Relações midiáticas e produções de Saúde

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“A qualidade dos médicos no Brasil. A formação aqui é péssima. Não existe, em muitos cursos, nem treinamento prático adequado. E há ainda a invasão de (mal) formados em Cuba e na Bolívia “(Folha São Paulo, 2012).

“Treze mil médicos são diplomados ao ano, mas faltam profissionais” (O Globo, 2012).

“O exame realizado Cremesp prova a péssima qualidade da formação médica no Brasil. Em 7 anos 46,7% dos 4.821 alunos que o realizaram foram reprovados”(saúde web,10/2012).

Nos últimos meses temos sido bombardeados por notícias referentes aos cursos de medicina e a falta de profissionais em saúde (a mídia nomeia profissionais de saúde como apenas a classe médica). As quais nos fazem ficar indignados com a precariedade do atendimento à saúde, a falta da dignidade humana, a preocupação com o futuro da saúde do mundo, e principalmente do país.

Um dia ouvindo e vendo estas notícias, comecei a me indagar sobre as outras formações referentes à saúde, como enfermagem, fisioterapia, biomedicina, odontologia, psicologia e tantas outras, como elas andavam. Se aquele dia que a televisão havia ido visitar o hospital, se tinham enfermeiros, fisioterapeutas… no atendimento, ou ainda, se tinha faltado o plantão, apenas o médico? Certamente, deveriam ter outros profissionais, no entanto, no senso comum, “sem médico, a saúde não vai para frente”. Desta maneira, é preciso ter as 196 Escolas de Medicinas no país a fim de promover melhorias na saúde. Será necessário, mesmo?

Não quero aqui, diminuir a formação médica ou até mesmo retirar a necessidade de reflexão e novas práticas na formação acadêmica desta graduação, assim como as intervenções referentes a esta profissão. Entretanto, o que não pode deixar de levar em consideração é que a assistência em saúde não diz respeito apenas ao médico, mas é composta por uma gama de outras especialidades que se unem para cuidar da integralidade do ser humano. Compreendendo inclusive, que a saúde não seja ausência de doença para que seja cuidada como algo especificamente biológico. Mas que seja um bem-estar físico, mental, levando em consideração a autonomia, justiça, beneficência (Araujo, Brito, Novaes, 2008). Entendo que a agenda midiática utiliza destes discursos para favorecer a postergação do modelo biomédico e o hospitalocêntrico.

O modelo biomédico surge no final do século XIX e início do XX, a partir das influências da Escola de Cnido, Modelo Cartesiano, Medicina dos Tecidos e do Positivismo. Este modelo se caracteriza a partir dos aspectos do: reducionismo biológico, exclusão do psíquico e uma visão fragmentada do ser e do adoecer (De Marco, 2003).  Já o modelo hospitalocêntrico é centrado na assistência hospitalar e atenção curativa. Estes dois modelos se retroagem.

O modelo biomédico é uma ideologia que sustenta e justifica uma maneira de produzir cuidados ao paciente através de práticas medicamentosas, especialistas. Onde, medicam mais, realizam mais cirurgias e escutam e olham menos para o ser que está na sua frente. E só para lembrar, existem outras maneiras de cuidar, por mais que estejamos esquecidos.

Manter esta agenda midiática por meio da compra destes discursos é uma forma de aprovar o não-olhar do médico para o paciente. As notícias veiculadas na mídia produzem subjetividades, tanto naqueles que estão nos postos de saúde, hospitais trabalhando e os que vão nestes locais buscar saúde. Então, se vamos questionar as práticas e a formação em medicina, por quê não questionar também as outras formações que abrangem a saúde, as formas de cuidado. A saúde não se restringe à Medicina! A sociedade não pode deixar que a saúde assim se configure.

Referências:

DE MARCO, Mário Alfredo. A Face Humana da Medicina: do Modelo Biomédico ao Modelo Psicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

ARAÚJO, Arakén Almeida; BRITO, Ana Maria de; NOVAES, Moacir de. Saúde e Autonomia: Novos Conceitos São Necessários? Revista Bioética, vol. 16, n° 1, 2008.

