Sexualidade, sexo, identidade de gênero e orientação sexual: a construção do sujeito social e sua subjetividade

Compartilhe este conteúdo:

A sexualidade é, sem dúvida, uma construção. Construção de valores “modernos”, de condutas éticas, de um processo contínuo da percepção de quem somos em condições históricas, culturais e de inter-relações específicas.

Embora muita gente os confunda, esses termos definem aspectos bem distintos de uma mesma pessoa. O sexo do corpo (gênero e fisiologia), a identidade de gênero (quem eu sou na sociedade), e a orientação sexual (condição biossocial). Há muito tempo a questão da sexualidade deixou de ver apenas o que é masculino e feminino, e passou a entender o que de fato se é, a busca pela realização dos desejos e a necessidade de ser livre.

A sexualidade é, sem dúvida, uma construção. Construção de valores “modernos”, de condutas éticas, de um processo contínuo da percepção de quem somos em condições históricas, culturais e de inter-relações específicas, portanto, contextualizadas localmente. (GEERTZ, 2000).

A sexualidade faz parte da personalidade do indivíduo. É um aspecto do ser humano que não pode ser separado dos outros aspectos da vida, pois influencia a forma como se relacionam, com o que as atrai, qual objeto de seu desejo, sentimentos, pensamentos, interações e ações, portanto, diz respeito a saúde física e mental.

Fonte: encurtador.com.br/iAPV0

Muitas pessoas acham que ao falar de sexualidade estamos falando de sexo. Mas é importante entender que o sexo está ligado aos órgãos genitais, ou também ao ato sexual. Enquanto que sexualidade vai além disso, é um modo de ser, de sentir, de manifestar, é a forma como vamos ao encontro do outro, a intimidade, o afeto. É tudo aquilo que somos capazes de sentir e expressar. Os sujeitos podem exercer sua sexualidade de diferentes formas, eles podem “viver seus desejos e prazeres corporais” de muitos modos (WEEKS, APUD BRITZMAN, 1996).

Podemos considerar que a sexualidade não é fixa e imutável. Ela é influenciada pelo modo como as pessoas desenvolvem suas relações interpessoais. Somos seres em contínuo processo de transformação, ou seja, somos inconstantes, pois, nossas necessidades e desejos mudam. A sexualidade não se confunde com um instinto. Nem com um objeto (parceiro), nem com um objetivo (unir dois órgãos genitais). Ela é poliforma, polivalente, ultrapassa a necessidade fisiológica e tem a ver com a simbolização do desejo (CHAUÍ, 1991, P.15).

Tudo que vivemos e sentimos acontece no nosso corpo, portanto, não é possível separar a sexualidade do corpo ou pensar no corpo sem considerar a sexualidade. Ao redor dos nossos corpos, estão os modos como percebemos, sentimos, entendemos, nos relacionamos. Isso significa dizer que a sexualidade vai muito além de fatores físicos. É caracterizada por aquilo que é subjetivo, próprio, único. É a busca pela realização dos desejos, que pode se transformar ao longo dos anos, dependendo da experiência que a pessoa se permite vivenciar, ou seja, a sexualidade está sempre aberta a novas formas de significação.

Fonte: encurtador.com.br/bKOPU

“O sexo biológico é um termo utilizado para definir o que é homem, mulher, e intersexual, baseado em características orgânicas como cromossomos e genitais. Ou seja, biologicamente nasce meninas ou meninos, em função de um órgão sexual” (LUIZ ANTONIO GUERRA, 2014). O sexo biológico é apenas a parte física da identidade de uma pessoa, que pode encontrar diferentes posturas psicológicas.

Sexo faz referência somente às características biológicas de cada indivíduo, como órgãos, hormônios e cromossomos. Sendo assim, a fêmea possui vagina, ovários e cromossomos XX; o macho possui pênis, testículos e cromossomos XY; já o intersexo (o que por muito tempo tinha o nome de hermafrodita) possui uma combinação dos dois anteriores. (CRISTIANO ROSA, 2016).

Quando falamos em sexo biológico, temos que pensá-lo como a presença de órgãos reprodutivos no corpo orgânico, conhecidos por pênis, vagina ou ambos. Porém, é importante frisar que essa marca biológica que compõe esse corpo não necessariamente irá definir a identidade afetivo-sexual. O sexo biológico é um fator inato, ou seja, pertence ao ser desde o seu nascimento, independente do gênero que o indivíduo possa vir a se identificar mais tarde.

