A divindade grega do vinho, do êxtase e da folia, Dionísio, ou para alguns mitólogos Dioniso, há muito tempo chama a atenção das pessoas. Vamos nos aprofundar nas muitas facetas de Dionísio neste texto e examinar seu significado na mitologia grega clássica, com um olhar junguiano como possibilidade do mito nas nossas vidas. Nisso o que as ideias psicológicas da psicologia analítica de Carl Jung iluminam o arquétipo de Dionísio, dando-nos uma melhor compreensão do simbolismo e significado do deus na mente humana. Dionísio era um deus da mitologia grega ligado ao vinho, à fertilidade e ao prazer espiritual. Ele era conhecido como o “deus nascido duas vezes”, e pensava-se que ele era filho do poderoso Zeus e da mortal Sêmele. Dionísio é um personagem difícil e fascinante porque incorpora os traços contraditórios tanto do sagrado quanto do mortal, dualidade presente nas nossas vidas.
Do ponto de vista analítico junguiano, a ideia do arquétipo dionisíaco lança mais luz sobre as características de Dionísio e seu significado na psicologia humana. De acordo com Jung, os arquétipos são padrões ou símbolos primordiais herdados que existem no inconsciente coletivo da humanidade. Eles aparecem em todas as culturas e épocas e são universais e repetitivos. Como arquétipo, Dionísio representa os lados animalesco e irracional da natureza humana. Ele representa as forças selvagens, ferozes e caóticas que se escondem logo abaixo do nível da consciência humana. Esse arquétipo está frequentemente ligado à busca do prazer, da emancipação e da violação de tabus sociais. O impulso dionisíaco, que anseia por encontros eufóricos, autoexpressão desenfreada e conexão com a energia primordial, é representado por Dionísio.
O arquétipo apolíneo, que representa ordem, razão e lógica, pode ser considerado o contraponto do arquétipo dionisíaco de uma forma mais rasa. O arquétipo dionisíaco promove a investigação dos sentimentos, desejos e do inconsciente, enquanto o arquétipo apolíneo enfatiza a estrutura e o controle. As pessoas podem acessar seu potencial criativo, espontaneidade e conexão com seu eu interior, abraçando a energia dionisíaca. Essas partes intuitivas e ilógicas da experiência humana são fundamentais, como mostra a existência do arquétipo dionisíaco no inconsciente coletivo. Enfatiza como é crucial que as pessoas reconheçam e incorporem esses componentes dentro de si mesmas, a fim de alcançar a completude e o equilíbrio psicológico.
O arquétipo dionisíaco também tem a capacidade de transformar. As pessoas podem experimentar um tremendo crescimento pessoal e desenvolvimento espiritual explorando as partes caóticas e apaixonadas de sua psique. A energia dionisíaca fornece um caminho para a individuação, que é o processo de integração de toda a identidade, incluindo a própria sombra, para se tornar uma pessoa mais genuína e completa. Em geral, o arquétipo dionisíaco oferece uma estrutura para compreender os aspectos primitivos, absurdos e transformadores da natureza humana. As pessoas podem explorar e abraçar os lados selvagens, apaixonados e criativos de si mesmas ao estarem cientes e interagirem com esse arquétipo, o que acaba levando a uma maior compreensão da psique humana e a uma vida mais integrada e satisfatória.
Nesse ponto se falarmos sobre o arquétipo dionisíaco e a sombra, faz total sentido. Na psicologia junguiana, o termo “sombra” refere-se às facetas ocultas e frequentemente reprimidas do caráter de uma pessoa. Dionísio representa o arquétipo da escuridão por causa de seu temperamento selvagem e extravagante. Ele representa as inclinações e desejos reprimidos que a sociedade frequentemente vê como inaceitáveis. As pessoas são forçadas a enfrentar seus impulsos reprimidos por meio da representação de Dionísio, que as obriga a compreender e integrar seus lados mais sombrios.
Jung também introduziu a ideia de “individuação”, que descreve o processo de integração e harmonização das muitas facetas da psique. Como arquétipo, Dionísio é essencial para esse procedimento. As pessoas podem acessar seu potencial criativo e se sentir liberadas das restrições culturais ao abraçar a força dionisíaca interior. De acordo com a mitologia grega, os devotos de Dioniso participavam de folias selvagens e cerimônias extáticas conhecidas como “Mistérios Dionisíacos”. Esses ritos forneciam às pessoas oportunidades de mudança de vida para transcender o ego e se envolver profundamente com o divino. Da mesma forma, de acordo com a psicologia junguiana, o caminho para a individuação frequentemente envolve uma viagem ao inconsciente, onde as partes da sombra devem ser enfrentadas e integradas.
O arquétipo de Dionísio ainda tem uma forte presença na era contemporânea e assume muitas formas diferentes. Observamos um anseio por autoexpressão irrestrita, um desejo por encontros transcendentes e uma busca por um significado mais profundo além da razão e do controle na sociedade moderna. Mesmo nos campos da psiquiatria e da psicoterapia, onde se valoriza a investigação do inconsciente, o impacto de Dionísio pode ser sentido.
O misterioso deus grego Dionísio personifica a complexidade da alma humana. Podemos ver sua relevância como um arquétipo que incorpora os componentes instintivos, irracionais e transformacionais da natureza humana através do prisma da psicologia analítica junguiana. Podemos aceitar nossas próprias sombras, trilhar o caminho da individuação e liberar nosso potencial criativo investigando o arquétipo dionisíaco. Dessa forma, o simbolismo duradouro de Dionísio serve para nos motivar e nos direcionar enquanto buscamos o autoconhecimento e a totalidade. Já percebeu esse arquétipo na sua vida?
Referências
Jung, C. G. (2000). O homem e seus símbolos. Editora Nova Fronteira.
Jung, C. G. (2011). O eu e o inconsciente. Editora Vozes.
Vernant, J. P. (1990). Mito e pensamento entre os gregos. Editora Paz e Terra.
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O mito da mulher guerreira: uma análise da canção ‘’estou nervosa’’ filme Encanto
Mais uma canção do filme Encanto (DISNEY, 2021), Como já vimos, o filme é rico em metáforas e reflexões, nos fazendo perceber que animação não é só coisa de criança. De fato é um verdadeiro encanto. Dessa vez vamos falar sobre a canção ‘’Estou nervosa’’ no original ‘’surface pressure’’. Produzida por Lin- Manuel Miranda.
Antes de falar sobre a canção, cabe entendermos um pouco da personagem Luísa, a qual é marcada pelo arquétipo da mulher guerreira, tanto em sua aparência alta, com grandes músculos, como o dom que ela recebeu da casita; força física. E é através desse dom, que ela usa de estratégias e artifícios para ajudar as pessoas.
As sociedades antigas e medievais, encontraram na transmissão dos mitos a forma de perpetuar, seus medos, anseios, verdades, e fantasias (DETIENNE,1992). O mito por trás da mulher guerreira nos mostra que para tal titulação uma mulher deve ser justa, disciplinada, corajosa, intrigante e competente, alguém que faz de tudo para atingir metas, e coloca o bem maior dos outros acima do seu. As mulheres guerreiras dos mitos e histórias, sempre causaram sentimentos contraditórios nos homens, ao qual desenvolveram um certo fascínio por elas, devido as suas habilidades no manejo de armas, e no campo de batalha, sendo vista com temor, ao mesmo tempo em que sua feminilidade desata e desafia a coragem e honra masculina.
A mulher guerreira, sempre muito forte mas ao mesmo tempo feminina, perpetua o imaginário de homens até hoje, alguém que consegue suportar tudo e ao mesmo tempo trazer a satisfação necessária. ‘’E, desta feita, a mitologia vai se adaptando e modificando ao longo dos tempos, pois “em cada imagem que cria e inventa, a mitologia se metamorfoseia e seu saber se desloca: ela toma a forma efêmera do espaço que habitou um dia.” (DETIENNE, 1992, p. 226)
Percebemos na canção um desabafo de Luisa, frente ao seu papel ao revelar a sua sobrinha o quanto anda sobrecarregada dos diferentes afazeres em prol da vila e da família, mas que até então faz sem reclamar ou questionar.
Descartes (1596- 1650) na sua perspectiva do dualismo substancial, nos diz que somos constituídos de uma coisa extensa, o ccorpo, e uma coisa pensante; a mente, que vivem em constante interação e que formam um todo único. Ele ainda aponta que quando estamos em uma emoção, significa que possuímos um conhecimento intuitivo, direto, subjetivo não apenas sobre o que ocorre na mente, mas também no corpo. ‘’Cumpre notar que o principal efeito de todas as paixões nos homens é que incitam e dispõem a sua alma a querer as coisas para as quais elas lhes preparam os corpos; de sorte que o sentimento de medo incita a fugir, o da audácia a querer combater e assim por diante.’’ Descartes (1973a, p. 242).
Luisa é movida por esse misto de sentimentos ao mesmo tempo que se dispõe da audácia de querer combater, da compaixão de querer ajudar, é cercada por um medo que enfraquece seus poderes e incita a fugir, mas ela não pode, pois quem iria fazer suas atividades? quem conseguiria estar no seu lugar? a pressão é tão grande que percebemos a ansiedade surgindo em seu desabafo.
‘’ a pressão
é tanta por aqui-qui
que já me estressou, uou
e a pressão faz tic, tic, tic
meu limite chegou,uou, oh ,oh ‘’
Assim como Luisa, muitas mulheres compartilham dessa ansiedade, e sentem que já chegaram aos seus limites por tantas cobranças e afazeres. As ditas ‘’mulheres guerreiras’’, não querem mais ”guerrear’’. Uma matéria do buzzfeed intitulada: ‘’Precisamos parar de romantizar o termo “mulher guerreira” (Sofia Riccardi) Nos trouxe relatos de algumas mulheres, que estão cansadas de serem tratadas assim. Materia completa: http://encurtador.com.br/wHIPX
fonte:encurtador.com.br/wHIPX
Um paralelo entre esses desabafos e a canção, é a sobrecarga de afazeres, sociais, familiares e pessoais, a conciliação de tantas coisas chega a parecer impossível. ‘’Se antes a “mulher perfeita” era a que cuidava bem do lar e da família, hoje ela precisa se destacar profissionalmente sem descuidar das questões anteriores e, ainda, ter um corpo modelo.’’( MORAES 2012, p.4).
Pesquisas feitas demonstram que mulheres são mais afetadas pelo estresse e esgotamento profissional, do que os homens. A justificativa para isso são as inúmeras cobranças entre: trabalho, casa,filhos, saúde, conjugue, autocuidado. Essas mulheres são marcadas por um cansaço, falta de energia, desmotivação, desinteresse, irritação, mudanças de humor repentino, redução na concentração, esquecimento, desânimo, sentimento de fracasso e uma baixa autoestima.
Sabemos que o stress é uma defesa natural do organismo, uma resposta fisiológica frente a agentes estressores. Quando existe a sobrecarga dessas respostas, ocorrem consequências e danos à saúde. A sobrecarga da ‘mulher guerreira’ faz com que muitas mulheres de hoje desenvolvam o burnout e a ansiedade, pois estão tão empenhadas aos seus afazeres, que negligenciam a si mesmo. Podemos observar no trecho da canção:
‘’Não questiono se é pesado
O meu corpo suporta o fardo
Se me dão aço, eu piso, eu amasso
Com a força dos braços, eu faço estilhaço
Mas estou nervosa e ansiosa
Na corda bamba, sigo cautelosa
Estou nervosa
Como um herói que se cansou numa luta horrorosa’ Encanto (2021)
Essa sobrecarga ainda é marcada por julgamentos e críticas a si mesmo, quando não suportam mais e cedem a angústia, são por muitas vezes chamadas de surtadas.‘’É sempre um trabalho mental permanente, exaustivo e invisível, e portanto não reconhecido’’. Indiara leite (COMUNICA,2021)
‘Estou nervosa
Se eu não for generosa, me sinto ociosa
Não posso cansar, não posso falhar
Será que eu vou quebrar? o que me faz quebrar’’
Quanto a esse trecho da canção [..]
‘Estou nervosa, Eu fico ansiosa
Mas tento fingir ser corajosa
Estou nervosa
Ameaça é raivosa, fatal e silenciosa Encanto (2021)
Eu estou nervosa
Eu sei sou orgulhosa, a vida é perigosa
A casa vai cair, preciso agir
Eu uso a minha força, mas não sei como impedir ‘’ Encanto (2021)
Temos essa reflexão de Indiara Leite (COMUNICA, 2021)
” Infelizmente enquanto crianças, meninas frágeis e inocentes não sabíamos e ninguém nos disse que o mundo também é nosso por direito! Ninguém disse que a luta seria de igual para igual, ninguém dos falou de equidade e que por meritocracia conquistamos o que quer que seja, e por isso, corremos atrás do tempo, das oportunidades, das referências, do protagonismo, dos títulos e dos cargos, das migalhas e muitas vezes corremos contra outras mulheres para provar não sei o’que para não sei quem.
De acordo com a BBC (2021) especialista dizem que não existe uma única razão pela qual mulheres ficam esgotadas, mas que tem ligação com a forma com que as estruturas sociais e normais de gêneros se cruzam, ao causar desigualdades, um exemplo disso é o ambiente de trabalho. Em geral, pesquisas ligam baixas rendas a altos níveis de estresse a uma saúde mental ruim.
No dia a dia vemos muitas mulheres como Luisa, sobrecarregadas, tendo que lidar com uma rotina exaustiva, equilibrando mil coisas, por isso precisamos repensar sobre o termo mulher guerreira, e as implicações que vem com tal ‘’estilo de vida’’. É necessário entender que não está tudo bem, e poder proporcionar um espaço para que essas mulheres olhem para dentro de si, e se permitam sentir além dos julgamentos. Precisamos ainda refletir e problematizar as questões de gêneros e combater o machismo tão estruturado ao qual coloca mulheres nessa posição. Ensinando as nossas garotas, que o lugar delas no mundo não é confortável, mas que lutamos para que seja, então está tudo bem sentir.
A partir de hoje, quando você lembrar de uma mulher e pensar o quanto ela é guerreira, pense também nas implicações que atribuem a ele esse fato e de que forma você pode ajudar, seja estendendo a mão, seja trazendo conhecimento, de forma a tornar seus fardos menos pesados.
O mito da mulher guerreira: uma análise da saga de Hervör. João Pessoa: Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, 2021, 258 páginas. ISBN: 978-65-00-22255-5
MORAE, E. Ser mulher na atualidade: representação discursiva da identidade feminina em quadros humorísticos de maitena. In TASSO, I., and NAVARRO, P., orgs. Produção de identidades e processos de subjetivação em práticas discursivas [online]. Maringá: Eduem, 2012. pp. 259-285. ISBN 978-85-7628-583-0. Available from SciELO Books .
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Luís Paulo Lopes: “É preciso passar pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis”
“O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir”, diz terapeuta junguiano
Falar de Psicologia Analítica geralmente é um fascínio, pois é uma abordagem que nos remete ao estudo dos símbolos, mitologias, arquétipos e da própria psique humana, temas esses que ao longo da humanidade sempre estiveram em alta e que trazem consigo uma forma de entendimento através dos seus significados e a importância dos mesmos para nossa vida.
Nessa entrevista o psicólogo, professor e terapeuta junguiano Luis Paulo Lopes destaca algumas perspectiva da abordagem, bem como suas percepções acerca do cenário atual e o contexto histórico de construção da Psicologia Analítica no Mundo e no Brasil. Também comenta de forma clara sobre vários mal entendidos e pré-conceitos acerca da abordagem e do seu fundador, Carl Gustav Jung, bem como sobre a sua ruptura com Sigmund Freud, pai da psicanálise.
(En)Cena – Por que você trilhou esse percurso? O que foi que te interessou nessa área?
Luís Paulo Lopes – Cheguei em Jung quando era ainda bastante jovem. Após o segundo grau, entrei para a faculdade de biologia, quando tive uma crise psicológica muito intensa e desagregadora que eu não saberia nomear através da psiquiatria, e nem acho que seria o caso. Nessa ocasião, fiquei muito invadido por conteúdos do inconsciente que me tiraram completamente a liberdade; o que me levou a uma reclusão de praticamente um ano em casa, e em meio à muitas questões; certamente aquelas grandes questões da humanidade. Este momento, talvez tenha sido o mais difícil da minha vida até hoje; era um desafio tremendo sair de casa e me relacionar com outras pessoas. Eu vivia aprisionado num mundo de imagens difíceis; era como se eu tivesse sido dilacerado, como Osíris, quando Seth o desmembra e espalha seu corpo pelo Egito. No mito, Isis é quem faz o trabalho de reunir, aos poucos, os pedaços do corpo de Osíris para poder reconstituí-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo nesta época, e aí começa então, uma busca que definiria meus caminhos.
Inicialmente, era uma busca para sair daquela condição aterradora, como se um forte instinto de sobrevivência tivesse despertado em mim e me dizia para encontrar um caminho; do contrário eu ficaria para sempre preso naquela condição. Vida ou morte, esta era a minha sensação. Comecei a me interessar pela psicologia transpessoal, e encontrei um autor muito interessante chamado Stanislav Grof. Naquela época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos. Grof mencionava Jung, e fiquei interessado em conhecer o que o sábio de Zurique dizia. Comecei a ler alguma coisa de Jung; no início comprei o “fundamentos de psicologia analítica”, que hoje integra “a vida simbólica vol.1”; são os 5 primeiros capítulos (as conferências de Tavistock). Eu não conseguia entender nada do que estava escrito ali, mesmo sendo um texto onde Jung tem uma linguagem um pouco mais acessível. Eu lia e não conseguia entender, mas fiquei com uma “pulga atrás da orelha” e então comecei a ler livros de comentadores, introdutórios, como “introdução à psicologia junguiana” e coisas do tipo. Assim, fui começando a entender um pouquinho melhor aquela teoria difícil, estranha e fascinante. Após estes estudos introdutórios, consegui começar a ler alguma coisa de Jung nas “Obras Completas”; embora meu entendimento não fosse muito bom, continuava estudando mesmo sem conseguir compreender totalmente. Minha sensação era a de que havia encontrado um grande tesouro, e foi isso que me manteve insistente apesar das dificuldades que tive inicialmente para compreender a teoria junguiana.
