A maioria dos genocídios ao longo da história se deu por meio de ações declaradamente violentas, sangrentas e por uso da força. Já o genocídio Bolsonarista acontece sem que os assassinos precisem sujar suas mãos ou se exporem. Basta não fazerem nada, basta deixarem que aconteça. Mesmo as ações utilizadas para acelerar o processo, são sutis e singelas. Podem até serem confundidas com um pequeno engano, uma piada, uma ignorância inocente ou uma preocupação legítima: “esquecer” do uso da máscara, compartilhar ou inventar mentiras, falar uma bobagem qualquer usando a si próprio como exemplo de validação, indicar terapêuticas aparentemente inofensivas, criticar o isolamento social em prol do direito ao trabalho e a renda.
O genocídio Bolsonarista não precisa provocar muito barulho e nem se colocar na cena das mortes; é limpo e covarde. Sua perversão e crueldade está sobretudo, na sutileza e na invisibilidade As pessoas podem ser enviadas para a morte com uma “inocente” mensagem de WhatsApp ou um vídeo na TV.
Hannah Arendt, em sua leitura sobre o julgamento de Eichmann por crimes de genocídio contra os judeus, afirmou que não foi necessário um monstro cruel e perverso para instrumentalizar as atrocidades comandadas por Hitler e o Nazismo, durante o Holocausto. Bastou um burocrata obediente, sensato e disciplinado, disposto a cumprir ordens e fazer o seu trabalho de modo eficiente. Bastou que Eichmann cumprisse seu papel e se deixasse levar pelo que Arendt chamou de “banalidade do mal”. O que não faz dele menos responsável, vale salientar.
Fonte: encurtador.com.br/uvA08
O Brasil de 2020 e 2021 está infestado de Eichmanns. São médicos e instituições médicas que não se pronunciam frontalmente contra o negacionismo e o uso indiscriminado de medicamentos e terapêuticas sem prescrição devida. São Universidades, instituições de ensino e pesquisa, cientistas e pesquisadores que silenciam diante de um governo que não respeita a ciência e a invalida. São empresários e comerciantes que fazem manifestação pelo direito de colocar seus trabalhadores e clientes em risco, ao invés de se mobilizarem pela vacinação em massa. São oportunistas de toda ordem que fecham os olhos para aceitarem cargos, privilégios e promoções dentro desse governo. É o Centrão que insiste em apoiar um governo sem condições morais, éticas, intelectuais, políticas e nem mesmo estéticas, para governar nosso país. São homens da lei que se escondem atrás da legalidade e da burocracia, para promoverem mais mortes. São os cínicos que assistem o massacre do alto de seus privilégios ricos e brancos, sem nada fazer. São os veículos de comunicação que se escondem atrás da “isenção jornalística”, a fim de sustentarem os discursos que lhes convém. São os artistas, os comunicadores e influenciadores de toda ordem que “não querem se meter em política”. São padres, pastores, guias, mestres e líderes religiosos que usam o nome de Deus para matar sem culpa. São todos que, munidos de algum privilégio, influência ou poder, decidem apenas lavar suas mãos, nesse caso, literalmente. E, finalmente, temos ainda os débeis, os deliroides e os idiotas que parecem gozar e se gabar, enquanto seguem convictos e crentes, em direção à própria morte e a dos seus.
O Brasil caminha a passos largos para 400 mil mortes, e sabemos que muitas delas poderiam e podem ainda serem evitadas. Bolsonaro não é responsável por todas essas mortes sozinho, deverão ser julgados juntos com ele, todos aqueles que, como Eichmann decidiram apenas “contribuir com sua parte para o nosso belo quadro social”.
Então, se você se percebe anestesiado pela “banalidade do mal”, mas não quer ser cumplice de todas essas mortes, desperte, se mova e grite: FORA, BOLSONARO GENOCIDA!
O que é a morte? Para muitos o fim, para outros o apenas o começo. O fato é que ela é inevitável para todos, independentemente da espécie, povos, línguas ou classe social. Ela não se importa, em como, os indivíduos se comportam. Se são bons, ou ruim, se são “puros” ou “impuros”. O “fim” faz parte da regra do jogo, e não há nada que o ser humano possa fazer para detê-la. “Só a morte significa que nada acontecerá daqui por diante, nada acontecerá com você, ou seja: nada que você possa ver, ouvir, tocar, cheirar, usufruir ou lamentar. É por essa razão que a morte tende a permanecer incompreensível para os vivos” (BAUMAN, 2008, p. 44).
