O poder dos homens sobre a sexualidade das mulheres

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Um conceito derivado do machismo que durante muitos anos foi ensinado a sociedade fortalecido desde os tempos antigos, é de que a mulher deve ser vista como um suporte ao homem, que deve sempre lhe dar apoio, e que ao mesmo tempo se torna menos que o mesmo.  Tal característica é apresentada desde a Idade Antiga quando houve início a sociedade patriarcal, que tem como forte aspecto a supremacia do homem, no poder, na política, nas decisões etc. As decisões e escolhas das mulheres eram negadas a elas, e o poder sobre o seguimento de suas vidas era hora destinado ao pai que decidia com quem a filha iria se casar, hora ao marido que lhe dava a casa e filhos para que ela pudesse cuidar e hora a igreja que falava sobre o que era certo e o que era errado (CARELLI, 2017).

Como forma de exercer poder sobre as mulheres e sobre a legitimidade dos filhos, o sexo era pregado pela igreja durante a Idade Antiga e a Idade Média, como pecado. Para a mulher casada era visto como algo sujo e errado, já para os homens, um pecado que podia ser cometido com mulheres em prostíbulos, para assim manterem suas esposas puras. Existiam nessa época diferentes tipos de acompanhantes, inclusive mulheres que tinham acesso ao estudo e ao aprendizado sobre música e arte para que pudessem entreter seus acompanhantes (LINS, 2012).

Durante a Idade Moderna, a ideia de amor romântico surge, e a mulher é levada a crer desde a sua infância na existência de príncipes encantados, que iriam conquista-las, e a quem deviam seu amor fervoroso e lealdade. A virgindade da mulher passa a ser vista como um presente que deve ser dado a uma pessoa especial. Já aos homens a ideia de conquista desse presente guardado a sete chaves, era visto como um ato de virilidade, e que a conquista de vários e o desejo das mulheres sobre esse homem, relacionava a ideia de certo poder (LINS, 2017).

Nos dias atuais, falar sobre sexualidade ainda é de certa forma um tabu. Não é permitida a educação sexual nas escolas, embora possam ser encontradas facilmente notícias sobre abuso sexual. Em alguns meios religiosos, ainda são apontados como pecado a procura do prazer sexual, ou a masturbação. E a mulher ainda sofre muitos preconceitos e pode ser considerada uma mulher sem valor, por querer exercer sua sexualidade da forma que deseja.

De acordo com Castro (2009), é perceptível entre os jovens ainda a ideia de que a meninas que exercem sua sexualidade, ou demonstram seus interesses afetivos e sexuais, são vistas pelos meninos, como sem valor e vulgares. Os jovens ainda apontam que essas meninas apenas servem para relacionamentos passageiros ou ficadas. Apesar disso, meninos da mesma idade, apresentando os mesmos comportamentos são vistos como conquistadores, e recebem certo conhecimento por terem muitos relacionamentos.

Leal (2003) coloca que há uma preocupação entre as jovens mesmo nos dias atuais, a relacionarem sua primeira relação sexual a um relacionamento afetivo, ou sentimentos de paixão e amor. Isso pode ocorrer devido a ainda nos dias atuais, a mulher ser levada a crer também desde a infância na ideia de que a mulher que exerce sua sexualidade ser mal vista.

Segundo Francisca e Luis (2008), é possível notar que a mulher quando exerce os mesmos comportamentos esperados do homem, como na normalização do adultério, ou a busca pela satisfação conjugal quando insatisfeita na relação em que se situa, pode ser ainda mal vista pela sociedade em que se encontra, e questionada ou influenciada a retomar uma relação que decidiu pôr um fim.

É apontado ainda, segundo Rodrigues (2008), que as mulheres nos dias atuais podem exercer maior controle sobre as finanças, e conquistam a estabilidade financeira antes de seus cônjuges. Apesar disso, podem ser percebidos sentimentos de baixa autoestima por parte dos homens que se sentem como se não tivessem obtido sucesso ou das mulheres sobre como se sentem estando ao lado de homens que dependem financeiramente dela, isso pode ocorrer devido a busca de papéis em que o homem é colocado como detentor do poder, o que pode influenciar na intimidade do casal.

Sendo assim, é percebido que as mulheres apesar de conquistarem muitos direitos, e poderem escolher sobre seus desejos e vontade, acabam por serem influenciadas a conceitos antigos que colocam a mulher como uma figura pura, e que será levada a sério se manter-se recatada. As mulheres acabam por cobrarem e vigiarem seus comportamentos com receio de serem julgadas, ou cobram de si mesmas, retorno a papéis em que o homem seja o detentor do poder.

REFERÊNCIAS

CASTRO, R.J.S. Violência no namoro entre adolescentes do Recife: em busca de sentidos. 2009. 119 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2009. Disponível em:<https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/13609> Acesso em 23 de setembro de 2021.

DIEHL, A. VIEIRA, D. L. Sexualidade – do prazer ao sofrer. 2. ed. São Paulo: Roca, 2017.

FRANCISCA, L.A.; LUIS, F.R.N. Homens cornos e mulheres gaieiras: infidelidade conjugal, honra, humor e fofoca num bairro popular de Recife/Pe. 2008. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. Disponível em:<https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/471> Acesso em 23 de setembro de 2021.

LEAL, A.F.. Uma antropologia da experiência amorosa: estudo de representações sociais sobre sexualidade. 2003. Disponível em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/2098/000364088.pdf?sequence=1>. Acesso em 16 maio de 2021.

LINS, R.N., 1948. O livro do amor, volume 1 [recurso eletrônico] : da Pré-história à Renascença / Regina Navarro Lins. Rio de Janeiro: Best Seller, 2012.

LINS, R.N. Novas formas de amar / Regina Navarro Lins. São Paulo: Planeta do Brasil, 2017.

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Masculinidade: um debate iminente

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Recentemente o cantor Tiago Iorc lançou uma música intitulada “Masculinidade”. A letra traz confissões e desafios impostos a ele como homem na cultura e sociedade ocidental contemporânea. A letra levantou temas muito relevantes e pertinentes a discussões, como o consumo da pornografia, o machismo enraizado nas relações afetivas, assim como o patriarcado como estrutura de poder para marginalização de grupos já excluídos socialmente, como as mulheres, e a supremacia masculina.

Contudo, o público feminino destacou o agravo e “erros” contidos na música, pois o artista, segundo o público feminino, converte o abusador em potencial em uma suposta vítima, se esvaziando de toda e qualquer responsabilidade sobre seus atos. Dessa forma, é importante salientar que, para discorrer sobre masculinidade, é preciso discutir paralelamente sobre feminilidade e o movimento feminista.

Durante muitos séculos, a referência anatômica masculina serviu de parâmetro para referenciar as mulheres, que eram consideradas “homens invertidos”, pois no lugar do órgão genital peniano estava a vagina e os ovários seriam os testículos. Logo, a existência feminina não existia se não fosse a referência masculina. Isso foi denominado como monismo sexual, que é um só modelo de identidade e gênero sexual e vigorou até uns séculos atrás (SILVA, 2000).

Fonte: Rafael Trindade / Divulgação Tiago Iorc

A partir disso a referência da perfeição estava na anatomia masculina e em sua estrutura fálica, que era a principal característica que o diferenciava dos demais corpos. Inversamente a isso, a anatomia feminina era algo frágil e inferior, o que era considerado muitas vezes profano e funcionava como uma espécie de “bode expiatório” dos desvios de conduta dos homens. Com isso, qualquer outra forma de manifestação e relacional estava atrelada ao modelo masculino, como o orgasmo, as formas de reprodução e o sexo (SILVA, 2000).

Uma sensível mudança começou a acontecer a partir do século XIX, que apresentou outro modelo sexual, não sendo apenas o masculino como molde de referência. Ou seja, a mulher não era apenas um homem invertido, mas um corpo diferente do homem que carregava responsabilidades, deveres e papéis sociais a serem cumpridos com a solidificação da burguesia capitalista e europeia (BOTTON, 2007).

Contudo, ainda não se tinha igualdade e/ou equidade de direitos e deveres em ambos os gêneros, pois a mulher ainda estava restrita ao ambiente privado, que era o lar e seus cuidados. Toda a estrutura social delimitou rigorosamente esses papéis, que eram muito bem definidos e deveriam ser executados a todo custo (CITELI, 2001).

Fonte: Imagem por rawpixel.com no Freepik

A masculinidade herdada dos séculos anteriores funcionava mais como uma performance sobre como ser homem, que era basicamente não ser mulher e muito menos homossexual. A sua identidade social assim como seu gênero requerem deste mesmo homem uma postura de perfeição em sua conduta na sociedade. Isto é, em meio a problemas e obstáculos do cotidiano, este homem deveria mostrar o melhor de si na melhor das hipóteses, como bravura, agilidade, esperteza, entre outras características que o endeusavam (NADER; CAMINOTI, 2014).