Fonte: encurtador.com.br/gyPZ2

Identidade de gênero é a experiência subjetiva de uma pessoa a respeito de si mesma e das suas relações com outros gêneros. A pessoa se reconhece como feminino ou masculino, independente do sexo biológico ou da orientação sexual. É se identificar com determinados valores, condutas e posturas sociais, ou seja, é como ela se percebe.

Gênero é algo constituído ao longo da vida, e não é estabelecido no nascimento. Alguém pode se identificar com o gênero homem ou mulher que é dado ao nascer (então é cis) ou não (então é trans). Em outras palavras, gênero é a maneira com que você se enxerga, a interpretação que você tem de si mesmo, em sua cabeça e pensamento. (CRISTIANO ROSA, 2016).

A pessoa pode nascer com um determinado sexo biológico, porém, se identificar com outro. Geralmente sentem que seu corpo não está adequado à forma como pensam, e querem adequá-lo à imagem de gênero que têm de si. Isso se dá de várias formas, desde uso de roupas, passando por tratamentos hormonais, até procedimentos cirúrgicos, ou seja, a pessoa pode se identificar com o sexo biológico de seu nascimento, ou não, e isso necessariamente não irá definir sua orientação sexual.

Fonte: encurtador.com.br/hprCH

Cisgênero abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento, e transgênero abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento (JAQUELINE GOMES DE JESUS, 2012).

A orientação sexual de uma pessoa indica por quais gêneros ela sente-se atraída. Seja física, romântica e/ou emocionalmente, diz respeito a preferência do desejo afetivo e sexual. Algumas pessoas dão-se conta dos seus sentimentos muito cedo, outras não. Mas apesar de tudo, estes sentimentos podem mudar ao longo da vida.

Toda pessoa, além do sexo, tem uma orientação íntima que define seus interesses, um impulso que configura sua atração sexual. Esse é o aspecto psicológico que complementa o sexo, possibilitando à pessoa estabelecer quais são suas preferências nas relações sexuais e sentimentais. Isso é o que define a orientação sexual da pessoa, que pode ser heterossexual, homossexual ou bissexual. Para alguns especialistas, apesar de não haver consenso, ser assexual também é uma orientação sexual. (MUNDO PSICOLOGOS, 2016).

Fonte: encurtador.com.br/bnosK

A orientação sexual refere-se ao tipo de atração que temos por outras pessoas. Sendo assim, alguém pode se interessar por pessoas do mesmo sexo (homossexual), do sexo diferente (heterossexual), dos dois sexos (bissexual), ou também pode não se interessar por ninguém (assexual). Essa atração afetivossexual por alguém é uma vivência interna relativa à sexualidade. Portanto, é diferente do senso pessoal de pertencer a algum gênero.

Esses tipos de atrações citadas não define todas as possíveis orientações sexuais. Apenas as mais comuns, pois existe uma infinidade de possibilidades para se sentir atraído. A orientação sexual existe num continuum que varia desde a homossexualidade exclusiva até a heterossexualidade exclusiva, passando pelas diversas formas de bissexualidade. (BRASIL, 2004, p. 29).

Portanto, compreende-se que a sexualidade é um dos pontos centrais na identidade do ser humano, que se manifesta através da emoção e da afetividade. É o modo como cada indivíduo vivencia suas experiências, que se tornam únicas. A sexualidade fundamenta os cuidados corporais e as relações de gênero, além de fundamentar também a busca do amor e do contato mais pleno com o outro.

Compreender a sexualidade em seu processo de contínua transformação é a condição necessária para identificar as diversas formas de vivenciar a subjetividade, no qual permite que cada indivíduo tenha uma forma única e particular de ser e sentir. Em muitos aspectos isso tem relação com aquilo que se aprende ao longo da vida, e uma das coisas que as pessoas aprendem é significar sentimentos e comportamentos.

REFERÊNCIAS

GUERRA, Luiz Antônio. Sexo, Gênero e Sexualidade. Disponível em: <https://www.infoescola.com/sociologia/sexo-genero-e-sexualidade/>. Acesso em: 20 mai. 2019.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2012. Disponível em: <https://www.sertao.ufg.br/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_SOBRE_IDENTIDADE_DE_G%C3%8ANERO__CONCEITOS_E_TERMOS_-_2%C2%AA_Edi%C3%A7%C3%A3o.pdf?1355331649>. Acesso em 20 mai. 2019.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação. 2003. Disponível em: <https://bibliotecaonlinedahisfj.files.wordpress.com/2015/03/genero-sexualidade-e-educacao-guacira-lopes-louro.pdf>. Acesso em: 27 mai. 2019.

