Sartre, angústia existencial e mecânica quântica no filme “+1”

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Como você reagiria, voltando ao passado, ao se defrontar com um clone de você mesmo que tem todas suas memórias, porém dentro de um delay de 15 minutos?

E se você tivesse a chance de voltar no tempo e corrigir um erro terrível, embora soubesse estar moralmente errado porque o resultado anterior era o que teria de realmente acontecer? Voltando ao passado, como reagiria ao se defrontar com seu próprio clone que tem todas suas memórias, porém limitadas por um delay de 15 minutos? Essas são algumas questões morais levantadas pelo filme “+1” (aka “Plus One, 2013), do diretor grego Dennis Iliadis. Não é propriamente um filme sobre “viagem no tempo”, mas a proposta de transformar uma festa universitária numa espécie de “Caixa de Schrödinger” (experimento imaginário de mecânica quântica do físico austríaco) no qual os mesmos eventos duplicados ocupam o mesmo espaço, porém com um delay a partir de 15 minutos progressivamente diminuindo. Tudo em decorrência de um misterioso fenômeno elétrico-astronômico. É mais um filme sobre o mito da “segunda chance”, mas dessa vez revelando que essa recorrência no cinema é o sintoma do atual espírito de época – a crescente angústia existencial humana, tal como descreveu o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Filme sugerido pelo nosso leitor Fábio Hofnik. 

Esse humilde blogueiro sabe que, em alguma postagem nesses quase dez anos de Cinegnose, foi usado esse provérbio. Mas vou repetir: passamos metade da vida cometendo erros. E a outra metade, tentando consertá-los.

E se o leitor tivesse a oportunidade de ter uma segunda chance para corrigi-los in loco, sem ter que gastar o tempo restante da vida correndo atrás de uma solução? E se você tivesse a chance de voltar no tempo e corrigir um erro terrível, embora soubesse estar moralmente errado e que o resultado anterior fosse o que teria de acontecer?

Como você reagiria, voltando ao passado, ao se defrontar com um clone de você mesmo que tem todas suas memórias, porém dentro de um delay de 15 minutos?

Essas são as questões das quais partem o argumento do filme do diretor grego Dennis Iliadis +1 (aka Plus One, 2013). O tema da “segunda chance” é recorrente na cinematografia recente: Efeito Borboleta (2004), Perdido Entre Dois Mundos (2007), Sr. Ninguém (2009), Another Earth (2011), Coherence (2013), The Discovery (2017) entre inúmeros filmes recentes.

Fonte: encurtador.com.br/gHSW0

À primeira vista, nos primeiros minutos da narrativa, +1 parece algum tipo de “college movie” dentro do espírito da franquia American Pie: jovens universitários com hormônios explodindo, embebedando-se em festas, em busca da primeira transa – e com os personagens arquetípicos como a garota e o garoto popular, a nerd solitária e autoindulgente, os sociopatas, os competitivos e assim por diante.  

Com o passar dos minutos, principalmente após o acidente espaço-temporal que transformará aquela festa mundana num evento sobrenatural, +1 parece se transformar num mix de American Pie com viagem quântica no tempo. Mas com o transcorrer da estranha festa, Dennis Illadis começa a acrescentar algo mais: o tom cada vez mais sombrio e dilemas morais. Embora, a solução seja a mais otimista, dentre os filmes recentes sobre o tema “segunda chance”.

+1 nos mostra uma espécie de viagem quântica no tempo. Não mais uma viagem no tempo convencional. Mas uma situação que se assemelharia à experiência imaginária do físico austríaco Schrödinger do gato preso no interior de uma caixa que revela o paradoxo quântico do animal estar ao mesmo tempo morto e vivo.

Uma viagem muito mais através do espaço do que no tempo, já que passado e presente ocupariam o mesmo tecido espacial – doppelgangers se encontrando numa mesma festa, em um delay de 15 minutos.

O Filme

David (Rhys Wakefield) é um jovem que parece ter parado no tempo: não mais estuda e apenas fica à espera do próximo verão e suas festas universitárias. Sua namorada é a estudante Jill (Ashley Hinshaw) que começa a achar que seu relacionamento com David está muito devagar e a ele faltam perspectivas futuras.

Todas essas emoções explodem numa tarde quando David confunde-se e se aproxima de Melanie (Nathalie Hall) nos corredores da universidade, pensando ser ela sua namorada Jill. Melanie vira-se e beija David, que não faz muita questão de afastá-la para dirimir a confusão. Jill assiste a tudo com o coração partido, aumentando o grau da tensão do casal. 

Fonte: encurtador.com.br/egMT2

Jill decide acabar com tudo. Com seu romance em queda livre e desesperado, David e seu amigo Teddy (Logan Miller) decidem ir numa grande festa na casa do garoto rico local que promete muito bebida, música e sexo. David sabe que lá poderá encontrar Jill e tentar corrigir o seu erro. Mas ele não contava encontrá-la acompanhada de uma cara mais velho…

Paralelo a tudo isso, começa um estranho fenômeno elétrico desencadeado pela queda de um meteoro em um quintal próximo. Durante a festa David, Teddy e sua amiga tímida e insegura Alison (Suzanne Dengel) experimentam ondas de alucinações desorientadoras. 