Com o tempo, fui me apropriando deste olhar e conseguindo compreender melhor; até que chegou um momento da minha trajetória em que precisei fazer uma escolha. Até então, cursava a faculdade de biologia e estudava psicologia por conta própria; e finalmente decidi começar a cursar psicologia. Durante um tempo, fiz os dois cursos ao mesmo tempo; cursava biologia a noite e psicologia de dia; e foi um ano dessa forma, até me formar em biologia e, alguns anos depois, em psicologia.
Quando me formei em biologia, comecei uma pós-graduação em psicologia junguiana, e cursei junto com a graduação em psicologia. Cerca de um ano após concluir a pós-graduação, fui chamado para ser professor no mesmo curso, que era na Universidade Veiga de Almeida, na época. Como professor, as coisas começaram a ficar mais sérias e precisei estudar ainda mais para poder ensinar, e, com certeza me ajudou a aprofundar muito mais na teoria junguiana. Ainda nesta época, tive algumas experiências muito significativas que, no entanto, mantinha em total sigilo em relação às pessoas que estavam a minha volta. Estas experiências me exigiam elaborar algumas questões muito fundamentais, como por exemplo “o que é a realidade?” ou “o que é a consciência?”. Minhas elaborações sobre essas questões eram bastante incomuns e cheias de paradoxos; o que me levantou a suspeita de que talvez estivesse enlouquecendo, pois não encontrava nada parecido com as minhas conclusões em lugar nenhum. Entretanto, tive um grande alívio quando, por acaso, descobri o advaita vedanta, ou vedanta não-dual, de Shankaracharya. Encontrei aí, com muita surpresa, elaborações sobre a realidade muito semelhantes as minhas próprias e pude respirar tranquilo; pois alguma outra pessoa já havia visto as coisas que eu também estava vendo. Esse momento marcou o início do meu interesse pelas tradições espirituais e a mitologia; que são muito importantes para mim até hoje.
Voltando a Jung… seu pensamento me chamava atenção pela grande profundidade. A sensação que eu tinha era de que Jung possuía uma vivência muito profunda e autêntica naquilo que ele ensinava. Ele não olhava o fenômeno a partir de fora, mas falava de dentro. Possuía uma vivência do inconsciente; o que ficou claro posteriormente com a publicação do “Livro Vermelho” e, agora dos “Livros Negros”, que trazem registros das vivências mais íntimas de Jung neste vasto e misterioso campo chamado inconsciente.
Fonte: Arquivo Pessoal
(En) Cena – Luis, você falou uma coisa, que foi um diferencial do Jung em relação a psicanálise, ele não nega a análise redutiva do Freud principalmente no que se refere às neuroses, mas aí ele aposta também na perspectiva teleológica, que é para onde aponta esses sintomas. Nesse momento que ele fez a ruptura com Freud parece que ele inaugurou uma psicologia bastante moderna, ele dizia que para ser analista tem que ser analisando também, o analista tem que se submeter ao seu próprio processo de análise também, por um colega. Você acha que a psicologia se perdeu muito nesse processo? Isso é mais uma regra da psicologia analítica, da psicanálise por exemplo? Porque ele (Jung) diz que você não pode pedir para o seu cliente/paciente ir além do que você mesmo foi. Como você vê isso? E foi ele que inaugurou isso, o Jung?
Luís Paulo Lopes – Eu gosto do termo terapeuta, prefiro até do que analista. Me vejo como um terapeuta que pode estar como analista se a situação assim exigir. Jung coloca como sendo uma questão ética de grande importância que o terapeuta viva a própria vida com seriedade. Estou me referindo à vida com V maiúsculo; com a participação do inconsciente. Portanto, não me refiro à vida estéril de sentido como nos é ensinada pelo espírito desta época; onde temos como único objetivo tornamo-nos boas engrenagens de uma máquina cega. Me refiro à Vida que realiza o seu próprio sentido, isto é, que realiza quem realmente somos; e que para tal, exige que passemos pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis e, também, pelo terrível desamparo que faz nascer um sentido a partir de nosso centro interior; nos forjando, gradualmente e na medida do nosso ato, em um individuum. Penso que é justamente isso que Jung quer dizer quando afirma que “ser normal é a meta dos fracassados”; isto é, a individuação me parece uma condição indispensável para que se realize com qualidade o ofício de terapeuta. É a questão do curador ferido. Aquilo que realmente somos está profundamente mergulhado no inconsciente e como que anseia ardentemente ser realizado conscientemente. Perceba que me refiro a um inconsciente bastante distinto daquele preconizado por Freud, ou o inconsciente do recalque; mas a um inconsciente criativo, como algo vivo, que intenta a construção de um caminho no sentido de sua própria realização e que, para isso, precisa da colaboração do ego. Esta é uma gigantesca diferença entre Freud e Jung. Note que não se trata mais de curar um problema específico, tal qual o pensamento médico tradicional preconiza e que está presente também em Freud (embora a psicanálise o tenha superado atualmente). A cura, em nosso caso, é como que um processo vivo, com um curso que lhe é próprio, que nasce a partir do inconsciente e é catalisada, por assim dizer, pela relação com o terapeuta e o trabalho clínico. Não se trata, absolutamente, de acessar conteúdos sexuais reprimidos, embora possa também envolver isso.
Se analisarmos os famosos casos clínicos discutidos por Freud, veremos se tratar de neuroses que foram supostamente curadas a partir da técnica psicanalítica. Havia a ideia de um procedimento quase médico – a psicanálise –, que prometia a cura das enfermidades psíquicas através de seu método quase infalível. Não deixo de notar o caráter de propaganda que está implícito nas discussões dos casos clínicos de Freud; o que pode ser perfeitamente compreendido se considerarmos o contexto histórico em que Freud se esforçava para mostrar o valor científico da psicanálise. O método freudiano, era focado na anamnese e, na redução das fantasias transferenciais a suas causas biográficas, comumente associadas ao complexo de Édipo. Entretanto, o inconsciente vivo ou criativo formulado por Jung muda a forma como se entendia o processo analítico; pois, não se trata mais de voltar ao passado para encontrar a origem do problema no conteúdo recalcado (análise redutiva), mas, além disso, em nos indagarmos sobre a finalidade do processo inconsciente; isto é, a análise deixa de apontar unicamente para o passado e passa a apontar para o futuro; quer dizer, para a construção de um caminho em colaboração com o inconsciente, no sentido da realização da finalidade deste último em colaboração com o ego. É isso o que Jung chamava de cura da cisão neurótica da personalidade.
O foco não é mais eliminar um problema, mas (em muitos casos) atravessar estados psíquicos difíceis e, assim, produzir uma renovação da personalidade. Jung traz várias definições sobre a neurose, a partir de vários ângulos distintos, por isso, não há como definir de uma forma simples a neurose na perspectiva junguiana. Apesar disso, Jung nos permite pensar a neurose como uma espécie de doença sagrada; nesse sentido, uma experiência iniciática criada pelo inconsciente com a finalidade de produzir uma passagem; isto é, que aponta para um fim específico. Essa é uma diferença importante entre Jung e Freud; o inconsciente junguiano, por assim dizer, abarca o inconsciente do recalque freudiano e vai além, pois é também um inconsciente criativo que aponta para uma finalidade e busca produzir uma totalidade, quer dizer, uma nova atitude que una a consciência e o inconsciente.
Jung traz inovações que são absolutamente relevantes e tornam a psicologia junguiana bastante distinta em relação à psicanálise freudiana. Em grande medida isso ocorreu pelo fato de Jung ter tido uma grande influência do romantismo alemão, por suas experiências do inconsciente (como as descritas no livro vermelho), e por ter bebido das tradições espirituais do mundo inteiro e, especialmente do esoterismo ocidental. Jung conhecia mitologia, conhecia os textos sagrados e esotéricos das principais religiões do mundo. Existe uma busca milenar muito mais antiga do que a psicologia contemporânea por isso que os antigos sintetizavam no símbolo da ressurreição, da salvação, da iluminação, do ouro filosófico dos alquimistas ou outros símbolos análogos. A mentalidade contemporânea, impregnada de racionalismo e materialismo, entende esses símbolos de forma extremamente concreta e poderíamos até dizer, ingênua. Jung permite um novo olhar, simbólico, sobre toda essa literatura; e assim, podemos extrair uma espécie de tintura extremamente valiosa para o campo psicológico. Há elaborações riquíssimas em outras tradições que são absolutamente úteis para a psicologia contemporânea. Penso que nossos esforços devem considerar tudo isso que já foi produzido no campo do espírito e não vejo sentido em querer inventar novamente a roda. Toda árvore precisa ter as raízes saudáveis e Jung tinha excelentes referências em sua biblioteca particular. A psicologia junguiana está afinada com esse material muito mais antigo e podemos ver essas fontes citadas pelo próprio Jung ao longo de sua obra; principalmente em seus escritos sobre a alquimia, que mostram um Jung mais maduro e com um conhecimento enciclopédico sobre essas tradições. Apesar de considerar Jung como fazendo parte de uma tradição mais antiga, acho que seu grande trunfo foi ter desenvolvido uma ciência psicológica moderna e com bases epistemológicas extremamente sólidas. Ele traz uma bagagem importante de milênios de experiências acumuladas; apesar disso, não aborda nenhuma dessas tradições a partir de uma perspectiva metafísica, mas, aplicando com rigor uma perspectiva simbólica, observa todo esse material como imagens psíquicas; isto é, como um fenômeno estritamente psicológico.
Fonte: Arquivo Pessoal
(En) Cena – Você concorda que a resistência que o Jung obteve, parece que agora vem diminuindo, de certa forma? Há a ampliação de espaços de diálogo com a psicologia analítica, principalmente na academia, nas universidades, talvez de forma tardia em relação a psicanálise freudiana… Você acredita que o Jung ainda hoje é incompreendido? Pois em artigos científicos é muito comum ver as pessoas se referindo à psicologia analítica como uma espécie de misticismo, elas aparentam não entender o sentido mais profundo inclusive do que seria o Místico e de que forma isso pode ser analisado pelo prisma psicológico.
Luís Paulo Lopes – Com certeza. Jung é não somente mal compreendido, mas, também utilizado para justificar formas de pensar que são absolutamente distintas da dele. Podemos ver isso com clareza na apropriação da teoria junguiana pelo movimento new age; o que somente acentua o preconceito em relação à psicologia junguiana e dificulta sua inserção nas universidades. Sou supervisor clínico em uma universidade e quando inicio uma turma nova, costumo perguntar: “o que vocês pensam sobre Jung?”. Já escutei algumas lendas, no mal sentido do termo, como uma ideia de que Jung aborda coisas mágicas ou metafísicas. Uma ideia de que a psicologia junguiana não é tanto psicologia assim e, por isso, não deveria ser tomada com seriedade. Esse mal entendido normalmente é desfeito com facilidade depois da primeira aula. Quando os alunos conhecem um pouco da teoria junguiana, costumam se interessar bastante e, não tenho dúvidas, começam a levar a sério como qualquer outra abordagem psicológica. Acho que isso em parte se dá por uma campanha difamatória que se iniciou no passado e, até hoje, ainda se estende. Quando houve a ruptura da sociedade psicanalítica de Zurique (Jung) com a de Viena (Freud), iniciou-se uma verdadeira guerra difamatória abastecida por calúnias. Jung não foi o único que sofreu por isso; poderíamos trazer outros autores que foram alvos de campanhas difamatórias como Ferenczi, Adler, Reich e vários outros. Inclusive há um livro do Shamdasani, “Os arquivos Freud”, onde o autor faz uma maravilhosa pesquisa historiográfica utilizando principalmente cartas escritas pelos psicanalistas do Círculo de Viena e de Zurique da época; e você percebe este falatório. Predominavam os argumentos a partir de falácias, “ad hominen”.; tentava-se desacreditar o homem, a pessoa, a personalidade, para descreditar toda sua obra. Freud tinha a pretensão de que sua psicanálise fosse considerada como única possibilidade de psicologia profunda e sentia-se profundamente incomodado com as dissidências de seus antigos colaboradores.
Entretanto, parte da fama de Jung como místico provinha do próprio Jung; precisamos reconhecer isso. Depois da publicação do “Livro Vermelho” tivemos acesso a uma série de experiências místicas do próprio Jung e pudemos perceber o quanto essas experiências foram cruciais para a criação de sua psicologia. Agora, com o lançamento dos “Livros Negros”, este debate certamente será novamente aquecido no campo junguiano. Hoje, está muito claro que o interesse de Jung pelo esoterismo e por místicos de várias épocas e tradições não era somente uma curiosidade intelectual, visto que ele mesmo viveu uma série de experiências extraordinárias que poderíamos muito bem denominar como experiências místicas. Entretanto, este é um fato absolutamente rodeado por preconceitos, mesmo dentro do campo junguiano. Alguns chegam a chamar as experiências de Jung de psicóticas, o que é uma flagrante falta de compreensão sobre a natureza da experiência mística; muito embora, ambas sejam experiências do inconsciente coletivo, por assim dizer. A questão, portanto, não é negar as experiências místicas de Jung, mas de considerar a experiência mística a partir da perspectiva psicológica do próprio Jung. Ele nos permite considerar estas experiências a partir de uma perspectiva que não é nem psicopatológica, nem metafísica. Jung considerou com seriedade estas experiências e, inclusive, reconheceu a importância delas para o campo da saúde mental. Quando passou a utilizar o método da imaginação ativa, na prática, introduziu a experiência mística no setting analítico a partir de uma perspectiva absolutamente psicológica. Os antigos gregos utilizavam a palavra “gnose” para designar um tipo de conhecimento que, poder-se-ia dizer, provém diretamente do inconsciente coletivo e que teria um efeito absolutamente transformador. A “gnose” se refere a um conhecimento que não cabe nas palavras e que, embora seja anterior à própria imagem, só pode ser exprimido e ampliado através das imagens. Penso que deveríamos levar isso muito mais a sério, pois o próprio campo junguiano contemporâneo passou a ver com preconceito este aspecto do pensamento de Jung, por pura ignorância. E, na tentativa de proteger Jung das acusações de místico, passou a minimizar a importância da experiência mística na vida e na obra de Jung; jogando, quase que literalmente, a criança fora junto com a água do banho.
Fonte: encurtador.com.br/adlG6
(En) Cena – Já havia, naquela época, uma política de cancelamento, sim?
Luís Paulo Lopes – Havia sim. Freud tinha pretensão de criar uma psicologia que oferecesse uma resposta única para o problema da psique. Hoje sabemos o quanto essa pretensão era fantasiosa. A pluralidade do campo psicológico contemporâneo está aí para provar. Freud, por exemplo, considerava a libido como tendo uma qualidade fundamentalmente sexual, e não estava disposto a aceitar qualquer outra possibilidade de olhar que dissesse o contrário. Este tipo de posição de Freud fez com que Jung, várias vezes, o acusasse de dogmatismo. A questão da libido é um bom exemplo de um ponto de divergência radical entre Freud e Jung que acabaria colaborando decisivamente para a ruptura entre ambos. Jung afirmava, por exemplo, que o instinto de nutrição era anterior ao instinto sexual e, além disso, que outros instintos eram igualmente importantes, inclusive o que chamou de instinto religioso. Jung traz o inconsciente coletivo com sua multiplicidade de formas arquetípicas como sendo o fundamento psíquico mais radical e a libido como energia pura e simples em seu movimento de progressão, represamento e regressão; impulsionando a transformação das imagens em um processo que parte de uma causa e busca uma finalidade específica. Para Freud, isso era uma ameaça sem precedentes, pois questionaria toda a sua psicanálise. Imagine este fato em um contexto onde a psicanálise sofria constantes ataques e tentativas de desqualificação; e, ainda lutava para se estabelecer como um campo que gozasse de algum prestígio social.
(En)Cena – E como fica a Psicologia analítica, neste ínterim? E no Brasil, qual o perfil acadêmico dos adeptos da teoria?
Luís Paulo Lopes: Podemos pensar na chegada da psicologia junguiana aqui no Brasil com a Dra. Nise da Silveira. Ela organizou grupos de estudos em sua casa que atraíram muitas pessoas interessadas em estudar Jung; e isso, muito antes da tradução das obras completas de Jung para o português. Meus principais professores de psicologia junguiana estudaram com a Dra. Nise, que foi a grande ponte para a chegada da psicologia junguiana no Brasil. Graças a ela e à importância do trabalho que ela desenvolveu com a psicose no antigo Hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a obra junguiana passou a ser estudada com seriedade no Brasil. Não fosse isso, talvez não estaríamos tendo esta conversa aqui hoje.
