O processo de consolidação da Reforma Psiquiátrica

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A reforma psiquiátrica não muda só o modo assistencial, mas muda também a ética, a política e a cultura em relação à saúde mental

A Reforma Psiquiátrica está diretamente ligada a figura de Franco Basaglia, fundador de todo processo da reforma psiquiátrica italiana. Em 1961 Basaglia assumiu o posto de diretor do manicômio da Itália e, juntamente com sua equipe, transformou o hospital em uma comunidade terapêutica, propondo desarticulação do manicômio, com o intuito de reinserir o doente mental na sociedade. 

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A reforma psiquiátrica não muda só o modo assistencial, mas muda também a ética, a política e a cultura. Diante deste cenário, pessoas se uniram dando vida a diversos movimentos políticos sociais, com o intuito de dar voz a quem não tinha. 

(…) um amplo movimento sustentado por numerosas organizações de base: o movimento estudantil – importantíssimo para a década- e o dos sindicatos dos trabalhadores. Foi um movimento aglutinado por um lema radical: um ‘não’ redondo ao manicômio. A reprovação dos manicômios uniu-se a crítica a todas as instituições de marginalização: os reformatórios, os presídios, os albergues da assistência social e as instituições que sustentavam a fachada ideológica e moral do sistema social: a família, a escola e a fábrica (DESVIAT, 1999, p. 43)

A consolidação da reforma psiquiátrica aconteceu devido ao Congresso de Psiquiatria Social, realizado em Bolonha em 1964, pois se chegou à conclusão de que a busca pela cidadania dependia de uma verdadeira reforma sanitária capaz de implantar um sistema nacional de saúde universal e equitativo. Em 1978 foi criada a Lei 180, que decreta a extinção dos manicômios, proíbe a construção de novas instituições psiquiátricas e determina a construção de novos serviços comunitários, territoriais, garantindo tratamento contínuo. Assim como a obrigação das internações serem realizadas em leitos de hospitais gerais. 

Outra questão importante abordada pela lei 180 foi buscar abolir o conceito de periculosidade social associada à loucura, estabelecendo que nos casos de internação obrigatória o juiz deveria tutelar a salvaguarda dos direitos civis dos doentes mentais, estando sujeita a revisão judicial depois de dois e após sete dias, tendo grande variedade de recursos para apelação (DESVIAT, 1999, p. 45). 

Se antes o doente mental ainda podia desfrutas das ruas e gozar de uma relativa liberdade, no sec. XIX o doente mental passou a ser tratado em Santas Casas de Misericórdia (RESENDE, 1987, apud DEVERA e COSTA-ROSA, 2007). No entanto, em 1830, médicos da então Academia Imperial de medicina passaram a reivindicar a responsabilidade em tratar a loucura, fomentando a opinião pública para a construção de um Hospício para Alienados, tecendo críticas aos cuidados prestados nas Santas Casas de Misericórdia. Seguindo o modelo de Pinel, foi construído o Hospício Pedro II, que passou a ser lugar de isolamento social, conforme os pressupostos da especialidade médica recém-criada. Desta maneira, surge o modelo asilar no Brasil.

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Com a reforma psiquiátrica, surge uma crise na psiquiatria clássica. Ante o objeto era o tratamento da saúde mental, que passou então a ser a promoção da saúde mental, o que resultou em novas psiquiatrias (Amarante, 1995). Em 1886, Teixeira Brandão, deputado e então psiquiatra diretor do Hospício Nacional de Alienados, consegue a aprovação da primeira lei brasileira do alienado, considerando o hospício o único lugar aceitável para o tratamento da loucura. O que fez com que a figura do psiquiatra fosse vista como a de maior autoridade e detentora do saber (Machado et al, 1978, apud Devera e Costa-Rosa, 2007). A assistência psiquiátrica no Brasil passa a adotar o modelo asilar. 

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Em 1901 fundou-se o Juqueri, como proposta de asilamento científico.  Era uma espécie de colônias terapêuticas, que logo se proliferou por todo país.

[…] proliferam hospitais psiquiátricos e colônias agrícolas para doentes mentais com a ideia de tratar e reeducar pelo trabalho, fornecendo um ambiente calmo e regrado. Porém, os serviços criados, a princípio, para tratamento daqueles reconhecidos como doentes mentais incharam com o recolhimento de toda gama de excluídos (órfãos, mendigos, prostitutas etc.), para os quais não havia quaisquer outras estruturas fora do Hospício (DEVERA e COSTA-ROSA, 2007, p. 62). 

O Hospital Colônia de Barbacena era um desses hospitais. Daniela Arbex (2013) pontua a morte de pelo menos 60 mil pessoas que lá estiveram internadas, sendo que cerca de 70% dos internos não tinham diagnostico de doença mental. 