Quando todos os convidados foram para fora para continuar a festa no jardim do casarão, ocorre um estranho blackout. Ao retornar a luz, David Teddy e Alison percebem que há estranhamente duas festas simultâneas: dentro e fora da casa. E o que é mais assustador: dentro da casa estão duplicatas de todos que estão dançando e bebendo freneticamente nos jardins. 

Fonte: encurtador.com.br/iFRU5

Mas não apenas isso: as duplicatas parecem repetir as mesmas situações ocorridas há 15 minutos. Porém, o estranho fenômeno espaço-temporal parece revelar sua natureza quântica de uma “caixa de Schrödinger”: a cada nova queda de energia e retorno, os clones avançam mais alguns minutos no tempo. 

Parece que a qualquer momento, as duas festas irão se sobrepor para criar aquilo que na mecânica quântica chama-se “decoerência”: o que aconteceria então? Isso apavora Teddy e Alison, que tentarão alertar os festeiros. Enquanto David tentará a oportunidade para refazer uma tentativa fracassada de desculpas. Quem sabe, ele possa ser bem-sucedido, dessa vez com a clone de Jill…

Segunda Chance” e a angústia existencial

O que torna interessante +1 é que o fenômeno elétrico-astronômico nunca é explicado: não há especialistas, astrônomos ou sequer um monitor de TV mostrando um telejornal com alguém sendo entrevistado e dando alguma explicação plausível. 

Tudo o que sabemos é nada mais do que aquilo que os personagens deduzem. Não há nenhuma informação reconfortante que auxilie as ações dos protagonistas – eles fazem tudo por impulso, resultando em uma série de dilemas morais: se David conseguir reconciliar-se com a clone de Jill, poderá matar a sua versão original do presente? O que farão todos na festa para evitar a sobreposição? Matar suas duplicatas? Isso não seria suicídio?

Fonte: encurtador.com.br/ftGH9

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Título Original: +1 (Aka Plus One) 
Direção: Dennis Iliadis
Elenco:  Rhys Wakefield, Logan Miller, Ashley Hinshaw, Nathalie Hall 
País: França/Bélgica
Ano: 2013
Gênero: Ficção Científica 

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ROMA: fragmentos de uma infância

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Concorre com 10 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Direção (Alfonso Cuaron), Melhor Atriz (Yalitza Aparicio), Melhor Atriz coadjuvante (Marina de Tavira), Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia, Melhor Filme Estrangeiro (México), Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem de Som, Melhor Design de Produção (Eugenio Caballero, Bárbara Enriquez)

O diretor mexicano Alfonso Cuarón (ganhador do Oscar por Gravidade) apresenta de forma intimista, mas com quadros grandiosos e repletos de detalhes, um olhar sobre suas memórias de infância na Cidade do México, no início da década de 70, em um bairro chamado Roma (que dá título ao filme). Roma é apresentado sob a perspectiva de uma jovem indígena que trabalha como empregada doméstica para uma família branca de classe média. Ela também é a babá dos filhos do casal e essa personagem foi inspirada na babá da vida real de Cuarón, Liboria “Libo” Rodríguez, que desempenhou um papel importante em sua criação e a quem ele dedicou esse filme.

Desde a abertura, que mostra a água sendo jogada em um chão de azulejo e nela surge o reflexo de um céu que parece estar distante demais da sujeira que escorre pelo ralo, é revelado que a água é a metáfora condutora da história. Seja para mostrar a separação aparente das classes sociais, como analisou o cineasta Guillermo Del Toro [1], seja para dar voz finalmente a personagem principal em um dado ponto da história.

Fonte: https://goo.gl/5bddhj

Em todos os sentidos, Roma é o olhar do Cuáron sobre alguns recortes de sua infância, especialmente sobre a babá que, segundo ele, o criou e contou-lhe histórias de sua aldeia e seus costumes, fatos esses que o inspiraram em sua trajetória como cineasta [2]. Mas, não ouvimos essas histórias de Cleo, a babá interpretada por Yalitza Aparicio em seu primeiro filme, nem sabemos como é a sua família, nem temos a verbalização de suas angústias. O que vimos, na realidade, é a representação do seu silêncio ao acompanharmos sua rotina na casa da família. Ela limpa, faz compras, lava roupa, apaga as luzes, abre os portões, cuida do cachorro, coloca as crianças para dormir e, principalmente, escuta as crianças, compartilha dos seus mundos, o que aparentemente não é algo que os pais fazem.

Ao mesmo tempo que a família é grata a ela, o que é mostrado em pequenos gestos, como quando a levam ao médico para que tenha os cuidados necessários em sua inesperada gravidez, ou compartilham alguns momentos de intimidade, também pode ser observado nos detalhes da convivência a aparente irreconciliável separação entre as classes. O lugar que, de fato, Cleo ocupa naquela família transita entre dois extremos, do tipo, salvou as crianças, que ótimo, somos gratos, estamos todos emocionados, agora vai preparar uma vitamina de banana.