Essa era a concepção construída e mantida pela sociedade burguesa da masculinidade e o papel do homem na sociedade. Por conseguinte, não demorou muito até a conta vir, pois com as adversidades que este homem enfrentava, foi possível concluir que não era tão alcançável assim executar esse papel, de um super-homem. Logo, se tinham dois extremos, a mulher sufocada em suas demandas domésticas e na vida privada, sendo considerada inferior e o homem calcado às responsabilidades públicas sendo visto como o superior de tudo e todos (SILVA 2006).

Contudo, percebeu-se que paralelo a luta feminista e suas reivindicações sociais assim como suas conquistas, havia gradualmente a mudança dessa concepção doentia e tóxica da burguesia sobre a visão do homem. Isto é, este novo homem contemporaneamente já aceitava suas limitações e fragilidades, bem como mudanças na postura e comportamentos, pois já não vigorava mais a conduta de um deus e sim de um ser humano corruptível (BOTTON, 2007).

Fonte: Freepik

Mesmo este novo homem admitindo ser um ser humano falho, frágil assim como a mulher e com limitações, ainda não se sabe ao certo como definir a masculinidade, uma vez que a cultura e condutas sociais se transformam ao decorrer do marco histórico. Logo, a identidade de uma masculinidade homogênea fica ainda vaga e ao mesmo tempo em aberto recebendo novos conceitos e mutações, mas sem chegar a um consenso definitivo (SILVA, 2000).

Entretanto, mesmo havendo esta mudança profunda, ainda prevalece a visão burguesa na maioria das condutas sociais masculinas, de um homem forte, intocável e superpoderoso, além de esperar da figura feminina uma postura de submissão e servidão. Isso dá margens a comportamentos de desvio de conduta, como o feminicídio, pois quando um homem não aceita certa decisão vinda de uma mulher, é capaz até mesmo de matá-la (SCHARAIBER, 2012).

Isso notadamente provém de uma cultura que cultua o falo, e não a subjetividade, e alicerçada pelo patriarcado e machismo, o produto nada mais seria que um homem com a certeza de que pode tudo, principalmente no corpo e atitudes da mulher. E muitas vezes esse homem é reforçado e amparado socialmente, desde às instituições sociais até aos seus pares comuns (SCHARAIBER, 2012).

O que fica de reflexão é: como esse homem na sociedade se vê e o que pode ser feito para enfim reafirmar sua identidade sem ser de forma doentia e/ou violenta? Sabe-se que espaços terapêuticos desempenham uma ótima função na escuta ativa e na melhora de problemas, mas até a busca por aderência do público masculino pode encontrar dificuldades, pois “falar demais” é considerado uma característica feminina e consequentemente, inferior.

Fonte: Divulgação campanha contra a violência do governo do estado.

REFERÊNCIAS

BOTTON, F. B. As masculinidades em questão: uma perspectiva de construção teórica. Revista Vernáculo, n. 19 e. 20, 2007.

CITELI, M. T. Fazendo diferenças: teorias sobre gênero, corpo e comportamento. Revista Estudos Feministas, v. 9, n.1, pp-1-15, 2001.

NADER, M. B.; CAMINOTI, J. M. Gênero e poder: a construção da masculinidade e o exercício do poder masculino na esfera doméstica. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH-RIO: SABERES E PRÁTICAS CIENTÍFICAS. XVI, 2014, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: Apuh-Rio, 2014. Disponível em: http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/28/1400262820_ARQUIVO_Generoepoderaconstrucaodamasculinidadeeoexerciciodopodermasculinonaesferadomestica.pdf. Acesso em: 18 nov. 2021.

SCHRAIBER, L. B. et al. Homens, masculinidade e violência: estudo em serviços de atenção primária à saúde. Revista Brasileira de Epidemiologia, v.15, n.4, pp-790-803, 2012.

SILVA, S. G. A crise da Masculinidade: Uma Crítica à Identidade de Gênero e à Literatura Masculinista. Psicologia: ciência e profissão, v.26, n.1, pp.118-131. 2006.

SILVA, S. G. Masculinidade na história: a construção cultural da diferença entre os sexos. Psicologia: ciência e profissão, v.20, n.3, pp.8-15. 2001.

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‘Masculinidade’ por Tiago Iorc, ou será masculinidade tóxica?

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O que a música “Masculinidade” de Tiago Iorc nos diz sobre a própria visão dos homens em relação à masculinidade e a sua toxicidade?

Ninguém é estranho à masculinidade tóxica. Todos nós somos familiares, em diferentes extensões, formatos e intensidades, aos efeitos colaterais da masculinidade tóxica. Alguns de nós fomos vítimas, outros se tornaram algozes que usaram da masculinidade tóxica como uma arma para silenciar, sufocar e enforcar outras pessoas (principalmente mulheres e a comunidade LGBT+).

Mesmo não existindo uma fórmula exata do que se deve ter como figura masculina e feminina, já que tais aspectos além de sociais também são culturais, Kehl (2008) diz que existe uma série de atributos, quase que como um código de conduta que compõem esses aspectos. Apesar dos atenuantes culturais, a distinção entre figura feminina e figura masculina no que diz respeito aos papéis de cada um dos gêneros binários está presente em grande parte da sociedade.

É dessa forma que é desenvolvido o papel da figura masculina e de seus atributos. Atributos dos quais grande parte dos homens não costuma questionar. De acordo com Nigro e Baracat (2018), a superioridade masculina remonta aos tempos da Grécia Antiga. Nessa época a figura feminina era reduzida quase que ao mesmo nível de que um escravo, enquanto os homens se encontravam no outro extremo do espectro.

É no contexto dos dias atuais que entra Tiago Iorc, em Novembro de 2021. Sem aviso, o cantor retornou de um hiato que estava desde Junho de 2020 (quando lançou a música Você pra Sempre em Mim). Com a música Masculinidade, Tiago entra em uma tentativa de redimir seus atos machistas e nas palavras do próprio cantor, pedir um abraço.

Nos últimos tempos o cantor se envolveu em diversas polêmicas, uma delas sendo até mesma citada na música. Ou seja, o erro cometido é um mero efeito colateral da sua masculinidade tóxica da qual foi cultivada por ele mesmo. Por conta desses fatores, o cantor sumiu da mídia. No início da música, o cantor fala sobre isso.

Fonte: Imagem de Elias por Pixabay

Eu ‘tava numa de ficar sumido

Dinheiro, fama, tudo resolvido

Fingi que não, mas, na verdade, eu ligo

Eu me achava mó legal

Queria ser uma unanimidade

Eu quis provar a minha virilidade

Eu duvidei da minha validade

Na insanidade virtual

A partir desse ponto podemos ver algo que se torna recorrente no decorrer da música: a fuga. Seja ela a fuga de si mesmo, dos outros, e muito principalmente da culpa, o cantor debate diversos momentos em relação à fuga. Colocando-se a postos como um homem que quer ser aceito e validado, Tiago levanta a sua virilidade como um fator a ser provado.

De acordo com Vinuto et. al (2017) é impossível pensar a virilidade como uma característica espontânea dos homens, já que a mesma só existe a partir de práticas de performances que as concepções sociais alinham à virilidade, reafirmadas repetida e recorrentemente por aqueles que desejam se apresentar como “homens” em uma dada sociedade.

Uma dessas concepções sociais influencia a masculinidade desde a infância, em que os homens são incentivados a aprender e a reproduzir comportamentos agressivos, seja por meio de brincadeiras, esportes, lutas, brinquedos e jogos (BROUGÈRE, 2008).

Segundo Silva (2014) quando um garoto apanha de um “valentão” rapidamente vira motivo de piada dos colegas e amigos que presenciaram a cena. Desta forma, desde infância é influenciado, não só por adultos, mas também por outras crianças, que o homem não deve expor seus sentimentos.

Em certo trecho da música de Tiago Iorc, o cantor expressa a sua reflexão com os amigos, sobre a exposição de sentimentos, contudo na música, o cantor se diz privado dos seus sentimentos, no seguinte trecho.

Eu cuido pra não ser muito sensível

Homem não chora, homem não isso e aquilo

Aprendi a ser indestrutível

Eu não sou real

Conversando com os meus amigos

Eu entendi que não é só comigo

Calar fragilidade é castigo

Eu sou real

Fonte: Imagem de Free Photos at divvypixel.com por Pixabay

No trecho o cantor mostra uma reflexão como somos ensinados durante a infância, evitando ser frágeis, sensíveis, medrosos e a não chorar, além de perceber, que esta reflexão não acontece só com ele, que outros homens podem possuir essa reflexão.

Segundo Silva (2014), o ideal de masculinidade acaba impondo a repressão de sentimentos e emoções, podendo despertar comportamentos violentos nos homens, pois a repressão desses sentimentos e emoções e a expressão da agressão auto infligida, além que, os sentimentos e emoções fazem parte do indivíduo.