A psicologia junguiana teve uma difusão lenta no Brasil. Os junguianos sempre foram pouco numerosos e somente alguns se dedicaram a seguir uma carreira acadêmica. Hoje em dia, não é fácil pensar no mestrado em psicologia junguiana, principalmente a depender do estado em que resida; pois, são poucos os professores que orientam pesquisas neste campo. Mas, esse cenário vem mudando muito rapidamente. Cada vez mais, há professores junguianos nas universidades. Os cursos de pós-graduação em psicologia junguiana se alastram por todo o país, assim como muitos institutos junguianos que não têm ligação com alguma universidade. Percebo que a possibilidade do virtual e das plataformas online, herança da pandemia do coronavírus, tem permitido uma expansão ainda maior do campo junguiano. Muitos eventos importantes como palestras, grupos de estudos, aulas pelo youtube, lives, seminários e congressos têm acontecido através destes novos recursos. Hoje, é muito fácil para o estudante encontrar algum grupo ou curso para iniciar os estudos na teoria junguiana; basta procurar pelo facebook. Entretanto, advirto para que procurem analistas ou professores sérios, pois não é incomum encontrarmos coisas pela internet que não são de qualidade. Veremos como isso vai caminhar. Mas, tudo aponta para um grande crescimento do pensamento junguiano no campo da psicologia brasileira. Há um programa de pós-graduação em psicologia junguiana na PUC-SP, por exemplo. Creio que isso é algo muito significativo sobre a penetração da teoria junguiana nas universidades brasileiras.
(En)Cena – Tem um pela Universidade Federal do Paraná, tem também pela Universidade Federal do ABC Paulista, há também algo na UNIP, mas são poucos em relação a quantidade de programas de Mestrado, porque Doutorado é mais difícil ainda… pois bem, Luís, mudando um pouco de assunto, aparentemente há uma disputa muito grande dentro do próprio Brasil entre as diferentes formas de fazer a leitura do Jung. Qual sua opinião sobre isso?
Luís Paulo Lopes – Acho que as diferentes abordagens são inevitáveis, pois, em psicologia, o objeto de estudo é também o sujeito do mesmo estudo. Temos essa interessante peculiaridade em relação às demais ciências, o que torna a psicologia algo extremamente plural e complexo. É possível olhar para a alma a partir de diferentes perspectivas e, apesar da possibilidade da objetividade, o componente subjetivo, ou equação pessoal (como chamou Jung), tem grande importância na elaboração da teoria. Por isso, ao falar sobre psicologia, precisamos falar sempre no plural – psicologias. O psicólogo, devido a essa pluralidade, costuma estar à vontade para lidar com diferentes epistemologias; com diferentes pontos de vista. Podemos considerar que embora todas as abordagens psicológicas tenham uma validade relativa, nenhuma jamais terá validade absoluta. No campo junguiano não é diferente. Jung fez um trabalho definitivamente monumental; o que permitiu diferentes linhas de desenvolvimento teórico a partir deste ponto inicial. Podemos considerar três principais correntes de pensamento dentro do campo junguiano: a psicologia junguiana clássica (principalmente os autores que estiveram mais próximos de Jung), a psicologia junguiana desenvolvimentista (que produziu mais diálogos com a psicanálise) e a psicologia arquetípica (de James Hillman). Há, atualmente, um grande autor chamado Wolfgang Giegerich, que traz uma abordagem distinta em relação às outras três e parece ter força para criar uma quarta corrente de pensamento no campo junguiano; veremos. Essa pluralidade dentro de um mesmo campo não é sem tensões, como seria de se esperar. De qualquer forma, as disputas e alfinetadas mútuas entre os diferentes autores são sinal de saúde; pois, significa que a psicologia junguiana está bastante viva e pulsante, produzindo novos conceitos e ideias. Isso quer dizer que a psicologia junguiana não se enrijeceu em um dogmatismo e, é exatamente isso que garante que nosso campo prospere e avance para o futuro.
É importante avançar, pois estamos no século XXI e não mais na primeira metade do século XX. Quais são os problemas da nossa época? O quanto nós, hoje, conseguimos enxergar e que o próprio Jung não podia, devido ao limite imposto por sua época? Por exemplo, hoje, temos um pensamento feminista dentro da psicologia junguiana que não seria possível na época de Jung. Essa corrente traz algumas críticas importantes em relação ao machismo do próprio Jung. As críticas internas são sempre mais poderosas do que as críticas que vem de fora e, pelo mesmo motivo, são potencialmente mais transformadoras. As críticas de psicanalistas em relação a Jung, por exemplo, costumam ser risíveis; sem fundamento e baseadas em lendas criadas pelas campanhas difamatórias do passado. Coisas do tipo que não se deve nem perder tempo para responder. Mas, as críticas internas são diferentes, pois vem de quem realmente conhece a teoria junguiana. São estes autores que podem fazer críticas bem fundamentadas e, pelo mesmo motivo, criar desdobramentos teóricos.
Fonte: encurtador.com.br/xCIN3
(En)Cena – Em termos de produção de literatura junguiana no Brasil, como você considera que está no momento?
Luís Paulo Lopes – Acho muito importante que haja uma produção robusta de literatura junguiana nacional; e, principalmente que considere as especificidades da psique brasileira. Todo povo tem uma história que influencia radicalmente a psicologia do indivíduo. Quais são os fantasmas que habitam esta terra chamada Brasil e que ainda hoje nos assombram a todos de uma maneira ou de outra? Vivemos, por exemplo, numa terra que, há não muito tempo, foi palco de uma brutal de escravidão. A tortura pública e a brutalidade eram banais nestas terras há não muito tempo atrás e permanecem bastante vivas nas periferias e presídios, por exemplo. Seria mais fácil se esquecer de tudo isso e continuar como se nada estivesse acontecendo; não à toa dizem que o brasileiro tem pouca memória. Entretanto, o inconsciente se recusa a esquecer aquilo que a consciência preferiria fingir que nunca existiu. Quais são os nossos traumas culturais? E como eles nos influenciam ainda hoje? Tenho visto um esforço significativo entre alguns junguianos brasileiros no sentido de produzir pesquisa e literatura exatamente nesta área tão importante. Destaco Walter Boechat e Roberto Gambini. É bastante animador perceber este movimento na psicologia junguiana nacional. As editoras Vozes e Paulus são grandes colaboradoras na difusão do pensamento junguiano, nacional ou internacional; e temos revistas de psicologia junguiana ligadas a SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e a AJB (Associação Junguiana do Brasil). Mas, apesar disso, em termos gerais, penso que ainda escrevemos pouco no Brasil e, ainda estamos longe de poder ostentar uma produção de literatura junguiana significativa e capaz de dialogar com os principais autores internacionais.
(En)Cena – Em relação à Anima Mundi, como é que você vê esse resgate da alma do mundo?
Luís Paulo Lopes – O conceito junguiano denominado como processo de individuação me parece um caminho para pensar esta questão, muito embora seja um conceito que levante certas polêmicas e divergências no pensamento pós-junguiano. Particularmente, considero que para uma correta compreensão sobre o que Jung chamou de processo de individuação é preciso mergulhar no pensamento dos antigos alquimistas; e nesta área, somente a experiência em seu próprio e privado laboratório e a gnose que daí pode nascer, poderia trazer alguma elucidação. Por exemplo, considero o conceito de “cultivo da alma”, em Hillman, como algo absolutamente distinto em relação ao que Jung chamava de processo de individuação. Tenho pensado, embora ainda não tenha chegado a uma conclusão definitiva, se não poderíamos considerar “o cultivo da alma” hillmaniano e a individuação junguiana como formas distintas de subjetivação, válidas para diferentes tipos de pessoas. Isso teria importantes desdobramentos clínicos.
O mito da queda de Sophia trazido pelos antigos gnósticos nos ajuda a pensar essa questão. Sophia teria gerado filhos sem o consentimento do Pai e sem a participação de seu consorte, o Cristo. Sophia e Cristo como uma sizígia, refere-se ao tema largamente desenvolvido pelos alquimistas da união entre a Alma e o Espírito. A Alma, portanto, originalmente estaria indissociavelmente unida ao Espírito, porém, quando decidiu gerar filhos sem a participação deste último, deu à luz aos Arcontes, seres ignorantes em relação aos desígnios do Pai. Os Arcontes, por sua vez, são comumente representados pelos sete planetas que estão associados aos metais que o alquimista deveria transmutar para a produção do ouro. O mito narra como Sophia foi aprisionada na matéria e como é violentada e oprimida pelos Arcontes que a impedem de retornar à sua morada eterna; até que não podendo mais encontrar consolo nas ilusões da matéria, em estado de profunda privação, Sophia se arrepende de seu erro e implora por seu consorte e salvador, o Cristo. Somente após esta união da Alma com o Espírito, Sophia é gradualmente liberta da submissão em relação aos Arcontes e se aproxima de seu verdadeiro fundamento. Esta é a Sophia discutida por Jung como sendo o quarto grau de desdobramento da anima e associada ao Eterno Feminino ou à Sabedoria Divina. Embora as imagens sejam muito mais enigmáticas do que os conceitos, penso que exprimem muito melhor uma ideia universal.
(En)Cena – Isso é o próprio processo de individuação?
Luís Paulo Lopes – Certamente. O processo de individuação não tem nenhuma relação com o que o senso comum chama de “auto realização”. Pelo contrário, o que se entende hoje como “auto realização” seria equivalente a estar totalmente perdido e definido pelo espírito da época; por isso, está longe de ser uma solução, mas, na verdade é um sintoma do problema que desafia a humanidade, a ignorância. O processo de individuação, ao contrário, fala sobre a transformação do homem no sentido de seu próprio centro e que só pode ser realizada a partir do indivíduo. Me lembro de uma passagem em que Jung diz que o maior trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é integrar a nossa própria sombra e, assim, parar de projetá-la nos outros. Tendo a concordar com esse ponto de vista. Nossa cultura dominou a técnica como nunca na história da humanidade, entretanto, espiritualmente somos como crianças birrentas disputando pelos melhores brinquedos. Veja o perigo desta situação se considerarmos a existência da bomba atômica.
É preciso mergulhar profundamente no passado para que as raízes de nossa cosmovisão se estabeleçam na terra fértil dos grandes espíritos da humanidade. Nos tempos atuais, é preciso ter muito cuidado com a novidade, que tenta vislumbrar o homem a se perder na superficialidade; tornando-o ainda mais escravo da ignorância. Assim como a flor arrancada logo perece por ser privada de suas raízes, também o homem contemporâneo adoece quando é desligado de seu passado e privado da sabedoria dos antigos sábios. Precisamos de uma nova pedagogia, não somente para as crianças, mas sobretudo aos adultos. Uma pedagogia enraizada na tintura dos grandes espíritos que passaram por este mundo; para que a tão importante novidade de que tanto necessitamos hoje seja um novo ramo nesta antiga árvore da sabedoria. Mas, a pretensão pueril do homem moderno olha para o passado com desdém, afirmando se tratar de um tempo obscuro de superstição e ignorância; e assim, vangloria-se com suas próprias invenções como se fossem tremendamente superiores. Entretanto, a maioria não passa de vãs distrações que fazem com que o homem se perca cada vez mais no lodo escuro da ignorância; e assim, segue destruindo o mundo. O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir (normalmente a problemática da segunda metade da vida). Se a cosmovisão não tiver longas raízes que penetrem profundamente no passado, na terra dos grandes espíritos da humanidade, ficará restrita à superfície desta época. O homem permanecerá como uma criança mimada, a doença mental crescerá como erva daninha e o mundo continuará a ser destruído. Esta é a minha definição para a miséria espiritual da nossa época.
(En)Cena – Aos 63 a 64 anos, Jung falava continuamente que o que diferencia muito ele – inclusive de Freud – é que ele era um homem ambivalente, imperfeito. Como você enxerga isso?
Luís Paulo Lopes – Ele e todos nós; sem dúvida nenhuma. Jung deixa claro que a individuação não é um caminho para a perfeição, mas para uma maior integridade. Integridade implica ter consciência da própria escuridão, das próprias imperfeições; e conviver com elas de forma consciente. Entretanto, ao tentarmos ser perfeitos, fechamos os olhos para tudo aquilo que não se encaixa na perfeição que imaginamos e, por isso, nos alienamos de nós mesmos; precisamente, a definição de neurose para Jung. Mas, convenhamos, admitir nosso lado sombrio é algo tremendamente difícil e nós joga em conflitos penosos e no desamparo arquetípico. Entretanto, este mesmo desamparo pode ser muito bem o início de um processo (penoso, é verdade) de nascimento de um individuum; isto é, fala sobre a possibilidade da cura de cisão neurótica da personalidade. Esta cisão neurótica faz com que a mão direita haja sem saber como a mão esquerda está agindo, como Jung certa vez afirmou; entretanto, mesmo com a superação da cisão neurótica, o homem continua tendo uma mão direita e outra esquerda, muito embora, agora elas possam estabelecer uma relação. Esta é a nossa ambiguidade fundamental e insuperável. Há uma boa passagem bíblica atribuída a Jesus que serve bem como imagem simbólica para essa verdade psicológica: “Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17). Quem conhece as discussões de Jung sobre a relação simbólica entre Cristo, o conceito de Self e o processo de individuação, compreende essa analogia sem nenhuma dificuldade.
Fonte: encurtador.com.br/frvAI
(En)Cena – Pode ser que alguns terapeutas junguianos tenham um sistema pré-moldado, pré-definido, um sistema cognitivo, do ponto de vista da compreensão dele do mundo, e ele não consegue fazer essa separação, fora do espectro da autoridade, e as vezes ele passa a impressão de que o processo de individuação se aproxima daquele “Ideal Asceta” que o Nietzsche criticava dentro do Cristianismo. Você enxerga dessa forma? Como é que se pode desmistificar isso, ou como o paciente pode perceber isso?
Luís Paulo Lopes – Quanto mais o homem se aproximar de um ideal, mais distante estará de si mesmo. Por isso, os ideais de perfeição necessariamente produzirão uma sombra de igual intensidade que tenta compensar o ideal sobre o qual a consciência está identificada. Veja o exemplo do nazismo na Alemanha; o ideal de perfeição, beleza e pureza ariana carregava de forma subterrânea o horror, a feiura e a sujeira da sombra alemã. Enquanto o povo alemão estava possuído por este ideal de pureza, era incapaz de perceber que ele mesmo era o monstro repugnante que tentava derrotar, e assim, o perseguia projetado em seus inimigos. Vivemos algo muito semelhante hoje em dia no Brasil com o ideal do cidadão de bem, por exemplo. Veja o quanto é sedutor um ideal como esse; pois afirma que aquele que se identifica com ele é uma pessoa perfeita, como se estivesse salva do diabo que habita a sua própria casa. Qualquer ideal deste tipo, não importa se é político, religioso, ou de qualquer outra natureza, produz este mesmo efeito. A integração da sombra, para Jung, significa tornar-se humano, ou seja, um pecador. Veja como poderia ter sido salutar se o povo alemão tivesse tomado consciência do pecado que carregava, mas que era incapaz de reconhecer. Nesse sentido, a individuação não significa “subir no pódio” como o espírito desta época gastaria de pensar, mas ao contrário, é “cair do cavalo”. É levar um tombo do alto de sua inflação. A identificação com esta persona heroica ou santa é desfeita e o ego precisa confrontar a natureza sombria da alma. É necessário manter a tensão entre os opostos para que a integração aconteça; nesse sentido é exigida coragem para encarar a verdade de que somos todos pecadores.
(En)Cena – Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre o “necessário manter a tensão” para, a partir disso, integrar…
Luís Paulo Lopes – Manter a tensão, suportar a tensão… Jung discute o conceito de função transcendente, como uma função que unifica a consciência e o inconsciente, os opostos, em um terceiro termo, uma nova atitude. Quando o ego finalmente encara os aspectos sombrios da alma, um conflito irrompe. O conflito tende a ser uma experiência aflitiva e, por isso, a tendência natural é que o oposto inconsciente que está incomodando as pretensões unilaterais da consciência, seja reprimido novamente; e assim, o conflito cessa sem qualquer resolução. Não quero dizer com isso que os conflitos devam ser solucionados, pois como Jung nos ensina, os grandes conflitos humanos são contradições insolúveis. Tentar encontrar uma solução para eles é impossível, pois a consciência é naturalmente unilateral e, portanto, incapaz de considerar uma solução que inclua ambos os opostos. Tudo o que a consciência pode fazer é suprimir o conflito. Este é o motivo pelo qual é preciso sustentar ou suportar o conflito; pois se não podemos solucioná-lo, só nos resta suportá-lo para que não nos alienemos de nosso lado sombrio. Se o conflito for sustentado tempo suficiente, da tensão entre os opostos surge um terceiro elemento que unifica os opostos, a função transcendente. Há uma ampliação da consciência devido a integração do inconsciente e, a partir desta nova perspectiva da consciência, agora ampliada, o antigo conflito perde a importância; e mesmo que não tenha sido definitivamente solucionado, realizou o seu propósito.
Desde os primórdios o homem sempre esteve envolto por ídolos, nos quais adorava e a eles fazia rituais e até mesmo sacrifícios. Muito já se ouviu falar acerca de Zeus, Odin, Pã, Rá, Atena, Afrodite, Ísis, Osíris dentre inúmeros outros deuses que com o passar dos milênios transformaram-se em mitos mas que continuam a trazer certo fascínio na humanidade.
O paganismo, termo oriundo do latim paganus tem seu significado que remete a “Camponês” ou “Rústico”, porém, o termo paganismo está intimamente relacionado às religiões politeístas. O paganismo ainda nos dias atuais, deixa resquícios de seus ritos, como por exemplo o Natal, que na Roma Antiga foi instituído pelo imperador Juliano e era celebrado em 25 de dezembro como o dia do Deus Sol e que na época foi adotado pela Igreja Católica sendo nos dias atuais celebrado no Cristianismo como o nascimento do menino Jesus (FRANGIOTTI, 2006).