Em Roma, as falas estão sempre em segundo plano perante uma fotografia exuberante, apresentada em uma tela panorâmica e em preto e branco. Assim, quando a mãe da família diz a Cleo, em um momento de embriaguez, “estamos sozinhas; não importa o que eles digam, nós mulheres estamos sempre sozinhas”, novamente, temos o silêncio e o espaço como resposta.

Fonte: https://goo.gl/Nr1b8S

Dos quatro filhos do casal, é Pepe (Marco Graf, que talvez seja a representação do Alfonso Cuarón no filme) que tem mais destaque, pois é a criança mais nova e, consequentemente, a que fica mais tempo com Cleo. Com Pepe, Cuáron traz a premissa de que “tudo é cíclico”, conforme analisa o cineasta Guillermo Del Toro [1], por isso que ele sempre fala de sua vida adulta no passado, quando teve diferentes profissões e viveu inúmeras experiências. Um dos momentos mais bonitos no filme ocorre entre os dois, quando Pepe deitado em um ponto do telhado se recusa a levantar, pois está morto (já que o irmão disse que sua missão nas brincadeiras de pistola com água era morrer). Cleo deita-se também, assim quando é questionada por Pepe sobre o que está fazendo, ela diz: “estou morta”. E acrescenta: “Olha só, gostei de estar morta”. Como diz Caleb Crain [2],

Não há muitos filmes capazes de transmitir o prazer de estar no mundo sem qualquer outro objetivo além da apreciação. Assim, talvez, em parte, a gratidão do espectador por ser lembrado deste prazer é o que faz com que os personagens deste filme sejam tão caros.

Voltando a metáfora da água, citada por Del Toro [1], para contar alguns aspectos importantes na vida da personagem principal, tem-se em uma das sequências Cleo e a avó da família em uma loja de móveis, quando assistem assustadas uma manifestação estudantil se transformar em um motim policial. Cuarón não identificou o incidente, mas é conhecido no México como o Massacre de Corpus Christi de 1971. Nesse contexto, aparece em frente a Cleo, com uma arma na mão, o pai do seu filho que, ironicamente, está com uma camisa dos desenhos “Amar é”. Com o susto, a bolsa se rompe, a água jorra e, mais tarde, o bebê nasce morto. Acompanhamos o olhar dela para a criança morta sendo enrolada em uma mortalha branca, não há música, nem palavras, só a imagem e o som ambiente do movimento dos médicos, das enfermeiras e, especialmente, do seu choro sufocado. Vale ressaltar que nenhuma música foi usada no filme, o som vem apenas das ações que acontecem na tela.

Fonte: https://goo.gl/PD5etM

A outra sequência que mostra a força da água e, consequentemente a força de Cleo, é um dos momentos mais impactantes do filme. Há o barulho das ondas, o grito das crianças e o desespero da babá para conseguir resgatá-las, mesmo sem saber nadar. Quando finalmente consegue e volta a areia e toda a família a abraça, ela fala: “Eu não a queria. Eu não a queria. Eu não queria que ela nascesse.” Ali, ela conseguiu trazer à tona a dor e a angústia que a sufocavam, pois em todos os acontecimentos ela estava sempre em segundo plano, como se ela tivesse vindo ao mundo apenas para servir, para tornar a vida dos outros mais fácil.

Fonte: https://goo.gl/YpUHFv

A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que

se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem.

A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na

paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, […]

(SARAMAGO, 2006, p. 18 [3])

Quando recordo a minha infância, as imagens vêm em recortes sem uma sequência definida, não lembro de acontecimentos mundiais grandiosos vinculados a alguma passagem, mas de pequenas coisas que me marcaram, como a última vez que estive no colo da minha mãe, ou quando eu corria atrás dos barquinhos de papel jogados na lama. Mas é sempre a pessoa adulta recordando, então, como disse Saramago em suas “pequenas memórias”, talvez essas passagens tão importantes para mim sejam um tanto diferenciadas da real experiência. Assim, também, parece-me coerente deduzir que Cuáron retratou a babá que ele imaginava, ou seja, recriada por ele. Então, mesmo que ela ainda esteja viva e que eles mantenham contato, aquelas passagens descritas no filme, vivenciadas por ele quando criança, estão sujeitas a composição criada em sua memória, a partir do seu olhar. Nesse caso, um olhar em preto e branco, detalhadamente orquestrado, ainda que sem música, mas indubitavelmente pessoal. É um filme sobre Cuáron, não sobre Cleo.

FICHA TÉCNICA:

ROMA

Título original: ROMA
Direção: Alfonso Cuarón
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Marco Graf
Países: México, EUA
Ano: 2018
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

[1] https://twitter.com/RealGDT/status/1084701184110153729

[2] https://www.nybooks.com/daily/2019/01/12/roma-through-Cuaróns-intimate-lens/

[3] SARAMAGO , José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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Pulmão de aço: superação e vontade de viver

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Vivendo em uma cama de hospital e com a necessidade de juntar suas memórias, Eliana começou a escrever e a fazer anotações em um diário através da boca.