Também devemos destacar a amizade entre homens, em que a lealdade é comum, quanto às trocas de confidências pode ser vista de forma incomum ou menos frequente, devido à dinâmica construída pela sociedade e cultura anteriores. Por fim, Louro (2013) afirma que existem estudos acerca do tabu que os sentimentos representam para os homens.

A partir destes estudos, podemos quebrar este tabu e ressignificar o que esses sentimentos representam para os homens, e através desta mudança pode haver uma evolução na construção da masculinidade.

Em uma tentativa de conscientização o cantor traz o seguinte refrão:

Cuida, meu irmão

Do teu emocional

Cuida do que é real

E em alguns trechos traz […]

Cuidado com o excesso de orgulho

Cuidado com o complexo de superioridade, mas

Cuidado com desculpa pra tudo

Cuidado com viver na eterna infantilidade

Cuidado com padrões radicais

Cuidado com absurdos normais

Cuidado com olhar só pro céu

E fechar o olho pro inferno que a gente mesmo é capaz

De cara simpatizamos com o que está sendo cantando, cuidados são sim importantes, mas se pensarmos de forma reflexiva, nos deparamos com um discurso pronto e vazio, que tende a mascarar mais uma vez a questão central abordada na canção. A masculinidade tóxica, se transforma em um efeito narcísico, em que o grande outro é culpado (sociedade) o que de fato, não deixa de ter suas verdades, já que vivemos em uma sociedade estruturada pelo patriarcado. O grande problema na canção é que por trás da conscientização, não existe uma responsabilização, apenas justificativas, faz parecer que homens tem ‘’aval’’ para fazerem o que quiserem, por também serem vítimas.

É preciso entender a linha tênue entre “masculinidade dominante” e “masculinidade vitimada’’, segundo Maria Izilda Souza Matos (1996)

“Essa universalização impõe dificuldades de se trabalhar com a masculinidade, que varia de contexto para contexto, sendo, portanto, múltipla, apesar das permanências e hegemonias. Assim, sobrevêm a preocupação em desfazer noções abstratas de “homem” enquanto identidade única, a-histórica e essencialista, para pensar a masculinidade como diversidade no bojo da historicidade de suas inter-relações, rastreando-a como múltipla, mutante e diferenciada no plano das configurações de práticas, prescrições, representações e subjetivações.’’

Quando se ignora a misoginia, a música perde o sentido, fugindo de contextos históricos e sociais, reforçando ao homem, o arquétipo de herói, fazendo dele uma figura viril “injustiçada” pelo mesmo sistema que fornece os seus privilégios. Ao olhar apenas para si, acabam esquecendo as situações vivenciadas pelas vítimas mais injustiçadas desse sistema, sendo que sequer foram citadas ou correlacionadas na música; mulheres. A música traz a ideia de figura masculina frágil e reprimida, quando na verdade sabemos os reais privilégios que os homens possuem, até mesmo na forma de se expressar, podendo agir livremente e sem julgamentos, sendo por muitas vezes seus crimes cometidos, revitalizados.

Percebemos então, quão problemático é a dimensão deste pensamento.

Eu tive medo do meu feminino

Eu me tornei um homem reprimido

Meio sem alma, meio adormecido

Um ato fálico, autodestrutivo

Trazer essa dimensão oposta de feminino e masculino, pode dar razão a um determinismo biológico, reforçando ainda mais a ideia do masculino ser o lado forte, enquanto o feminino é algo frágil. Quanto aos atos fálicos, eles podem ser tornar acertos se bem analisados, o importante e não transmitido na canção, é a responsabilidade que os homens possuem por essa “masculinidade opressora”. Para que a masculina tóxica não faça mais vítimas é necessária uma mudança, para além de apenas palavras, são necessárias ações, e uma conscientização, revisando-se atitudes, pensamentos e falas.

“O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como eu sou, então posso mudar”.

Carl Roger, 1986

REFERÊNCIAS

BAGIOTTO, Fernando. AS MASCULINIDADES EM QUESTÃO: UMA PERSPECTIVA DE CONSTRUÇÃO TEÓRICA 2007.  Revista, vernáculo n 19,20. disponível em: file:///C:/Users/Diana/Downloads/20548-73715-1-PB.pdf acesso 25 de novembro de 2021.

BARACAT, Juliana; DOTA, F. P.; CRAVO, F.. Masculinidade: preciosa como diamante, frágil como cristal. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia) – Faculdade de Ensino Superior e Formação Integral.

BROUGÈRE; Gilles. 2008. Masculinidade: Preciosa como diamante, frágil como cristal. 2017. Disponível em: <http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/nNirdcsu8KL0cs0_2019-3-8-17-21-47.pdf#page=7> .Acesso em 25 de Nov. de 2021.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008

LOURO; Guacira Lopes. 2013.  Masculinidade: Preciosa como diamante, frágil como cristal. 2017. Disponível em: <http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/nNirdcsu8KL0cs0_2019-3-8-17-21-47.pdf#page=7> .Acesso em 25 de Nov. de 2021.

Os acertos e (muitos) erros de Tiago Iorc ao questionar a “Masculinidade”. Disponível em: <https://www.madsound.com.br/acertos-muitos-erros-tiago-iorc-masculinidade/>. Acesso em 25 de Nov. de 2021.

SILVA; José Remon Tavares da. 2014.  Masculinidade: Preciosa como diamante, frágil como cristal. 2017. Disponível em: <http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/nNirdcsu8KL0cs0_2019-3-8-17-21-47.pdf#page=7> .Acesso em 25 de Nov. de 2021.

Vinuto, J., Abreo, L. de O., & Gonçalves, H. S. (2017). No fio da navalha: efeitos da masculinidade e virilidade no trabalho de agentes socioeducativos. Plural, 24(1), 54-77. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2017.126635

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Divisão sexual do trabalho: desigualdade e desvalorização da mulher

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A divisão sexual do trabalho ocorre devido a divisão do trabalho social relacionado a questões de gênero. Desde a Antiguidade, o homem era responsável pela caça, enquanto a mulher conhecida como única responsável pela reprodução era encarregada pelo cuidado e zelo dos filhos. Porém com o passar do tempo e a revolução industrial, a mulher passa a lutar pelo seu espaço no meio social e trabalhar nas fábricas, a força já não era um requisito principal para a prática do trabalho fora do âmbito familiar (KERGOAT, 2000).

Nos dias atuais, embora as mulheres estejam cada vez mais conquistando seus direitos e lutando pela diminuição da desigualdade entre homens e mulheres, o que se percebe é que o papel da mulher continua relacionado ao cuidado do lar, e dos filhos. Apesar de terem a possibilidade de ocuparem lugares como a construção civil e exercerem profissões ditas como “profissões para homens”, ainda recebem salários menores que os homens.

Essa situação se intensifica quando falamos sobre as mulheres negras. As mulheres negras sofrem ainda com o preconceito por sua cor de pele, e na maioria das vezes são relacionadas à profissão de empregada doméstica. Levando em conta as estatísticas que apontam o baixo nível de escolaridade, acabam por terem ainda mais dificuldade em conseguir cargos melhores, ganhando menos ainda nas suas funções que as mulheres brancas (LIMA; CARVALHO, 2016).

Fonte: encurtador.com.br/jvyAC

Existem profissões em que as mulheres possuem uma maior facilidade em dominar a liderança nas contratações, porém, até neste ponto é nítido o estereótipo criado em volta da mulher. Geralmente são profissões voltadas ao cuidado, ou semelhantes às atividades domésticas, como por exemplo, professoras ligadas ao cuidados e educação de crianças, enfermeiras ligadas ao zelo, demonstram discursos colocando a mulher como direcionada para essas profissões ditas femininas devido a fragilidade, delicadeza e feminilidade (SILVIA; MENDES, 2015).

Dessa forma, a pirâmide de rendimentos no qual no topo dela está o homem branco seguido de homens negros, depois de mulheres brancas e por fim de mulheres negras ainda continua em manutenção de forma bem evidente, atual e cruel. Com isso, negras ganham menos, mesmo com vários anos de estudos ou o ramo no qual exerce sua profissão, pois está sobreposto a duas condições: a de ser mulher e a de ser negra (raça e gênero).

Com o contexto atual, a luta das mulheres seja através do feminismo ou na vivência do trabalho a cada dia que passa nas atitudes de questionar desigualdades ou buscar melhorias, procura cada vez mais, mais conquistas para as mulheres, buscando dessa forma diminuir a desigualdade entre homens e mulheres. Tentando dar à mulher a oportunidade de ocupar seu espaço de forma justa, sem ocupar os lugares dos homens, mas sim o seu próprio lugar.

REFERÊNCIAS

KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. Trabalho e cidadania ativa para as mulheres: desafios para as políticas públicas. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, p. 55-63, 2003. Disponível em:<https://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/05634.pdf#page=55>. Acesso em 08 julho de 2021.

LIMA, R. M.; CARVALHO, E. C. Destinos traçados? Gênero, raça e precarização e resistência entre merendeiras do Rio de Janeiro. Revista da ABET, v. 15, n. 1, p. 114-126, 2016. Disponível em:<https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/31263> Acesso em 15 julho de 2021.