Fonte: encurtador.com.br/wCJZ6
Outro rito muito famoso é o Dia das Bruxas ou em seu termo original “Halloween”; comumente comemorado no dia 31 de outubro o Halloween tem suas origens na cultura irlandesa, na qual se realizava a festa Samhain e ali se fazia uma fogueira com sacrifícios aos deuses para afastar os maus espíritos, porém, sua etimologia e seu dia de comemoração também têm conexão com Cristianismo. Seu significado seria “véspera do dia de todos os santos” sendo o dia 01 de novembro dedicado no Catolicismo aos santos e, em seguida (02 de novembro), o dia de finados (ROGERS, 2002).
O Halloween é muito importante na cultura estadunidense e, atualmente, tem alcançado fortemente também outras tantas culturas no mundo inteiro. Nesse dia as pessoas se fantasiam da forma que querem e comumente com trajes macabros e abóboras comparavelmente decoradas, geralmente inspiradas em um personagem icônico. O Halloween é uma forma de representação dos diversos personagens míticos e fantasiosos que comumente trazem consigo reflexões acerca do horror, da monstruosidade, das figuras arquetípicas e dos símbolos que o envolvem em sua maioria de forma inconsciente.
Sobre a festa do Halloween, Rogers (2002, p. 12) cita os grupos de “pagãos da nova era” onde estes enfatizam que a ” ‘estranheza natural’ do Halloween tem qualidades terapêuticas que ajudam as pessoas a ‘tocarem os reinos do mito e da imaginação’ e ‘aceitar seus medos de mudança e morte’.
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Ao falar então dos mitos, podemos citar as mitologias politeístas que nos fazem pensar acerca do quão importante é a sua existência e também o seu estudo. Na Psicologia Analítica os deuses e os mitos são vistos como arquétipos. Bolen (2002, p.19) nos diz que os deuses existem em todos os homens e mulheres, como padrões inatos arquetípicos que se encontram no fundo da psique e conclui que tais deuses são predisposições invisíveis e poderosas, que atingem a personalidade, o trabalho e os relacionamentos.
Os deuses das culturas antigas ainda tem seu destaque até os dias atuais, pois os mesmos representam inúmeras faces, inúmeras personalidades e inúmeras formas, nas quais, podemos nos identificar com características de um ou outro e até mesmo com vários deles, esses deuses são comumente citados e recriados na “Cultura Pop” e, portanto, ainda exercem influências na psique individual e inconsciente coletivo do mundo atual.
Os deuses e deusas muito dizem e muito são influentes sobre a natureza humana e sua personalidade, na maioria das vezes de forma escancarada. Em alguns indivíduos há a possibilidade de uma identificação tamanha com o mito que possa expressar-se de maneira prejudicial, o indivíduo pode mostrar-se “possuído” por um deus arquetípico, correndo o risco de perder sua própria individualidade (BOLEN, 2002).
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Aspectos da mitologia grega são abordados na psicanálise por Sigmund Freud, ao formular a sua teoria acerca do complexo de édipo e do narcisismo, porém, Carl Gustav Jung nos traz de forma mais ampla uma visão de mitos e deuses do mundo todo, mostrando sua influência sobre a psique através da sua teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo, portanto Jung et al. (1987, p. 109-110) em sua teoria expressa que:
“[…] o homem continua a reagir às profundas influências psíquicas que, conscientemente, há de rejeitar como simples lendas folclóricas de gente supersticiosa e sem cultura […] Alguns símbolos relacionam-se com a infância e a transição para a adolescência, outros com a maturidade, e outros ainda com a experiência da velhice, quando o homem está se preparando para a sua morte inevitável […] Esta progressão de ideias simbólicas, no entanto, pode ocorrer na mente inconsciente do homem moderno da mesma maneira que nos rituais das sociedades do passado.”
Sendo assim os arquétipos se mostram por meio de símbolos, que enquanto inconscientes, podem vir à tona através de sonhos e de ações que são influenciadas pelos mesmos. O analista junguiano é capaz de identificá-los e interpretá-los de acordo com o contexto apresentado, podendo trazer uma perspectiva histórica e um sentido psicológico para essas representações. (JUNG et al., 1987).
Saber sobre os deuses é também saber sobre nós mesmos. Acerca disso Hillman (1997, p. 7-12) nos diz que “para conhecer a nós mesmos precisamos conhecer os Deuses e as Deusas dos mitos, precisamos encarar os Deuses […] as figuras do mito, briguentas, embusteiras, sexualmente obcecadas, vingativas, vulneráveis, mortíferas, dilaceradas”, mostram que os deuses não são exclusivamente modelos de perfeição, recaindo as anormalidades apenas sobre os homens.
REFERÊNCIAS
BOLEN, Jean Shinoda. Os deuses e o homem: uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos. Paulus, 2002.
FRANGIOTTI, Roque. Cristãos, judeus e pagãos: acusações, críticas e conflitos no cristianismo antigo. Aparecida: Idéias & Letras, 2006.
HILLMAN, James. Encarando os deuses. 1997.
JUNG, Carl Gustav et al. O Homem e seus símbolos–Concepção e organização de Carl G. Jung. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1987.
Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.
Aladim é um filme de 2019, adaptado do desenho animado Aladdin, de 1992, e baseado no conto árabe As Mil e Uma Noites, de Antoine Galland. O conto Aladim na verdade só se uniu as Mil e uma noites a partir do século XVIII, anteriormente ele não fazia parte da narrativa do livro.
No conto o jovem Aladim é descrito como um adolescente que se recusa a aprender o ofício do pai, que é alfaiate, sendo descrito por sua mãe como imaturo, “esquecido que não é mais criança”. O nome Aladim pode significar em árabe a “nobreza da fé”. Ou ser advindo da mistura de Alá e Djin (gênio ou daimon).
Djin ou Jinn, significa gênio na religião muçulmana, e era uma entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o divino e humano. Estava além do bem e do mal, e rege o destino de alguém ou de um lugar.
Ele é um espírito guardião designado para cada pessoa ao nascer. Portanto, o gênio é concebido como um ente espiritual ou imaterial, muito próximo do ser humano, e que sobre ele exerce uma forte, cotidiana e decisiva influência. Sendo ele o responsável pelo cumprimento do destino de cada ser humano. Ou seja, Aladim é o herói que liberta o espírito divino preso na lamparina. Libertar o gênio não é um processo fácil, é o processo da individuação que exige disciplina e coragem.
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No filme Aladim é um órfão pobre e ladrão, que vive em Agrabah. Ele é chamado de “rato de rua” e seu amigo é um macaco que o acompanha em suas aventuras. Mas antes de adentrar a história mesmo, é importante comentarmos sobre um simbolismo muito importante: o da lâmpada mágica.
A lâmpada é uma figura presente em contos e lendas. Ela é um instrumento de iluminação associada ao ser humano, que contém em si o fogo do interno. Como lamparina ou lâmpada é transitória e o fogo dessa iluminação pode se extinguir, sendo necessário o tempo todo ser aceso. Ou seja, o ser humano precisa de tempos em tempos reacender o fogo da espiritualidade em si, pois enquanto matéria, somos levados a nos manter inconscientes e em nossa zona de conforto.
O fogo e o gênio são acionados quando nos esforçamos e decidimos adentrar em nosso interior. A lâmpada é na verdade uma lamparina semelhante àquelas utilizadas na iluminação doméstica.
Na Grécia antiga o culto da deusa Héstia, deusa representada pelo fogo, era feito em seu templo e em casa, por meio do fogo que deveria ser mantido aceso sempre. As sacerdotisas dos templos tinham que estar sempre atentas para que esse fogo não se apagasse.
Fonte: encurtador.com.br/aJOS4
Héstia também estava presente em cultos domésticos. A importância de Héstia é encontrada em rituais, simbolizada pelo fogo. Para que uma casa se tornasse um lar, a presença de Héstia era solicitada.
Ou seja, o fogo do espírito deve estar presente em nosso recôndito mais íntimo, no nosso lar interno. O fogo do espírito, ou seja, o conhecimento além da simples matéria, o fogo da essência divina (do Self) deve estar sempre presente no nosso cotidiano.
Aladim no filme é inquieto, está em busca de algo que o tire da rotina e não se preocupa em encontrar uma profissão e ganhar seu dinheiro. É tido como irresponsável e infantil. Porém, estamos falando de um herói. E como herói é necessário que olhemos para ele não como um ser humano comum, mas como uma imagem arquetípica.
O herói não necessariamente é aquele que luta e mata os monstros, dragões e bruxas. Ele muitas vezes pode se apresentar como um bobo, ou como alguém com caráter duvidoso (o anti-herói).
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Como ladrão, Aladim apresenta características do deus Hermes. Hermes é o deus grego da inteligência, astúcia, magia, divinação, viagens, estradas e dos ladrões. Além de ser um guia de almas. Era o único deus capaz de transitar nos três mundos: deuses, humanos e dos mortos. Se tornando o mensageiro dos deuses. Mas o principal atributo de Hermes é a alquimia. Deus alquímico, transformador e guia da alma humana.
A alquimia representa a mais profunda transformação humana. É o processo de individuação projetado na transformação da matéria sem valor em algo valoroso. Podemos, portanto, observar Aladim como essa matéria bruta que irá se transformar em algo valioso.
Aladim tem como amigo um macaco, um animal que está muito próximo do ser humano. Para os Astecas e Maias o macaco estaria ligado às artes e à sabedoria. No hinduísmo havia um deus macaco chamado Hanuman. Ele era cultuado como uma encarnação do deus Shiva, que encarnou com a missão de ajudar um rei a derrotar um demônio. Hanuman representa a natureza instintiva do ser humano e a sua origem animal, que pode ser transformada e transmutada para o encontro com o divino.
Simboliza também a mente humana, que pula como um macaco para um lado e para o outro, de galho em galho, sem foco. Ao desejarmos tudo o que vemos nossa mente se atrapalha e se distrai nos tirando do que é essencial. Uma clara armadilha do ego humano. Hanuman transcende as paixões do ego e os sentidos e simboliza a disciplina da mente.
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No filme, Aladim parece não ter foco. Ele mesmo pula como macaco e vive distraído. Porém, seu macaco mostra a virtude do foco que acaba sendo essencial em diversos momentos cruciais, sendo um deles o encontro com a lâmpada mágica.
Aladim é escolhido então pelo vilão Jafar para ir buscar a lâmpada em uma caverna, pois esse possui as qualidades necessárias para poder entrar e sair vivo. O rapaz vai ao deserto com Jafar, confiante, e ele entra nessa gruta. Mas antes é avisado de que lá ele encontraria muitas jóias e tesouros, mas que não deveria tocar em nada. Ele deveria focar em encontrar uma lâmpada antiga e trazer para Jafar.
A entrada na caverna, ou descida, é um tema comum nos contos e jornadas heroicas. Trata-se de um mergulho do herói em si mesmo para buscar algo de valioso. Psiquê desce ao mundo de Hades para buscar a beleza de Perséfone, Orfeu para buscar sua amada, Héracles desce para pedir o cachorro Cérbero emprestado. Odisseu e Enéias também descem.
Descer exige coragem para enfrentar suas imperfeições, seus pesadelos. Deve-se ter foco para isso, pois é fácil se perder neste processo. Trata-se de um grande teste e de um processo de purificação para que o herói seja apto e digno de encontrar o tesouro e ser realizado.
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Cada vez que um ser desce ao submundo e enfrenta a provação, ele se despoja de um ou vários aspectos impuros de seu interior. Ele se purifica de aspectos egóicos e infantis para que possa retornar, ascendendo sua consciência. Trata-se da verdadeira iniciação, a da alma.
A descida de Aladim é a de se despojar dos desejos egóicos e focar no desejo do espírito (a lâmpada), que irá guiá-lo ao seu destino. Para isso só alguém puro (não necessariamente perfeito), ou seja, alguém que não tem pretensões egóicas, que se entrega a jornada sem imaginar qual será o resultado.
Após Aladim retornar da gruta, Jafar pede a ele que entregue a lamparina. Mas Jafar o engana e ele fica preso na gruta. No entanto, a lamparina também fica com ele. Ao friccionar a lâmpada suja, aparece então o gênio. Aquele que irá satisfazer seus desejos e será seu daimon. O gênio lhe concede três desejos, e ele então pede que seja tirado de lá.
Aladim antes de conhecer o gênio havia conhecido a filha do sultão. Ela diz a ele que é a empregada da princesa e ele se apaixona. Após saírem da caverna, Aladim usa seu desejo de se tornar um príncipe para impressionar Jasmine (sem saber quem ela de fato é).
Fonte: encurtador.com.br/fozRX
Ele se transforma em um príncipe com muitas riquezas, mas não impressiona a moça. Ela deseja mais do que apenas riquezas e o seu pretendente precisa estar à altura de sua nobreza, não externa, mas interna. Jasmine, do ponto de vista do herói, pode ser a anima que desafia o homem a encontrar o seu valor. A olhar para dentro de si e não apenas para fora.
Mas Jafar descobre a verdadeira identidade do príncipe e o joga no mar. No entanto, o gênio o salva. Temendo que Jasmine descubra sua identidade e a presença do gênio, ele se recusa a libertá-lo, sucumbindo á sua sombra, que é o poder.
Além disso, o sultão, pai de Jasmine, está velho e cansado e sucumbe ao poder de seu aspecto sombrio, simbolizado por Jafar.
O reino também não possui uma rainha, ou seja, o aspecto feminino não está presente na consciência coletiva. Quando esse aspecto está reprimido há um endurecimento dos sentimentos e uma instalação de seu oposto, o poder!
As leis são embrutecidas e não há lugar para o lado humano. Vemos isso em uma cena que Jasmine permite que uma criança roube uma maçã e sendo então condenada a perder a mão.
Lei é lei apenas, não se faz nada pelo simples fato de amar alguém. E é esse o grande ensinamento de Jasmine. Ela simplesmente ama Aladim, e está disposta a quebrar as regras por amor.
“Você confia em mim?” Fonte: encurtador.com.br/uyBF5
A princesa também tem de lutar com o preconceito contra seu gênero. Ela luta para que seus subordinados aceitem as ordens dela, pois quem dita as ordens é Jafar, o tirano ambicioso colocado pelo próprio rei como comandante. Além disso, ela só terá o poder de “se livrar” de Jafar quando for rainha, o que só acontece com o casamento. Isso mostra que até certo momento, em nossa sociedade, a mulher só tem valor com o casamento. De forma velada, isso perdura até hoje.
Outro aspecto do filme que é muito interessante, é a relação de Aladim com o gênio. Ao logo do filme, o gênio deixa de ser apenas aquele que satisfaz os pedidos do herói para se tornar um protetor e guia. Aladim passa a ouvi-lo e ao final o liberta da prisão.
Libertar o gênio significa libertar o divino para que possa ocupar o mundo. Enquanto está na lâmpada ele se mantém preso à ganância do ego.
Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.
Quando temos um dom, esse dom não é apenas para a nossa satisfação momentânea e do ego, mas para que possamos servir a humanidade através dele, uma vez que o dom veio pelo divino, pelo inconsciente.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
Aladdin
Diretor:Guy Ritchie Elenco:Will Smith, Mena Massoud, Naomi Scott Gênero: Aventura, Fantasia País:EUA Ano: 2019
No nosso tempo, as figuras míticas são encontradas facilmente nas imagens e comportamentos trabalhados pela mídia e pelo cinema
Os estudos arqueológicos, antropológicos e filosóficos estão propiciando que a história antiga da humanidade seja conhecida através dos mitos e imagens simbólicas e, também sua conexão com os tempos atuais.
A Escola de Psicologia Analítica de Carl G. Jung foi quem mais contribuiu para aprofundar o conhecimento e validação destes símbolos (mitos).
Os mitos são uma forma de representação de verdades profundas da mente humana, uma explicação de acontecimentos atuais através de fatos primitivos, os quais permanecem presentes, dando sentido ao cotidiano. Eles estão em todo lugar, tal como num ato religioso, na origem e formação de um povo e nos costumes. Ainda, os mitos fazem-nos pensar sobre a nossa origem como também servem de explicação para alguns acontecimentos.
Fonte: encurtador.com.br/elsS1
Na antiguidade cada civilização possui um conjunto desses símbolos formando suas mitologias, como por exemplo, mitologia grega, mitologia romana, mitologia egípcia, mitologia nórdica, mitologia celta. Muitos desses mitos se repetem nas mitologias, com características semelhantes e nomes diferentes. “A mitologia é o sonhar coletivo dos povos”. (Boechat, 1996, p. 23)
Na história das sociedades antigas o mito reinava sem rival, era tido como verdade. O ser humano contemporâneo, mesmo enredado pela ciência e tecnologia, contribui com as tradições mitológicas e as aceita, sem grandes questionamentos, considerando que fazem parte da criação cultural. As figuras míticas se apresentam como heróis e bandidos, monstros primordiais entre outros.
No nosso tempo, as figuras míticas são encontradas facilmente nas imagens e comportamentos trabalhados pela mídia e pelo cinema. Sendo mais perceptível principalmente na sociedade norte-americana, onde as personagens das histórias em quadrinho representam nos desenhos e diálogos heróis mitológicos e/ou folclóricos, a exemplo do Superman.
Fonte: encurtador.com.br/fluS9
OS MITOS E OS SONHOS
Segundo Jung, embora talvez não consigamos perceber, as vidas seguem os mitos. Inconscientemente reagimos a eles os quais se expressam por meio dos sonhos.