O autor considera que o medo da morte é um processo inato ou original de todas as pessoas. A morte é um conteúdo acessível a consciência, e constantemente se faz presente na vida de todos da espécie humana, causando em alguns um medo incontrolável. “[…] o medo que se origina, não da morte batendo a porta, mas de nosso conhecimento de que isso certamente ocorrerá, mais cedo ou mais tarde […] (BAUMAN, 2008, p. 46).
Fonte: http://zip.net/brtMZW
A morte pode ser descrita de forma diferente através do processo cultural e das crenças, pois alguns, tendem a vê-la como apenas uma passagem, no qual somente o corpo físico morre e, a alma é imortal, ou seja, vive para toda a eternidade. “[…] não vão deixar o único mundo que existe para se dissolver e desaparecer no submundo da não existência, apenas se mudarão para outro mundo, onde continuarão existindo […]” (BAUMAN, 2008, p. 46). Para estes o medo pode não existir ou pode ser menor. Para outros o medo do desconhecido a incerteza do que poderá ou não acontecer após a morte.
Segundo Simonetti (2003, p. 14) “A imortalidade é algo intuitivo na criatura humana. No entanto, muitos têm medo, porque desconhecem inteiramente o processo e o que os espera na espiritualidade”. Durante todo o ciclo vital relações são estabelecidas e vínculos são criados. Com a chegada da morte de algum ente querido esses laços físicos são desfeitos, porém podem nunca serem esquecidos, pois quem morre levará consigo “parte” de pessoas e consequentemente deixará também “partes” suas, para outros. Assim os que sobrevivem vão ressignificando ou não suas vidas.
O medo pode provocar diversas reações físicas e psicológicas e também ser descritos de várias maneiras, no entanto o autor o descreve como:
Os medos que disseminam são incuráveis e, na verdade, inextirpáveis: chegaram para ficar-podendo ser suspensos ou esquecidos (reprimidos) por algum tempo, mas não exorcizados. Para esses medos não se encontrou nenhum antídoto nem é provável que se venham a inventar algum. Eles penetram e saturam a vida como um todo, alcançam todos os recantos e frestas do corpo e da mente, e transformam o processo da vida num ininterrupto e infinito jogo de “esconde-esconde” (BAUMAN, 2008, p. 44).
Fonte: http://zip.net/bwtMw8
O MEDO E O MAL
As formulações para o conceito do que seria o “mal” têm sido feitas no decorrer dos tempos. Bauman (2008) pontua as variações do termo, relacionando-o a condutas perversas. No entanto, aponta que não é possível explicá-lo totalmente, tampouco evitá-lo. Considerando algumas catástrofes naturais como manifestações do “mal”, destaca-se seu caráter imprevisível, reforçando sua inevitabilidade e imprevisibilidade. No entanto, questiona-se o mal advindo do humano, em termos de prenúncio e consequências.
O sociólogo polonês enfatiza a análise de Hannah Arendt quanto à banalização do mal. Quanto mais as práticas cotidianas são racionalizadas, maior a tendência de não pensar acerca da natureza das tais. E nesse ponto a opinião de Bauman é ratificada, pois salienta que há condições apropriadas ao surgimento de condutas inclinadas ao mal. Observando-se tais circunstâncias, chega-se a um ponto crucial: em vista da sua inevitabilidade, há que se reconhecer que não apenas a natureza, mas o humano pode dobrar-se ao mal.
Ainda que não se discuta ou se reconheça a maldade como intrínseca ao ser humano (HOBBES, 2008 apud SOUSA, 2013), Bauman relata a possibilidade evidente de que mesmo o mais “normal” incorra em atos perversos. Para Correia (2005, p. 87-88), Pode optar por isso
Na busca por identificar o fundamento da propensão para o mal no homem, Kant se vê diante da dificuldade de ter de conciliar natureza e liberdade. Com efeito, se se compreende o mal como decorrente de algum condicionamento natural, ainda que seja uma fraqueza, necessariamente o homem seria inimputável, pois não poderia ser considerado efetivamente responsável (na medida em que não seria livre) pelas ações que desencadeasse. Kant, por razões óbvias, busca evitar uma tal compreensão, sustentando que a propensão para o mal “é uma tendência deliberativa e, como tal, completamente distinta de um impulso natural ou algo assim”.