Pulmão de aço, publicado em 2012 por Eliana Zaqui, configura uma trajetória real de vida no maior hospital do Brasil. O título do livro “Pulmão de Aço” faz menção à máquina em que Eliana foi colocada na madrugada em que chegou ao Hospital das Clínicas de São Paulo, quando tinha apenas 1 ano e 9 meses. O aparelho permite à pessoa respirar depois de ter perdido o controle muscular ou diafragmático através da exceção de pressão negativa sobre o corpo, expandindo a caixa torácica e forçando a entrada de ar. Vítima da poliomielite, também conhecida como paralisia infantil, Eliana não obteve resultado no pulmão de aço, restando a ela ser ligada, através da traqueostomia, a um respirador artificial, aparelho que utiliza até os dias atuais.

Vivendo em uma cama de hospital e com a necessidade de juntar suas memórias, Eliana começou a escrever e a fazer anotações em um diário através da boca. Temos aqui resiliência, conquistas, perdas, momentos de dor, sofrimento, bondade, perseverança, coragem, determinação, fé e tantos sentimentos que permeiam a experiência de quem sobreviveu para contar. O primeiro momento do livro relata a chegada da família de Eliana ao Hospital das Clínicas de São Paulo, os pais assinam os documentos da internação e os médicos percebem a gravidade do caso.

Fonte: https://bit.ly/2RUVK4f

A partir desse momento, somos apresentados a este novo mundo. Nele, Eliana começa a descrever suas vivências. Seus pais se despedem levando a lembrança daquela menininha deitada em uma maca, de vestidinho e sapatos, sem esperança de que a menina que eles conheciam continuasse a existir. Sozinha, Eliana conhece a máquina pulmão de aço, uma criação de Philip Drinker, professor da Harvard University, nos Estados Unidos. É uma máquina que possibilita à pessoa respirar depois de ter perdido o controle muscular ou diafragmático. O paciente é posicionado no aparelho, que é parecido a um forno, ficando somente com a cabeça para fora. O pulmão de aço era considerado muito eficiente por reverter o quadro de insuficiência respiratória em quase 90% dos casos, mas não foi capaz de solucionar o caso de Eliana.

A pólio é uma doença infectocontagiosa aguda, causada por vírus e transmitida por meio do contato direto com secreções. O diagnóstico é feito a partir de um exame de fezes, mas em alguns casos, muitos raros, é necessário fazer outro tipo de exame para detectar. O invasor alcança a corrente sanguínea, podendo chegar até ao cérebro. Esse foi o caso da autora, destruindo os neurônios motores e provocando a paralisia. Com o avanço tecnológico, Paulo consegue vencer o isolamento e faz com que o mundo que ele tanto admirava viesse até ele, entrando em contato, virtualmente, com pessoas, como Ayrton Senna, que ele admirava, e até recebendo visitas.

O segundo momento do livro relata suas amizades e conquistas dentro do hospital e a integração de sete crianças vivenciando as mesmas dificuldades, desconforto, exclusão social e um olhar único entre eles que não se sentiam sozinhos pois tinham uns aos outros. Era a corrente de amor fraterno nascendo da dor. Tânia e Paulo eram os veteranos da UTI. Em meio ao caos explicavam as regras, apresentavam os doentes e funcionários para quem estavam chegando e gritavam por socorro quando algo estava errado com os outros pacientes.

Fonte: https://bit.ly/2Fukkrh

Tânia, era vaidosa e a única que recebia visitas regulares de familiares, mas mesmo com essas visitas ela se sentia excluída. Pedro Donizete, Pedrinho, Luciana e Anderson, unidos e padecendo juntos pelas graves deficiências, vivenciaram e presenciaram juntos diversos sentimentos e comportamentos. Com exceção de Anderson, que tinha o apoio e afeto dos familiares, os outros seis eram carentes de carinho e gostariam de ter uma figura adulta que lutasse em prol deles, e por esse sentimento não se concretizar eles sonhavam em fazer coisas sem depender de ninguém; sentiam vontade de andar, cuidar de si mesmos e não viver no leito do hospital. Na ausência do afeto familiar alguns funcionários foram o consolo no momento do choro, da solidão, da tristeza, sendo que os momentos de solidão e o sentimento de abandono incomodavam mais que a própria doença e seus desdobramentos.

Os moradores temporários recebiam alta, o que aumentava ainda mais o sentimento de angústia e de abandono para os moradores permanentes. Isso se tornava visível e cada separação ajudou os sete amigos a amadurecer rapidamente. A vida imobilizada pode ser difícil mas não impossível, e por trás da aparência frágil Eliana se tornou muito forte por dentro. Ao passar do tempo ela foi deixando de ser aquela menina e tornou- se mulher, com emoções acentuadas, necessidades afetivas etc.

Como todo desenvolvimento, ela começou a sentir necessidade de um feedback aos sentimentos que carregava. Mas, aos poucos foi perdendo as pessoas que amava e a maneira de lidar com as perdas foi aprendendo a escrever e, como ela mesmo diz, a chorar menos, a sentir menos pena de si mesma.