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patch adams

Patch Adams e seu amor que contagia

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“Quando um médico passou a ser mais do que um amigo de confiança e conhecimento, que visita e trata dos doentes?”
Patch Adams

Após se internar em uma clínica psiquiátrica por tentar suicídio, Hunter Adams descobre em si um potencial e vontade para ajudar os outros, dando-lhes atenção e ouvindo suas queixas. A partir de então, um dos amigos que faz enquanto esteve na clínica passa a chama-lo de Patch Adams, devido a sua capacidade de ajudar e curar as outras pessoas, assim como o ajudou. É neste momento, então, que decide ir para a faculdade de medicina onde se depara com a desumanização da profissão a partir dos preceitos pregados aos estudantes, através de pressupostos extremamente ortodoxos onde os alunos decoram estruturas biológicas e evita-se a dita transferência, ou seja, ligação emocional que se forma entre médico e paciente, dentre outros fatores, que leva o futuro médico a tornar-se próximo de um ser humano. Ao ingressar na faculdade de medicina, Patch visita regularmente o hospital conhecendo e fazendo amizade com as enfermeiras, e visitando os pacientes.

No presente momento no qual estamos vivendo, onde se gera uma discussão a respeito da aprovação do Senado sobre a Lei do Ato Médico, o filme nos mostra uma realidade ainda muito presente, a hierarquia entre a medicina e as demais profissões da área da saúde. Hunter Adams constrói uma imagem absolutamente diferente do estudo da medicina vigorada na época. Através do acolhimento e do afeto, Patch defende a qualidade de vida dos pacientes, buscando conhecê-los, realizando sonhos e mostrando a medicina como uma forma prazerosa de tratar das enfermidades. Uma das cenas marcantes do filme é quando em sua primeira visita ao hospital, Patch acidentalmente entra na ala pediátrica e se depara com diversas crianças deitadas. Utilizando-se de ferramentas médicas, faz um nariz de palhaço para divertir as crianças.

No momento de seu ingresso, ainda, Patch Adams apaixona-se por Carin Fischer, sua colega de faculdade e uma das poucas mulheres no curso de Medicina. No entanto, Carin não se demonstra interessada em prosseguir com o romance e, no decorrer do filme, Patch Adams conquista sua confiança e seu coração com o afeto que demonstra com as demais pessoas e a paixão pela verdadeira prática da medicina. Conhece, ainda, Truman Schiff, um simpático jovem rapaz que torna-se seu amigo de imediato, instigado a conhecer seus métodos.

Apesar de seus métodos pouco convencionais, Patch Adams é o primeiro da turma, com ótimo desempenho escolar. Todavia, suas notas não são o suficiente para convencer o reitor da universidade de medicina de seu enorme potencial como médico inovador das políticas da medicina. Enquanto Adams convive diariamente com os pacientes do hospital, tornando-os mais acessíveis, alegres e saudáveis através do elo emocional que é construído, a sociedade médica, em especial o mesmo reitor, sente-se ameaçado por esta atitude, repudiando-a e levando a juízo.

É através desse paralelo entre humanização da prática da medicina e o “endeusamento” do profissional que atua na medicina, que o filme nos mostra a importância da aproximação do profissional com o paciente, pois, desta forma, a qualidade de vida do paciente melhora exponencialmente, além da aceitação do tratamento. E é com esta paixão por exercer a profissão, esta humanização e melhoria da qualidade de vida através da atenção ao doente, que Patch Adams nos transmite a mensagem “o amor é contagioso”, pois este é o sentimento que um médico deve transmitir a seus pacientes.

No momento culminante do filme, quando Carin é assassinada por um dos pacientes que Patch ajuda, ele passa a se culpar por tê-la ensinado a medicina de ajudar a todos sem descriminação, assim como seu ideal de ser humano. Decide, então, desistir de seguir com seu sonho. Só então, quando coloca-se em reflexão, percebe a provação pela qual teve que passar para compreender o que é ser médico. Lidar com a morte como uma parte inevitável da vida e torná-la o menos dolorosa possível, não como o inimigo indestrutível. O verdadeiro inimigo da saúde é a indiferença que acarreta a falta de saúde, ou seja, a falta de qualidade de vida o que inclui dignidade, decência, condições saudáveis de existência e não simplesmente a ausência de patologias.

É com a paixão em ajudar ao outros que Patch finaliza o filme formando-se com mérito em medicina, levando consigo diversos outros médicos que apoiam seus métodos e sua causa.

Gosto de pensar neste filme como uma lição de vida, não só para futuros médicos, como também para todos os profissionais da área da saúde – e demais áreas que lidem diretamente com o ser humano -, pois, como estudante de psicologia penso no impacto que minhas palavras e atos causam no outro e a importância de transmitir afeto às pessoas que nos procuram. Além do mais, a proposta de igualar a figura do médico aos demais profissionais é crucial, pois, somente assim, é possível pensar na saúde através de uma equipe multidisciplinar.

