A Onda: neofascismos travestidos de moral

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“O filme “A onda” focaliza, por um lado, o imperativo da ordem e disciplina e, por outro, o desejo de controlar a pulsão agressiva dos seres humanos travestido em organização fascista aspirando ser moral. “A onda” pode ser vista através de alguns movimentos políticos-ideológicos de nossa história: quando atuou em nome de uma suposta “superioridade da raça ariana”, causou o genocídio nazista; quando levantou a bandeira da “causa do proletariado” milhares foram estigmatizados de ‘antirrevolucionários’, ‘reacionários burgueses’, ‘intelectuais inúteis’; quando surgiu com o nome de “revolução cultural” fez o povo quase perder suas tradições; quando “em nome de Deus” milhares são assassinados; quando “em nome do Bem contra o Mal”, da “causa justa” ou da “democracia”, invadiu países, destruindo prédios e vidas; Enfim, quanto o irracional está a serviço da racionalidade, o resultado é a imoralidade, o sofrimento e a morte em massa.” (LIMA, 2016).

No drama “A Onda” pode ser o observado o quanto o homem, objeto de estudo da psicologia social, pode ser levado pelo seu meio social a ter uma série de ideias e comportamentos gerados a partir destas verdades pré-estabelecidas deste grupo. No momento em que uma das alunas questiona o professor quanto a imparcialidade das pessoas da Alemanha durante a segunda guerra elas não imaginavam o quão fácil é levar alguém a pensar algo quando a mesma acredita que é superior ou melhor do que os outros de alguma forma.

Fonte: https://bit.ly/2K7FFbm

Um dos maiores conceitos da psicologia social é esse, a forma com que a personalidade, do caráter e comportamentos é levado e definido ao grupo. “A psicologia social estuda a determinação mútua entre o indivíduo e o seu meio social. Posto isto, esta ciência analisa os aspectos sociais do comportamento e do funcionamento mental.” (ANÔNIMO, 2016) O que fica muito vem exemplificado no drama. Tanto para se unir Ao movimento da “onda” quanto sair dele, em algum momento foi necessário que alguma pessoa do seu convívio social estabelece.

É mostrado também o quanto o conceito de certo e é errado é mutável quando determinado por um convívio social, de alguma forma violência passou a ser uma opção para os participantes da “onda” quando o seu movimento era ameaçado por outros sendo que as suas famílias já haviam ensinado que não era uma opção, esse valor foi facilmente esquecido. “A Psicologia Social estuda o que acontece com o indivíduo quando ele está interagindo com outras pessoas ou na expectativa desta interação. ” (RODRIGUES, 2000)

Fonte: https://bit.ly/2tldOJZ

Este comportamento de agir de forma irracional diante dos pressupostos levantados por um grupo é mencionado no texto de Lima trazendo à tona as diversas supremacias que enfrentamos hoje em nossa sociedade, as que são realidade no nosso dia a dia:

“Os sintomas atuais de ascensão do irracional humano vem se revelando não só através de grupos nazi-fascistas que formam uma ‘onda’ pregando a  “supremacia da raça branca”, a perseguição  de judeus, negros, índios, homossexuais, nordestinos do Brasil, feministas, esquerdistas, democratas, etc. O fundamentalismo religioso (cristão, islâmico e judaico), os atos dos criminosos ligados ao narcotráfico, o terrorismo protofascista de grupos ou de Estado, sem projeto político, podem ser considerados sintomas de ‘ascensão do irracional’ ” (LIMA, 2016).

REFERÊNCIAS:

ANÔNIMO. Conceito de Psicologia Social. Disponível em: <http://conceito.de/psicologia-social#ixzz42zUw3aky>. Acesso em: 14 mar. 2016.

EDUCAÇÃO, Portal. Psicologia social: conceitos e histórico. Disponível em: <http://www.portaleducacao.com.br/educacao/artigos/32192/psicologia-social-conceitos-e-historico>. Acesso em: 14 mar. 2016.