Fonte: https://s03.video.glbimg.com/x720/2028058.jpg

A moradia em um hospital era o seu lar; lá aprendeu e mesmo com o corpo paralisado, sua mente não se acomodou e em uma das suas falas Eliana relata que “se fisicamente não posso andar, em minha mente sou capaz de voar sem limites”. Mesmo com o corpo imóvel, ela desenvolveu habilidades cognitivas, aprendeu inglês, italiano, fez curso de história da arte e virou pintora. Pinta seus quadros com a boca, mostrando força de vontade e a possibilidade de desenvolvimento de repertórios que possibilitaram a felicidade no meio da dor e do sofrimento. Ela tinha tudo para desistir, mas decidiu viver tornando o livro motivacional e inspirador.

Em pulmão de aço, prevalece uma história de superação de vida. Apesar da presença de uma doença que ausentou membros importantes para seu desenvolvimento, Eliana sentiu a necessidade de aprender repertórios para lidar com situações árduas, crendo que na vida, não há limites nem barreiras para ser feliz.

FICHA TÉCNICA

Nome do livro: PULMÃO DE AÇO

Editora: Belaletra Editora

Gênero: Autoajuda

Autor:  Eliana Zagui

Ano de lançamento: 2009

Idioma: Português

Ano: 2012

Páginas: 240

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Alzheimer: lembranças que não voltam

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O que Ronald Regan, ex-presidente dos Estados Unidos e William Hanna, cartunista e criador dos desenhos animados “Tom e Jerry” e “Os Flinstones”, falecidos em 1989 e 2001 respectivamente, tinham em comum? Além, é claro, de serem norte-americanos, foram diagnosticados com uma doença degenerativa: o Alzheimer.

Em entrevista ao (En)Cena, a neuropsicóloga e psicogerontologista, Mayra Dias nos conta com detalhes como esta patologia se desenvolve, quais os sintomas e de que forma pode ser tratada.

Foto: Arquivo pessoal

(En)Cena – Como é ocorre o processo da perda da memória curta, a doença de Alzheimer?

Mayra Dias – Na verdade, o Alzheimer antes de se manifestar, ele já está, digamos, “encubado” de 5 até 10 anos. O processo está acontecendo, tem mudanças, mas clinicamente nós não percebemos. Tem muita gente que fala “Ah de uma hora para a outra apareceram os sinais”. Mas se formos ver nos exames, já está ocorrendo a mudança, no caso a degenerescência que vem muito tempo antes dos primeiros sinais do Alzheimer.

(En)Cena – Quais são esses sinais?

Mayra Dias – Os primeiros sinais todo mundo conhece que é na memória onde, por se tratar de uma degenerescência, o volume do cérebro reduz. A primeira parte a ser reduzida neste processo é o hipocampo, que é a região subcortical e fica do lado temporal que é a região responsável pela memória, ou seja, a primeira a ser atingida.

Há alguns casos que fogem do padrão. Às vezes, a primeira forma do Alzheimer se manifestar não é pela memória, mas pelo comportamento. Então, a pessoa tem um comportamento desadaptado. Por exemplo, andar nua pela casa. Enfim, coisas que chocam. Tem um comportamento desadaptado como ser egoísta demais também.

(En)Cena – Podemos, então, dizer que a doença de Alzheimer desencadeia atitudes não manifestadas anteriormente?

Mayra Dias – Não necessariamente. O egoísmo, por exemplo, pode ser um traço psicológico, mas existem “N” traços. Existem muitas pessoas com Alzheimer que são extremamente dóceis, compartilham o que sentem. Porém, esse traço, com o passar do tempo e a manifestação desta patologia, a pessoa não consegue mais administrar. É involuntário, digamos. Não estou dizendo que uma pessoa que tem Alzheimer é egoísta, mas são traços que se evidenciam.

(En)Cena – Conheço um padre, um senhor já idoso, quetem a doença de Alzheimer. Em todas as ocasiões, ele repete o mesmo discurso do dia anterior ou da semana passada. Por que ocorre essa repetição?

Mayra Dias – Tem algumas regiões que são afetadas com a doença, como a fala, também a compreensão, que é a área burocrática da fala. Mas é algo involuntário mesmo. A pessoa não está refletindo, não tem consciência disso.

(En)Cena – Na hora, vejo pessoas rindo dessa situação…

Mayra Dias – Costumamos dizer que, em um estágio mais avançado, a família sofre muito mais que o paciente, porque no início do Alzheimer, ele tem consciência de tudo. E essa fase é de extremo sofrimento, justamente porque ele se dá conta que está esquecendo, que tem alguma coisa errada acontecendo, que ele sai na rua que ele viu a vida inteira e não reconhece a praça, que ele não sabe voltar pra casa. Então, essa fase inicial é muito angustiante. Mas no caso do padre que repete demais o discurso, ou seja, está em um estágio mais avançado, não há sofrimento porque ele não tem mais a mesma consciência de antes.

(En)Cena – Ainda assim, é possível o paciente com Alzheimer ter uma vida social como as outras pessoas?