FICHA TÉCNICA  DO FILME:

PATCH ADAMS

Título original: Path Adams
Diretor: Tom Shadyac
Roteiro: Steve Oedekerk
Elenco: Robin Williams, Daniel London, Monica Potter, Philip Seymour Hoffman;
Ano: 1998
País: EUA
Gênero: Drama

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História da Loucura, cinquenta anos depois… ainda é um livro atual?

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Há cinquenta anos Foucault publica seu livro sobre a história da loucura na idade clássica. Trata-se da formação de uma percepção da loucura como doença mental, a partir dos jogos de poder/saber característicos das sociedades européias dos séculos XVII e XVIII. A prática de enclausuramento do louco em instituições fechadas marca a emergência da relação de oposição entre loucura e civilização. Desse modo, Foucault condiciona a nossa experiência médica da loucura às práticas sociais, definindo-a como fato cultural e não natural e individual.

Assim, uma tese central no livro “História da loucura na idade clássica” de Michel Foucault, publicado em 1961, é a de que a intervenção médica sobre a loucura remonta às práticas de exclusão, portanto, implica dominação.

Ora, testemunhamos hoje reformas psiquiátricas, que consistem na abolição de práticas de exclusão dos doentes mentais nos hospícios. Daí, nossa indagação: o livro História da loucura é atual? Ou seja, as teorias e as práticas em saúde mental e psiquiatria podem ainda ser analisadas à luz das relações de poder?

Hoje, a psiquiatria goza de um alto prestígio no meio científico devido à objetividade das noções diagnósticas e ao tratamento farmacológico. Seu sucesso extrapola o campo estritamente médico, pois seus termos clínicos, como por exemplo, depressão e ansiedade, são usados cotidianamente pelos próprios indivíduos para descrever seus estados mentais. Vemos, então, a psiquiatria cada vez mais afastada daquela imagem que a caracterizou desde sua emergência, no século XIX, até meados do século passado, como prática autoritária, segregacionista e violenta.

Assim, alguns podem afirmar que a psiquiatria hoje não exclui, mas, ao contrário, visa à inclusão, portanto, não exerce relação de poder, mas de saber.

Ora, é essencial esclarecer, que a tese fundamental desse livro é a de que a loucura é ontologicamente, e não somente circunstancialmente, um fato cultural, quer dizer, a loucura como realidade cultural é um fenômeno que diz respeito aos modos como indivíduos se vinculam uns com os outros, (identificando-se, individualizando-se, opondo-se) e  suas instituições. Pois, mais do que para os maus tratos ou inoperância da clínica médica, Foucault chama atenção para o caráter constitutivo das relações entre loucura, ciência e laços sociais.

Portanto, podemos dizer que a História da loucura é um livro atual, na medida em que é a referência para os questionamentos acerca das relações de poder e saber subjacentes as políticas contemporâneas de promoção de saúde mental.

Daí, nossas indagações:

1) Que forma de poder caracteriza essas práticas(saúde) e quais seus efeitos no indivíduo e na coletividade?

2) Em que medida podemos dizer que as práticas em saúde mental rompe com a relação de dominação da loucura, uma vez que se afasta do modelo do enclausuramento?

Em linhas gerais, podemos dizer que as práticas e os saberes em saúde mental podem ser considerados dispositivos de normalização, pois, seguindo a linha de raciocínio inaugurada por Foucault, são intervenções que definem formas de subjetivação e de relações sociais a partir do imperativo da qualidade de vida, quer dizer, da realização subjetiva e social do indivíduo. Eis, assim, a grande expectativa acerca da saúde mental.

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acupuntura

A psicologia, a medicina e a acupuntura

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A psicologia e a medicina, em especial sua especialidade “psiquiatria”, luta, há alguns séculos, nas cordas tensas que ligam (ou separam) a metafísica e o biológico; essa própria dicotomia está, na verdade, ultrapassada (porém presente) por outras lógicas, dentro mesmo da psicologia e da medicina, que usa diversos fatores para discursar a cerca de suas preocupações, fatores que vão além do modelo cartesiano ou das explicações centradas no biológico. Essas duas disciplinas usam de muitas palavras para se falar das doenças. Isso ocorre em especial na psicologia e na medicina ocidental, com o detalhe de que essa vida não se resume ao lado ocidental do globo terrestre, mas, contraditoriamente, engloba culturas orientais que, na globalização, diluem ou já perderam suas características como o holismo, a coletividade, a meditação em contraponto a características do capitalismo ocidental como a fragmentação, o individualismo e o imediatismo.