 LIMA, Raymundo de. ‘A onda’ e o irracionalismo dos grupos: comentário sobre o filme “A onda”. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/065/65lima.htm>. Acesso em: 14 mar. 2016.

 PLAYERS, Cine. A Onda. Disponível em: <http://www.cineplayers.com/drama/a-onda/10875>. Acesso em: 15 mar. 2016.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A ONDA

Diretor: Dennis Gansel
Elenco: 
Jürgen Vogel, Max Riemelt, Jennifer Ulrich, Frederick Lau;
País: Alemanha
Ano: 
2009
Classificação:
16

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Doutor Estranho: elementos místico-gnósticos no clichê da quebra e retorno à ordem

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Indicado ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais (Stephane Ceretti, Richard Bluff, Vincent Cirelli e Paul Corbould )

Banner Série Oscar 2017

Por um lado, “Doutor Estranho” é uma evolução no universo Marvel: no lugar de super-soldados e playboys tecnológicos, a magia e a inteligência. Mas do outro, a magia (com referencias gnósticas e budistas) não é libertária mas destinada a manter a “ordem natural”: a seta do Tempo, a entropia e a morte – justamente as falhas cósmicas que o Gnosticismo de produções como “Matrix” ou “Sense8” e o budismo tibetano (uma fonte de inspiração do personagem) denunciam como prisões na “Roda do Samsara” – ciclo vicioso da morte/reencarnação. Em “Doutor Estranho” quem pretende romper com a ilusão são os vilões (a “Dimensão Negra”) e os heróis são aqueles que punem quem pretende quebrar a Ordem. “Doutor Estranho” explicita o clichê narrativo hollywoodiano que é o cerne ideológico do entretenimento comercial: “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” – a luta para que a ordem seja mantida. Mas o que realmente fascina o público no filme é o show da possibilidade de que a ordem será toda mandada pelos ares. Até a magia colocar tudo no lugar.

A virtude de Doutor Estranho é levar o universo cinemático da Marvel para uma nova direção: das histórias sobre playboys dotados de genialidade tecnológica e super-soldados nobres e heroicos, passamos para um mundo dominado pela magia e inteligência. Além de uma eletrizante utilização dos efeitos digitais para criar um universo bem diferente de qualquer outra coisa que vimos em adaptações cinematográficas recentes sobre super-heróis – multi-universos, loop temporais, portais interdimensionais e a desconstrução do Tempo.

Mas tudo isso é apenas a superfície. Para além desse avanço evolutivo da Marvel, Doutor Estranho explicita clichês do entretenimento hollywoodiano. Mas principalmente, um clichê narrativo que é, na verdade, o cerne ideológico do entretenimento comercial: quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem – protagonistas que lutam para que uma ordem seja mantida, mas o que realmente fascina o espectador é o show da possibilidade de que a ordem será toda mandada para os ares. Até que a magia coloque tudo no lugar.

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O personagem Doutor Estranho faz parte do desenvolvimento de um sub-zeitgeist místico, religioso e sobrenatural formado nos EUA por toda uma literatura de HQs, magazines, pulp ficctions e filmes B sci-fi, horror e fantasia no Pós-Guerra. Enquanto na Europa o misticismo gnóstico e o Fantástico sempre esteve associado à literatura e movimentos artísticos de vanguarda (Romantismo, Gótico, Expressionismo etc.), ao contrário, nos EUA associou-se à subliteratura e entretenimento de massas.

Essa “nova religião americana” (na expressão de Harold Bloom) tornou-se um gnosticismo de massas. Porém, associado a uma indústria de entretenimento no qual o místico e o sagrado é estetizado e neutralizado, convivendo confortavelmente com hábitos ritualizados de consumo. Se os quadrinhos de Stan Lee ainda criavam a mitologia dos super-heróis associada à autodivinização (o que sempre indignou os fundamentalistas religiosos), nas adaptações cinematográficas as mitologias mística e gnóstica serão enquadradas nos clichês hollywoodianos de entretenimento – super-heróis amorais e a neurótica quebra e retorno à ordem: função ideológica do cinema de massas para criar resignação e conformismo no público.