Mayra Dias – Esse é um grande desafio, na verdade, porque a vida social e afetiva é abalada. Veja bem, a pessoa que cuida também sofre bastante porque tem que estar sempre com a pessoa, é algo desgastante. As únicas pessoas que se mantém ao lado do paciente são as que têm laços de sangue, porque têm o amor incondicional. Então, a vida social fica muito restrita, geralmente, à familiar. Há outros eventos esporádicos, inclusive há centros que tratam pacientes com Alzheimer, mas já em estágio avançado.

(En)Cena – E nesses centros de tratamento, os pacientes conseguem ter uma vida social mais ativa?

Mayra Dias – Há muito pouca interação porque os diálogos entre os pacientes são, digamos, incoerentes. A qualidade desse diálogo é muito comprometida, assim como toda a vida social de quem tem a doença.

(En)Cena – A doença de Alzheimer é desencadeada por fatores genéticos?

Mayra Dias – Na verdade, tem hipóteses genéticas, mas não há um consenso. Estamos em uma fase de intensas pesquisas sobre a causa, mas ainda focamos mais com o pensamento (como o paciente se comporta) do que com a causa. O que provocou essa mudança? Realmente, fatores genéticos contam. Mas não quer dizer que porque meu avô teve que eu vou ter e meus filhos também vão ter.

(En)Cena – Mas há a possibilidade…

Mayra Dias – Sim, há a uma possibilidade maior. Não significativamente como algumas doenças e síndromes que passam de geração em geração, mas já de forma familiar.

Gráfico: OS SINTOMAS DO ALZHEIMER

(En)Cena – Existe alguma atividade que acelere essa degeneração?

Mayra Dias – Sim. A falta de estímulos ao cérebro. Há estudos de 10, 15 anos, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.Eles já investigaram até casos de irmãos gêmeos, considerados pessoas com perfis muito parecidos, explicando porque um desenvolveu melhor e o outro não. Um irmão tem perfil mais acadêmico, gosta de ler e isso estimula, cria uma rede neural mais importante e pode até tardar o aparecimento da doença. Agora, quem assiste muita televisão, é muito passivo, não gosta de ler, não é curioso e não interage com outras pessoas,somado a outros fatores, como o genético, tem maior probabilidade de desenvolver o Alzheimer mais precocemente. Então, esse é um fator de risco.

(En)Cena – Geralmente, encontramos a doença de Alzheimer em idosos. Há casos em mais jovens?

Mayra Dias – É muito raro. Nós tratamos o Alzheimer como uma doença senil, ou seja, que se manifesta com a idade. Mas tem casos pré-senis que são muito mais raros e, aí sim, estão ligados à fatores genéticos. Se fizermos uma genotipagem, podemos encontrar algum indício, raro, mas possível de encontrar. Um caso pré-senil, geralmente, se manifesta entre os 40 e 50 anos de idade.

(En)Cena – Um trauma vivido pela pessoa também pode acelerar o processo degenerativo?

Mayra Dias – Sim, em casos de acidentes. Um traumatismo craniano, uma queda ou pancadas na cabeça podem acelerar.

(En)Cena – E os hábitos cotidianos, condição física?

Mayra Dias – Sim, o colesterol alto, diabetes. A diabetes influencia em que? Na circulação, ou seja, toda a rede vascular e, isso pode acarretar em uma complicação. Então, quando vamos fazer o exame de avaliação cognitiva já verificamos os fatores de risco: diabetes, colesterol alto, hipertensão arterial, algum tipo de traumatismo, para ver como é o dia-a-dia do paciente.

(En)Cena – Em outros casos, com perda de memória, pode não ser Alzheimer?

Mayra Dias – Claro, existem vários casos que não são Alzheimer. Tem muitas outras demências com sintomas parecidos. Isso precisa ser analisado profundamente, porque um paciente pode ir ao médico, dizer “Doutor, estou esquecendo de muita coisa. Não sei o que está acontecendo. Faz pouco tempo que estou assim” e ser apenas consequência de um trauma que, com certeza, a memória fica abalada. Em pessoas que apresentam depressão, a primeira hipótese é a mais clara: a depressão, mas se os sintomas da perda de memória continuarem, podemos considerar um caso de Alzheimer.

(En)Cena – No aspecto biológico, como se dá essa degeneração da memória?

Mayra Dias – Nós temos os grupos de tratamento em fase inicial que chamamos de “Ansiosos”, depois vem o grupo com pacientes onde já foi diagnosticada nos exames a presença da proteínaTAU. Isso ainda na fase inicial e pode evoluir, porque é uma degeneração. Por isso a importância de ser diagnosticado o quanto antes, para a manutenção do quadro. E a gente controla de que forma? Com medicamentos. Cada fase tem um medicamento próprio para não evoluir. Jamais um médico pode falar que vai melhorar o quadro, porque não melhora, mas pode ser controlado.

Saiba mais:

Primeiro caso de Alzheimer revertido http://www.cienciahoje.pt/index.php?oid=58047&op=all

Vídeo: Famosos com Alzheimer http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=oul3YJx1B5U

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MarioQuintana_perfil

Mário Quintana e o Encantamento

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Neste 30 de julho de 2012, homenageamos Mario Quintana que completaria 106 anos se ele não tivesse morrido, ou melhor, encantado, aos 87, em 1994.