Em meio a esse contexto, encontra-se, na medicina chinesa (sobre a qual desconheço a característica dominante de orientalidade ou ocidentalidade, se, de fato, seja possível essa caracterização), enfim, encontra-se, na medicina chinesa, a acupuntura. É também com pouca propriedade que dela aqui falo, mas é pra isso que, também, servem as notas, não para dizer verdades, mas para expor pensamentos, inquietações e literaturas. A acupuntura, em seu discurso, pode se caracterizar (caracterizo-a eu) como uma volta à metafísica, pois se alicerça no meridiano para fundamentar sua prática. O meridiano é um veio por onde a energia pode andar normalmente, correr ou estagnar. Mesmo que energia seja, hoje, um conceito empírico, essa da acupuntura não o é; nada mede o meridiano e sua energia, nada os fotografa, ninguém os tateia, enfim, o meridiano e sua energia são abstrações. Escrevo isso, não para desqualificar essa parte da medicina, que ainda não se distanciou da filosofia; faço curso de acupuntura, acredito em seus efeitos e acho que essa característica de não se distanciar de uma determinada filosofia é, no mínimo, interessante, analisadora.

Escrevo essa nota, apenas para apontar essa simples contradição: a acupuntura é, em seu discurso, metafísica, mas é, em sua prática, resolutiva àquilo que se propõe (logicamente que não é a tudo, seria contraditório à sua filosofia); é empiricamente resolutiva. Aqui no ocidente essa afirmação é, apenas, potencialmente verdadeira. Aqui, dominantemente, as afirmações só viram verdades se comprovadas pelo método positivista, com os grupos teste e controle que nos dão números comprobatórios. Creio que, na China, os acupunturistas não estão preocupados em comprovar cientificamente os efeitos dessa terapêutica. Parece bastar o agradecimento das pessoas quando lhes são aliviadas alguma dor pela aplicação das finíssimas agulhas. Povinho estranho…………………………………………………………………..esse do ocidente.

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Philippe_Pinel_à_la_Salpêtrière

Desacorrente-os

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Meu nome é Philippe Pinel, nasci no dia 20 de abril de 1745, em Saint André, França. Sou médico e filósofo. Consideram-me o “Pai da Psiquiatria”, devido a alguns trabalhos que resolvi fazer nos hospitais de Bicêtre e La Salpêtrière, em Paris. Hoje, vou contar para vocês a minha história e a de como surgiu à psiquiatria.

Aos meus 28 anos, eu me diplomei na Faculdade de Medicina de Toulouse e passei mais quatro anos me aperfeiçoando nos conhecimentos de Medicina nos hospitais. Para sobreviver, dava cursos e realizava trabalhos acadêmicos.

Em 1778, cheguei a Paris e o que me sustentou, à época, foram as aulas e as traduções de trabalhos científicos. Foi nesse período que comecei a me interessar pela doença mental, visitando doentes e escrevendo minhas observações em artigos.

Aos quarenta anos de idade, voltei minha atenção à psiquiatria, por causa de um amigo que vinha padecendo de uma psicose maníaca aguda. Quando comecei a me aprofundar nessa nova área percebi que havia muitas coisas erradas. Um exemplo: como pode uma pessoa passar 30 anos acorrentada em seu quarto e, o pior, por pessoas que deveriam protegê-la? Difícil encontrar lógica terapêutica nisso. Mas só comecei a tratar de doentes mentais mesmo em 1786.

No final do século XVIII, no ano de 1789, estive entusiasmado com e engajado na Revolução Francesa, momento histórico propício às transformações econômicas, sociais, políticas e marcante para a história da psiquiatria e da loucura. Até essa época, os Hospitais Gerais eram comandados pela autoridade real e pelo clero, que internavam pobres, doentes, pedintes, miseráveis, criminosos, entre vários outros excluídos.  E os loucos, coitados, no meio dessa multidão, desassistidos de cuidados. Eram excluídos por ignorância e por causa dessa também são tidos como vítimas de um castigo divino, endemoniados etc. Era difícil pensar em uma recuperação em um ambiente tão inóspito como aquele. Acredito que a loucura é uma doença, um desarranjo da mente, que ela deve ser tratada e não uma condição de ser do indivíduo.