Doutor Estranho explora os elementos mais críticos do questionamento ontológico que o Gnosticismo faz à Ordem: multi-universos, a realidade como um constructo e, principalmente, o Tempo como a principal falha cósmica que aprisiona a humanidade. Mas ao contrário do universo Matrix no qual o protagonista luta para desligar a ilusão e quebrar a prisão do Tempo, em Doutor Estranho (e de resto, em todo universo Marvel no cinema), os super-heróis lutam pela manutenção da Ordem – mortais vivem na realidade ilusória prisioneiros da seta do Tempo (entropia e morte) enquanto os heróis (magos supremos e mestres da magia) lutam para que a ilusão seja mantida.

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O Filme

Dr. Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é um gênio da Medicina: um rico neurocirurgião com ego tão inflado como o do Homem de Ferro Tony Stark. Trata com desdém os profissionais aos eu redor e escolhe a dedo apenas os casos médicos mais desafiadores para ele. Guiando velozmente o seu carro esporte ao som de Interestellar Overdrive, música do primeiro disco do Pink Floyd (sutil referencia ao psicodelismo dos anos 1960, década na qual Doutor Estranho estreou nos quadrinhos da Marvel), simultaneamente olha para relatórios médicos (Strange pode ser inteligente, mas seu ego o faz parecer invulnerável) quando sofre um brutal acidente com o carro devido a uma momentânea distração no volante.

Suas mãos são as mais atingidas no acidente, o que é fatal para um neurocirurgião: cheias de cicatrizes e sem mais precisão e firmeza, são agora uma pálida lembrança do profissional de sucesso que era. Mas isso não faz repensar sua vida. Após sucessivos fracassos em cirurgias, torna-se cada vez mais agressivo e retraído, a ponto de bater em sua ex-amante e colega de trabalho Christine Palmer (Rachael McAdams), a única pessoa em quem poderá confiar. Strange vê todas as soluções da Ciência e da Medicina falharem, ao mesmo tempo que conhece um ex-paciente, recusado por ele, chamado Jonathan Pangborn. Um paraplégico que voltou a andar após um período sob a tutela da Anciã (Tilda Swinton) no Nepal, onde aprendeu o controle do corpo através da mente.

Falido e carregando no pulso o último relógio da sua cara coleção (simbolismo importante no filme), Strange junta o pouco de dinheiro que sobrou e viaja ao Nepal para encontrar a cura. Mas lá encontrará muito mais: um novo mundo se abrirá (literalmente, para outras dimensões) com ajuda não só da Anciã, mas também de Mordo (Chiwetel Ejiofor). Acabará aprendendo como a magia é utilizada para proteger o planeta de “fanáticos” como Kaecilius (Mads Mikkelsen), um ex-discípulo da Anciã que abandonou o Templo para se associar a Dormammu, Deus da Dimensão Negra cujo propósito é a de consumir a nossa.

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Tempo e Imortalidade

Toda a narrativa gira em torno do tema do Tempo e da Imortalidade. Para a maga suprema, a Anciã, proteger o planeta é lutar pela manutenção a ordem da Natureza, que a Dimensão Negra pretende quebrar. “O mundo não é o que deveria ser. A humanidade anseia pela vida eterna. Um mundo além do tempo, pois o tempo nos escraviza. O Tempo é um insulto. Não queremos governar esse mundo, queremos salvá-lo”, diz a certa altura Kaecilius na primeira luta com Doutor Estranho.

Aqui temos nessa linha de diálogo uma síntese da crítica Gnóstica à falha fundamental da imperfeição do nosso Cosmos – cópia imperfeita da Plenitude, o chamado “Pleroma” para os gnósticos. A combinação dessa crítica ao Tempo com o toque místico budista da Anciã do Nepal, converge à própria visão da mortalidade/reencarnação como a essência da prisão em que se torna esse mundo, capturando as almas e obrigando-as à reencarnação (a Lei da Repetição) até que conseguam “fugir” por meio da iluminação espiritual – escapar da “Roda do Samsara”, para o Budismo Tântrico.