Fonte: http://zip.net/bqtNZb
Entende-se, portanto, que o medo constante na contemporaneidade cerca o fato de que ninguém pode receber confiança. Uma vez que a configuração atual é instável, acrescente-se a possibilidade de alguém poder, deliberadamente, inclinar-se ao mal. E a despeito das consequências dramáticas do “mal” da natureza, Bauman enfatiza que o produto do mal humano pode ser tão catastrófico quanto o anterior.
O HORROR DO INADMINISTRÁVEL
Bauman inicia o terceiro capítulo de sua obra referenciando ideias de Jean-Pierre Dupuy, importante filosofo moderno e ao desenrolar deste capítulo, Bauman reforça a ideia de que a humanidade está doente e a beira de um colapso, enfatizando que “A humanidade tem agora todas as armas necessárias para cometer o suicídio coletivo, seja por vontade própria ou falha – para aniquilar a si mesma, levando o resto do planeta à perdição” (BAUMAN, 2008, p. 97-99).
A corrida contra o tempo, disputas de poder, busca por status, longas distâncias e pouco tempo, excesso de trabalho e sobrecarga emocional se debruçam sobre a vida do homem moderno com o rótulo de globalização, sobretudo esse evento e sub-eventos trazidos pela globalização se chocam com os valores morais carregados de maneira intrínseca por cada um, e Bauman de maneira esplendida reforça que: “a civilização deve seu potencial mórbido (ou mesmo suicida) às mesmíssimas qualidades de que extrai sua grandeza e seu glamour: a aversão inata à autolimitação, a transgressividade inerente e o ressentimento e desrespeito em relação a todas as fronteiras e limites” (BAUMAN, 2008, p. 100-101).
Ou seja, de onde os homens extraem sua couraça de poder terreno é também a fonte de seus demônios doentios que afetam e contaminam a humanidade, como uma dialética onde de um lado encontram-se os prazeres e ganhos como dinheiro, conforto, luxo, status, reconhecimento social e poder, em contrapartida temos a fadiga, avareza, ganancia, esgotamento psicológico entre outros fatores e agravantes negativos, como uma dialética grega de apolíneo e dionisíaco.
Fonte: http://zip.net/bftMZz
Para manter a retroalimentação entre as partes, Bauman (2008) traz nesse capítulo o termo detours que significa desvio, ele também aborda o significado deste termo dentro da modernização, que segundo ele tem a ideia de uma satisfação ou recompensa temporária, ou seja, para evitar o esgotamento total ou um impacto extremamente negativo em si mesmo ou no outro, há uma breve e temporária satisfação, acontece um momento de compensação para aquele provável dano, então a partir dessas breves recompensas, a humanidade se compra e se vende para uma recompensa ilusória e breve.
Ao decorrer do capítulo, Bauman (2008) traz impasses que denunciam até que ponto o homem é capaz de se submeter, e traz referencias de obras de outros autores acerca disso, mostrando-nos de forma objetiva e clara como a persuasão e a busca por controle, poder e domínio conduzem a vida da humanidade.
O TERROR GLOBAL
Bauman afirma que com a globalização, surgiram aspectos negativos que resultaram em medos, inseguranças e incertezas na sociedade. A “abertura” da sociedade, expressão de Karl Popper como coloca Bauman (2008 p.126), teve como efeito colateral a “globalização negativa” que demonstra um cenário de irregularidades e anormalidades que se tornam regras. O autor descreve que a globalização é altamente seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da coerção e das armas, do crime e do terrorismo, todos esses desdenham a soberania nacional e desrespeitam quaisquer fronteiras entre os Estados.
O planeta globalizado, comenta Bauman (2008, p.127), ‘habitado por sociedades forçosamente ”abertas” a segurança não pode ser obtida”, o autor acrescenta que consequentemente a “globalização negativa” seria a causa da própria injustiça e as origens dos nossos medos estão relacionadas com a ordem política e a ética. Convivemos com incertezas e com medo em nossos dias.