SILVA, M.C.; MENDES, O.M. As marcas do machismo no cotidiano escolar. Caderno Espaço Feminino, v. 28, n. 1, 2015. Disponível em:<http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/31723>. Acesso em 23 maio de 2021.

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Sobre o Animus: um apanhado sobre o Masculino Arquetípico

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Carl Gustav Jung (1875-1961) foi o idealizador da Psicologia Analítica, e com ela propôs uma série de conteúdos revolucionários acerca da psique humana. Estes diziam respeito ao inconsciente pessoal e coletivo, também a inúmeros aspectos acerca da personalidade individual de cada um, permitindo explorar com precisão a individualidade dos sujeitos, mesmo que estes imersos em instâncias psíquicas tão complexas. Dentre tantos conceitos, também postulou a ideia dos arquétipos, como sendo imagens ancestrais enraizadas no inconsciente coletivo às quais nós temos acesso e com os quais entramos em contato ao longo da vida (JUNG, 2018). 

Dentre os diversos arquétipos existem o Animus e a Anima. Esses arquétipos contrassexuais foram denominados assim por Jung com o objetivo de representar respectivamente as partes masculina e feminina dentro de cada indivíduo, sendo assim condutores da consciência feminina e masculina para o mundo interior da psique. De maneira simbólica, cada homem teria contido em si certo aspecto feminino e cada mulher um masculino.

Anima significa o componente feminino numa personalidade de homem, e o animus designa componente masculino numa personalidade de mulher. Ele tirou tais palavras do termo latino animare, que quer dizer animar, avivar, porque sentiu que a anima e animus se assemelhavam a almas ou espíritos animadores, vivificadores, para homens e mulheres (SANFORD, 1987, p.12).

Fonte: encurtador.com.br/zY346

Pensando em questões contemporâneas ligadas à experiências pessoais de quem produziu esse artigo na clínica escola, surgiu então a indagação acerca do tema, pois muitos pacientes que ingressaram na clínica no período de tempo anterior recente, encontravam em suas demandas uma raiz fortemente ligada a questões de animus e anima. Desde a maneira como esses pacientes lidavam pessoalmente com esse aspecto em si mesmos, até em questões fundamentais imagéticas ligadas a como estes concebiam os conceitos nas suas relações familiares basilares. 

A partir daqui as atenções se voltam ao arquétipo masculino e seus conceitos, implicações, mitos e histórias relacionadas a este que ajudaram a difundir no inconsciente coletivo da humanidade ao longo das eras, em uma abordagem mais presentificada em sua correlação com o cotidiano do ser humano moderno e suas implicações para a vida psíquica dos possíveis pacientes clínicos do século XXI.

O ANIMUS – A MASCULINIDADE INTRÍNSECA NA MULHER

Ao se debruçar em suas primeiras definições acerca do arquétipo de Animus, C. G. Jung afirma que “(…) a figura compensadora é de caráter masculino e pode ser designada pelo nome de animus. Se não é simples expor o que se deve entender por anima, é quase insuperável a dificuldade de tentar descrever a psicologia do animus” (JUNG, 2011, p. 98). As descrições de animus no texto original de Jung vão ser extrapolações do conceito de anima, com o autor a todo momento mostrando ao leitor as oposições e conceitos comparativos entre a psique masculina e feminina. Segue outro exemplo: 

O homem atribui a si mesmo, ingenuamente, as reações da sua anima, sem perceber que na realidade não pode identificar-se com um complexo autônomo; o mesmo ocorre na psicologia feminina, só que de um modo muito mais intenso, se é que isto é possível. A identificação com o complexo autônomo é a razão essencial da dificuldade de compreender e descrever o problema, sem falar de sua obscuridade e estranheza (JUNG, 2011, p.98).

Em ambos os casos fica clara a mensagem intrínseca que Jung quer escrita: existe uma instância arquetípica imagética masculina dentro dos seres humanos pertencentes ao sexo feminino. E que essa imagem arquetípica compensaria determinados pontos da personalidade dessas mulheres – em um sentido pendular quase de enantiodromia – em diversos pontos da sua vida social familiar e afetiva ao longo de todo o processo de seu ciclo vital.

A mulher e o Animus – Fonte: encurtador.com.br/avG02

Emma Jung (2006), expandiu as noções de animus, ela começa descrevendo o animus e buscando referências em literatura clássica para identificar o mesmo. Aqui a autora nos aponta que o masculino é caracterizado por 4 aspectos, ou estágios: de força, ato, verbo e sentido, todos estes dependentes da consciência e cada um individualmente associado a um tipo de masculinidade e de imago masculina. Em todo o seu texto ela aponta que as mulheres em seu âmbito são movidas pelo princípio do Eros, algo que pode ser traduzido como ligação sentimental ou a estas se voltarem a relações e afetividades, enquanto o homem seria regido pelo princípio da Logos, associado a razão. Deixando claro no fim que, para consciência da mulher o que seria mais importante se consiste no que tange às relações pessoais e as nuances que costumam escapar das percepções dos homens.

“O animus serve – em seu aspecto positivo – como elo entre o ego feminino e a sua criatividade. Já  em  seu  aspecto  negativo,  o animus pode  se  expressar  por  meio  de preconceitos e ideias destrutivas nos relacionamentos que estão presentes na vida da mulher” (GONÇALVES, 2018, p.13). Se o indivíduo não consegue integrar os aspectos opostos em si de maneira saudável, se tem alguma experiência traumática durante seu desenvolvimento, ou se na tenra infância falta alguma figura de referência, isso pode gerar um Complexo futuro. Assim, podendo incorrer no chamado animus negativo, as implicações disso para a vida pessoal do paciente podem ser tremendas. Marie-Louise Von Franz disserta sobre:

Em geral, o primeiro homem que uma mulher conhece é seu pai, que portanto tem uma influência muito grande sobre a menina. Se a relação com o pai se constela de um modo negativo, a menina reagirá negativamente a ele. (…) se a relação for negativa, mais tarde ela provavelmente terá dificuldade com os homens e não descobrirá seu próprio lado masculino. No extremo, ela ficará completamente incapaz de abordar os homens. (…) Se o caso não for tão extremo, ela será o que se costuma chamar de uma mulher difícil. Discutirá com os homens, tentará sempre desafiá-los, criticá-los e pô-los para baixo. Ela esperará negatividade da parte deles, e essa expectativa naturalmente criará dificuldades para o parceiro (VON FRANZ, 1988, p.163).

Ser masculino atormentando mulher em seus sonhos – Fonte: encurtador.com.br/lwR28

Para construção de uma psique saudável, a mulher deve ter a capacidade de integrar o animus, a parte masculina, à sua consciência. Mas para que isso ocorra, ao longo da vida diversas experiências devem ser vividas de maneira adequada, para que o animus seja positivo e as características masculinas não gerem sofrimento interno a paciente, gerando um bom futuro relacionamento com as imagos do sexo oposto, e logo, relacionamentos sociais funcionais (JUNG, 2011). 

A SIMBOLOGIA EM ANIMUS

No oriente a simbologia de animus e anima pode ser constatada mais evidentemente nos conceitos Taoístas, vindos de onde hoje se localiza a China. Para o Taoísmo e sua cosmologia o conceito de Yin-Yang compõe o universo e todas as suas coisas, sendo forças de oposição que representam respectivamente a passividade, escuridão, o feminino versus a atividade, luz, o masculino (BIZERRIL, 2010). 

Gonçalves (2018) destaca que essas constatações se dão pela observação da natureza pelos camponeses, sendo que o dia (luz, Yang) fica associado a atividade e a noite (escuridão, Yin) a passividade e ao descanso. Sendo a dualidade um conceito intrínseco à visão de ser humano e reconhecendo que dentro de cada ser existe o aspecto oposto, complementar, a similaridade com o conceito de animus e anima fica claro, mais uma vez, na busca pela enantiodromia.

A alternância yin-yang nomeia uma pulsação básica do cosmo – expansão/recolhimento, ascensão/declínio, dia/noite, movimento/serenidade – descrita no Daodejing. Posteriormente, foi elaborada uma descrição mais detalhada dessas alternâncias cíclicas na dinastia Han, por meio da combinação da cosmologia yin-yang, descrita por Laozi, ao sistema de correspondências entre as coordenadas do tempo, do espaço, da experiência sensível, e os aspectos do corpo humano, e as cinco energias ou modalidades do qi que forma o mundo, conforme descritas no Huangdi Neijing Suwen, o primeiro clássico da medicina tradicional chinesa, atribuído ao mítico Imperador Amarelo, Huangdi. (BIZERRIL, 2010, p.296)

Símbolo Yin-Yang – Fonte: encurtador.com.br/bcoAG

Já no Xintoísmo japonês podemos encontrar a dualidade representada em seu mito de cosmogonia. Silva (2016) expõe o registro mais antigo xintoísta japonês, que é conhecido como Kojiki – em tradução pode ser lido como ‘Registro dos Assuntos Antigos’ – e nele constam as principais narrativas mitológicas nipônicas, incluindo a história das divindades criadoras, os irmãos Izanami e Izanagi. Eles seriam os responsáveis pela vida e pela criação do próprio Japão.