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O Yantra Místico

Curiosamente, essa filosofia libertária (de filmes como Matrix ou séries como Sense8) é o propósito dos vilões da Dimensão Negra. Anciã, Doutor Estranho e Mordo travam batalhas invisíveis aos humanos no Universo Espelhado (que lembram bastante as sequências do filme A Origem – Inception, 2010) justamente para manter a Ordem. Ironicamente o design dos escudos energéticos manipulados tanto pela Anciã como pelo Doutor Estranho possuem uma gestalt semelhante ao dos manuscritos originais do Livro Tibetano dos Mortos, assim como do Yantra Místico, a representação simbólica do aspecto de uma divindade, inestimável para ajudar o caminho espiritual.

Na tradição tibetana são símbolos para alcançar a união com Deus e escapar da Roda do Samsara, encerrado o ciclo de mortes e renascimentos. Ao contrário, em Doutor Estranho ajudam a manter a “ordem natural” da seta do Tempo, a falha cósmica que mantém a lei da Repetição. E todas as lutas serão travadas em torno do hospital no qual Stephen Strange trabalhava – nada mais simbólico: é no hospital onde médicos travam a batalha contra a seta do Tempo, a entropia e a morte.

tibetanoYantra: Livro Tibetano do Mortos e no filme “Doutor Estranho”
Fonte: http://migre.me/vAdL6

Quebra e retorno à Ordem

Por isso, Doutor Estranho trabalha com uma clássica variação do clichê “quebra-da- ordem-retorno-à-ordem: quem quebra as regras deve ser punido, inclusive os próprios super-heróis. Em repetidas linhas de diálogo do filme repete-se o mantra: “Mas um dia é preciso pagar a conta”, diz Mordo seguidas vezes. Anciã salva a Terra por meio da própria quebra das regras pelas quais luta – drena a energia da Dimensão Negra para ter uma vida longa e fugir da morte. Enquanto Doutor Estranho, através da joia chamada “Olho de Agamotto”, manipula o Tempo – avança e retrocede os eventos de acordo com as necessidades das batalhas contra a Dimensão Negra.

Por isso, é simbólico o relógio quebrado no pulso de Doutor Estranho, a única coisa que restou da antiga vida: ele também deverá quebrar as regras do Tempo, assim como almeja a Dimensão Negra. E por que a ênfase na autodivinização nos HQs originais de Doutor Estranho é substituída pelo clichê da punição à quebra da ordem na adaptação cinematográfica? Para pesquisadores como o alemão Dieter Prokop, essa é a essência ideológica da linguagem do entretenimento para manter todos os espectadores na linha. Ao se divertir e, subliminarmente, receber essa mensagem sobre as consequências e punições sobre desobediências à Ordem (qualquer ordem), o espectador sai do cinema disposto à enfrentar, resignado, mais um dia seguinte de trabalho e disciplina – saiba mais sobre esse conceito.

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Narrativa inverossímil

Além disso, Doutor Estranho peca por outra velha narrativa clichê hollywoodiana que é totalmente inverossímil: a história de um homem branco que viaja para uma terra “exótica”, cuja cultura e pessoas não respeita, e muito menos conhece a língua. Apesar disso, de alguma forma, descobre que tem um dom natural pela magia e rapidamente fica bom o suficiente para bater os praticantes que têm vivido nisso há séculos! Na verdade, Stephen Strange não muda e o seu ego permanece tão inflado como no início: tudo deve acontecer de acordo com seus próprios termos.

Mas, apesar de tudo isso, Doutor Estranho tem um virtude irônica: pelo menos os civis inocentes estão à salvo das batalhas amorais dos super-heróis, capazes de realizar destruições em larga escala para derrotar inimigos que também querem destruir tudo. O que deixa duas opções para os pobres civis: ou são mortos pelos super-heróis como efeitos colaterais, ou mortos pelos vilões como vítimas de atentados terroristas. Em Doutor Estranho, as batalhas ocorrem no Universo Espelhado, plano dimensional invisível para os humanos – apesar de em alguns momentos sentirem alguns efeitos. Com exceção na batalha em Hong Kong na qual a Dimensão Negra destrói o prédio do Sanctum Sanctorum – um dos escudos etéricos que protegem a Terra das forças do mal.