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Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças. (p.14)

Daniela Arbex (2013) pontua ainda que durante uma visita de Franco Basaglia ao Brasil, em 1979, em Barbacena, o médico acionou a imprensa e declarou: “estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo presenciei uma tragédia como esta” (p.207).  

Amarante (2010, p. 51) compreende o início do movimento da reforma psiquiatria no Brasil entre os anos 1978 e 1980. Dentre os principais atores envolvidos neste processo destaca o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM – composto por diversas frentes: Núcleos Estaduais de Saúde Mental do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), Comissões de Saúde Mental dos Sindicatos dos Médicos, o Movimento de Renovação Médica (REME), a Rede de Alternativas a Psiquiatria e a Sociedade de Psicossíntese. Também fizeram parte do processo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a Federação Brasileira de Hospitais (FBH), a indústria farmacêutica e universidades, o Ministério da Saúde (MS) e o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS). 

O autor destaca como marco do início da reforma psiquiátrica brasileira a crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), episódio que ficou conhecido como “Crise da DINSAM”. A DINSAM era composta por quatro unidades, todas no Rio de Janeiro: Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), Hospital Pinel, Colônia Juliano Moreira (CJM) e o Manicômio Judiciário Heitor Carrilho. A DINSAM tratava-se de um órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação das políticas de saúde mental. 

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Devido a demissão de 260 estagiários e profissionais, em abril de 1978, as quatro unidades supracitadas decretaram estado de greve.  A DINSAM passou um grande período sem realizar concurso público, e passou a contratar profissionais bolsistas para completar o quadro de profissionais a partir de 1974. Eram profissionais graduados e universitários atuando como médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais.  Amarante (2012) cita que o trabalho era realizado em condições precárias, em clima de ameaças e violências, tanto aos profissionais, como aos pacientes que frequentavam a instituição. Se torna evidente devido as ´´frequentes denúncias de agressão, estupro, trabalho escravo e mortes não esclarecidas“ (Amarante, 2012, p. 52). A crise só veio à tona devido a denúncia feita por três médicos bolsistas do CPPII, que registraram no livro de ocorrências do plantão inúmeras irregularidades, levando à conhecimento público a situação de calamidade vivenciada por aquela instituição.  

Na segunda metade da década de 80, passam a ocorrer muitos eventos importantes, onde Amarante (2010, p. 75) destaca: 8ª Conferência Nacional de Saúde, I Conferência Nacional de Saúde Mental, II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial em São Paulo e do primeiro Núcleo de Atenção Psicossocial em Santos, Associação Loucos Pela Vida (Juqueri), a apresentação do projeto de Lei 3.657/89 do Deputado Paulo Delgado e a realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental. 

Devido a 8ª Conferência Nacional de Saúde, surge a campanha Por uma sociedade sem manicômios. O II Congresso Nacional do MTSM, teve os seguintes eixos de discussão:

  • Por uma sociedade sem manicômios – significa um rumo para o movimento discutir a questão da loucura para além do limite assistencial. Concretiza a criação de uma utopia que pode demarcar um campo para a crítica das propostas assistenciais em voga. Coloca-nos diante das questões teóricas e políticas suscitadas pela loucura.
  • Organização dos trabalhadores de saúde mental – a relação com o Estado e com a condição de trabalhadores da rede pública. As questões do corporativismo e interdisciplinaridade, a questão do contingente não universitário, as alianças táticas e estratégias.   
  • Análise e reflexão das nossas práticas concretas – uma instância crítica da discussão e avaliação. (A quem servimos e de que maneiras). A ruptura com o isolamento que caracteriza essas práticas, contextualizando-as e procurando avançar. (MTSM, 1987 apud Amarante 2010, p. 80)

Com tal manifestação pela extinção dos manicômios, a denúncia a psiquiatrização e a institucionalização passou a ser praticada. Dessa forma, associações de usuários passam a ocupar um importante lugar no movimento da luta antimanicomial. 

Com o processo de reforma psiquiátrica saindo do âmbito exclusivo dos técnicos e das técnicas, e chegando até a sociedade civil, surgiram novas estratégias de ação cultural, com a organização de festas e eventos sociais e políticos nas comunidades, na construção de possibilidades até então impossíveis (AMARANTE, 2010, p.82).

Essa nova etapa repercutiu em vários âmbitos, cultural, social, jurídico-político e assistencial, pois foi marcada pelo surgimento das novas modalidades de atenção, que representaram uma alternativa real ao modelo psiquiátrico tradicional.

Referências:

AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho. Loucos Pela Vida. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2010

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo, Ed. Geração, 2013.

DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. 