“O indivíduo pode ter a impressão de que seus sonhos são espontâneos e sem conexão. Mas o analista, ao fim de um longo período de observação, consegue constatar uma série de imagens oníricas com estrutura significativa. Se o paciente chegar a compreender o sentido de tudo isto poderá, eventualmente, mudar sua atitude para com a vida.” (Henderson; JosephL; O Homem e seus Símbolos; Carl G. Jung, 1977, 6ª edição, Editora Nova Fronteira)
Em sua obra Jung enfatiza a existência de um “inconsciente coletivo”, isto é a parte da psique que retém e transmite a herança psicológica comum da humanidade.
Esta “herança psicológica” nem sempre é compreendida. É aí a necessidade/utilidade do saber do analista/psicólogo, que deve possuir um conhecimento amplo sobre a origem e os sentidos dos símbolos, para conseguir fazer um link entre os mitos arcaicos e os sonhos dos pacientes. O mito do herói é o mais comum entre as mitologias.
Fonte: encurtador.com.br/fiqrx
Através de resultados de estudos antropológicos conseguimos perceber vários mitos da sociedade contemporânea com paralelo com as sociedades antigas. A exemplo do mito do herói que sofre provocações até alcançar sua finalidade heróica.
Os heróis da indústria cinematográfica da atualidade (Thor, Superman, Homem de Ferro, etc.) se assemelham muito aos heróis das antigas mitologias. Nos mitos os heróis passam por todo tipo de provações e intempéries para, ao final, vencer o monstro.
Para o pensamento junguiano essas provações por que passam os heróis são uma representação da sua morte simbólica para depois renascer, permitindo o contato desse herói com suas fraquezas. Assim, lhe é permitido um maior conhecimento de suas fraquezas e forças, levando-o à maturidade necessária para vencer.
Traçando-se um paralelo entre o mito do herói e do ser humano, este também necessita se autoconhecer para conseguir enfrentar suas lutas diárias da melhor maneira. Conclui-se que o conhecimento dos mitos interessa para que se possa melhor compreender o material arquetípico que deve emergir ao longo de uma análise.
Existem aqueles que procuram e buscam uma resposta, e é por esta razão que temos esta variedade de mitos, que nos auxiliam para termos uma melhor compreensão de nós mesmos. O estudo dos mitos e dos símbolos do inconsciente é, para Jung, a chave que acessa um conhecimento profundo do indivíduo, de modo a possibilitar que o analisando possa trilhar seu caminho de autocompreensão e despertar.
REFERÊNCIAS
BOECHAT, W. (org.). Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo. Petrópolis, Vozes, 1996.
HENDERSON, J.L. In: O homem e seus símbolos/ Carl G. Jung e M. L. von Franz [et al] Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. Jung, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
No início de 2016 chegou aos cinemas um dos filmes mais esperados da temporada de arrasa quarteirões: Batman v Superman: Dawn of Justice, traduzido como A Origem da Justiça no Brasil, dirigido pelo diretor Zack Snyder com roteiro de David Goyer e Chris Terrio, tendo nos papeis principais os atores Ben Affleck (Batman) e Henry Cavill (Superman) além de outros nomes como Gal Gadot, Amy Adams, Jesse Eisenberg, Diane Lane e Laurence Fishburne. A premissa do longa gira em torno dos desdobramentos e consequências ocorridas após os eventos de Man of Steel (Homem de Aço, de 2013), além de uma nova leitura e abordagem do universo superheroico da DC\Warner para os sétima arte.
A DC\Warner Bros. definiu o tom dos seus filmes do subgênero super-herói a mais de dez anos, com o lançamento de Batman Begins (2005) de Christopher Nolan. Após a consagração de The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, de 2008) com a ajuda do malsucedido Green Lantern (2011), e, neste meio tempo, houve os resultados não tão expressivos atingidos pelo nostálgico Superman Returns (2006). Todas as investidas do estúdio em seus personagens deste estilo seriam definidas a partir da inclinação sombria, realista (ou, ao menos plausível) e inseridas nos longas do estúdio.
Mesmo com menor participação final do que no filme de 2013, Hans Zimmer (em parceria com Junkie XL) ficou no encargo da trilha sonora, um dos pontos altos do longa, nos entrega faixas como Beautiful Lie, Men Are Still Good e This is My World, fortalecendo ora o tom epopeico ora dramático da obra de 2016. Visualmente, temos a já conhecida acurácia de Zack Snyder em ambientar-nos às diferentes locações das filmagens, mesmo que tais detalhes aprecem somente na versão estendida. A fotografia e figurinos também se colocam com um ponto alto do filme, em comparação com o roteiro, que possui algumas falhas em seu desenvolvimento.
Num outro ponto da realização de Batman v Superman, a construção publicitária do longa já nos oferecia o que estava por vir, sempre frisando o conflito ideológico e psicológico entre os dois maiores heróis da DC Comics. Este embate já figurou em edições de diferentes revisas em quadrinhos, mas nunca tinha sido transplantado para a sétima arte, justamente por envolver uma demanda simbólica e de investimentos maior do que os estúdios (estima-se que o filme tenha ultrapassado a casa dos 400 milhões de dólares em custos), neste caso a Warner Bros., estariam dispostos a suprir ou apostar.
Importante destacar, também, que a análise aqui apresentada se pautará na versão definitiva do filme, que não chegou aos cinemas em abril de 2016, mas sim em formato de DVD e Blu-Ray no meio daquele ano, adicionando 30 minutos a já extensa cópia original, em suas mais de duas horas de duração. Esta ressalva merece espaço por esta versão completa ser superior e, mais do que isso, suprimir muitos dos problemas encontrados na versão exposta ao grande público.
Esta diferenciação entre as duas versões agora existentes só reforça a ideia de que estava em mãos um material rico e com substrato suficiente para se igualar ou até mesmo superar incursões maiores do gênero como a trilogia Cavaleiro das Trevas (2005-2012) de Christopher Nolan ou nos, já longínquos, Superman I e II (1978 – 1980) do final do século passado, protagonizados por Christopher Reeve, isso nos atendo aos dois maiores ícones da DC Comics e da cultura pop superheroica em geral.
A presença da Mulher Maravilha não colocada em relevo nesta análise, por dois motivos específicos. O primeiro deles de ordem mais pertinente diz respeito a ausência de importância em suas falas e situações no roteiro em relação ao personagem principal deste artigo. Na outra vertente vem a questão mais complexa de que sua inserção na trama não representar um mote de grande impacto na mesma, principalmente levando em consideração o peso próprio que a personagem já possui isoladamente, ganhando até mesmo uma adaptação própria nos cinemas.
Além destas questões, houve um grande debate, e cisão, entre críticos e público em geral a respeito do filme, seus personagens, história, enredo e tonalidade. É importante salientar que Dawn of Justice é, mesmo que não nominalmente, uma continuação direta dos acontecimentos de Man of Steel. Esta ligação entre os filmes será utilizada em alguns momentos neste artigo, cujo foco é o Superman – a falta de menção à Mulher Maravilha provém desta circunstância e, também, pela presença da personagem (apesar de agradável) não acrescentar ou alterar os cursos do filme – e os desdobramentos que este personagem carrega nas mais de três horas de duração da versão definitiva.
A mitologia da nona para a sétima arte
Já faz alguns anos, duas décadas ou três décadas, ao menos, que os estúdios de hollywood passam por uma crise criativa. Recentemente esta situação se tornou ainda mais visível devido a imensa quantidade de reboots (refilmagens), adaptações de livros, contos, expansões de curtas-metragens e falta de roteiros originais em obras fílmicas. Batman v Superman: Dawnof Justice segue uma tendência forte nos cinemas atualmente, constituindo a onda de adaptações cinematográficas advindas das histórias em quadrinhos, as comics books.
O aproveitamento destas estórias pelo cinema é de longa data, e ocorre pelo fato de, muitas vezes, já terem em si um andamento e organização dos acontecimentos da trama que facilitam sua transposição da plataforma escrita para a filmada. (REBLIN, 1992; REYNOLDS, 2012; SILVA, 2010). Se levarmos em consideração que o modelo das graphic novels possuem uma plasticidade imagética superior, em comparação com suas contrapartes tradicionais, fica mais fácil compreender a busca por estas obras como possibilidade de adaptações para o cinema.
No caso de Dawn of Justice esta transposição foi facilitada pela premissa de conflito já seminal à ideação do filme, ou seja, a divergência de ideias entre os super-heróis que dão título à obra. Como dito por Comparato (2000), a existência de um conflito base melhor pavimenta o desenvolvimento de um roteiro ou narrativa: “Construir a story line é determinar o conflito; escrever uma sinopse é descobrir as personagens; estruturar é organizar uma ação dramática; elaborar o primeiro roteiro é chegar aos diálogos e ao tempo dramático; trabalhar o roteiro final é manejar as cenas, isto é, a unidade dramática.” (COMPARATO, 2000, p. 29).
Nesse contexto de importância do escopo narrativo, apesar de apresentar algumas falhas em aspectos de sua montagem e edição, há momentos-chave em Batman v Superman com relação ao seu texto, as palavras, valorizadas por Comparato (2000). E são estas passagens que serão utilizadas no decorrer deste artigo de modo a enriquecer a análise, costurando os argumentos expostos com colocações teóricas específicas. Esta opção de olhar para a obra fílmica seguindo estas diretrizes analíticas tem como objetivo o foco no conflito matriz de sua exposição:
Mas a ideia audiovisual e dramática deve ser definida através de um conflito essencial. A este primeiro conflito, que será a base do trabalho do roteirista, chamaremos conflito-matriz. Embora a ideia seja algo de abstrato, o conflito-matriz deve ser concretizado por meio de palavras. Começa aqui o trabalho de escrever: fazemos um esboço e começamos a imaginar a história, tendo como ponto de partida uma frase a que chamamos story line. Assim, a story line é a condensação do nosso conflito básico cristalizado em palavras. (COMPARATO, 2000, p. 23 – grifo meu).
Portanto, a ideia de uma estrutura matriz, chamada por Comparato de conflito-matriz está presente na amplamente utilizada jornada do herói trabalhada, por exemplo, por Vloger (2006) ou na morfologia do conto maravilho de Propp (1977), dentre outras proposições de apuramento narrativo, na literatura, cinema, teatro, etc. Em suma, temos diferentes etapas, nas quais e pelas quais, o herói irá desenvolver suas habilidades, negar, em alguns momentos, seus encargos e assumir sua condição como tal ao fim do caminho percorrido em sua história.
Figura: O atos (ou etapas) da jornada do herói Fonte: (VLOGER, 2006, p. 159).
Assim, a organização das narrativas neste padrão de atos descrito por Vloger (2006) é visível em diferentes obras, não apenas no cinema. Em Batman v Superman, especificamente, tanto os limites, como as passagens entre os atos é bem visível, até porque com estas etapas do desenvolvimento da história e, levando em consideração a quantidade de temas e personagens, o caminho a ser seguido pela direção do filme se fortalece, no sentido de definição dos rumos a serem tomados, no desenrolar da obra. Estas funcionalidades presentes nos atos estoriais também são levantados por Propp (1977, 32-33), quando o autor disserta que:
Podemos decir, anticipando, que las funciones son extremadamente poco numerosas, mientras que los personajes son extremadamente· numerosos. Esto explica el doble aspecto del cuento maravilloso: por una parte, su extraordinária diversidad, su abigarrado pintoresquismo, y por otra, su uniformidad no menos extraordinaria, su monotonía. Las funciones de los personajes representan, pues, las partes fundamentales del cuento, y son ellas las que debemos aislar en primer lugar.
Este percurso clássico do heroi, com seus desafios, barreiras e superações, é um dos objetos de análise de Campbell (1997), quando este autor elucida uma visão mais histórica e antropológica do papel do heroísmo nas sociedades humanas. Nesta visão, há toda a carga mítica e mitológica de um ser excepcional em uma comunidade específica, daí a questão da diversidade modular do mito, por haver uma imensurável quantidade de adaptações dos passos a serem seguidos pelas figuras fantásticas destas histórias:
O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloqüência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu. (CAMPBELL, 1997, p. 13-14).
Por esta razão é que podemos dizer que estamos diante de grandes ritos, arcabouços mitológicos, criadouros de cânones e arquétipos passíveis de trânsito os diferentes tipos de manifestação simbólica e cultural ao redor do mundo. Em Batman v Superman, há uma tentativa de colocar em tela um exercício de lupa do micro situacional para o macro fenomênico, ou seja, a partir daquelas exposições cênicas, elaborar uma discussão maior alcance. Campbell (1997) também trabalha com esta ideia da mitologia como um reflexo do que a sociedade vê como caminho a ser seguido pelos seus pares, ou então numa amostragem das situações cotidianas e rotineiras das comunidades que cultuam ou reificam estes mitos e ritos ao longo do tempo.
No limite desta interpretação, a respeito do motor narrativo assegurado pelo conflito matriz da história\mito\fábula em questão, temos a dualidade entre o humano e o sobre-humano, o uso da moral individualista, mais figurativa em Batman, com os questionamentos de como não apenas enxergar, como colocar em prática uma moralidade universal e equilibrada para todos os viventes daquela sociedade, dilema vivido pelo Superman desde a sua criação no século passado:
A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás. Com efeito, pode ser que a incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorra do declínio, entre nós, desse auxílio espiritual efetivo. Mantemo-nos ligados às imagens não exorcizadas da nossa infância, razão pela qual não nos inclinamos a fazer as passagens necessárias da nossa vida adulta. (CAMPBELL, 1997, p. 9).
Seguindo as colocações de Campbell (1997), Flávio Kothe (1985), também lança um olhar analítico sobre o percurso tanto das narrativas fantásticas como do heroi, tendo como foco aspectos como o heroi– representado pelo Superman – e o anti-herói, aquele que enfrentará os deuses ou colossos para provar o seu valor diante do seu povo, como mostra da capacidade de contrariar o poderio das divindades – aqui a similaridade com Batman é mais clara.
Além da premissa básica do conflito entre Batman e Superman, há o aproveitamento e aumento das temáticas trabalhadas no primeiro filme do universo expandido da DC\Warner, Man of Steel, especialmente no que tange à chegada tanto de um ser de outro planeta como detentor de poderes inimagináveis à Terra. A fala de um dos personagens (ou melhor sai uma participação especial) do filme de 2016, o astrofísico Neil DeGrasse nos traz as reflexões sobre um alienígena com poderes de deus vivendo entre nós:
Neil deGrasse Tyson: We’re talking about a being whose very existence challenges our own sense of priority in the universe. And you go back to Copernicus where he restored the sun in the center of the known universe, displacing Earth, and you get to Darwinian evolution and you find out we’re not special on this earth; we’re just one among other lifeforms. And now we learn that we’re not even special in the entire universe because there is Superman. There he is, an alien among us. We’re not alone. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
E para fortalecer ainda mais os dois primeiros atos do filme, o diretor Zack Snyder faz uso de um recurso importante da história em quadrinhos de 1986 de Frank Miller – com alguns elementos também de sua versão cinematográfica de outro clássico: Watchman de 2009 –, na qual opiniões de especialistas, pessoas comuns e até mesmo de vilões a respeito do Batman são expostas. Em sua adaptação, os roteiristas, nos trazem a perenidade dos questionamentos a respeito da condição super-heróica do Superman na Terra, ou do modo de agir do homem morcego.
O peso destas obras é notado em várias passagens do longa, dando o tom de sua narrativa, desenvolvimento e consequências para os personagens envolvidos na trama. Esta carga das referências, inclusive, irá atrapalhar certos pontos de ligação e fluidez do filme, já que a grandiosidade e complexidade dos elementos envolvidos acarreta uma inevitável supressão na busca por uma forma coesa de contar a história que assistimos. No entanto, nota-se um tom de seriedade, dramaticidade e confronto com o real em um grau muito maior daquele visto em outros filmes do gênero.
Ponto e Contraponto: Batman
Superman e Batman, dificilmente, não serão listados entre os maiores super-heróis de todos os tempos. O último filho de Krypton foi criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shuster, já o Cavaleiro das Trevas veio um ano depois, 1939, pelas mãos de Bill Finger e Bob Kane. Ao longo dos anos os dois personagens foram sendo distanciados em suas ideações, identidades, representações e interpretações, ao ponto de vivenciarem inúmeros conflitos entre eles, mesmo sendo dois dos maiores líderes das aventuras da Liga da Justiça, união de todos os super-heróis da DC Comics.
Parte desta diferenciação entre os personagens de Dawn of Justice se incrusta numa grande trilha de popularização das histórias em quadrinhos ao longo das décadas. De um lado há um dos mais célebres fenômenos de popularidade e identificação imediata com um arquétipo tão fácil de encontrar em nosso mundo real como de representação em diferentes realidades culturais: Batman.
Do outro, apesar da premissa estar rechegada do seu tom ficcional originário da escalada tecnológica de seu tempo – e também com um subtexto menos denso dos imigrante judeus na América –, temos o primeiro e maior super-herói, carregando em si ideais de época, cargas simbólicas nacionais e todo um fundamento de representatividade ideológica de difícil transposição para nossos tempos: Superman.
Com base nestes extremos da composição dos personagens centrais do filme, neste trecho do presente artigo serão utilizadas, falas que remetem ou são diretamente extraídas do personagem Bruce Wayne\Batman em Dawn of Justice apesar de, teoricamente, o filme tratar dos acontecimentos centrípetos ao homem de aço, e não o contrário, como ocorreu na versão exibida nos cinemas, amplamente questionada por sua visão equalizadora da escuridão psicológica muito mais canônica ao morcego que sua contraparte alienígena do filme.
O baixio idealístico dos encapuzados chegou em seu extremo na década de 1980, em obras seminais produzidas por nomes como Frank Miller e Alan Moore. Com quase três décadas de atraso, esta percepção chega aos cinemas na junção de duas principais obras desta fase da nona arte: O Cavaleiro das Trevas de 1986 e A Morte do Superman de 1993.