Foi a partir desse momento, que comecei a pensar nos hospitais como locais para o tratamento dos doentes mentais, no sentido de humanizá-los e adequá-los ao novo espírito moderno. Apropriado pelo médico, e não mais pela autoridade real, o hospital se transformou em uma instituição medicalizada. E é esse processo de medicalização da loucura que faz com que surja, na medicina, sua primeira especialidade: a psiquiatria.

Enfim, no ano de 1792, casei-me com Jeanne Vincent, que me concedeu três filhos. No ano seguinte, fui nomeado médico-chefe, por influência dos meus amigos (Cabanis e Thouret), do Asilo de Bicêtre. Lá era um local destinado a doentes mentais do sexo masculino, onde os loucos eram acorrentados, em celas baixas e úmidas.

No ano de 1795, assumi mais um cargo de médico-chefe, agora do Hospício de Salpêtrière, um asilo destinado a doentes mentais do sexo feminino, onde também as loucas eram mantidas acorrentadas, às vezes por 30 a 40 anos.

Em relação ao adoecimento mental, defendi, durante minha vida, que ela não acontecia pela perda absoluta da razão e sim por uma alienação dela, motivada por algum distúrbio no âmbito das paixões. Acreditei ainda que o doente mental poderia representar um sério perigo à sociedade por perda da capacidade de discernimento entre o erro e a realidade.

Então, para tratar uma alienação mental precisei isolar o meu paciente do mundo exterior. Concluí que se eu hospitalizasse esse doente, estaria utilizando um instrumento que facilitaria a cura. Passo importante a se tomar perante o alienado, afastando-o das interferências que pudessem prejudicar a reeducação das mentes desagregadas e de suas paixões incontroláveis, as quais lhe tiraram a razão, afastando os delírios, as ilusões e fazendo com que esse doente retornasse à realidade. Tais medidas continham o princípio do que chamei de tratamento moral.

Ainda faziam parte do meu estudo as relações dos alienados com seus familiares e mesmo com os profissionais do hospício. E para isso, precisei me preocupar com o treinamento adequado do meu pessoal auxiliar e com a eficiência da administração do hospital. Aboli todos os tratamentos como sangria, purgações, em favor de uma terapia, em que eu pudesse ter mais contato e ser amigável com o doente.
Com isso, passei a conhecer o alienado, estudando e observando seus comportamentos. Comecei a descrever, a comparar, e analisar o alienado para formulação do trabalho terapêutico. O hospital começou a me servir de laboratório de estudos sobre as diversas formas de alienação mental.

Em 1801, escrevi o primeiro livro da psiquiatria, após introduzir várias inovações na prática dos hospitais de alienados. Publiquei o Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania e, nele, concentrei-me sobre a psicose maníaca, a qual considero a doença mental mais típica e a mais frequente no alienado. Oito anos depois, na segunda edição desta obra, acrescentei as experiências adquiridas em Bicêtre e em La Salpêtrière.

Eu, Philippe Pinel, propus libertar os loucos das correntes, pois – enquanto acorrentados – eles eram maltratados e algemados anos seguidos. Minha proposta foi tida como muito revolucionária para os padrões da época, mas teve um grande peso, visto que outros hospitais voltados ao tratamento do alienado foram criados a partir do modelo proposto por mim.

Dessa forma, restaurei a razão por meio de tratamentos morais, de modo a curar os alienados, tornando-os novamente senhores de suas vidas.

Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.

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A Hegemonia do Pensamento

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Somos mesmo uma caixinha de segredo. Como pode uma jovem, bonita e estudiosa, no término do curso de medicina, do nada, parar no tempo?

Em um dia qualquer rotineiro de sua vida, essa jovem teve uma emoção muito forte, que mudou completamente  sua visão de mundo, de seus sentimentos e pensamentos em relação à vida, apresentando mudanças do humor. De imediato ficou calada, inquieta, tentava explicar alguma coisa, mas, suas justificativas eram sem nexo. Apresentava alteração do juízo da realidade, assustava-se com barulho e presença de outros que não fossem os mais próximos. Fechava-se em ambiente escuro e muitas vezes se escondia debaixo do leito. Completa inapetência.

Foram meses de agonia e tristeza para todos da casa. Seu físico se definhou, não sorria e seu olhar era profundo e fixo em quem com ela falava. Sentia que tentava passar algum sentimento escondido. Tentando sair dessa agonia e se mutilou com lâmina de bisturi, na altura do seio. Perguntei-lhe o motivo desse ato e ela me disse que tinha um desejo em saber como era a vida após a morte, mas a dor a impediu de continuar. Relembro como se fosse hoje ao relatar esse caso, ainda sinto o cheiro forte de sangue em minhas narinas.