Fonte: http://zip.net/bhtNbY
Costa (1998) apud Santos (2003) coloca que o medo seria fronteiriço entre sensações e sentimentos: “angústia, mal-estar, desconforto são eventos afetivos que podem ser descritos como sentimentos ou como sensações, dependendo de critérios adicionais como maior ou menor reflexividade, maior ou menor modificação dos estados físicos dos sujeitos etc.”
Conforme coloca Frattari (2008), “ não há a possibilidade sequer de se falar em termos de ‘riscos’, uma vez que estes podem, de acordo com sua definição ser calculados e, assim, minimizados ou evitados”. Bauman (2008,p.129) fala que riscos são importantes desde que continuem calculáveis e passíveis de uma análise de custo-benefício, a preocupação aos planejadores da ação são os que podem afetar os resultados, numa perspectiva relativamente curta de espaço e tempo.
O grande desafio do século atual, segundo Bauman (2008 p.166), é a aproximação do poder e a política de forma global. Com a globalização negativa, o poder e a política se desenvolveram em direções opostas. As ações não podem ser locais e sim globais.
Bauman (2008 p.167) afirma que: “…o medo é um dos aspectos mais representativos nas sociedades abertas atualmente, com isso a insegurança e a incerteza nos tornam frágeis e com um sentimento de impotência”. Esse sentimento de impotência persisti, porque não percebemos estar no controle, seja sozinhos, grupos ou coletivamente dos assuntos que são pertinentes a nós, como da mesma forma em relação ao controle de assuntos do planeta. Bauman acrescenta que é preciso criar ferramentas que ajudem a solucionar os males globais e assim recuperar o controle de nossas forças.
Fonte: http://zip.net/bctMGz
TRAZENDO OS MEDOS À TONA
Segundo autor, em sua busca por saber sobre os medos advindos da modernidade líquida, surgidos da insegurança e consequentemente nutridos por ela, sugere que os países desenvolvidos traz uma expectativa de segurança, de estarem protegidos, nessa parte desenvolvida, os mesmos são considerado o povoado mais seguro, se empregando de meios eficazes de se protegerem, concomitantemente, estão usufruindo de todas as três fachadas em que se agarram os combates em conservação da existência: em oposição a potência da natureza, em oposição ao enfraquecimento inato de nossos corpos e em oposição às ameaças da violência imediatas dos indivíduos.
Contrariando o supracitado, é neste cenário de conforto que o caos se instala, a obsessão por segurança é inevitável, o medo toma conta dessas pessoas, e os torna deslumbrados por tudo que envolve segurança e proteção. (BAUMAN, 2008).
A promessa moderna de evitar ou derrotar uma a uma todas as ameaças à segurança humana foi até certo ponto cumprida – embora não a promessa reconhecidamente exagerada, altamente ambiciosa e com toda probabilidade impossível de cumprir, de acabar com elas de uma vez por todas. O que, no entanto, flagrantemente de se materializar é a expectativa de liberdade em relação aos medos nascidos da insegurança e por esta alimentados (BAUMAN, 2008, p.169).
Fonte: http://zip.net/bmtMVX
O medo por sua vez, traz na sua raiz a insegurança, a sociedade vive no mais completo desespero, uma busca desenfreada por tudo que possa garantir sua segurança, ou seja, o pânico se instalou na contemporaneidade. Cabe ressaltar que os seres humanos não são isentos de suas responsabilidades, a formas egocêntricas e desumana de ser traz consigo uma participação nesse quadro alarmante de medos sucedidos das incertezas. (BAUMAN, 2008).
Podemos dizer que a variedade moderna de insegurança é marcada pelo medo principalmente da maleficência humana e dos malfeitores humanos. Castel atribui à individualização moderna a principal responsabilidade por esse estado de coisas (BAUMAN, 2008, p. 171).
A humanidade está em volta de seus próprios interesses, a individualidade se instala em maior grau na sociedade moderna.
[…] em nossa sociedade, por trás do medo e da violência, há, na verdade, uma profunda insegurança em relação às transformações que a modernidade trouxe em seu bojo: individualismo, competitividade, perda do status social, perda dos referenciais comunitários, instabilidade emocional e material, desencantamento religioso e, em última instância, as consequências da globalização negativa. Nesse sentido, é importante definir e compreender o estágio atual da modernidade e os elementos que dela decorrem, obscurecendo nosso cotidiano e nossas vidas. (DAMIÃO, 2012, p .26).