Na última geração, surgiram as entidades o “Macho que convida” e a “Fêmea que convida”, respectivamente Izanagi-no-Mikoto e Izanami-no-Mikoto. À estas duas entidades foi concebida a tarefa de “criar, consolidar e dar vida (…)” à terra que ainda estava cercada pelo oceano primordial, ainda sem forma. (SILVA, 2016, p.32)

Em diversas histórias são essas duas figuras divinas que se confluem para gerar os seres vivos. Comparativamente a outras culturas o equivalente dos pólos opostos sexuais se tratarem de seres  primordiais de criação e que movem o universo de seu estado de inércia existencial não é incomum, na xintoísta não diferente, vemos a narrativa primordial da tentativa do nipônico tentando compreender essa simbologia. Vide esse autor que coloca Izanagi e Izanami em um paralelo com o cristianismo:

Há uma lenda que ainda é contada em uma região de Okinawa: há muito tempo, as pessoas da terra não sabiam como fazer filhos. Algumas dessas pessoas viram dois botos acasalando no mar. Elas imitaram a atividade dos botos e aprenderam a fazer filhos. É a história de Adão e Eva de Okinawa, uma história com muito mais apelo do que a que temos no Kojiki, a antiga narrativa dos mitos japoneses. Lá, lemos que Izanami e Izanagi estavam circundando um pilar. Eles observam um ao outro como se estivessem observando uma máquina. Um deles diz: “Aqui há uma protuberância, aí há uma depressão; vamos encaixar um no outro e ver o que acontece”. Eles acabam tendo filhos (…) (DE ABREU, 2017, p. 207)

Izanami a esquerda e Izanagi a direita tocando a lança no mar e criando o Japão – Fonte: encurtador.com.br/jJV15

 Conclui-se então que, em se tratando especificamente da cultura oriental – pois esta foi usada de base filosófica e direcional por Jung na elaboração de sua maneira de enxergar o mundo – o masculino estar presente no feminino é um conceito que vem sendo passado no inconsciente coletivo a milênios. Os povos orientais tinham uma compreensão da psique simbolicamente falando, muito evoluída e isso se reflete em todas as suas práticas culturais, lendas e espiritualidade. Um não pode existir sem o outro e para o equilíbrio, a enantiodromia, a equivalência de yin-yang, deve existir luz na escuridão, e um pouco de masculino dentro do feminino.

REFERÊNCIAS

BIZERRIL, José. O caminho do retorno: envelhecer à maneira taoista. Horizontes Antropológicos, v. 16, n. 34, p. 287-313, 2010. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ha/a/YHHJ8YBsxTJxbhqLxhzWpZk/?lang=pt>

CHAGAS, Maria Inês Orsoni; CAMPOS, Terezinha Calil Padis. O complexo paterno na psique feminina e a sua influência nos relacionamentos heterossexuais numa perspectiva da Psicologia Analítica. 2000. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCBS/Cursos/Psicologia/boletins/1/artigos8.pdf>

DE ABREU, Lúcia Collischonn. Tawada Yôko Não Existe. Translatio, n. 14, p. 203-217, 2017. Disponível em:<https://www.seer.ufrgs.br/translatio/article/view/76739/45635>

GONÇALVES, Grazieli Aparecida; DE OLIVEIRA LOPES, Adriana Goreti. O matrimônio sagrado yin-yang. Self-Revista do Instituto Junguiano de São Paulo, v. 3, 2018. Disponível em:<https://self.ijusp.org.br/self/article/view/31> 

JUNG, Emma.  Animus e Anima. São Paulo: Cultrix. 2006

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Editora Vozes Limitada, 2011.

MENIN, Fernanda; LOUREIRO, Lilian; MORAES, Noely Montes. A maldição de Eva: a face feminina da violência contra a mulher. Psicologia Revista, v. 16, n. 1/2, p. 51-71, 2007. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/18057/13417>

SANFORD, John A. et al. Os parceiros invisíveis: O Masculino e Feminino em cada um de nós. São Paulo: Paulus, 1987.

SILVA, Guilherme et al. Xintoísmo e produção de presença-a espiritualidade no mangá Mushishi. 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/179738>

VON FRANZ, Marie Louise. O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix. 1988.

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Retratos da masculinidade em ‘A máscara em que você vive’

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“Ele veste uma máscara, e seu rosto se molda a ela…” George Orwell

O documentário The mask you live in (A máscara em que você vive, em tradução livre), produzido em 2015 com direção de Jennifer Siebel Newsom, e apoio da The Representation Project, expõe, através de vivências em grupos de intervenção e depoimentos de especialistas estadunidenses, o padrão da hipermasculinidade e seus processos adoecedores individuais e sociais, inclusive no sustento do sexismo e da homofobia na sociedade. Logo, um compilado de fatores pregados pela cultura popular, muitas vezes desumanizados, que representam o que é ser homem.

Frases como “engole o choro”, “para de ser mulherzinha”, “você joga como uma garota”, são imputados em meninos com o propósito de doutrinar a uma conduta específica, desde a infância preza-se a autoridade e domínio em detrimento ao desenvolvimento de caráter. Dever que é adotado como forma de validar a si mesmo, ser aceito pelos grupinhos na escola e pela sociedade em geral, também como forma de buscar atenção e aprovação paterna. Essa maneira de conceituar comportamentos desviantes priva a própria criança de explorar novas maneiras de aprender, socializar, de buscar a autonomia e autorrealização, pois seu roteiro de vida já está escrito.

Fonte: encurtador.com.br/bimA6

O documentário aponta que os pilares da performance da hipermasculinidade são a exigência de habilidade atlética, sucesso econômico e conquistas sexuais. Os indivíduos que não se adequam totalmente a esse modelo são excluídos. Neste contexto, entre os adolescentes brasileiros, os meninos são os que mais sofrem e praticam bullying: ao todo, 17,5% deles relatam sofrer bullying na escola. Esse ideal é comumente exaltado pelos meios midiáticos: o badboy que é forte (fisicamente e/ou tem influência), austero, objetifica mulheres, faz uso desmedido de álcool e outras drogas. Quadro que pode ser visto fora das telas: 55% dos adolescentes do último ano do ensino fundamental experimentaram bebidas alcoólicas, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (Pense), divulgado pelo IBGE.

Além disso, também há a representação do bobalhão: apesar de ser homem adulto, ainda perpetua comportamentos da fase da adolescência, ele projeta sua hipermasculinidade de forma diferente dos outros papéis, sendo imprudente e degradando mulheres. Há o recorte de raça, onde homens de cor geralmente ficam com o papel do malfeitor, imagem limitada e violenta que reduz perspectivas de outros modos de viver entre essas crianças e adolescentes. A exposição a essas mídias, incluindo jogos que tem por objetivo dominar e destruir, pode deixar meninos (os maiores consumidores) menos sensíveis ao sofrimento alheio, mais temerosos e agressivos em relação a outros e a si.

Fonte: encurtador.com.br/cHO12

Um efeito da masculinidade tóxica é a pandemia da violência contra a mulher, advindo da rejeição de características relacionadas ao feminino, como a vulnerabilidade, gentileza, empatia, expressão emocional e verbal. Visto isso, homens criam uma máscara emocional, reprimindo sentimentos e desejos relacionais, são ensinados que pedir ajuda é um sinal de fraqueza, o que resulta na terceira causa de morte mais comum entre rapazes, o suicídio.

Com a associação do poder como inerente ao masculino, esse indivíduo mesmo sem tê-lo, encara como se tivesse o direito ao poder, normalizando a manipulação emocional e psicológica e a agressão física. Homens agressores também apresentam raiva, autoacusação destrutiva e autoagressão, apego ansioso, sintomas crônicos de trauma e de rejeição paterna, capacidade limitada de autorreflexão e incapacidade de criar relacionamentos interpessoais saudáveis (Caligor, Diamond, Yeomans e Kernberg, 2009).

“Meninos magoados se tornam homens magoados se não houver algum tipo de intervenção. ” Frase do documentário que está em concordância aos estudos de Carmen, Reiker e Mills (1984) e Walker (1984), onde relatam que a presença de comportamentos agressivos na fase adulta é originária na experiência de violência na infância, seja como vítima ou testemunha. The mask you live in propõe deixar visível esses processos invisíveis, transferir o foco do sintoma da situação para reparar mais nas relações, na transmissão transgeracional da violência, para assim, com a compreensão da sua origem e criação de apoio adequado, encerrar esse ciclo de violência.

Referencias

CRESCE o consumo de álcool entre adolescentes, segundo o IBGE. G1, Tapajós, 31 de ago, de 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2016/08/cresce-o-consumo-de-alcool-entre-adolescente-segundo-o-ibge.html>. Acessos em  02  set.  2020.