Os poetas, aliás, os artistas em geral, não morrem. Eles apenas encantam-se a fim de, infinitamente, encantarem as pessoas com o legado artístico que, publicado, pertence a todos, uma vez que o ser humano precisa de arte para ser menos incompleto.

Assim, a melhor maneira de celebrar o aniversário do poeta gaúcho o qual escreveu durante várias décadas é atualizar os textos que ele deixou na literatura brasileira. Ou seja, cada vez que lemos poesias, crônicas e/ou histórias infantis produzidas por Quintana, permitindo-as transformar nosso olhar sobre o mundo do qual o poeta fala; e também aguçar nossa sensibilidade estética, nós o homenageamos e o legitimamos como escritor. Pois as obras precisam deixar as prateleiras materiais e virtuais para se abrigarem na memória e na vida de quem os lê. O poeta homenageado, em poeminha curto, alerta:

Cuidado
A poesia não se entrega a quem a define.

Ele expressa significativa lucidez sobre a relação entre texto literário e leitor, cujo tema motivou vários escritos, como por exemplo, o excerto[1]  seguinte o qual explicita que o poema não é passatempo. É arte. E, como tal, exige gosto estético, aprendizagem sutil e abertura ao novo.

(…)
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre…
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.

É verdade que o leitor sequer se dá conta das transformações realizadas pelos textos artísticos, pois é lento e sutil o processo. Muito menos por poemas, já que nós, brasileiros (e talvez os seres humanos de qualquer país), temos mais ligação com as narrativas. Elas nos acompanham desde recém-nascidos, com as histórias para dormir[2]   ou ainda com os casos, verdadeiros ou inventados, que os adultos geralmente contam[3]   no cotidiano.

Entretanto, quando damos chance ao poema e, gradualmente, vamos desfrutando a musicalidade, a brevidade os versos, as palavras cuidadosamente escolhidas, os ditos e não ditos que os vocábulos revelam ou escondem… o texto poético vai se mostrando e nos inebriando su-til-men-te. Vejamos, por exemplo, a linda metáfora que Quintana utiliza a seguir:

Os Poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…

Um aspecto que impressiona na poesia do autor gaúcho é o fato de temas tão corriqueiros serem abordados ao mesmo tempo com tamanha simplicidade, como em conversa informal entre amigos, e beleza estética.

 

Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…

Nessa “canção do dia de sempre”, por exemplo, imagens e metáforas promovem estranhamento e tornam-no diferente de outros tipos de textos não artísticos. O eu-poético nos convida a viver cada dia como fosse o único, pois, embora aparentemente a rotina consiga transformar o tempo em dias em iguais, comparados às nuvens e a determinado rio, eles não o são. A cada novo amanhecer há novas nuvens movimentando na estratosfera, e o rio, ainda que siga o curso de sempre, é outra a água que por ele passa. Assim, a cada novo dia há perspectivas e desafios distintos os quais o fazem diferente do anterior. Ou, mesmo que sejam os mesmos, o olhar, as forças e o jeito de encará-los são diferentes.

Mas os leitores distraídos, aqueles que ficam presos ao passado, às perdas e desventuras, à “rosa louca dos ventos”, esses não percebem o recomeço exigido a cada novo dia, por isso param de sonhar, como revelam os últimos versos. Então, podemos afirmar que, simples e despretensioso, o poema desafia o leitor a pensar, seja em elementos corriqueiros que o automatismo cotidiano encobre, como nuvens, rio, rosa, chapéu. E também em aspectos extremamente importantes como a vida, os sonhos, os valores que preservamos ou deixamos escapar pelos dedos da monotonia e da falta de esperança.

No soneto[4]   “Ah, os relógios”, o eu-poético nos instiga a pensar sobre a sobreposição do tempo do relógio: marcado, rotulado, normatizado e apressado que Cronos continua devorando, sem tréguas, das nossas vidas. Em contraposição ao tempo primitivo, anterior ao instrumento, desacelerado, sem ponteiros nem frações, no qual a própria poesia ajuda a imergir e onde se encontram os sonhos, as amizades, a eternidade poética e a possibilidade de vida plena.

Ah, os relógios

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológicos…

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida – a verdadeira –
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os anjos entreolham-se espantados
quando alguém – ao voltar a si da vida –
acaso lhes indaga que horas são…

Os poemas de Mario Quintana se destacam na literatura brasileira pelo modo como o autor ironiza, com o mesmo despojamento. Um dos textos irônicos é o “poeminho do contra”, que ele escreveu na época em que, pela terceira vez, não conseguiu votos suficientes para ser admitido na Academia Brasileira de Letras (ABL). Assim, ao invés de esbravejar contra os próprios colegas escritores, já veteranos na instituição, o gaúcho preferiu escrever aquele que se tornaria um de seus textos mais conhecidos. E o poema “biografia”, logo a seguir, parece complementar o primeiro.

 

Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!

 

Biografia

Era um grande nome — ora que dúvida! Uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou rua… E continuaram a pisar em cima dele.