O medo paralisa, faz crescer nossas defesas, o que é inevitável diante dos acontecimentos inerentes a espécie humana e dos adventos da contemporaneidade, consequentemente os medos vem à tona.
Fonte: http://zip.net/bvtNrz
O PENSAMENTO CONTRA O MEDO
Bauman termina o livro não fazendo um resumo do que foi disposto nos capítulos anteriores, ou mesmo se coloca alheio a situação, retirando sua responsabilidade do processo. Mas se coloca e também os demais produtores de reflexão social, definido por ele como os “intelectuais”. Em prática, o pensamento contra o medo é justamente usar do pensar para combater os medos que assolam a sociedade pós-moderna. Por isso a importância dos pesquisadores e produtores de conhecimento intelectual buscarem formas de idealizar novos modos positivos e esperançosos.
Para tanto é preciso que tomem consciência do poder que possuem. Em toda a história os sábios sempre davam os conselhos, porém não o executavam, sendo assim nunca tiveram o devido conhecimento e reconhecimento que tinham no processo.
Os intelectuais nunca confiaram realmente em seus poderes de transformar o mundo de carne e osso. Precisavam de alguém para empreender a tarefa que, insistiam, deveria ser realizada. Alguém com o poder real de fazer as coisas e assegurar que continuassem sendo feitas (o conhecimento não necessita do poder para mudar o mundo? Da mesma forma que o poder precisa do conhecimento para mudá-lo da maneira certa e com o propósito correto?). (BAUMAN, 2008, p. 210).
Sendo assim deve-se levar em conta a imensa responsabilidade no combate aos medos, assim como preconceitos, mentiras ou injustiças que assolam a vida dos sujeitos e das relações contemporâneas, não se mostrando assim indiferente a tais mazelas sociais afim de redesenhar a “possibilidade de um atalho para um mundo mais adequado à habitação humana que se perdeu de vista e parece mais irreal do que antes” (BAUMAN, 2008, p. 221).
Sendo assim, o que se espera é essa união entre os intelectuais e o povo, de modo a juntos caminharem em um processo terapêutico, e assim ressignificando a “humanidade e seu conjunto”.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. MEDO LÍQUIDO. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.
CORREIA, Adriano. O conceito de mal radical. Trans/Form/Ação, Marília, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732005000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 mai. 2017.
SOUSA.
DAMIÃO, Abraão Pustrelo. Modernidade, Medo e Violência: Reflexões Teóricas e o Caso de Marília/SP. 2012. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Pos-Graduacao/CienciasSociais/Dissertacoes/DAMIAO_A_P_ME_2013.pdf.> Acesso em: 21 mai. 2017.
FRATTARI, Najla Franco. Insegurança e medo no mundo contemporâneo: uma leitura de Zygmunt Bauman. Sociedade e Cultura, v. 11, n. 2, 2008.
SANTOS, Luciana Oliveira. O Medo Contemporâneo: Abordando Diferentes Dimensões. Psicologia Ciência e Profissão, 2003, 23 (2), 48-55
SIMONETTI, Richard. Quem tem medo da Morte? 3a Edição – Ceac Editora -Bauru-SP Janeiro/2003 <http://bvespirita.com/Quem%20Tem%20Medo%20da%20Morte%20(Richard%20Simonetti).pdf.> Acesso em 20 mai. 2017.
SONIELSON L. Vamos falar da maldade? (En)Cena. Disponível em: <http://encenasaudemental.com/comportamento/insight/vamosfalar-da-maldade/>. Acesso em: 22 mai. 2017.
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Drácula: justificação do mal e “demonização” do outro
“Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra” Hannah Arendt
Pela terceira semana em cartaz e líder de bilheteria no Brasil, o hollywoodiano “Drácula – A História Nunca Contada”, do diretor Gary Shore, tenta repaginar as origens lendárias do famigerado vampiro da Transilvânia. Historicamente falando, parece ter exagerado na dose e, de quebra, gerado visões distorcidas e/ou no mínimo excessivas que, em alguma medida, reforçam estigmas e preconceitos amplamente usados pela indústria cinematográfica norte-americana quando o assunto é a cultura mulçumana (outro longa que também fez esta abordagem foi “300”). A investida, em alguma medida, reflete o atual momento histórico de “retorno do medo” com o avanço do Islã sobre a Europa.