NARDI, Suzana Catanio dos Santos; BENETTI, Silvia Pereira da Cruz. Violência conjugal: estudo das características das relações objetais em homens agressores. Bol. psicol,  São Paulo ,  v. 62, n. 136, p. 53-66, jun.  2012 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0006-59432012000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em  02  set.  2020.

OSHIMA, Flávia Yuri. Meninos sofrem mais bullying físico, meninas moral. Época, 20 de abr, de 2017. Disponível em: <https://epoca.globo.com/educacao/noticia/2017/04/meninos-sofrem-mais-bullying-fisico-meninas-moral.html>. Acessos em  02  set.  2020.

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Mulher Maravilha: um novo paradigma para a mulher moderna

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O filme Mulher Maravilha se inicia mostrando o mundo das Amazonas, na ilha de Themyscira, e como são criadas para serem guerreiras imbatíveis. Conhecemos a rainha Hipólita e sua pequena filha Diana, que se tornará a heroína da história. A Rainha narra a filha – que deseja se tornar uma guerreira – que as Amazonas foram criadas por Zeus para proteger os humanos contra a ira de Ares (deus da Guerra).

Na Mitologia Grega, as Amazonas eram integrantes de uma sociedade de mulheres guerreiras, que não permitiam a entrada dos homens e nem se casavam. Eram independente e lutavam com os homens que tentavam domina-las. Em algumas versões, elas eram proibidas de ter relações sexuais com os homens e esses eram proibidos de viver na comunidade amazona. Mas em outras versões- para preservar a raça–elas tinham relações sexuais com estrangeiros. Os meninos que nasciam destas relações eram, ou mortos, ou enviados ao pai; as meninas eram criadas pelas mães e treinadas em práticas agrícolas, e nas artes da guerra.

As amazonas aparecem em diversos mitos. Um dos mais famosos é um dos 12 trabalhos de Hércules, onde ele precisa roubar o cinturão da Rainha Hipólita. Nessa jornada, seu amigo Teseu sequestrou a irmã de Hipólita, Antíope, e essa morre em batalha contra suas compatriotas. Em vingança, por tentarem roubar o cinturão de Hipólita e por terem levado Antíope como refém, as Amazonas entram em guerra contra os gregos.

Na Mitologia, Hipólita e Antíope são filhas de Ares com a rainha Amazona Otrera. No filme, as irmãs, estão em guerra contra Ares, ou seja, elas estão em guerra com o Pai, por haverem sido reprimidas e esquecidas em uma ilha (no filme escondida por Zeus). O filme apresenta uma visão diferente da cultura patriarcal em relação ao mal. O mal entrou no mundo pelo masculino, em contraste com a cultura judaico – cristã, onde o mal entrou pela mulher. Essa talvez seja uma reação contrária a unilateralidade do patriarcado.

Contudo, no filme o mal também está presente na humanidade. O ser humano é um mosaico de opostos. Luz e sombra convivem em cada alma, e essa guerra interna é a marca do homem ocidental. A princesa Diana nasceu nessa ilha e foi treinada para ser uma guerreira desde criança. Diana é a grande heroína da história e traz uma imagem de feminino bastante valorizada nos dias atuais: o da mulher guerreira e independente.

As mulheres modernas se identificam com esse papel de guerreira e são treinadas desde novinhas a assumi-lo. Hoje a mulher tem sua carreira, cuida da casa, dos filhos e de si própria e cada vez mais desconfia do amor e do relacionamento. Mas ela também é a heroína, ou seja, ela irá restaurar a situação saudável da Psique (Von Franz, 2005).

O filme apresenta dois mundos bem distintos: o das Amazonas, escondido, matriarcal e com um ódio terrível dos homens e o dos humanos, em guerra e estritamente patriarcal. Diana tem como missão unir esses mundos. As Amazonas eram estritamente matriarcais, adoravam a deusa Ártemis – senhora da natureza e vida selvagem -, cultuavam a terra e eram agrícolas.

Como afirma Neumann (1995), o desenvolvimento da psicologia feminina no patriarcado está em oposição a Grande Mãe. Mas ele não deve levar a violentação da natureza feminina através do masculino, nem o feminino deve perder o contato com o Self feminino. O “aprisionamento no patriarcado” representa uma derrota diante da estabilidade matriarcal feminina, por isso a oposição das forças matriarcais forma uma oposição ao aprisionamento do feminino no patriarcado. Podemos ver a ação dessas forças de oposição nas Amazonas e seu ódio aos homens.

Essa força opositora pode parecer regressiva, mas existe nela um elemento positivo no desenvolvimento feminino. Diana é impulsionada por essa “regressão”. O ódio impulsionado pela sombra feminina leva a heroína a uma ampliação da personalidade. Seu nome vem da deusa romana equivalente a Ártemis. Deusa da Lua e da caça, Diana era uma caçadora vigorosa e indiferente ao amor. Portanto, vemos o desenvolvimento provindo do aspecto feminino do Self em uma ação “regressiva”.

Diana observa um avião das forças armadas caindo na ilha e resgata o capitão Steve Trevor. A ilha logo é invadida pelo grupo de alemães que o perseguia. Conhecendo Steve, Diana coloca em movimento as forças masculinas de sua natureza. Ela sai armada de uma espada com ele e passa a percorrer um caminho que se opõe a Grande Mãe. Com ele, Diana vai colocar em movimento as forças masculinas positivas, para então se apaixonar e abandonar toda a inflação que essas forças provocaram em si.

Diana como um ego ideal, mostra como o ego feminino empresta a força masculina positiva para então sucumbir (do ponto de vista do patriarcado) ao amor, assim como Psiquê no mito “fracassa” movida por amor a Eros. A heroína parte rumo ao encontro com Ares para mata-lo e acabar com a guerra, que está destruindo a humanidade. Nesse embate Diana irá se confrontar com o aspecto paterno terrível.

No processo de desenvolvimento psíquico, o confronto com os aspectos terríveis da uroboros materna e paterna são decisivos para a estruturação da personalidade. Diana usa a espada nesse confronto, ou seja, ela ainda se apropria dos aspectos masculinos da personalidade nesse embate. Mas ela realmente se descobre e atinge a realização ao abrir mão da espada.

Steve se sacrifica pilotando um bombardeiro. Ao presenciar a morte do amado – que se sacrifica pela humanidade – Diana acessa o amor e a compaixão, todos aspectos da coniuctio superior, que na alquimia é o objetivo máximo da opus e do processo de individuação (Edinger, 2006). Com esse confronto e com esse amor ela se descobre deusa e imortal, bem como descobre sua missão. Edinger (2006) comenta que a coniuctio superior, o Si – mesmo une e reconcilia os opostos, com isso o ego humano faz com que o Si – mesmo se manifeste. Mas esse sustentar os opostos equivale a uma paralisia que chega às raias de uma verdadeira crucificação.

Jung (1997) sobre a coniuctio diz:“(…) E uma imagem daquele que ama alguém e seu coração é ferido de amor. Assim Cristo foi ferido na Cruz pelo amor à Igreja. ” Ele cita Santo Agostinho: “Cristo caminha em frente como o esposo ao deixar seu aposento; como o presságio das núpcias, sai para o campo do mundo…chega ao leito nupcial da cruz e lá estabeleceu a união conjugal…e entregou-se em castigo no lugar da esposa…e uniu a si sua mulher por direito eterno. ”

Portanto, em Mulher Maravilha, vemos retratado simbolicamente o desenvolvimento feminino rumo a realização máxima do processo de individuação, que ocorre por meio do amor. Diana suporta o sofrimento em si própria e integra os aspectos positivos e negativos de forças arquetípicas. Ela une Logos e Eros em si e se torna um símbolo que pode espelhar o desenvolvimento da mulher moderna em seu processo de individuação.

REFERÊNCIAS: 

EDINGER, E.F. Anatomia da psique:O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade. Ed Vozes. Petrópolis, 1988.

JUNG, C.G. MysteriumConiuctionis. ed.Vozes. Petrópolis: 1997.

NEUMANN, E. Amor e Psique – Uma interpretação psicológica do conto de Apuléio. São Paulo, Cultrix: 1995.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed.Paulus. São Paulo: 2005.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

MULHER MARAVILHA

Diretor: Patty Jenkins
Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Connie Nielsen, Robin Wright;
País: EUA
Ano: 2017
Classificação: 12

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A consciência patriarcal Rogue One: Uma História Star Wars

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Concorreu com duas indicações ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais e Melhor Mixagem de Som (David Parker e Stuart Wilson).

Banner Série Oscar 2017

Os eventos de Rogue One se passam em um momento posterior ao surgimento de Darth Vader e antes dos eventos de Star Wars. A galáxia então se encontra dominada pela ditadura, escravidão e opressão. O Império Galáctico, inicia então uma busca por pessoas que possam contribuir para a construção de uma super-arma de destruição em massa.