Nesta mesma toada argumentativa, em seu ensaio sobre a diferença entre o heroísmo e super-heroismo, intitulado De Odisseu a Batman, Felipe Morcelli do portal Terra Zero, traz a reflexão tanto da concepção como dos atos entre o homem de aço e cruzador encapuzado. No primeiro caso, temos a situação clássica do filho de dois mundos que, para chegar ao panteão do qual fez parte um dia, precisa passar por desafios e provações e, também a aceitação do povo que faz parte.
Já no caso do homem morcego a situação é diferente, pelo fato de ter nascido e crescido num mundo já deteriorado, mesmo tendo saído de uma família abastada, numa similaridade a grandes heróis gregos como Odisseu, Dédalo ou Ajax, precisando provar-se em meio à sua realidade posta. Na mesma direção, sobre a questão do heroísmo clássico, Kothe (1985) expõe algumas considerações sobre o tema:
O clássico herói trágico nunca é um membro do povo ou da camada média. Dentro da filosofia de que, quanto maior a altura, maior também o tombo, ele geralmente está no topo do poder. Parece pertencer por direito natural ao plano elevado, mas aos poucos vai-se descobrindo o quanto ele está chafurdando no charco. Ele descobre a mão-de-ferro do poder, do destino, da história: descobre que o seu agir foi errado; descobre que não devia ter feito tudo o que fez; descobre que é o mais fraco na correlação de forças, embora aparente ser o mais forte, ou ainda que tenha acreditado ser o mais forte. E é lá embaixo que ele redescobre a sua grandeza, não significando isto, porém, que ele necessariamente deixe de morrer ou que venha a recuperar o poder perdido. Ele como que perde o poder terreno para conquistar um poder espiritual; ele como que se despe do agora, para, lá debaixo, resplandecer elevada sabedoria, transcendendo todos os seus juízes e algozes. A custa do próprio sangue, torna-se mensageiro do passado para o futuro, como as almas dos mortos eram evocadas, convocadas a comparecerem ao presente. O sangue trágico do presente conclama o passado para superar pela sabedoria a tragédia. (KOTHE, 1985, p. 26).
Em Batman v Superman a visão do Batman gira em torno da necessidade de se ter em mãos um dissuasivo frente a um ser de grande poder, caso assim as coisas caminhem, algo parecido com o personagem Ozymandias em Watchman, de Alan Moore – naquele caso, o papel de superman é emulado pelo Dr. Manhatham. Essa condição de poderio extremo do Superman, é um dos pontos levantados por Umberto Eco, em seu ensaio Apocalípticos e Integrados, endossando ainda mais a realidade da postura de Bruce Wayne, frente ao super ser que agora caminha entre nós:
Superman es prácticamente omnipotente. Su capacidad operativa se ‘extiende a escala cósmica* Así pues, un ser dotado con tal capacidad, y dedicado al bien de la humanidad (planteándonos el problema con el máximo candor, pero también con la máxima responsabilidad, aceptándolo todo como verosímil, tendría ante sí un inmenso campo de acción. De un hombre que puede producir trabajo y riqueza en dimensiones astronómicas y en unos segundos, se podría esperar la más asombrosa alteración en el orden político, económico, tecnológico, del mundo. Desde la solución del problema del hambre, hasta la roturación de todas las zonas actualmente inhabitables del planeta o la destrucción de procedimientos inhumanos (leamos Superman conel “espíritu de Dallas”: ¿por qué no va a liberar a seiscientos millones de chinos del yugo de Mao?), Superman podría ejercer el bien a nivel cósmico, galáctico, y proporcionarnos una definición de sí mismo que, a través de la amplificación fantástica, aclarase al próprio tiempo su exacta línea ética. En vez de esto, Superman desarrolla su actividad a nivel de la pequeña comunidad en que vive (Smallville en su juventud, Metrópolis ya adulto) y —como sucedía con el lugareño medieval, que podía llegar a conocer Tierra Santa, pero no la ciudad, encerrada en sí misma y separada de todo lo demás, que tenía a cincuenta kilómetros de su residencia— si bien emprende con la mayor naturalidad viajes a otras galaxias, ignora, no digamos ya la dimensión “mundo”, sino la dimensión “Estados Unidos” (ECO, 1984, p. 292).
A obscuridade de um Bruce Wayne cansado da luta incessante, e aparentemente sem resultados longevos, em sua cidade natal aparece em fortes falas na interpretação de Ben Affleck: “There was a time above… a time before… there were perfect things… diamond absolutes. But things fall… things on earth. And what falls… is fallen. In the dream, it took me to the light. A beautiful lie.” Esta mentira lamentada pelo homem morcego ocorre também no tempo despendido em Gotham City: “Twenty years in Gotham. How many good guys are left? How many stayed that way? He has the power to wipe out the entire human race. I have to destroy him.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
Já sobre o Superman, Wayne possui opiniões claras de contrariedade à sua presença e existência entre nós, principalmente após as milhares de mortes causadas na batalha de Man of Steel em Metrópoles: “ That son of a bitch brought the war to us two years ago. Jesus, Alfred, count the dead… thousands of people. What’s next? Millions?” a questão do uso e possibilidade de corrupção dos poderes pelo homem de aço recebem também ressalvas: “He has the power to wipe out the entire human race, and if we believe there’s even a one percent chance that he is our enemy we have to take it as an absolute certainty… and we have to destroy him.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n)
Nota-se uma alegoria do Superman como o poderio bélico dos Estados Unidos perante o mundo, mesmo que suas intenções iniciais sejam as melhores possíveis. Este senso alarmismo – alçado à pânico nacional nos EUA após os episódios de setembro de 2001 – será uma das matrizes do conflito entre os super-heróis: “ You’re not brave… men are brave. You say that you want to help people, but you can’t feel their pain… their mortality… it’s time you learn what it means to be a man.”
Outra metáfora explorada tanto na publicidade como também no filme é a diferenciação entre Gotham City e Metrópoles, cidades nas quais atuam Batman e Superman, respectivamente, reforçando as dualidades entre o simbolismo do anjo e demônio, luz e escuridão, esperança e pessimismo transcendido de ambos para as ruas destes centros urbanos:
Gotham City […] concentra todos os aspectos negativos que se podem encontrar num aglomerado urbano: decadência, sujeira, criminalidade, corrupção policial e muitos antros (muquifos e esconderijos para os criminosos da pior espécie). Metrópolis, ao contrário, destaca-se pela imponência: ela lembra um cartão postal, ou uma foto retocada na qual se visualiza apenas a imponência dos arranha-céus que parecem obedecer a uma disposição ordenada. Em contraste com obscuridade e sujeira de Gotham, Metrópolis é lima e ordenada, todos os serviços públicos parecem funicionar, e se ela necessita de um guardião, é para conter ameaças de origem alienígena ou catástrofes naturais, já que os criminosos que desafiam o Superman já estão, de saída, derrotados. Para muitos, Gotham City é Nova Iorque à noite, em contraposição à reluzente Metrópolis que seria a versão diurna da cidade. (RAMA, 2006, p. 58)
Outros elementos retratados pela autora, no que diz respeito à dualidade Gotham\Metrópolis, estão nas cores, tonalidades, representações gráficas – como no caso da presença de pombos e pássaros em praças e parques da cidade do Superman, em contraposição aos corvos e estátuas gárgulas nos prédios neogóticos de Gotham City.
O preto e o azul, anjo e demônio, dia e noite, a esperança e o pessimismo podem ser encontradas na dualidade dos herois e suas cidades. Estas máximas conotam o que será visto ao longo de Batman v Superman. Aqui reside um dos pontos cruciais de exploração do longa, quando temos diante da tela representações das cidades fictícias dos heróis: Gotham e Metrópoles. Como dito por Rama (2006) é notável como estes dois centros urbanos refletem as ideias de Clark Kent e Bruce Wayne, ponto forte de um dos diálogos do filme:
Clark Kent: What’s your position on the bat vigilante in Gotham?Bruce Wayne: Daily Planet, wait, do I own this one, or is that the other guy? Clark Kent: Civil Liberties are being trampled on in your city, good people living in fear. Bruce Wayne: Don’t believe everything you hear, son. Clark Kent: I’ve seen it, Mr Wayne, he thinks he’s above the law. Bruce Wayne: The Daily Planet criticizing those who think they’re above the law is a little hypocritical, wouldn’t you say? Considering every time your hero saves a cat out of a tree, you write a buff piece editorial about an alien who if he wanted to can burn the place down, and there wouldn’t be a damn thing we can about it. Clark Kent: Most of the world doesn’t share your opinion, Mr Wayne. Bruce Wayne: Maybe it’s the Gotham City in me, we just have a bad history with freaks dressed like clowns. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n – grifo meu)
As falas destacadas neste diálogo expõem de forma direta os pontos de vista diferenciados entre os personagens: de um lado os ideias, ou a crença neles, das liberdades civis e do outro o ceticismo extremado de um habitante urbano desacreditado dos porvires do meio em que vive. Este é sem dúvida um dos pontos mais ricos entre os dois maiores heróis dos quadrinhos, principalmente por representarem direta e objetivamente a vida nas grandes cidades, um sinal de nossos tempos. Quando voltamos nosso olhar para Dawn of Justice há uma distância entre o que foi mostrado na material promocional, principalmente nas imagens de divulgação das cidades e suas representações no filme.
Explica-se, há uma possiblidade riquíssima de antagonizar Gotham e Metrópoles pelos aspectos urbanos que as unem em suas diferenças, assim como na forma como tanto Clark como Bruce enxergam suas vidas nestes centros urbanos. Os Waynes representam as classes altas presente em centros urbanos decadentes pela criminalidade, desigualdade social e falta de horizonte de desenvolvimento para suas populações. Já os Kents, na figura de seu filho adotivo, veem na grande cidade àquela imagem eidética do mundo de possiblidades, o lugar ao qual o futuro espera quem lutar por ele, no velho arquétipo do imigrante do interior para o capital, da zona rural para a urbanidade.
Na versão estendida do filme é possível observar com maior clareza esta diferenciação dos heróis. Enquanto Bruce Wayne\Batman aparece em tela normalmente em ambientes noturnos e planos mais fechados, Clark Kent\Superman surge em planos mais abertos, faltando à direção de fotografia dar à estas cenas uma luminosidade mais condizente com a linguagem simbólica mais próxima do personagem, situação vista com maior vigor nos trailers, pôsteres e demais materiais de divulgação do filme, ótima ideia não aproveitadas no encontro destes titãs dos quadrinhos no cinema.
O (falso) deus?
Neste ponto, entramos no aspecto mais controverso e inquietante de Batman v Superman, ou seja, a representação do homem de aço no longa. A crueza e visceralidade desta adaptação de 2016 dificilmente será vista novamente, até mesmo pelas críticas abusivas ao filme, muitas vezes embasadas na aversão dos analistas do diretor da obra, mais do que sua criação em si.
Se uma tonalidade e panorama foram estabelecidos brilhantemente – ao menos até o porn destruction do terceiro ato, comum em filmes de heróis atualmente – em Man of Steel, ao final o mesmo soava incompleto pelas indecisões finais de Snyder. Três anos depois o diretor desperdiça uma oportunidade inigualável de superar o ciclo aberto em 2013. Esta perda de conclusão explica-se em um círculo narrativo clássico, mas eficaz: a tão estudada e desmembrada jornada do herói. Todos os passos de Clark Kent\Kal-El foram muito bem desenvolvidos no filme anterior, e cabia à esta continuação nos mostrar a maturação do ícone em que se tornou, mesmo que sem unanimidade.
Para facilitar o percurso mítico do Superman dos quadrinhos para o imaginário popular, como trabalhado por Reblin (2012) e Reynolds (1992), podemos traçar um breve retrospecto das “eras” do personagem ao longo do século XX e XXI, com auxílio de Silva (2010) nesta tarefa de síntese temporal. Começando então pelos anos dourados dos super-heróis temos o nascedouro de uma reificação titânica do kriptoniano em suas primeiras estórias, até mesmo com suas características humanais mais reduzidas:
Era de Ouro: O que importa não é como essa força se desenvolveu, mas a sua presença divinal na sociedade de agora. A própria faceta humana, a personalidade de Clark Kent, é mais apagada, pois sua utilidade na narrativa de aproximar a personagem divinal da humanidade tem menor importância. O Superman é quase um titã mitológico, uma força da natureza, que não reconhece as leis humanas nem o status quo social, tampouco se preocupa com gentilezas ou amabilidades. Ele é comprometido com a sua definição pessoal de justiça e não se prende a barreiras legais ou sociais. (SILVA, p. 27 – grifo meu).
Na chamada “Era de Prata”, superando parte do trauma das grandes guerras mundiais, houve um grande aumentos dos superpoderes super-heróis, aproximando-os ainda mais das referências gregas. O ponto de inflexão deste período foi a influência da obra Seduction of the Inocent[1]publicada em 1954 por Max Collins e Fredric Wertham, condenando a “má-influência” dos personagens dos quadrinhos nos jovens, em resposta vários códigos de edição e elaboração foram efetuados pelas editoras, em resposta a este movimento criado em torno de seus personagens. Superman sintetizou bem esta época, na qual ganhou boa parte de seus poderes mais conhecidos como o voo e aumentando para si o arquétipo altruísta em sua composição de personalidade:
Ao Superman ainda cabe a criação de outro conceito importante nos comic books: o arquétipo do super-herói paragon (original). Essa atribuição é dada por dois motivos principais: primeiro, pois a personagem é o super-herói original, o primeiro, e, em segundo plano, porque Superman é um personagem único, sendo ele o último e o melhor dos kryptonianos. O paragon como conceito, além de se referir ao melhor exemplar de um povo, é, nos comic books, representado por um conjunto de poderes específicos como: super-força, invulnerabilidade e vôo, cuja origem é curiosamente atribuída aos estúdios de Max Fleischer. O poder do vôo foi um acréscimo necessário para os animadores, pois a concretização das cenas de movimentação do herói por saltos demandaria a produção de várias cenas de corrida de impulso. A solução mais simples foi fazer com que a personagem voasse. (SILVA, 2010, p. 45).
A Era de Bronze foi marcada pela revisão de vários parâmetros e conceitos dos super-heróis. Muitos heróis mais jovens e urbanos foram criados neste período, de modo a buscar uma aproximação com a sociedade em geral, a editora Marvel nos trouxe exemplos como Demolidor, Homem-Aranha e os X-Men, criados ainda na alvorada dos anos 60.
Na outra vertente, do Superman, há o aumento do simbolismo cristão entorno do homem de aço, efeito aumentado pelo sucesso dos filmes protagonizados por Christopher Reeve: “O Pai e o Filho são pares do mesmo ciclo e, assim como Deus envia seu único filho, que é parte de seu ser, para purgar os pecados da humanidade, Superman chega das estrelas em sua manjedoura celeste, enviado por Jor-El, para se tornar futuramente o salvador diário de Metrópolis e do mundo.” (SILVA, 2010, p. 53).
Esta sobrecarga sobre o último filho de Krypton acabará na Era Moderna dos quadrinhos, ou também chamada de fase de Ferro, com a sua morte em 1993. Durante mais de cinco décadas as camadas simbólicas do homem de aço abraçaram elementos como o sonho americano juntamente com belicismo imperialista, emulações explícitas com deuses e semideuses gregos e Jesus Cristo, além, é claro, da adoção da jornada do herói como padrão para os demais encapuzados criados a partir de sua concepção ainda na década de 30.
A morte do Superman representou a queda do último dos grande heróis contemporâneos, já com inscritos no imaginário coletivo, e ainda hoje buscam uma nova abordagem ao personagem para nosso cético século XXI. Todos estes elementos, juntos, contribuem para este afastamento dos autores em oferece novas e construtivas histórias sobre o primeiro super-herói. A dificuldade em se trabalhar com o Superman vem na esteira destes óbices, já que tratar de uma entidade praticamente divina envolta nas mais idealizadas visões morais e ideológicas de nossa sociedade, é algo difícil de se propor.
Este paradoxo criativo ganha ainda maior peso, pressão e rico quando há adaptações do personagem em mídias como cinema e televisão, sempre havendo um temor pela frustração nestas representações: “Se e algo marca tudo que ganha o “S” é a “frustração”, […] A ideia é a seguinte, a marca “Superman” é tão grande, tão forte, tão vendável que qualquer coisa que contenha seu nome produz de imediato uma expectativa imensa em qualquer um.” o editor de um dos mais respeitados portais de quadrinhos brasileiros completa ainda: “Não necessariamente uma expectativa boa ou ruim, mas sempre uma grande expectativa.” (PENHA, 2016, p. s\n)
Mas, a pergunta principal de Batman v Superman: Dawn of Justice reside na questão sobre a vinda e existência de um alienígena super-poderoso entre nós e, em maior profundidade, quais seriam nossas reações diante deste cenário fictício. Nos últimos anos apenas dois outros filmes trouxeram uma reflexão com este nível de complexidade: Corpo Fechado de e Poder Sem Limites lançados em 2000 e 2012, respectivamente, filmes nos quais a máxima das consequências perante os atos de indivíduos com habildiades especiais é levado a desdobramentos máximos diante de seus mundos.