Mas, prontamente Doutor Estranho gira o Olho de Agamotto retrocedendo o Tempo e reconstruindo tudo, o prédio e a vida das vítimas. Mais do que dinheiro, as adaptações cinematográficas do sub-zeitgeist gnóstico das HQs da Marvel parecem cumprir uma função místico-ideológica bem clara: no lugar da autodivinização libertária, super-heróis que lutam para que a Ordem seja mantida sob a ameaça da punição. Afinal, sempre chega o dia de “pagar a conta”.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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DOUTOR ESTRANHO

Direção e Roteiro: Scott Derrickson
Elenco: Benedict Cumberbatch, Tilda Swinton, Chiwetel Ejiofor, Mads Mikkelsen
Ano: 2016
País: EUA
Classificação: 12
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A ordem do discurso

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“(…) ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer
a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.”

(Foucault, p. 37, em “A Ordem do Discurso”, Edições Loyola)

Michel Foucault é um autor instigante e genial. Daquilo que compreendi acerca da genealogia e da arqueologia, métodos por ele usados em suas incursões sobre o saber, diria que ele descobriu e-ou mostrou o coringa do baralho, as raízes do saber, as condições para o fim da escravidão e dos totalitarismos.

Uma maneira de demonstrar minha admiração pelo que, mesmo que parcamente, compreendi acerca das reflexões e ações creditadas a Foucault, seria interromper esse comentário que recente se inicia. Na verdade, mesmo que coisas eu possa escrever sobre Foucault, nada sei sobre ele e suas reflexões e não o saberei, pois Foucault morreu em 1984.

Prolongar essa escrita é apenas uma forma de me prender aos diversos discursos que, sobre esse autor, rondam na língua portuguesa (incluindo as traduções de seus trabalhos). Continuar será reproduzir-repetir, obedientemente, como se fosse coisa nova, os comentáriossobre ele e sua obra, como a esse que, por insistência, teimo em continuar. É que a liberdade, num primeiro momento, parece me afugentar, mais do que me esclarecer e, talvez por isso, abrigo-me em minha biblioteca-caverna pra depois repetir, como a um papagaio, discursos ao ar. Assim é o mundo das palavras nos discursos.

Foucault apresentou sua compreensão (de longo alcance) sobre como essa prática discursiva se ordena por meio de sua aula inaugural no Collège de France, em 02 de dezembro de 1970. Tal aula foi traduzida por Laura Fraga de Almeida Sampaio e lançada em 1996, pela “Edições Loyola”, com todos os direitos reservados para essa editora, com o título “A ordem do discurso”. Direitos reservados sobre o conhecimento seria no mínimo contraditório com o tema do livro se não vivêssemos num Estado fascista. Contudo, como vivemos num Estado fascista, a contradição dissolve-se e a reserva de direitos autorais sobre os escritos de Foucault torna-se, dentre muitas outras, a condição de possibilidade de minha papagaíce.

Foucault é categórico sobre o discurso: di-lo perigoso, ardiloso, transitório e cuja duração “não nos pertence. ”Sua produção é “controlada, selecionada, organizada e redistribuída” (pelos direitos autorais inclusive). Os discursos não esclarecem a área sobre as quais versam; antes, eles são lugares nos quais os “temíveis poderes” são exercidos. Portanto, o discurso, por fazer funcionar poderes, é um objeto de desejo, é “aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Como exemplo pode-se pensar na luta que é para que contraiamos o poder concedido dentro do mercado de trabalho por meio da graduação em Psicologia. À classe de Psicólogos é reservada uma série de direitos e discursos como se fosse uma “sociedade de discurso” definida por Foucault como as sociedades

(…) cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, 2004, p.39).