MUNDO PSICÓLOGOS. Diferenças entre sexo, orientação sexual, e gênero. 2016. Disponível em: <https://br.mundopsicologos.com/artigos/diferencas-entre-sexo-orientacao-sexual-e-genero>. Acesso em: 20 mai. 2019.

ROSA, Cristiano. Questão de gênero. 2016. Disponível em: <https://www.jornalnh.com.br/_conteudo/2016/08/blogs/cotidiano/questao_de_genero/371790-genero-x-sexo-biologico.html>. Acesso em 20 mai. 2019.

SENEM, Cleiton José; CARAMAMASCHI, Sandro. Concepção de sexo e sexualidade no ocidente: Origem, História e Atualidade. Disponível em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/issue/download/492/69>.  Acesso em: 25 mai. 2019.

SILVA, Ariana Kelly Leandra Silva da. Diversidade sexual e de gênero: a construção do sujeito social. Universidade Federal do Pará (UFPA). Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912013000100003, 2013>. Acesso em: 20 mai. 2019.

Compartilhe este conteúdo:

A ressignificação dos romances por Jane Austen

Compartilhe este conteúdo:

Devo ater-me a meu próprio estilo e seguir meu próprio caminho.
E apesar de eu poder nunca mais ter sucesso deste modo,
estou convencida de que falharia totalmente de qualquer outro.”

Jane Austen considerava que as pessoas que não gostam de um bom romance só podem ser intoleravelmente estúpidas, por perder justamente o encanto dos romances, totalmente conectados a vida real, incluindo as imperfeições. Quem se interessa pelo mundo dos livros certamente já ouviu falar dela, a escritora Inglesa que conseguiu deixar seu legado na literatura mundial em apenas 41 anos de vida. Seus escritos vão além das clássicas histórias de amor onde os personagens principais se amam e algum elemento externo o impedem de ficar juntos, através de seus romances ela critica a sociedade e costumes vigentes do século XVlll, mas, ainda assim, causando borboletas no estômago em seus leitores ao falar de amor.

Talvez sua escrita tenha sido como uma válvula de escape, onde a pressão era tão alta e causada por meras convenções sociais que determinavam o que a mulher devia fazer, falar, e até com quem se relacionar, que suas palavras jorravam como a nascente de uma cachoeira, sutil e bela, mas forte o bastante para ocupar seu lugar no mundo de forma irremediável.

Fonte: https://bit.ly/2zVmUjY

Jane Austen apesar de ter oportunidades, de ser o tema mais recorrente em seus livros e dos finais de conto de fadas, ela nunca se casou, preferiu escrever romances a viver eles, já que o casamento por amor não era valorizado, ela preferiu ficar solteira a casar por interesse ou pressão. Viveu com os pais e com mais seis irmãos, só um deles sendo mulher, chamada Cassandra que se tornou sua confidente e companhia durante toda a vida, já que também não se casou. Ao contrário do que era esperado de uma mulher, Jane se dedicou aos estudos e as palavras, mesmo sendo muito nova já tinha consciência dos papéis de gênero que permeavam todas as relações. Em orgulho e preconceito, livro publicado em 1813, ela quebra estereótipos femininos sobre estar sempre em busca de um marido, especialmente se for rico.

Definitivamente, Jane Austen era uma mulher à frente do seu tempo, pois mesmo tendo pouco contato social com pessoas fora da família, conseguiu escrever universos únicos com diálogos complexos e instigantes, comentários sutis, mas carregados de críticas ácidas.

Fonte: https://bit.ly/2Flcd0g

Trecho do livro Orgulho e Preconceito:

Lizzie: “Eu me pergunto quem descobriu o poder da poesia para espantar o amor.”
Darcy: “Achei que fosse o alimento do amor”
Lizzie: “Do amor belo e vigoroso. Mas se é apenas uma vaga inclinação, um pobre soneto o liquidará.”
Darcy: “Então o que recomenda para despertar a afeição?”
Lizzie: “Dançar. Mesmo que o par seja apenas tolerável.”

Muito fiel a quem ela era, não se deixava influenciar por opiniões ou pelo que esperavam dela, sua identidade está em cada livro. Diferente dos romances escritos até então, Jane apresenta críticas sociais, conflitos entre as classes, minúcias da personalidade de seus personagens em todos os cenários e exterioriza certo caráter moral em seus escritos, expressando as falhas humanas como uma luta pela reforma da humanidade.

