobre a história da vida de Lester, o filme expõe defeitos humanos, como egoísmo, vaidade, mentiras, preconceito, traição, e dramas comuns, sem tentar florear a realidade.
FICHA TÉCNICA DO FILME
Fonte: https://bit.ly/2yX7ETb
Direção: Sam Mendes Roteiro: Alan Ball Elenco:Kevin Spacey, Annette Bening, Thora Birch, Wes Bentley, Mena Suvary Ano:1999
Héstia, para os gregos, Vesta para os romanos, é uma deusa que simboliza os laços familiares, o fogo da lareira e a cidade. De acordo com a mitologia, é filha de Cronos e Reia, sendo uma das doze divindades olímpicas, e irmã mais velha de Demeter, Hera, Zeus, Poseidon, Hades.
Héstia era uma deusa casta. Rejeitou todas as investidas amorosas para se manter virgem, especialmente do belo Apolo e de Poseidon.Jurou virgindade perante seu irmão Zeus, e dele recebeu a honra de ser venerada em todos os lares e de ser incluída em todos os sacrifícios e permanecer em paz, em seu palácio, cercada do respeito de deuses e mortais.
Era representada como uma mulher jovem, com uma larga túnica e um véu sobre a cabeça e sobre os ombros. Havia imagens nas suas principais cidades, mas sua figura severa e simples não ofereceu muito material para os artistas. Sendo a mais velha entre os irmãos, Héstia era a mais sábia e a mais honrada e, além disso, evitava completamente o poder.
Uma Deusa com um temperamento introvertido, cujo enfoque era a interioridade e a espiritualidade. Estava mais para um conceito abstrato, o conceito do fogo, da lareira, do que para uma personificação como os outros deuses. Bastava o fogo para representá-la. Isso explica o fato de ela não ser tomada como uma divindade pessoal.
Conforme Junito Brandão (1986), Héstia é a personificação da lareira colocada no centro do altar; depois, sucessivamente, da lareira localizada no meio da habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. É, portanto, a lareira em sentido estritamente religioso.
Personificação da moradia estável, onde as pessoas se reuniam para orar e oferecer sacrifícios aos deuses. Sendo, adorada como protetora das cidades, das famílias e das colônias.
Héstia simbolizava o lar e o centro sagrado onde se encontra nossa interioridade. Esse significado de interior e centralização faz alusão ao Self. Sendo que o processo de individuação é uma constante busca de relacionamento com esse centro chamado Self, ousi-mesmo. Podendo ter como alegoria a volta para casa, para o lar, para a intimidade mais profunda.
Outro aspecto interessante, é que os antigos costumavam se reunir ao redor do fogo da lareira para contar histórias. Esse círculo remete a umamandala. E reunir-se ao redor de um centro contando “causos” nada mais é que um acesso ao inconsciente coletivo.
Enquanto arquétipo, então, pode-se afirmar que Héstia representa a atenção para o centro espiritual da personalidade.Um arquétipo de centralização interior.
Portanto, pode-se afirmar que a interiorização é extremamentenecessária para a busca do si mesmo. Uma vez que o processo de individuação é bastante solitário. Não dá para individuarmos em meio a uma multidão, ou em um barzinho.
Portanto, Héstia vem nos mostrar, por meio do seu mito, que momentos de solitude são essenciais para esse desenvolvimento. Apesar de não ser uma deusa aventureira como Artemis e Atena, Héstia compartilha com essas duas deusas o título de virgem. Ou seja, ela não era vitimada pelas divindades masculinas ou pelos mortais. Isso lhe confere um caráter de inteireza, unicidade e integridade. Outra referência à totalidade. Estar inteiro em si mesmo, é a meta da individuação.
Outra característica importante dessa deusa é a sua ligação com o fogo. Na antiga Roma, as Vestais (sacerdotisas da deusa Vesta, a Héstia romana), deveriam permanecer virgens durante todo o sacerdócio, que durava cerca de 30 anos. E durante o sacerdócio a principal atividade desenvolvida por elas, era a de manter o fogo sagradoaedesvestae, localizado ao lado da Casa das vestais e ao sudoeste do Fórum Romano, sempre aceso.
O fogo é o representante das paixões, das fortes emoções que queimam a pele, do desejo, da libido. O fogo queima, reduz às cinzas. Também é um elemento que opera no centro das coisas, pois écentrado em si mesmo. Além disso, ele está em constante evolução, pois não consegue ficar “parado”.
O elemento fogo é um dos mais frágeis dentre os quatro elementos. Basta observá-lo e perceber que tanto a água, quanto o ar e a terra podem eliminá-lo. É o único elemento que pode ser extinto. Portanto, vemos um paradoxo no fogo, além de ser extremamente destrutivo ele possui em si a fragilidade.
Na Alquimia, o fogo estava ligado àoperação conhecida como Calcinatio. Cujo processo químico consiste no intenso aquecimento de um sólido a fim de retirar dele toda a sua água.
Retirar toda a água significa evaporar as emoções que não servem mais. É uma renovação das emoções, pois a água parada cria limo, atrai insetos e perde, portanto a sua pureza, contaminando a psique com o veneno da emoção não trabalhada. Mas como um elemento que simboliza emoções fortes, destrutividade, libido e até sexualidade pode estar relacionado a uma deusa comedida, virgem e pura?
Parece incoerente, mas não é. Edinger(1995) diz que o processo da Calcinatio vem da frustração dos desejos famintos e instintivos. Somente a provação do desejo frustrado pode levar ao desenvolvimento da personalidade.
Portanto, suportar a frustração do desejo (representado em Héstia pelo desejo sexual) leva a interiorização e ao centro de si mesmo. A queima dos afetos pelo fogo leva a uma desidentificação com eles.
A pureza de Héstia nos lembra que o fogo destrói tudo o que é impuro, sendo então,o arquétipo de purificação. A purificação pela compreensão, levando a conscientização dos instintos até então inconscientes, os levando então a sua forma mais espiritual, pela luz da verdade e da consciência.
Héstia, portanto, simboliza o significado da personalidade, conferindo um ponto de referência interior que permite ao indivíduo permanecer firme em meio da confusão, desordem e afobação do dia-a-dia. Com Héstia entramos em contato com a luz e o calor interior nos sentindo aquecidos pelo fogo espiritual do si-mesmo.