DEVERA, Disete; COSTA-ROSA, Abílio da. Marcos históricos da reforma psiquiátrica brasileira: Transformações na legislação, na ideologia e na práxis. Revista de Psicologia da UNESP, 6(1), 2007.  

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Sobre malas e manicômios: memórias dos esquecidos

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Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, ‘Mala’ vem do francês Malle, que significa caixa revestida de couro ou lona, usada normalmente para transporte de roupas e/ou outros pertences, em viagens.

Não existem indícios na história de como foram criadas as primeiras bolsas/malas ou de como seria sua forma, o que se sabe é que desde o início dos tempos a comunicação já estava presente na vida humana. Por exemplo, através de desenhos os povos primitivos registravam seus costumes, sendo encontradas, então, imagens com a figura feminina portando bolsas.  Além, é claro, de que esses grupos pré-históricos eram nômades e viviam se deslocando de lugares de acordo com sua necessidade de obter alimentos, como já sabiam que a pele dos animais (couro) servia para proteção do corpo, pode ter surgido daí a ideia de criar um “recipiente” capaz de guardar alimentos e/ou outros objetos necessários para a viagem.

O que sabemos até aqui é que as malas sempre tiveram o mesmo sentido e foram utilizadas para os mesmos fins: carregar objetos. E se formos parar para pensar, pode ser que uma pessoa não tenha tantos objetos ou pertences, mas, mesmo assim, possui uma mala e a carrega para onde for, porque de uma forma ou de outra, ali está seu mundo.

Talvez tenha sido esta a ideia de Jon Crispin ao elaborar seu projeto, conhecido principalmente pela sua paixão por temas diferentes, dentre eles a curiosidade por manicômios abandonados. Talvez tenha sido daí que surgiu a curiosidade de se olhar para malas abandonadas e esquecidas procurando entrar no mundo de quem as perdeu.

O trabalho de Jon Crispin consistiu em fotografar cerca de 400 malas encontradas no manicômioWillard Asylum For The Chronic Insane (Asilo Para Cronicamente Insanos de Willard), lugar este que funcionava desde 1869, e que fechou suas portas em 1995.

Em 1975 o asilo passa a ser patrimônio histórico dos Estados Unidos. Foram encontradas centenas de malas que pertenciam aos usuários que por lá passaram e que provavelmente lá morreram. Malas carregadas de lembranças e histórias, tornando-se assim objetos do acervo do Museu do Estado de Nova York, para acesso da população.

O Willard Asylum for the Chronic Insane era mais um dos inúmeros locais onde as pessoas eram mantidas excluídas da sociedade. Não precisavam mostrar sintomas de perturbações mentais, bastavam não entrar no grupo de pessoas “normais” segundo as normas da sociedade. Pessoas deprimidas, gays, pobres, negros, prostitutas, mendigos, pessoas essas que precisavam ser mantidas longe, possivelmente passaram mais da metade de suas vidas presas e afastadas do mundo.

Não diferente de outros asilos, o Asilo Para Cronicamente Insanos de Willard também utilizava de formas rudimentares para o tratamento de seus internos. O asilo fechou na época em que tais formas de tratamento foram consideradas desumanas e cruéis.

Segundo alguns estudos, foi através da reforma psiquiátrica que tornou possível o início da luta pela extinção de locais como o Asilo Para Cronicamente Insano de Willard. A luta antimanicomial consiste principalmente em lutar pelos direitos da dignidade aos pacientes psiquiátricos, “luta essa com um olhar para o ser humano como sujeito de todas as ações, tendo como princípios a desinstitucionalização do manicômio” (LEAL, s/p, 2012). A reforma psiquiátrica visa modificar o sistema de tratamento clínico da doença mental, eliminando como forma de tratamento a internação e exclusão do paciente da sociedade.

O trabalho do fotógrafo Jon Crispin nos proporciona uma viagem pelo passado desses pacientes que tiveram suas vidas eliminadas de uma sociedade munida de pré-conceitos. Cada mala registra a simplicidade, os sonhos e os desejos de cada um dos internos que foram mantidos guardados, na esperança de que um dia eles pudessem finalmente voltar para suas casas, para uma vida normal. As fotografias representam um tipo de resgate à lembrança dessas pessoas que por lá foram esquecidas.

São imagens como essas, de uma realidade mantida por anos escondida, que nos fazem refletir sobre a nossa maneira de encarar a loucura, a nossa mania de deixar que nossos pré-conceitos dominem toda uma história. Lugares como esse asilo ainda existem por aí, cabe a nós lutarmos para que eles sejam excluídos de nossa história e que sejam lembrados apenas como um erro que não deveria ter existido, muito menos se repetir.

Nota: Todas as malas apresentadas foram retiradas do acervo de Jon Crispin, disponível em:http://joncrispin.wordpress.com/tag/willard-suitcases/

 

 

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