Rogue-One-Banner

O designer de armas Galen Erso, é recrutado a força pelo diretor Imperial Orson Krennic para completar o projeto da Estrela da Morte, uma estação espacial capaz de destruir planetas inteiros. O filme traz então questões que são muito atuais, como o advento de um poder tirânico e opressor de escala mundial. A filha do designer – Jyn Erso – se esconde, para não ser morta pelo Império. Após 13 anos, agora uma adulta, Jyn é liberta do cativeiro Imperial pela Rebelião, que planeja usá-la para rastrear seu pai, e depois matá-lo para impedir a arma que está sendo construída.

Jyn é mais uma nova heroína dessa safra de mulheres fortes e guerreiras que estão despontando no cinema. Em meu texto sobre O Despertar da força, aponto que na primeira trilogia, o herói Luke segue bem a cartilha do típico herói mitológico. Luke é o escolhido, aquele que vai restabelecer a situação saudável e acabar com o mal. E assim como em O despertar da Força temos aqui uma mulher como heroína. Ainda no texto sobre O Despertar da Força, cito que a Trilogia inicial de Star Wars é baseada na Jornada mítica do herói Solar. Onde toda sociedade Ocidental se encontra sob o estigma desse herói que pautou a entrada da era Patriarcal do homem Ocidental.

Jyn Erso (Felicity Jones).
Jyn Erso (Felicity Jones).

Erich Neumann (1995), trata com detalhes esse assunto do herói Solar, afirmando que a consciência do ego tem um caráter masculino e que a relação consciência – dia/luz, e inconsciente/escuridão/noite se mantêm independente do sexo. Ele diz também, que a consciência é masculina mesmo nas mulheres, assim como o inconsciente é feminino. Ele então define a consciência patriarcal, que se separa do inconsciente e fica livre de suas influencias.

Jyn Erso (Felicity Jones) e Cassian Andor (Diego Luna).
Jyn Erso (Felicity Jones) e Cassian Andor (Diego Luna).

Portanto, para Neumann, a mulher moderna, assim como os homens, possui uma consciência patriarcal e um ego denotado pelo herói masculino solar. O que as recentes adaptações têm feito é transformar a figura feminina em uma cópia exata do modelo masculino. Para a psicologia analítica os heróis míticos e dos contos de fadas são modelos arquetípicos para o ego humano. O herói masculino não deve ser considerado como um humano, mas como um modelo ideal de um ego em consonância e harmonia com a totalidade psíquica.

Tanto heróis como heroínas servem como modelo arquetípico, para homens e mulheres, do masculino e feminino. Apesar da crescente aparição das heroínas representar a busca de expressão feminina que foi reprimida durante muitos séculos, vemos um movimento ainda de unilateralidade, onde os valores tipicamente masculinos estão sendo valorizados também nas mulheres.

"Que a Força esteja conosco."
“Que a Força esteja conosco.”

Jyn Erso possui também traços do herói solar: assim como Luke, ela está em busca do Pai. O Pai na psicologia analítica simboliza a realização externa, a segurança material, a eficiência, a realização profissional. Ou seja, tudo aquilo que é voltado para a realização no mundo externo. E essa premissa é o que ainda norteia nossa sociedade, à custa de uma separação do mundo interior.

Como uma Electra vingativa, Jyn busca a revanche pela sua morte e pela sua memória manchada. O mito de Electra, que planeja a morte da mãe coagindo seu irmão Orestes a matá-la junto com o amante, em função do assassinato do pai, é o mito que mostra a transição do matriarcado para o patriarcado. Porém, apesar de estarmos ainda enraizados no patriarcado, essa representação mais expressiva da mulher guerreira no cinema, já mostra um indicio de uma reflexão sobre o que é ser feminina. As discussões são muitas sobre a questão do feminino, mas ainda estamos longe de resgatar esse arquétipo para a consciência coletiva, pois temos como referência ainda o que é masculino.

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Por isso, com esse texto resolvi abrir essa discussão, pois a unilateralidade, prejudicou não somente as mulheres, mas os homens também. Até a masculinidade madura foi suprimida da sociedade, e no lugar do masculino sábio, encontramos meninos perdidos, pois o processo de desenvolvimento psíquico individual e coletivo ocorre na dinâmica e interação desses dois princípios. Masculino só pode ter referência com o feminino e vice versa.

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

NEWMANN, E.História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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ROGUE ONE: UMA HISTÓRIA STAR WARS

Diretor: Gareth Edwards
Elenco: Felicity Jones, Diego Luna, Donnie Yen, Mads Mikkelsen
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 12

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Márcia Tiburi: O mito do sexo e a mudança no formato de conversação

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Se nosso ser político se forma em atos de linguagem, precisamos pensar nessa formação quando o empobrecimento desses atos se torna tão evidente. O autoritarismo é o sistema desse empobrecimento – Márcia Tiburi, em “Como falar com um fascista”

Em uma de suas participações no programa Café Filosófico, da CPFL Cultura, a filósofa Márcia Tiburi apresentou uma visão instigante sobre a desconstrução do mito do sexo. Para tanto, iniciou sua tese a partir da Grécia Clássica e, irreverente, disse que o útero é o grande fundador da filosofia. Isso pode soar estranho, no entanto ao apontar o método da maiêutica (parto) criado por Sócrates, a assertiva da filósofa ganha um novo sentido. Márcia Tiburi defende que, em razão de Sócrates não poder seguir a profissão de sua mãe, que era uma parteira, “ele então resolveu que faria algo melhor do que ela”. Desta forma, em vez de fazer o parto do corpo (cuja profissão era restrita ao universo feminino), faria o “parto das ideias”. Com isso, a criação da filosofia como a conhecemos hoje surge a partir de uma metáfora. A filosofia passa a ser caracterizada como um “partejar das ideias”, no sentido de “ajudar o outro a dar a luz às suas próprias ideias, algo que está guardado dentro dele, como se fosse um filho (ou seja, a metáfora da maternidade está funcionando aí o tempo todo)”, explica Tiburi.

Sócrates, assim, teria demonstrado possuir uma enorme inveja da sua mãe, por não poder realizar aquilo que ela fazia, que era “reproduzir o corpo, reproduzir a vida”. E é a partir desta falta, desta ausência, que ele reencena, recria o gesto de sua mãe. Neste ponto, diz Tiburi, “se for levar em conta o conceito de histeria naquilo que há de ‘teatro’, no hystera (útero), a filosofia já contém o germe do histérico”.

E onde ficavam as mulheres, durante este processo de “partejar as ideias”?, provoca Tiburi, para logo emendar: “Reclusas no Domus (casa em latim), no Oikos (casa em grego), que na verdade já era um protótipo de um campo de concentração”. E o que os homens faziam, neste ínterim? O que frequentemente, na história da humanidade, eles sempre fizeram: ocupar o espaço público, como o próprio Sócrates fez. Isso fica claro numa passagem de “O Banquete” de Platão, quando num dado momento os homens se preparam para começar um debate e pedem para a flautista sair do ambiente. “Deixem-na tocar para si mesma, ou para as mulheres lá dentro… mas procuremos agora o entretenimento através do diálogo”, destaca o texto.

Diante desta breve construção histórica, Márcia Tiburi diz que o mito do sexo é um dos quais a filosofia não conseguiu, até hoje, se posicionar de forma adequada. “O mito é uma narrativa que é construída para se colocar no lugar da ausência da lógica. Esta é uma interpretação tradicional e, em alguma medida, clichê. É uma interpretação básica, que é boa e justa, mas que não engloba todos os aspectos”, enfatiza. Neste sentido, a filosofia pode ser interpretada como uma negação ou mesmo uma superação do mito. Isso ocorreu de forma sistemática porque a filosofia quis garantir uma espécie de “reserva de marcado”, afinal o mito ocupava um amplo espaço à época. “Mas o mito não foi eliminado. Continuamos usando e criando mitos em nossas vidas a cada dia. A indústria cultural lança os novos mitos para saciar a nossa ‘sede’ e nossos desejos”, defende a filósofa.

Márcia Tiburi diz que por mais que se queira eliminar de cena certos mitos, pela força arquetípica de que está imbuído, isso não seria possível. “Vide o caso de Édipo (Édipo Rei, Sófocles, séc. V a. EC.), cujo mito se repete nas estruturas das famílias e mesmo na história da literatura. Um exemplo é o caso de Hamlet (de Shakespeare), que se configura como a renovação da estrutura do Édipo”, lembra, ao reforçar que a própria composição da literatura é uma renovação dos mitos ou um modo de mantê-los vivos. “O escritor Jorge Luiz Borges (1899 – 1986) costumava dizer que toda a literatura é uma releitura da Ilíada, da Odisseia e dos Evangelhos. Isso é até muito lógico, pois por mais que sejamos seres humanos com estilos e gestos diferentes, no final das contas estas diferenças são milimétricas”, reforça.