Seu conceito de amor, ao contrário do pensamento da grande maioria, não é gostar de alguém por quem essa pessoa é em sua totalidade, mas diz que a pessoa certa, com seu amor saudável deve ajudar a outra a superar suas falhas, e estar disposta a ser ajudada, assim, crescendo juntos em maturidade, sabedoria e gentileza, como um incentivo a reconhecer e lutar contra a ganância, o orgulho e o preconceito que é intrínseco a nossa existência.

Fonte: https://bit.ly/2zPvhh8

“…não tenho medo de mostrar meus sentimentos e de fazer coisas imprudentes, pois acredito que o que não se mostra, não se sente. Coisa que talvez surpreenda muito a você, pois os seus sentimentos são tão guardados que parecem não existir realmente.”

A principal impressão ao ler seus livros é sensação de viver aquelas palavras, porque apesar de não termos nascido no século XVlll, as descrições de cenários, costumes, conversas nos faz sentir uma realidade que não é nossa, situações que nem as pessoas de sua própria época falavam, agora lemos, entendemos e ouso dizer, que vivemos juntos com os personagens, graças a sua forma atualizada e real de se expressar.

Assim como seus personagens femininos, Jane Austen quis falar e ser ouvida, apesar de não ter sido reconhecida mundialmente enquanto viva, é uma verdade básica que sua voz continuará ecoando e inspirando leitores e escritores durante muitos anos.

Seus olhos erravam por aqui, por lá, por toda a parte, maravilhados.
Ela viera para ser feliz, e já se sentia feliz.”

Curiosidades:

O livro Orgulho e Preconceito ficou rapidamente famoso quando publicado, atraindo a atenção de muitas pessoas para seus outros livros. Porém, não era considerado honroso para uma mulher escrever, por isso Jane Austen mantinha sua identidade oculta, assinando anonimamente como The Lady e recebendo apoio dos irmãos para continuar suas obras. Após sua morte, a família revelou que Jane era a autora daquelas obras, recebendo o devido reconhecimento.

Apos 200 anos da morte de Jane Austen, o Banco da Inglaterra estampou sua figura em notas de 10 libras como forma de homenageá-la.

Jane Austen recebe o crédito de ter escrito 40 novas palavras em seus livros.

A casa que Jane Austen passou seus últimos anos de vida, localizada na Vila Chawton, no distrito de Hampshire na Inglaterra, foi transformada em uma casa-museu, onde qualquer pessoa pode visitar o lugar onde Jane viveu e escreveu suas obras.

Fonte: https://glo.bo/2qM2N3K
Compartilhe este conteúdo:

Quando ser louco se torna uma questão de orgulho

Compartilhe este conteúdo:

O (En)Cena conversou com Márcio Loyola de Araújo sobre a experiência de acompanhar os pacientes do Instituto Philippe Pinel em uma ala na escola de Samba Porto da Pedra no carnaval do Rio de Janeiro. Márcio é Psiquiatra, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2003). Participou da implantação e supervisão dos CAPS no Rio de Janeiro. Atualmente atua como professor de psiquiatria na Faculdade Pestalozzi e é supervisor de estágio no Hospital de Custódia Henrique Roxo.

(En)Cena – Márcio,  como se deu o seu envolvimento com a psiquiatria e com a saúde mental?

Márcio – Minha formação na UFF foi bem interessante porque durante a faculdade eu ficava questionando para que aprender aquelas coisas? Como é que eu ia aplicar isso nos pacientes? Eu estava na ginecologia na época, eu vi que não tinha muita haver aquilo com o que eu queria fazer. Eu queria ajudar o paciente, não só fazer um diagnóstico e prescrever alguma coisa. Fiz um estágio em um hospital psiquiátrico que tinha em Niterói e lá eu tive a oportunidade de participar de várias atividades, e viver uma experiência como eles. Quando terminei medicina decidi fazer psiquiatria.  Passei para o Instituto Philippe Pinel. Vivi uma experiência interessante em ser residente e morar dentro do hospital, ao conviver com os pacientes. Morei em um lugar interessante que era um centro de referências que questionava a forma de tratamento apenas hospitalar, não existia ainda os serviços substitutivos que a gente chama de CAPS. O que tinha era o Hospital Dia, onde eu tive a oportunidade de trabalhar no segundo ano, com terapia ocupacional.