A regulação da produção dos discursos é feita, em nossa sociedade e em grande parte, por exclusão, em sistemas de: interdição, separação-rejeição e oposição verdadeira-falso.

A interdição atua sobre o domínio do sistema da linguagem dos aglomerados humanos. Portanto, atua sobre a comunicação, por meio de permissões e proibiçõessobre o uso da fala e da escrita. Revela dinâmicas de poder do homem sobre o homem, como no casodo escriba, personagem detentor exclusivo da capacidade da escrita, altamente respeitado e influente nas sociedades primitivas, passando pela privatização da escrita e da leitura pelas diversas doutrinas religiosas (a Igreja regulou e regula até hoje o acesso a livros) até a atual organização disciplinar do saberque incrimina, por exemplo, quemfala, escreve ou ensina sobre algum tema para o qual não esteja burocraticamente “habilitado”.

A separação-rejeição dá-se pelas inúmeras práticas classificatórias que o homem faz sobre o homem: o exemplo dado por Foucault é o do louco. No contexto em que vivemos, o louco, comumente diagnosticado a partir de um sistema de classificação de pessoas (o DSM e o CID), é desacreditado em seus discursos a tal ponto de lhe imputarem a interdição judicial, situação civil na qual o que o sujeito diz e o que ele não diz valem o mesmo tanto: nada.

A oposição verdadeiro-falso, cunhada pela parceria da ciência com a lei (ciência-lei), desloca o valor do que é ou de quem faz um discurso para aquilo que elediz, para o próprio enunciado, independente de quem o diz, como no caso das perícias técnicas que subsidiam a decisão judicial da interdição. O importante, no exemplo das interdições judiciais, é o sujeito que discursa ocupar a posição a partir da qual ele possa discursar, a de perito. Dessa posição, por sua caneta os discursos passam, alguns mentirosos inclusive, mesmo que constantes na classe dos “no verdadeiro”. Como exemplo disso pode-se pensar na própria definição de interdição: o sujeito interditado não possui capacidade de responder por seus atos civilmente, mas responde judicialmente. Não há contradição maior e, para muitos dos casos de interdição judicial, mentira maior; mesmo que os laudos e diagnósticos envolvidos no processo de interdição estejam incluídos num sistema de “verdades” uma vez que os laudos periciais são, na prática, inquestionáveis.

A ordenação, a regulação, o controle, a organização e a redistribuição dos discursos pelos sistemas de exclusão funcionam a partir de “máquinas de fazer falar” que mantêm a separação entre os atos e os enunciados. Na continuidade do exemplo sobre a interdição judicial, a lei e a ciência enunciam as “verdades” e os atos que sustentam sua realidade material são vividos por quem ocupa outras posições discursivas: a pessoa interditada (cujos discursos nada valem), familiares e os técnicos que ficam entre os discursos da ciência-lei e os demais discursos cotidianos.

Os discursos que trafegam no seio cotidiano (na materialidade das relações) do interditado, dos familiares e dos técnicos são variados, mas parecem seguir um caminho de homogeneização o qual os torna consonantes aos discursos da lei-ciência. No final das contas, quem interdita não é a lei ou a ciência, mas sim quem convive diretamente com a pessoa interditada, que, absorvendo os discursos daquelas, como a água que, por tanto bater, à pedra fura, desacredita, dopa, interna, analisa, interpreta e desconfia. As únicas coisas que a lei e a ciência fazem são: tomar a decisão sobre a interdição, mandar interditar e retirar o nome das urnas eletrônicas do sistema de votação.

Esse processo é chamado de disciplinar. As disciplinas são compostas por aquilo que é necessário para a construção de novos enunciados. Possuem

(…) domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo (grifo meu) à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor (FOUCAULT, 2004, p. 30).