Tiburi explica que Platão, no “Timeu”, foi o primeiro filósofo a dizer que as mulheres tinham um animal dentro do seu corpo (o útero). Para ele, este animal quando estava insatisfeito perturbava tudo, inclusive o raciocínio. Por esta visão, tratava-se de um órgão atuando por outro órgão. “Talvez isso é o que tenha feito, segundo dizem as más línguas, Schopenhauer (1788-1860) dizer que as mulheres pensam com os ovários”. E como é visto útero, então? É este grande buraco, que ao mesmo tempo é o representante da animalidade do ser humano. A mulher, desta forma, passa a ser compreendida não como alguém que é dominada por seu cérebro – portanto, não é um sujeito capaz de fazer uso de sua racionalidade –, mas por viver “sendo capturada por essa animalidade que vem se dizer com toda a força”.

Em relação a Kant, Márcia Tiburi destaca que ele vai deixar explícito em vários textos que é preciso buscar e realizar, o tempo inteiro, o ideal de humanidade, posto que se não se realizar tal ação “estaremos sempre submetidos à menoridade da nossa condição humana”. Tiburi lembra que o filósofo prussiano deixa muito claro que as mulheres só podem participar desta humanidade de maneira restrita, enquanto são tuteladas por seus maridos. Assim, numa retomada ao ideário grego, competiria às mulheres ser o belo sexo, “bibelôs que ficam dentro de casa, num bem decorado campo de concentração, enquanto os homens vão para a esfera pública exercer o poder”. E é justamente neste ambiente de amplo debate sobre a condição humana, com a ênfase de Kant, que as mulheres começam a reivindicar sua posição dentro deste ideal de humanidade. Isso ocorre entre o final do século 18 e início do século 19. Uma dessas mulheres é Mary Wollstonecraft (1759 – 1797), que foi uma das primeiras a questionar as diretrizes deste ideal. É ela, assim, que define o feminismo como uma busca pelos direitos da humanidade, sem restringir a abrangência ao universo dos direitos das mulheres.

Voltando a questão do mito, Márcia Tiburi diz que ele surge quando não se tem uma resposta lógica e racional, que possa ser testada de forma empírica. Assim, “para o nosso medo da morte, criamos Deus. Ou livros, filhos e plantamos árvores. Todos estes são mitos”. Em síntese, o mito é a resposta para o vazio que é promovido por uma pergunta cruel que envolve um sentido, e que faz sofrer. A resposta do mito, portanto, é no sentido de que o sofrimento seja amenizado.

E por que o sexo se transformou num mito? “Porque o sexo virou a grande resposta para o nosso sentido. Sobre isso, o livro ‘A história da sexualidade’, do Foucault, é uma das poucas obras que alerta para a questão de que o sexo teria sido uma armadilha da qual nós, até agora, não conseguimos nos livrar. E que espécie de armadilha é essa? Ora, é o mito no qual a gente acredita. Ou seja, acredita-se que o sexo nos constitui como algo essencial. Que ao descobrirmos o sexo, descobriríamos quem somos”, arremata Tiburi.

Conversação

A filósofa lembra que quando Freud inventa a Psicanálise, ele altera o formato da conversação. Se a filosofia, em seu início nos pré-socráticos – sobretudo em Pitágoras, passando por Platão e Aristóteles –, era conversação num diálogo que só poderia ocorrer entre homens, Freud começa a ouvir as histéricas que manifestavam no corpo o mutismo em relação à linguagem, na virada do séc. 19 para o séc. 20. “Como se o corpo viesse a revelar aquilo que ficou proibido de se dizer na linguagem organizada e discursiva que utilizamos para se comunicar. O corpo, então, manifesta aquilo que não foi dito”, destaca Tiburi.

Freud descreve que os casos de histeria, em parte, estavam ligados à abstinência sexual. Mas ele fala também, no caso da paciente Anna O., que a mulher é tolhida ao não ter direito de viver dentro da esfera pública. No caso específico de Anna O., isso foi observado porque toda vez que ela fazia um exercício de intelecto, ao falar sobre sua vida, ela ficava bem. “Então Freud faz uma revolução, no território da linguagem, ao modificar a cena da conversação, quando passa a ouvir uma mulher. Isso ocorre depois de tentar o uso da hipnose. Ali houve um princípio de revolução feminista”, diz Tiburi, mesmo que este não fosse o foco do pai da psicanálise.

Márcia Tiburi lembra que Freud é muito criticado por parte das feministas, “mas este ato corajoso [de ouvir as mulheres] ninguém ainda tinha tido. Isso deve ser creditado a ele”. Freud então passa a supor que lá, naquilo que a mulher tem a dizer, encontra-se um saber. “Ele estava confiando num saber que aquela pessoa detinha por ter experimentado a própria vida”, pontua Tiburi. Esta foi uma verdadeira revolução, que inclusive exerceu forte impacto sobre toda a filosofia.

A mudança de ênfase envolveu uma escuta, então, para tudo aquilo que não podia ser dito. Trata-se de uma escuta do mutismo. “Se isso não é contraditório, no mínimo é dialético. Como eu vou escutar o mudo? Já que ele é aquele que não fala? Eu tenho que reconhecer que ele se declara em outro lugar. E que lugar é esse? É o corpo”, esclarece a filósofa, que acrescenta: “Ouvir a voz que não se diz. Esta é também uma questão filosófica”.

O masculino e o feminino

De acordo com Márcia Tiburi, o que há de mais desconcertante a se falar para uma mulher é que “ela é tão feminina, porque tem as mãos delicadas e a pele tão delicada”… Haveria uma redução do feminino à delicadeza. “No entanto, esta é uma construção patriarcal que está em todos os lugares. Não se tem mais como fazer uma genealogia que nos leve à origem do patriarcado, porque toda a história, linguagem e racionalidade é patriarcal. Pode-se escapar disso? Só reconstruindo a partir de uma crítica consistente e interna ao patriarcado”, observa Tiburi, ao acrescentar que o mundo público é dos homens, e o mundo privado também é deles, “porque ele é interno à esfera pública. O feminino, assim, é uma construção deste patriarcado”.

A filósofa lembra que muitos(as) autores(as) e feministas declaram que o feminino é uma essência, uma natureza que precede as construções sociais e históricas. No entanto, isso que se chama de feminino é algo extremamente amplo e vago, a negativa de um paradigma do que seja o masculino. Este último é colocado de forma mais precisa, por estar configurado no universo público das ações e das decisões. “A grande pergunta é: de que me serve ser feminina? De que me serve ser uma mulher? De que me serve acreditar no meu sexo? Se não escolhemos nosso sexo ao nascer, somos a nossa própria condição, como defende Ortega y Gasset. O meu corpo, neste sentido, me é inexorável. Eu não posso escapar do meu corpo, nem do lugar geográfico que meu corpo ocupa, nem da minha anatomia. Se a minha anatomia não combinar com o meu desejo, eu vou conviver dentro de um conflito. Pode até ser bom. Pode-se até se sentir bem vivendo dentro de um conflito”, conclui Tiburi.

E se o sexo deixar de ocupar um lugar de destaque na esfera humana, haveria o risco de colapsar o que se entende por humano? Esta indagação é limitante, pontua a filósofa, porque coloca o sexo como um sentido final. Há, antes de tudo, uma troca, uma relação. O objetivo geral, em tese, é ter uma vida criativa e produtiva, que se configure de forma justa e decente. O sexo faz parte deste arcabouço. “Quando eu fiz a crítica ao mito do sexo, eu quis mostrar que o sexo não pode ser o foco do nosso sentido. Porque o foco do nosso sentido tem que ser o único lugar onde, de fato, se configura com lucidez a noção de sentido, que é o todo. Eu não posso pensar no sentido sem pensar no todo”, explica Márcia Tiburi.

Desta forma, no contexto da relação que se estabelece com “nosso sexo, que chamamos de sexualidade, seria bem interessante que se desenvolvesse uma política do sexo”. Isso na acepção de “desrecalcar” e, no bom sentido, “desmoralizar” a moral sexual, “que atualmente é pérfida, embora a cada dia se torne menos pérfida”. A filósofa diz que as manifestações de abertura sexual que a sociedade vive atualmente são benéficas para todos. Aos poucos, começa-se a ruir a tendência a acreditar nos gêneros. “Estamos deixando de ser homem e mulher, estamos deixando de fazer aquele papel histriônico teatral do ‘eu sou mulher, você é homem’. Isso envolve respeitarmos as novas anatomias, e as possibilidades que estas anatomias trazem, mas já há um movimento de abandono de muitas das paranoias e neuroses em relação ao ideário do sexo”, arremata.

Por fim, Tiburi diz que atualmente é possível que as pessoas se declarem para além das sexualidades impostas ou dos gêneros já pré-definidos. Então, começa-se a pensar na pessoa em sua dimensão mais ampla, próxima de uma expressão de liberdade. E este sujeito passa a se afirmar pelo que ele é, não pelo que o outro espera que ele seja. Ganha força, com isso, a desconstrução de tudo o que até então sustentava o mito do sexo.

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