A visão extremada e pessimista com relação ao kriptoniano ganha força nas falas de Lex Luthor Jr. (numa interpretação exagerada e, por vezes, sem direcionamento adequado de Eisenberg). Fazendo uso de referências no paradoxo de Epicuro o personagem nos apresenta suas visões: “See, what we call God depends upon our tribe, Clark Joe, ‘cause God is tribal; God takes sides! No man in the sky intervened when I was a boy to deliver me from daddy’s fist and abominations.” E o bilionário reforça este questionamento sobre a divindidade do Superman quando afirma que: “I figured out way back if God is all-powerful, He cannot be all good. And if He is all good, then He cannot be all-powerful. And neither can you be.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
Esta questão do aspecto divino dos super-heróis é definido por Reblin (2012) quando o autor diz que a marca teológica é indelével e inescapável ao Superman, independente da versão que se tenha do personagem quase octogenário. E, novamente, a inerência do referencial divino é trazido por Lex Luthor no filme, seguindo estes parâmetros teóricos:
The problem of you on top of everything else. You above all. Ah. ‘Cause that’s what God is. Horus. Apollo. Jehovah. Kal-El. Clark Joseph Kent. See. What we call God depends upon our tribe, Clark Jo. Because God is tribal. God take sides. No man in the sky intervened when I was a boy to deliver me from Daddy’s fist and abominations. Mm mm. I’ve figured it out way back, if God is all powerful, he cannot be all good. And if he’s all good then he cannot be all powerful. And neither can you be. They need to see the fraud you are. With their eyes. The blood on your hands. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n)
No filme há uma contraposição clara entre estes extremos de visão sobre seres super-poderosos. O próprio Superman questiona sua posição diante da humanidade, lembrando da projeção feita por seu pai adotivo Jonathan Kent: “All this time I’ve been living my life the way my father saw it. Righting wrongs for a ghost, thinking I’m here to do good. Superman was never real. Just the dream of a farmer from Kansas. Superman: No one stays good in this world.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
Questionar-se sobre a presença ou auto-representação de falso heroísmo é um dos pontos levantados por Propp (1977) como passíveis de exploração nas etapas da jornada do herói, especialmente nos dias de hoje, em um campo tão mais cheio de camadas e possibilidades de interpretações a respeito de um fato ou fenômeno, como a chegada de um extraterrestre com super poderes ao nosso mundo:
Una cuestión que concierne a los esquemas típicos… los esquemas transmitidos de generación en generación como fórmulas ya dispuestas, capaces de animarse con un nuevo sentido, de hacer nacer nuevas formaciones? ‘La literatura narrativa contemporánea, con la complejidad de sus argumentos y su representación fotográfica de la realidad, parece descartar la posibilidad de esta cuestión; pero cuando se encuentre ante los ojos de las futuras generaciones, en una perspectiva tan lejana como para nosotros lo está la Edad Media, cuando la sínteses del tiempo, ese gran simplificador, haya pasado sobre la· complejidad de los fenómenos y los haya reducido al tamaño de um punto que se pierde en las profundidades, sus líneas se fundirán con aquellas que ahora descubriremos nosotros, cuando nos volvemos para contemplar esa lejana creación poética -y el esquematismo y la repetición se instalarán por todo el recarrido” (PROPP, 1977, p. 134).
Essa nova complexidade do heroísmo pode ser observado, no caso do Superman, tanto em Man of Steel como em Batman v Superman. No primeiro caso, as falas de Jonathan Kent, a respeito de como a sociedade reagiria ao saber da existência de um ser com poderes de um deus, entre nós. Já no filme de 2016, esse papel é deixado para a mãe adotiva de Clark, Martha – além de Bruce Wayne e Lex Luthor, em tons mais pessimistas, deixando ao filho o arbítrio do que ele queira ou não ser para o povo da Terra.
Tentando dar um suporte ao seu filho nesta crise existencial e de identidade, Martha Kent sentencia seu posicionamento, muito próximo ao do que foi visto no primeiro filme do herói neste universo: “People hate what they don’t understand. Be their hero, Clark, be their angel, be their monument, be anything they need you to be… or be none of it! You don’t owe this world a thing, you never did.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
A colocação da mãe do super-herói não contesta o julgamento público, mas adverte seu filho perante a nocividade de tais juízos sobre a relação que o mesmo terá com a humanidade, mesmo que haja um porta-voz nomeando-o como um demônio entre nós, e não um deus enviado dos elísios, como entoado por Luthor em outro momento do longa: “We know better now, don’t we? Devils don’t come from hell beneath us. They come from the sky.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).
Esta crítica exacerbada vinda das falas de Luthor é refletida em momentos chave – poucos, infelizmente na versão dos cinemas do filme – em que vemos um Superman com profundos problemas em relação à sua identidade, em uma mistura do falso herói proposto por Propp (1977), a relação entre sua condição sublime ou monstruosa como trabalhada por Hugo (1990)[2] ou, até mesmo, enxengando em si mesmo um aspecto muito mais grotesco que divino, como suporia seu pai Jor-El ao enviar-lhe à Terra. Não há, por parte de Clark Kent uma indecisão à lá Hamlet entre o ser ou não ser o herói, mas sim, o porque de não haver a possibilidade de excluir este juízo, pois não há lugar para ele neste mundo, e sua terra natal sequer existe.
A inserção destes temas de maior camada sociológica e até mesmo filosófica são marcas das HQs nas quais o filme se embasa, principalmente em Cavaleiro das Trevas, A Morte do Superman e o Reino do Amanhã (esta última marcada por seu luto e reclusão perante os seres humanos), obras nas quais o Superman possuiu seu maiores abalos psicológicos até hoje, em conjunto com as otimistas histórias presentes em Superman: As Quatro Estações (de 1998) e Superman: Grandes Astros (de 2006).
Conclui-se que, por não ter o seu caminho de retorno exposto adequadamente em Man of Steel, a provação máxima existente no terceiro arto de Batman v Superman se mostra muito mais em potencial do que em execução profícua e eficiente, para a trama em geral, e ao Superman especificamente, por não haver uma construção empática suficiente para provocar o efeito emocional desejado, em sua morte, como ocorrido na banda desenhada em 1993:
Esse sacrifício é reforçado como o motivo da perda no próprio leitor, pela perda do herói da narrativa que fecha um ciclo narracional e estabelece um ponto final para a história. Esse final ultrapassa as características normais da narrativa quando pensada fora da diegese. Porque a morte do Superman se torna uma edição multimilionária, dado o caráter mítico que a personagem possui. A morte do mito industrial atraiu milhares de leitores e vendeu muitas cópias para aqueles que não acompanhavam a narrativa da personagem, relacionando a morte da personagem na narrativa como o fim da história desta e, dessa forma, o fim do ícone que ela representa. (SILVA, 2010, p. 64).
Na jornada do heroi de Vloger (2006) este passo final é representado pelo sacrifício, retorno e catarse do protagonista, trazendo consigo o amadurecimento, aceitação, ao menos da maioria, e um novo estágio de sua condição para com seus iguais. A opção de Batman v Superman: Dawn of Justice se dá pelo círculo original da caminhada, principalmente na referência ao salvador cristão, a partir do qual o enviado dos céus retornará em sua glória após o sacrifício pelos humanos:
A Provação nos mitos significa a morte do ego. Agora o herói se torna, plenamente, uma parte do Cosmos, morrendo para a velha visão limitada das coisas e renascendo para uma nova consciência de conexões. Os antigos limites do “Eu” foram ultrapassados ou aniquilados. De certa maneira, o herói torna-se um deus, possuidor da capacidade divina de pairar acima dos limites normais da morte, e é alguém capaz de ter aquela visão mais ampla que revela como todas as coisas estão ligadas. Os gregos chamam esse momento de apoteose — um degrau acima do entusiasmo, quando meramente se tem o deus dentro de si. No estado de apoteose, somos o deus. Ter experimentado o gosto da morte permite que nos sentemos na cadeira de Deus por algum tempo. O herói que enfrenta a Provação mudou-se do ego para o self, mudou-se para sua parte mais semelhante ao deus. Pode haver também um deslocamento do self para o grupo, na medida em que o herói aceitar maior responsabilidade, em vez de ficar apenas cuidando de si. Um herói arrisca sua vida individual por amor à vida coletiva maior e conquista o direito de ser chamado Herói. (VLOGER, 2006, p. 174).
Este é o estágio final e derradeiro, necessário para a completude do ciclo do herói em sua jornada: “Os heróis precisam passar por uma purgação final, uma purificação, antes de ingressar de volta no Mundo Comum. Mais uma vez, devem mudar. O truque do escritor, nessa ocasião, deve ser explicitar a mudança em seus personagens, no comportamento e na aparência, e não apenas falar sobre ela.” (VLOGER, 2006, p. 195).
Este é ponto de maior destaque para Umberto Eco (1984) em relação ao Superman, que é a melhor maneira, e muitas vezes a mais complexa, de trazê-lo para nossa era, com toda suas nuanças morais, políticas e culturais, já que a égide social na qual o personagem nasceu, diluiu-se há muitos anos, transformando esta transmutação ainda mais difícil para os nossos dias:
Es curioso observar cómo, entregándose al bien, Superman dedica enormes energías a organizar espectáculos benéficos, donde se recaudan fondos destinados a huérfanos e indigentes. El paradójico despliegue de medios (ta misma energía podría ser empleada en producir directamente riqueza o en modificar radicalmente situaciones más vastas), no deja de asombrar al lector, que ve a Superman perennemente dedicado al montaje de espectáculos de tipo parroquial. Si el mal asume el único aspecto de atentado a la propiedad privada, el bien se configura únicamente como caridad (25). Esta simple equivalencia bastaría para caracterizar el mundo moral de Superman. Pero, en realidad, nos damos cuenta de que Superman se ve obligado a mantener sus operaciones dentro del ámbito de las mínimas e infinitesimales modificaciones de su actuación, por los mismos motivos mencionados a propósito de la estaticidad de su trama: cualquier modificación general empujaría al mundo, y al propio Superman, hacia la consumación. Por otra parte, sería inexacto afirmar que la juiciosa y dosificada virtud de Superman depende, únicamente, de la estructura de la trama, y con ello de la exigencia de no hacer derivar de ella excesivos e irrecuperables desarrollos. Lo contrario es también cierto: que la metafísica inmóvilista contenida en esta concepción de la trama es la directa, y no deseada, consecuencia de un mecanismo estructural complejo, el cual se nos aparece como el único idóneo para comunicar, a través de una temática individualizada, una determinada enseñanza. La trama debe ser estática y eludir cualquier clase de desarrollo, porque Superman debe hacer consistir la virtud en varios actos parciales, nunca en una toma de conciencia total. Y la virtud, por su parte, debe de estar caracterizada por el cumplimiento de actos únicamente parciales, para que la trama resulte estática. Una vez más, el relato depende, no de la voluntad de los autores, sino de su posibilidad de adaptarse a un concepto del “orden” que insinúa el modelo cultural en que viven, y del cual fabrican, a escala reducida, maquetas “análogas”, con funciones de representación. (ECO, 1984, p. 294-295)
Esta dificuldade mencionada por Eco é suscitada em dado momento por Perry White em Batman v Superman, questionando os posionamentos de Kent, sobre a figura do justiceiro da Gotham City. A questão posta é justamente em que tempo e lugar não apenas o Superman, mas também o Batman, conseguirão se adaptar aos novos tempos, os conflitos desse movimento se tornam tanto inevitáveis quanto maiores, a medida que o caminho dos dois personagens começam a se cruzar no filme de 2016 e em quaisquer obras que venham a trabalhar com esta temática do embate de ideias e posturas que fundam seus pensamentos e ações.
A imagem ultrarrealista de Alex Ross parece colocar o próprio personagem no dilema de sua criação e falta de ajuste temporal ao nosso mundo contemporâneo. É difícil trazer um personagem criado a quase um século para nosso tempos sem que o mesmo não pareça anacrônico ou deslocado da realidade. Outros exemplos deste cenário são vistos em outros ícones do início da cruzada super-heróica como Zorro, Conan, Tarzan, Fantasma, Spirit, e John Carter, todos com sofríveis adaptações cinematográficas.
No caso do Superman o que surpreende é o completo subaproveitamento do personagem, mesmo como aporte crítico de traços sociais em que vivemos. Há poucas, mas ótimas incursões de arcos em que o personagem se sai bem, ironicamente quando seus poderes ficam em segundo plano, dando lugar aos seus dramas existências, psicológicos e questionamentos de seu lugar em nosso mundo, ou não.
A fala do homem de aço no clássico Reino do Amanhã aparece, ao mesmo tempo, como um apelo e pedido ao povo de toda a Terra, pois já que não o deixaram descansar em paz após sua morte – artifício utilizado para salvar o próprio mercado de histórias em quadrinhos, diga-se de passagem – que ao menos reconheçam sua relevância numa possível união de contrários entre o que se quer como herói e o personagem tem a oferecer àqueles que o criaram:
Quero esquecer os erros do passado. Quero que pensemos no amanhã… juntos. Os problemas ainda existem. Nós não vamos resolvê-los pra vocês… vamos resolvê-los com vocês. Não governando acima da humanidade… mas vivendo entre ela. Não iremos mais impor nosso poder… vamos conquistar sua confiança usando a sabedoria que um homem nos deixou. Eu lhe pedi que escolhesse entre os humanos e os super-humanos, mas ele sabia que essa era uma divisão falsa, e fez a única escolha que realmente importa, a vida. Para que o seu mundo e o nosso pudessem ser um só novamente. (WAID; ROSS, 2010, p. 59).
E, com essa fala do próprio personagem, reside o ponto de maior debate, e críticas, a este filme de Zack Snyder – mesmo com a coragem narrativa, política e estética apresentada – já que, novamente, o ciclo do Superman não é fechado, algo semelhante ao ocorrido em seu filme de origem de 2013, do mesmo diretor e, ao que tudo indica, dificilmente será finalizado adequadamente neste universo cinematográfico vigente, já que uma continuação de Man of Steel não parece estar no horizonte próximo de prioridades dos estúdios Warner Bros.
O peso da primogenia e alcance do ícone criado por Siegel e Shuster é a sua maior riqueza e fardo, afinal de contas caso assim não fosse o mesmo não teria resistido por tanto tempo no pico do panteão super-heróico. Esta ressalva sobre a importância deste signo inegável da cultura pop é importante por sua marca na jornada do herói, mesmo quando não aceita, e não uma subversão de sua existência numa jornada do vilão, caminho trilhado até pelo universo cinematográfico da DC comics.
O ídolo crepuscular
Figura: cenas de Batman v Superman: Dawn of Justice
Há quase 80 anos um mito moderno foi criado, uma síntese simbólica, social e ideológica de uma era que hoje se mostra tão distante quanto apartada demais de nosso mundo contemporâneo. Não chegamos, ainda, aos cenários pós-apocalípticos entoados por livros e filmes das últimas décadas, mas é evidente que um portento moral e cívico, fundamentos basais da criação do Superman, estremeceriam ou simplesmente ruiriam diante de nossos extremos céticos, alienistas ou niilistas.
Estamos em um cenário muito mais complexo e cheio de camadas interpretativas e representativas do que foi visualizado por Wertham em seu A sedução dos inocentes de 1954, não sendo mais possível utilizarmos visões unilaterais ou social e culturalmente apartadas a respeito da nona arte e seus derivados, como é o caso dos filmes inspirados nestas obras.
Quando Diego Penha elucida sua rica visão do ciclo sisífico inerente às adaptações de Kal-El podemos compreender o seu debate proposto, temos referências a mitos greco-ocidentais como Prometeu, Atlas e Hérculos, traduzidos nos feitos fantásticos do homem de aço. O peso carregado pelo personagem ficou maior à medida que suas cores escureciam, seus incessantes reboots ocorriam ou sua atemporalidade incomodava àqueles cuja a invenção de um nêmesis qualquer (como ocorrido em 1993) resolvesse a incompreensão de sua existência em nossa era apenas torturando-o e matando-o.
Infelizmente, esta última alternativa foi utilizada em Batman v Superman: Dawn of Justice de diferentes maneiras. Mesmo que haja o conflito, incompreensão ou não-aceitação da existência de um alienígena superpoderoso entre nós, é preciso que sejam respeitadas suas características canônicas, neste caso, o otimismo, esperança e brilho inerentes a concepção do ícone que se tornou o alter ego de Clark Kent. No fundo temos um, juntando as duas peças fílmicas de 2013 e 2016, o ciclo que não se fecha, prometendo um ápice dramático jamais alcançado, em uma escalada cada vez maior de espessura entre os protagonistas envolvidos, alcance da narrativa e peso dos símbolos que carrega nos heróis que entremeiam seu desenvolvimento.
No entanto, como dito na abertura desta conclusão, mesmo não intencionalmente, o Superman se tornou uma síntese de nossa era, e assim o será até que, o modo de produção estabelecido se mantenha como tal, que seus contrapontos super-heroicos persistam ou simplesmente corajosas e inesperadas estórias a seu respeito continuem sendo contadas, apesar de tudo, tais como Superman Grandes Astros, Identidade Secreta, ou o mais recente e elogiado Alienígena Americano. A força de um mito persiste mesmo quando a razão de sua existência resida, ainda, na negação de sua concepção ou encaixe nos parâmetros espaço-temporal que o circundam, assim continuará sendo com a história de Kal-El\Superman.
Referências
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COMPARATO, Doc. Da Criação ao Roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
DINI, Paul; ROSS, Alex. Superman: paz na Terra. São Paulo: ed. Abril, 1999.
HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. Trad. Celia Berretini. São Paulo: Perspectiva, 1990.
JURGENS, Dan. A Morte do Superman. (Edição Definitiva). São Paulo: Panini, 2016.
KOTHE, Flávio. O Herói. São Paulo: Ática, 1985.
MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra; SILVA, Luíza Helena Oliveira; BATISTA, Dimas José. Do herói ficcional ao herói político. In: Ciências & Cognição; Vol 12. Rio de Janeiro, 2007. p. 18-33.