Na estória original, escrita no século XVII pelo irlandês Bram Stoker, Drácula é associado ao mítico Vlad III, Príncipe da Valáquia (região da Romênia), conhecido por evitar o avanço das tropas do Império Otomano (sob a égide do Islamismo) pela Europa Oriental, no século XIII. Vlad é lembrado como um dos mais valentes guerreiros de seu tempo, e que com a mesma energia com que erguia mosteiros cristãos, também empalava¹ centenas de seus detratores, notadamente os mulçumanos que se aventuravam a “islamizar” o leste europeu (na outra “frente”, a oeste, entre Marrocos e Espanha, os seguidores do profeta Maomé foram expurgados ou massacrados pela Inquisição). Voltando ao príncipe Vlad, ficou conhecido “por sua política de independência em relação ao Império Otomano” e “por seu sadismo” na forma como tratava os inimigos turcos, fonte de ameaça ao Sacro Império Romano-Germânico.
No romance original de Stoker, Drácula é uma espécie de morto-vivo que se alimenta de sangue humano e que, por onde passa, deixa um rastro de morte e destruição. Na adaptação para “A História Nunca Contada”, o diretor Shore e os roteiristas Matt Sazama e Burk Sharpless dão uma outra conotação à Vlad. No filme o protagonista/vampiro é apresentado como um jovem (Luke Evans) que, quando criança, teve que ser entregue por seu pai para aprender a guerrear e servir aos arqui-inimigos turcos. Alguns anos depois, ao retornar à Transilvânia, é declarado príncipe e “governa em paz por 10 anos”. A tranquilidade é quebrada quando o rei Mehmed (Dominic Cooper) “mais uma vez exige que 100 crianças sejam entregues”. Se opondo à oferta dos garotos e disposto a fazer qualquer coisa para vencer a guerra contra os turco-otomanos, Vlad “recorre a um ser das trevas (Charles Dance) que vive pela região. Após beber o sangue dele, se torna um vampiro e ganha poderes sobre-humanos”.
A “inversão” (ou adaptação, diriam alguns) se dá justamente nesta mudança de perspectiva em relação ao próprio protagonista. De “arma mortífera e sanguinária”, Vlad (Drácula) passa a ser representado como o herói/guerreiro que sacrifica a própria vida para defender não apenas a sua família (já que o filho estava entre as 100 crianças requisitadas pelo rei Mehmed), como também seus súditos e o Cristianismo. O mal então é “abonado”, para que se evite a invasão e a violência do inimigo, num movimento que se assemelha a certas vertentes do utilitarismo (onde os fins justificam os meios). Esta posição, no entanto, não passa despercebida dos estudiosos da Ética, notadamente em relação à deontologia cristã, para quem há “princípios, fundamentos e sistemas da moral” que são inalienáveis, sendo que “não matar” é um destes preceitos, o que se coloca frontalmente em oposição às práticas adaptadas pelo protagonista.
A face perversa de Drácula, desta forma, é dissolvida pela “justificação” da violência como legítima defesa, num enredo dualista desvirtuado em que, sob a égide do príncipe da Transilvânia estão “os bons”, e do lado turco está a encarnação da maldade. Este argumento, por si só, encontra contrapesos na própria crítica à teologia cristã, notadamente entre aqueles que dizem que, se Deus é onisciente e onipotente, Ele necessariamente teria que ser o autor do mal. Caso contrário, não lhe seriam atribuídas uma destas características. Este é um embate antigo, que se arrasta desde os primórdios do Cristianismo, passando pela Patrística, pelas fortes críticas de Nietzsche no século XVIII e, mais recentemente, pelas contínuas tentativas de negação da Metafísica.
Além da “justificação do mal”, que é sempre representado “pelo outro”, aquele que invade e que violenta (como se esta condição, à época [há quem defenda que até hoje é assim], não fosse comum à boa parte da espécie humana, diria Hobbes em “Leviatã”) deve ser rechaçado, mesmo que para tanto se utilize das mais espúrias “armas”, ou dos mesmos mecanismos de violência utilizados pelos próprios inimigos.