Já o texto “da observação” demonstra que o poeta de Alegrete (RS) conhecia muito a alma humana, inclusive suas limitações e fragilidades. Assim, de forma irônica, ele sugere que, ao invés de revidar o mal de forma comum, como todos o fazem, vale mesmo é a superioridade de quem sabe observar e encará-lo de maneira bem-humorada e divertida.

 

Da Observação

Não te irrites, por mais que te fizerem…
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio…

Com a mesma singeleza e criatividade, Quintana aborda acerca do amor:

Bilhete

Se tu me amas,

ama-me baixinho.

Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos.

Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,

tem de ser bem devagarinho,
amada,

que a vida é breve,
e o amor
mais breve ainda.

Nesse poema, o eu-poético fala sobre discrição no relacionamento, como se o fizesse realmente por meio de um “bilhete”, tipo de texto bastante informal que é escrito entre pessoas as quais têm muita proximidade. Tal sentimento é reforçado pela demonstração de afetividade expressa pelo uso de diminutivos caprichosamente distribuídos no poema. Além da musicalidade produzida por rimas (baixinho/ passarinho/ devagarinho), pela utilização repetida da letra/som “s”, como por exemplo, em: amas / grites / cima / passarinhos;  e ainda da nasalização produzida pelos sons das letras “m/n”, como em: me amas / ama-me baixinho. O resultado é um sussurro ao pé do ouvido que traduz a discrição almejada e demonstra genialidade poética. Ou seja, o poeta não somente pede para falar baixinho: ele o faz por meio do texto.

Já o poema “Esperança”, geralmente é enviado por internautas, aos amigos, na época das festas natalinas. Assim como os demais, é texto o qual, como a própria esperança, dá prazer em atualizá-lo em cada novo Natal.

Esperança

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…

É evidente que somos desafiados a continuar homenageando Mario Quintana todos os dias, pois há inumeráveis escritos por meio dos quais podemos apreciar a singularidade do mundo. E,  enquanto lemos e deixamos os textos penetrarem lentamente em nossa vida, a partir/por meio deles também vamos construindo os nossos. Vejamos o que o poeta mesmo diz afirma no poeminha a seguir:

A Arte de Ler

O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.

Quintana é assim: continua encantando com suas obras que podem nos transformar em leitores felizes e capazes contemplar o mundo com simplicidade e cantar em cada novo dia a “Canção da vida”.

 

A Canção da Vida

A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio…
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí…
como um salso chorando
na beira do rio…
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

[1] Todos os poemas utilizados foram extraídos do blog de Fábio Rocha, disponível em: <http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/mario-quintana-poemas/>. Acesso em 26 de jul. 2012

[2] Não foi à toa que Mario Quintana escreveu inúmeros livros infantis: O Batalhão das Letras, Pé de Pilão, Lili inventa o Mundo, O Sapo Amarelo, etc.

[3] Histórias de pescador e de assombração, por exemplo.

[4] Poema clássico, composto por dois quartetos e dois tercetos, cujos versos apresentam rimas definidas e simétricas.

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Diante do mar

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Ontem, fui assaltado.

Levaram-me o carro e um pouco da esperança que insisto em ter na possibilidade de um mundo mais justo. Revólver, surpresa, constrangimento, impotência, pés e mãos gelados. Depois, cenas esparsas, lembranças vagas, coisas que poderia ter feito, coisas que não tive coragem de fazer, vontade leve de chorar, um cigarro fumado às pressas – ainda com as mãos trêmulas. Olhos úmidos.

Tentei, e já desisti, de ter raiva de quem o fez. Sua ação foi técnica, precisa, calma e discreta. Não houve espaço sequer para o medo. Estava ali um profissional em seu simples e inevitável fazer cotidiano.

– Olha, é o seguinte…

E senta-se tranquilamente a minha mesa, mostrando um revólver dentro de um capacete.

– Isso é um assalto. Fica na boa.

Pega a chave. Caminha lento em direção ao carro, liga-o e parte.

O que me resta depois? Termino de beber a cerveja que, a esta altura, já anda meio quente. Peço outra e mais outra, enquanto penso no que realmente fazer.

Olho o mar, que neste trecho da praia é lindo, lindo demais. Tão bonito que, outra vez, tenho vontade de chorar. Já não sei se pelo assalto, pela beleza que se descortina a minha frente ou por saudade. Saudade da cidade que deixei há onze anos e que a cada vez que venho está mais distante. Saudade do calor amoroso dos que aqui vivem. Saudade dos amigos. Peço outra cerveja…

Aqui, talvez, seja o pedaço de litoral mais bonito de Fortaleza, essa cidade que – de algum modo – me constituiu. Um rio que, generoso, se oferece ao mar e lambe as pedras, formando pequenos lagos de água meio doce meio salgada onde, em outro tempo, eu me banhava. É uma pena ser assaltado de frente a uma cena como essa. É uma pena saber que nunca mais a verei sem que me venham à lembrança o assalto, o constrangimento, a impotência…

Diante disso, o carro que me levaram já não tem importância. Ontem, perdi um pouco de minhas memórias, levaram-me um tanto de minha meninice e subtraíram-me algo da cidade de minha infância, que insistia em carregar comigo.

É realmente uma pena ser assaltado diante do mar.

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