Certo dia ela passou do humor calmo para o agitado. Magicamente, a força retornava e muitas idéias surgiram, meio que atrapalhadas, mas – no contexto em que se encontrava – todas eram bem vindas. A vontade de tudo renascia como se fosse uma criança, cheia de quereres e de poderes. Dever, ou não, já não era mais a questão. O querer e o poder já eram o bastante. Manipular tudo era o máximo!

Foi levada para uma clínica de doenças mentais sob efeito de medicamento. Ao despertar, sua euforia foi tamanha que tiveram que imobilizá-la no leito e medicá-la para contê-la. Em resposta ao trauma sofrido, a jovem relata:

“Entro em um lugar hostil e aos poucos caminho, acorrentada numa energia que não é a minha. Ouço um barulho avermelhado que se distancia e à medida que adentro neste castelo branco as cores somem e vejo sombras. Além de angústia e solidão que pairam no ar. A música já não tem melodias e o ruído e gritos distantes me apavoram. Corredores sem fim e portas trancadas me deixam com muito medo. Sinto-me embaraçada nos meus próprios braços e ando sem querer. Estou tonta e o meu corpo dói. Sentia-me presa, mas estava presa mesma! E a família pouco me visitava, pois o sistema era fechado e tinha hora pra tudo. Mal podiam saber o que eu sentia por dentro, pois só viam o “por fora”. Os doutores queriam me curar, e eu queria era falar e ninguém me escutava. Sentia que os olhares eram todos pra mim, e que mudanças podiam acontecer a qualquer instante. Imagino um dia acordar e me ver num lugar diferente, onde eu possa ir para casa e voltar quando eu achar melhor. Ser tratada com dignidade e enxergar as cores das coisas. Poder aprender com outros que sofrem como eu, e quem sabe, ensinar quem precisa. Ver um mundo colorido, de música e formas como nunca vi antes e novamente ver minha casinha, com todo o mundo que eu preciso lá dentro.”

Dias se passaram e ela voltou ao convívio dos demais e às atividades diárias, com o apoio de profissionais da saúde, com terapias, medicamentos e diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Hoje, questiona sua internação, indaga o porquê de ter passado por uma situação tão traumática em vez de utilizar outros métodos de apoio.

Mediante isso, pode-se ressaltar por quanto tempo a medicina se ocupou da doença e se esqueceu dos sujeitos, que ficaram apenas como hospedeiros das mesmas. Por outro lado, enaltece-se agora a rede psicossocial e a equipe multidisciplinar que se configura. Cada vez mais, o papel do psiquiatra soberano sai de cena e a dinâmica dos serviços se mostram numa razão igualitária.

A realidade ainda, porém, é que nem todos pensam assim: mesmo nos dias de hoje, há pessoas que lidam com casos envolvendo transtornos psiquiátricos como pré-históricos. Por qualquer motivo que seja diferente dos padrões da sociedade, levam os pacientes diretamente à internação, taxando-os de loucos, sem sequer pensar em procurar ajuda primeiramente em um CAPS ou buscar um psicólogo, dentre outros. Direcionam-se por uma maneira mais rápida e prática, talvez até por falta de conhecimento ou não, mas a primeira opção é a internação.

Será que depois de tantas manifestações e do desmantelamento progressivo dos manicômios, a população ainda pensa dessa maneira? Será que não serviram de nada as lutas e conquistas na área psicossocial? Uma pessoa que pode conviver com seu “problema” no meio da sociedade, não precisa ficar trancada entre quatro paredes, se sentindo solitária e excluída de tudo e de todos. Vislumbra-se outra possibilidade, mais humanitária, respeitosa para com o ser humano e seu sofrimento: a ajuda psicossocial, multi e interprofissional, com o CAPS, psicólogos, psicanalistas, terapeutas ocupacionais, psiquiatras e, principalmente, o apoio familiar, o suporte social.

Tem-se que mudar pensamentos arcaicos, de que qualquer alteração que fuja ao padrão do que é ser normal, instituído pela sociedade, seja loucura e de que tudo seja motivo para internação. É salutar o tratamento medicamentoso, combinado com o auxílio na educação do paciente e de sua família, tendo como propósito a recuperação e a adaptação à doença.


Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.

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