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PROPP, Vladimir. Morfologia del conto maravilhoso. Madrid: Fundamentos, 1977.
RAMA, Maria Angela Gomez. A representação do espaço nas histórias em quadrinhos do gênero super-herois: a metrópole nas aventuras de Batman. Dissertação de Mestrado em Geografia Humana. São Paulo: USP, 2006.
REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua potencialidade teológica. Tese de Doutorado em Teologia. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2012.
REYNOLDS, Richard. Superheroes: a modern mythology. University Press of Mississippi, 1992.
SILVA, Guilherme Mariano Martins da. A descentralização do conceito de superherói paladino e a crise de identidade pós-moderna. Dissertação de Mestrado em Letras pelo UNESP campus de São José do Rio Preto. São José do Rio Preto: IBILCE, 2010.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. Ana Maria Machado. – 2.ed. -Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006
WAID, Mark; ROSS, Alex. O Reino do Amanhã. São Paulo: Panini, 2010.
[1] Nesta obra uma das preocupações do autor era a da incitação das histórias em quadrinhos à subversão dos jovens à ordem e costumes. A relação entre Batman e Robin, por exemplo, é atacada como sugestão à orientação homosexual.
[2] Há, com grande esforço e alguns deslizes, essa discussão no âmbito do filme, focando na figura do Superman, já que por um detalhe do arbítrio ao qual Clark Lente está sujeito, o mesmo ser visto em seus trajes super-heroicos como um enviado dos céus ou nêmesis da humanidade.
FICHA TÉCNICA
BATMAN V SUPERMAN: A ORIGEM DA JUSTIÇA
Diretor: Zack Snyder Elenco: Henry Cavill, Amy Adams, Ben Affleck, Diane Lane, Jesse Eisenberg, Jeremy Irons, Holly Hunter, Laurence Fishburne País: EUA Ano: 2016 Classificação: 12
Melhor animação e Melhor canção original ( Lin-Manuel Miranda, Mark Mancina e Opetaia Foa’i).
A animação Moana mostra uma heroína que tem sido bem típica nas animações da Disney pelo fato de não terminar com um príncipe e não se casar ao final. Esse tema da princesa sem príncipe tem sido bem comum e vem para agradar as mulheres em seu recente processo de empoderamento. Se por um lado isso reflete a necessidade da mulher atual em buscar e afirmar sua identidade tão reprimida ao longo dos séculos, por outro transformou certos aspectos da personalidade antes valorizados em verdadeiros tabus. Expressar o desejo de se casar ou encontrar o amor é quase uma ofensa para a mulher moderna.
No entanto, não é esse assunto que quero abordar nesse texto. Algo maior e de importância coletiva surgiu como tema central em Moana, e é sobre isso que pretendo escrever esse texto. Não que a questão da afirmação da personalidade feminina não seja importante, mas o tema que a animação trouxe é de uma importância coletiva para as mulheres e para a sociedade contemporânea. A animação começa contando uma lenda sobre a grande deusa Te Fiti.
A deusa, que havia criado toda a vida na Terra e se tornou uma ilha, teve seu coração – uma pequena pedra pounamu – roubado pelo semideus Maui. Aparentemente a intenção dele era encontrar o monstro de lava Te Ka, porém o monstro faz com que seu anzol mágico e o coração desapareçam no oceano. Por causa do coração roubado, as ilhas que Te Fiti criou foram amaldiçoadas.
A animação tem como base a mitologia polinésia. O semideus Maui está presente no panteão polinésio e é utilizado na história. É interessante que a Disney tenha se apoiado em uma mitologia e cultura antiga e pouco conhecida pela sociedade ocidental. A cultura polinésia é pautada por uma ligação entre o homem e a natureza muito intensa. Mesmo que a Disney retrate a cultura polinésia de forma simplificada, esse pequeno contato serve como porta de entrada para o conhecimento de uma cultura e mitologia perdidos.
No início da animação vemos o povo da ilha Motuni sendo retratado. Trata-se de uma sociedade tribal, onde as pessoas possuem uma relação de muito respeito com a natureza, pois dependem dela para viver. É intrigante a escolha de um povo tribal, que zela e preza pela natureza e que ao mesmo tempo adora uma Deusa Mãe criadora. Se trata de uma sociedade e cultura oposta a Ocidental patriarcal, que valoriza a exploração dos recursos naturais e prol do desenvolvimento tecnológico, e que se encontra sob o estigma do Deus pai judaico-cristão.
A animação então, vem trazer uma compensação para a Consciência Coletiva, de forma a tentar o equilíbrio entre essas duas polaridades matriarcal/patriarcal. Conforme Edinger (1993), a sociedade ocidental já não possui um mito viável, que sustente nossa necessidade intrínseca de estarmos imbuídos em um mito. Sem esse mito estruturante, o indivíduo perde a razão de ser. Por essa razão temos hoje uma epidemia de depressão, ansiedade e pânico, nos grandes centros.
Com a carência de mitos nossos valores são substituídos por motivações elementares de poder e prazer, ou então o indivíduo é exposto ao vazio existencial e ao desespero. Por isso, há uma necessidade urgente da descoberta de um mito central. Von Franz (2010) também aponta que em nossa sociedade ocidental judaico cristã, de tradição estritamente patriarcal, não existe imagem arquetípica da mulher. O resultado é que a mulher, o feminino, o matriarcal e a anima são negligenciados e incompreendidos. Com isso as mulheres se tornaram incertas com o que é ser feminina, não sabem o que são nem o que poderiam ser.
Atualmente, para as mentes mais reflexivas essa atitude unilateral não faz mais sentido e vem trazendo mais malefícios do que benefícios. Uma nova revisão dos valores se faz necessária. Cada dia mais crescem os movimentos de defesa da natureza. A consciência ecológica cresce cada dia mais, bem como os questionamentos e a importância do que é a essência feminina. A Deusa Te Fiti na animação é a grande Deusa da natureza e a criadora de tudo. Ela possui a capacidade de gerar a vida em torno dela. É a responsável pelo crescimento das plantas de todos os tamanhos e pode manipular o terreno ao redor de seu corpo. Com o coração dela, ela pode criar outras ilhas repletas de flora e fauna e afetar esses elementos de longe.
A Deusa Te Fiti não está no panteão polinésio, mas parece ser uma representante de Gaia, a deusa grega primordial da Terra. Podemos observar, então, características de uma sociedade matriarcal. Diante desse contexto não há nenhuma novidade no fato de Moana ser a nova líder do povo. As sociedades matriarcais valorizavam o cultivo da terra e os alimentos por ela proporcionados. Os povos agrícolas vivam em um estado de fusão com a natureza, como sendo integrantes desse todo. Havia, nesses povos, a predominância da terra e da vegetação. E a terra e a natureza, como fontes de fertilidade e alimento, bem como de morte e também como aquela que devora os filhos.
A Deusa para esses povos era a fonte de fertilidade e o masculino era sempre subserviente dela. Eles não acreditavam e não sabiam que o homem tinha participação na reprodução. Sua função era só romper o hímem para a passagem da criança (Harding, 2007). Além disso, era incumbência da mulher cuidar dos assuntos relativos ao suprimento de alimento, exceto a caça e abatimento de presas. Elas colhiam frutas, ervas, raízes e as preparavam para comer. Plantar, cultivar e colher eram tarefas femininas essencialmente. Acreditava-se que a mulher fazia com que as coisas frutificassem e crescessem devido a sua capacidade de gerar crianças e de ter seus ciclos hormonais em relação direta com a Lua – fonte de fertilidade. Com isso, o feminino sempre foi visto mais próximo a natureza e aos processos corporais.
Ao desenvolvermos então o aspecto patriarcal da psique coletiva, perdemos a ligação com o corpo e consequentemente com a natureza. Nos separamos dela e passamos a enxerga-la como fonte de exploração para o ego humano. Privilegiamos o mental e deixamos o emocional e instintivo de lado. Hoje sentimos novamente essa necessidade de nos reaproximarmos desse lado matriarcal. Urgentemente precisamos encontrar um equilíbrio entre essas duas forças. Vemos esse apelo emocional na animação, que resgata e traz à tona esse nosso lado esquecido.
Moana é então escolhida pelo mar para a jornada de resgate do coração de Te Fiti. O mar para a psicologia analítica simboliza o útero de onde surge toda vida. Deuses do mar como Posídon são considerados deuses ctônicos e estão ligados a Grande Mãe e aos aspectos da natureza de doador de vida e alimento e destruidor da vida. O fato de termos a Deusa como centro vital da animação e o de ser uma garota escolhida para essa jornada chama bastante a atenção. A tendência de uma divindade encarnar em um filho não é algo desconhecido e revelou-se no cristianismo. A encarnação de Deus no Cristo foi vivida como uma experiência religiosa coletiva de enorme alcance (Von Franz). Mas a tendência da antiga deusa – mãe de encarnar em uma filha ainda não se realizou. Assim a imagem do feminino em sua totalidade ainda não alcançou o humano e a consciência, temos apenas vestígios disso.
O culto a Deusa foi reprimido com o advento do Cristianismo. Isso aconteceu em partes, pois a força de um arquétipo é muito forte, e ocorreu a reaparição da deusa na Virgem Maria, com a subsequente devoção. Contudo essa imagem feminina veio para a nós com sérias restrições. A imagem feminina precisou ser retratada purificada de sua sombra e de forma que agradasse o patriarcado. A sombra da Deusa então, ainda não fez sua reaparição em nossa sociedade. Contudo, essa reaparição parece ser uma necessidade emocional muito forte e algo iminente de ocorrer.
Vemos algumas animações que trazem heroínas que representam “filhas” de deusas antigas. Em Valente vemos uma representante da deusa Artemis em Merida, em Mulan a heroína pode ser considerada uma representante de Atena, a deusa da guerra. Moana também pode se encaixar nessa categoria. Ela representa a jornada da heroína escolhida para humanizar esses aspectos sombrios da antiga Deusa e assim deixando viável a assimilação desses conteúdos para a consciência. Vemos na animação que o coração da deusa é roubado e ela se vinga se transformando no monstro Te Ka, retirando toda a vida e alimentação.
Esse tema da vingança da deusa é recorrente nos mitos antigos. Demeter outra deusa da fertilidade, se vingou com a esterilidade da terra ao ter sua filha roubada e sequestrada. Hera era a rainha da vingança. Afrodite se vingava quando deixava de ser adorada ou quando alguma humana lhe suplantava em beleza. Atena e Ártemis também possuem episódios de vingança. A vingança feminina é um dos aspectos da Deusa feminino que está ausente da consciência. As mulheres conhecem esse sentimento muito bem, mas não o aceitam e por isso lidam mal com ele. Pois se prega a benevolência feminina.
Para finalizar é importante falar sobre Maui. Maui na mitologia polinésia é um Herói trapaceiro, conhecido por suas aventuras extravagantes e sobrenaturais. Sua lenda diz que ele era um humano nativo das ilhas do Havaí. Sua mãe, o achava fraco ao nascer e preferiu afogá-lo. Maui, porém, sobreviveu às ondas, foi salvo pelo Sol e tornou-se um homem extremamente forte, sem medo em seu coração, um semi-deus. Em uma de suas aventuras, ele vai ao submundo atrás da deusa da morte para conseguir a imortalidade, mas é morto por ela. Diz-se que por causa dessa transgressão a humanidade perdeu a imortalidade. Outra aventura de Maui é o furto do fogo e a posterior entrega para os seres humanos que passaram a utilizar a madeira para fazer fogo.
Na animação isso se repete de uma forma diferente. Ele rouba o coração de Te Fiti para entregar aos humanos. Na lenda como no filme e ele é uma espécie de Prometeu que rouba algo para a humanidade e é posteriormente punido. Maui simboliza a exploração da natureza em prol do desenvolvimento da humanidade. Pretendemos nos igualar aos deuses para sermos imortais, exploramos a natureza em busca de remédios e imortalidade, mas com isso somos punidos cada vez mais por ela. A natureza vem cobrar seu preço e sua vingança. Sua relação com Moana se desenvolve em uma amizade profunda e duradoura. Algo que se perdeu nas relações aqui é resgatado na relação de Moana e Maui – a amorosidade. A relação entre eles se constrói no conhecimento das fraquezas e virtudes um do outro.
Maui e Moana estabelecem um equilíbrio harmônico e desprovido de competição entre masculino e feminino que precisamos encontrar. A amorosidade, característica do feminino precisa ser resgatada em todas as relações. O amor fraterno ou o romântico se constrói com isso e somente após as projeções serem retiradas. Mas é necessária paciência nesse processo. Não sabemos amar, pensamos que amamos, só saberemos quando aprendermos a construir isso na amorosidade.
REFERÊNCIAS:
EDINGER, E. F. A Criação da Consciência. O mito de Jung para o homem moderno. São Paulo: Cultrix, 1993.
HARDING, E. M. Os Mistérios da Mulher. 4 ed. São Paulo: Paulus, 2007.
NEUMANN, E.História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.
VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
MOANA
Diretor: Ron Clements e John Musker
Elenco (vozes): Auli’i Cravalho, Dwayne Johnson, Rachel House, Temuera Morrison País: EUA Ano: 2016 Classificação: Livre
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Carl Gustav Jung e a importância psicológica dos mitos
É de nosso amplo conhecimento que os povos antigos, principalmente que marcaram de forma intensa a humanidade, como os Gregos, Egípcios, entre outros, possuíam a sua própria mitologia, povoada de deuses com diversas funções diferentes.
Cada mitologia demonstra a forma como cada uma dessas civilizações pensava a respeito de suas origens e também como imaginavam a estrutura fundamental de sua existência. A Mitologia está muito próxima da Cultura da civilização a qual pertence, revelando assim os processos psíquicos, não apenas da humanidade, mas da civilização a qual pertence.
Conforme Carlos Byington, os mitos nos mostram os caminhos que percorrem a Consciência Coletiva de uma determinada civilização durante a sua formação, e também a delineação do mapa do tesouro cultural através do qual a Consciência Coletiva de um povo pode, a qualquer momento, voltar para realimentar-se e continuar se expandindo.
Retirado de: procrastination.com.br
Conforme Campbell (1990) os mitos nos trazem a percepção das ideias simbólicas e alegóricas e não são histórias literais. Não se apreende o mito via intelecto, pois o mito fala a linguagem da alma.
Eles também não são arquétipos puros, pois os arquétipos não são apreendidos pela consciência. Contudo, eles dão formas aos arquétipos, fornecendo uma roupagem a eles de forma que a consciência possa assimiliar o conteúdo. Os arquétipos não podem ser contatados diretamente pela psique, pois no inconsciente coletivo eles não possuem formas definidas.
Os mitos “transmitem mais do que um mero conceito intelectual, pois, pelo seu caráter interior, eles proporcionam um sentido de participação real na percepção da transcendência”.
Transpondo para o nível individual pode-se afirmar que os mitos nos levam a experiência de nos sentirmos vivos. Traz-nos a sensação de que nossa vida no plano físico tem ressonância com nosso mundo interior, aquele mundo que habita nosso ser mais profundo.
Conforme Campbell (1990):
“Quando a história está em sua mente, você percebe sua relevância para com aquilo que esteja acontecendo em sua vida. Isso dá perspectiva ao que lhe está acontecendo. Com a perda disso, perdemos efetivamente algo, porque não possuímos nada semelhante para pôr no lugar. Esses bocados de informação, provenientes dos tempos antigos, que têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida humana, que construíram civilizações e enformaram religiões através dos séculos, têm a ver com os profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos limiares da travessia, e se você não souber o que dizem os sinais ao longo do caminho, terá de produzi-los por sua conta. Mas assim que for apanhado pelo assunto, haverá um tal senso de informação, de uma ou outra dessas tradições, de uma espécie tão profunda, tão rica e vivificadora, que você não quererá abrir mão dele.”
O estudo da Mitologia dos diversos povos nos faz conhecer um pouco melhor os processos psíquicos do inconsciente coletivo. Em termos individuais a Mitologia fornece uma base para o estudo dos sonhos, pois ambos são expressões da atividade inconsciente.
A Mitologia então fornece um material comparativo, fornecendo analogias para os processos que se distinguem da vida cotidiana e que ocorrem em nossos sonhos, em sincronicidades e em fantasias.
Portanto com o conhecimento da Mitologia, o analista consegue auxiliar o paciente a encontrar uma resposta ao que, de outro modo, poderia parecer um indecifrável enigma.
Retirado de: portal-dos-mitos.blogspot.com
Nossa sociedade Ocidental é intensamente afetada pela Mitologia Grega, que com seu panteão aponta para o caminho de desenvolvimento do individuo no ocidente. Além disso, o brasileiro é fortemente afetado em seu inconsciente pelos mitos indígenas e africanos, que povoam nosso imaginário de forma marcante.
Conhecer e buscar o significado desses mitos que dão base a nossa sociedade nos auxilia em nossa jornada enquanto Ocidentais e brasileiros. E de forma individual cada imagem arquetípica se associa a vivências, dons e determinados problemas associados aos deuses mitológicos.
Quando nos identificamos e reconhecemos esses dinamismos atuando em nós, diminui nossa presunção de sermos o centro e alcançamos um significado que emerge das profundezas de nossa alma, nos auxiliando em nossas escolhas de forma mais satisfatória e coerente com a nossa estrutura psíquica. Ou seja, o mito traz o símbolo que une a consciência e o inconsciente, o que traz uma satisfação e um sentido de paz de espírito imenso.
Referências:
BOLEN, J. S. Os deuses e o homem: uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos. São Paulo: Paulus, 2002.
CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.