As disciplinas possuem um núcleo que envolve-abraça um saber e emana um efeito mortificador dos saberes de seu em torno corpóreo (os epistemicídeos discutidos por Boaventura, a teratologia do saber discutida por Foucault). Desse modo, em muitas situações de cuidado vividas no campo da saúde mental, os discursos que alicerçam as relações familiares são também poucos considerados na resolução dos conflitos vividos ao passo que os discursos técnicos possuem posição importante nas decisões dentro dos serviços de saúde mental, porém são esvaziados de poder de modificação uma vez que, em grande parte, são, como a esse texto, papagaíces ou dependentes de uma burocracia teratológica, mortificadora de saberes.

Para Foucault (2004) “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras.” (p. 36). A regra geral das sociedades é, para mim, a seguinte: os recursos para a vida (alimentos e fontes de energia) são limitados e já possuem donos, pois apropriados à força.

As identidades que reatualizam permanentemente as regras são as diversas práticas que mantém as pessoas distantes de tais fontes, ou seja, as práticas de governo de maneira geral, que determinam o preço da energia elétrica, exportam o petróleo, vendem a água, privatizam a terra, expulsam quem quer plantar, decidem sobre o gasto na copa do mundo e da vinda do papa ao Brasil, concedem direito para empresas cobrarem sobre o tráfego de veículos e arquitetam sistemas de educação inócuos. É o que também vemos na esperança que temos nas leis, portarias, decretos, regulamentações e emendas repetindo o que já está escrito na Constituição num jogo que nos prende a atenção, mas que não serve para mais nada além de manter privatizado o que foi a mais de 500 anos privatizado. O que faz a vida é a materialidade cotidiana e não a esperança num Senado que nos causa náuseas.

Desse modo, há uma “polícia discursiva” que atua no discursar fora da ciência-lei. O discursar liga-se diretamente ao andar, pois falamos daquilo que vemos, vemos aquilo que alcançamos, alcançamos quando andamos. É a peripatética. Nosso andar é controlado por polícias também, ainda temos toque de recolher! Portanto, oexercício de controle dos discursos depende de um regime de controle sobre os corpos. Se andarmos de tal maneira, podemos ser presos ou desacreditados para fora do espaço intitulado como “no verdadeiro”.

O corpo é o foco das disciplinas. É o foco da Ordem como lema, do regime militar, incluindo todas as suas configurações, a atual incluída, com as fardas e a regulação do trânsito dos corpos; é o foco da Igreja que possui a castidade como um dos atos de maior prova de fidelidade do religioso e de sua aproximação com deus. Como diz Foucault, a prática contra os heréticos não foi uma manifestação exagerada de um passado distante e superado pela Igreja, mas sim pertence aos mecanismos das grandes máquinas de fazer falar que são as doutrinas, como o é também a tortura para o militarismo, inclusive como forma de provar a fidelidade aos aspirantes a discursantes dessa doutrina.

Os corpos são, pois, pelo menos em parte, objetos de apropriação. Se o corpo é válido não somente pode como deve trabalhar, se não o desempregoalcança, como as pestes, de repente e acamando. O desempregado encontra-se num nível social entre o empregado e o inválido: a ele, as máquinas de fazer falar dizem: explore o mundo com o que lhe resta e corra se não alguém pega as posições que restam, na sua cama inclusive!

Se inválidos, recebemos um brinde: explore o mundo com um salário mínimo, filas e perícias; um CAPS, um CRAS e uma USF te apoiarão nisso; mesmo se você resolver que se sente válido, não poderá trabalhar (para a máquina de fazer-falar), sob pena de ser um contra-a-lei… se trabalhar, não fale por aí! Escute, Zé Ninguém!

– Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;

– Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;

– Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;

– Não caia de amores pelo poder.
(FOUCAULT, p. 6, em “Por uma vida não-fascista”, Coletivo Sabotagem).

Nota:

O site  www.sabotagem.revolt.org disponibiliza “títulos libertos das banais convenções do mercado”organizado pelo Coletivo Sabotagem que não possui e tão pouco pretende possuir direitos autorais. Dentre as obras encontra-se a intitulada “Por uma vida não-fascista” que, para o Coletivo Sabotagem, “pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.”

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