O historiador Jack Goody (no livro “O Roubo da História – Como os europeus se apropriaram das ideias e invenções do Oriente”), diz que o problema é quando se nega a história e, a qualquer custo, tentam reinventá-la, definindo unilateralmente os papéis de vilão e mocinho. Assim, sob o ponto de vista eurocêntrico, é melhor rotular tudo “o que é nosso como bom, e o que representa o outro como atrasado”. Neste esforço, diligentemente se escondem fatos reveladores, como a grande contribuição do Oriente para a preservação dos escritos atribuídos a Aristóteles, que viria a se tornar, ironicamente, a base da ética e da teologia cristã. Isso, obviamente, não foi mostrado no filme.
Goody lembra que enquanto a Europa estava mergulhada na Idade Média, marcada por resistente oposição à nascente investigação científica e a qualquer filosofia que se destoasse da “oficial”, na região do Império Otomano os mulçumanos tendiam a conviver com mais flexibilidade com estes diferentes vieses. Boa parte da obra de Aristóteles, por exemplo, foi preservada pelos persas.
Na estratégia de apropriação histórica e de se colocar como baluarte do conceito comum de modernidade (não-arcaico, “progressista”), para que haja a “demonização do outro”, no caso em questão dos mulçumanos, como bem destaca Goody, cria-se o suposto antagonismo histórico entre Cristianismo e Islamismo, “como se no Ocidente não tivesse sido o Iluminismo o grande catalisador das profundas mudanças experimentadas na região”.
Como o “generalismo” é uma burrice, diria Sêneca, nem todos os mulçumanos são violentos, assim como nem todo cristão é pacífico. Mas ao analisar a cobertura midiática e a produção acadêmica sobre o Oriente (em especial o médio oriente), argumenta Goody, a impressão que se têm é que “todo” aquele povo ainda vive sob a influência exclusivamente do passado, “numa tentativa de generalizar os modos de vida e de afetos, nivelando o povo árabe em particular – e os muçulmanos em geral – como avessos ao progresso, à inovação e à qualquer tipo de liberdade, uma espécie de ‘bárbaros’ do nosso tempo”. Hollywood, em alguma medida, reforça estes estereótipos.
Alguns historiadores, filósofos e sociólogos, por outro lado, tentam equalizar e desfazer estes generalismos, mostrando que a mesma linha de “desenrolar” histórico ocorrida no Ocidente também se deu no Oriente (o que parte dos historiadores nega, ao dizer que no Oriente apenas o Japão desenvolveu as mesmas características, mais como excepcionalidade do que como regra). De qualquer forma, é bom lembrar que este assunto está longe de ter uma visão comum, já que a própria ideia de igualdade (de desenlaces históricos, por exemplo), como bem pontua o filósofo Luis Felipe Pondé, já é um contrassenso lógico. No entanto, o oposto disso seria cair num extremo marcado pelo preconceito e pelo etnocentrismo.
Tendo em vista uma análise da psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl (ao citar Rimbaud), o “outro” desmente “a pretensão soberana do eu individual”. Assim, o “nós contra eles” se desmorona ao passar por um detalhado processo de investigação. Kehl lembra que qualquer ser humano é dotado de características que se costumam ser agrupadas e identificadas como “traços de humanidade”. É também sobre isso que trata a filósofa Hannah Arendt, ao dizer que “a suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir é um elemento indispensável da dignidade humana”, e que “se o homem soubesse que o mundo acabaria quando ele morresse, ou logo depois, esse mundo perderia toda a sua realidade”, e os conflitos e divisões, naturalmente, tenderiam a dissipar-se, mesmo na aparente pluralidade. Quiçá isso ocorra um dia!
Nota:
Empalar vem de empalamento ou empalação (do latim palus, estaca ou mastro). Trata-se de um “método de tortura e execução que consistia na inserção de uma estaca pelo ânus, vagina, ou umbigo até a morte do torturado. A vítima, atravessada pela estaca, era deixada para morrer sentido dores terríveis, agravadas pela sensação de sede. Esse tipo de tortura, altamente cruel, foi vastamente utilizada por diversas civilizações no mundo inteiro, sobretudo da Arábia e Europa”. Fonte: Wikipédia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Empalamento – Acessado em 12/11/2014.
Título Original: Dracula Untold Direção: Gary Shore Duração: 92 minutos Gênero: Ação Drama Fantasi País de Origem: Estados Unidos da América Classificação: Não recomendado para menores de 14 anos Ano produção: 2014