(En)Cena – Como era a rotina de trabalho nesses hospitais psiquiátricos?

Márcio – Na prática, os trabalhos eram plantões… Terminando a residência eu acabei indo para a aeronáutica. Com o passar do tempo comecei a ver que com o meu trabalho eu não estava conseguindo produzir algo interessante, passei a criticar o trabalho que eu mesmo fazia. Aquilo de apenas silenciar o sintoma com o remédio não me satisfazia. Quando comecei a fazer mestrado em psicologia, passei a questionar tudo que tinha aprendido na psiquiatria.

(En)Cena – O que mais te inquietava?

Márcio – Durante o mestrado comecei a pensar: “se estava questionando aquilo que eu fazia, então eu deveria parar de ser psiquiatra e me tornar psicólogo?” Mas isso não era apenas virar outra coisa? Eu pensei: “Não! Espera aí! O importante é o papel que eu executo no lugar que eu estou. Eu posso ser psicólogo e ter o pensamento da mesma forma, e continuar reduzir a pessoa a uma técnica qualquer… Não é só a medicina que reduz a pessoa ao objeto, qualquer ciência, qualquer disciplina pode fazer isso”.

(En)Cena – E como foi ter acompanhado e coordenado o grupo de pacientes que desfilaram no carnaval do Rio de Janeiro?

Márcio – Uma situação transformadora para mim foi ter sido convidado para desfilar para a Escola de Samba Porto da Pedra com os pacientes psiquiátricos do Pinel, isso também foi muito importante para o trabalho que hoje eu estou fazendo. Ensaiar com os pacientes para podermos desfilar na apoteose às duas da manhã tem seus riscos. Tivemos que escolher, entre os pacientes, aqueles que tinham melhores condições… Confesso que durante os ensaios ficamos com receio do que poderia acontecer. Eu nunca tinha desfilado, mas eu sabia que a experiência evocaria diversas emoções nos pacientes. Pensamos uma equipe bem estruturada, para dar suporte caso houvesse alguma eventualidade. Estávamos no chão junto ao último carro, quando entramos todos estavam gritando “é campeão, é campeão” e cantando a música da escola. Acho que é a mesma emoção de fazer um gol no Maracanã! Muito legal! E todos os pacientes ali dançando, se divertindo, integrados… Então alguns dos técnicos do serviço de tão alegres, pularam na grade, e gritaram, naquela alegria, e um dos pacientes que estavam dançando passou por mim e falou: “olha lá, estão queimando nosso filme”.

(En)Cena – Você não esperava esse inversão de papéis, esse comentário do paciente “louco” sobre a atitude do técnico do serviço “normal”?

Márcio – Vejo a loucura como um estigma em uma sociedade que não consegue manter uma relação com a diferença. Tem-se que encontrar uma forma de existência que não reduza a pessoa a uma “coisa”. Quando você está em um serviço substitutivo, ou em uma atividade com os pacientes, você não consegue diferenciar quem é o paciente de quem é o técnico. Já no hospital é possível diferenciar bem quem é quem. Agora, em uma atividade, como essa do carnaval, quem é o normal? Eu costumo dizer que o louco, na sociedade, é a pessoa que fala a verdade, é aquele que revela aquilo que está escondido. E é claro que a sociedade não suporta isso.

(En)Cena – Márcio, como você enxerga essa relação que a gente estabelece com a loucura, inclusive com a loucura em nós, e de que forma as intervenções na cultura podem transformar isso?

Márcio – É… Bem, não seria solução desfilar todo ano com os pacientes. Isso depende muito da conjuntura, da situação, da relação, não é fazer um mundo especial para eles, mas sim, possibilitar um mundo em que nós possamos lidar melhor com a nossa própria loucura. Temos a dificuldade é de lidar com o diferente em nós mesmos, como é que podemos conceituar que o outro tem um desvio quando o padrão diferente do nosso de normalidade? Eu me lembro de ter lido textos muito interessantes sobre a história do Brasil que, na época do império, as pessoas consideradas loucas vendiam bilhetes para sorte, andavam livremente pelas ruas, existia-se uma integração da loucura com a cidade. Os andarilhos, aquelas pessoas que falavam coisas engraçadas, que divertiam… Tem uma história do… Eu acho que chama Obar, O Rei Obar, que ia conversar com Dom Pedro II e era recebido pelo imperador… Quando é então que a loucura foi reduzida a uma doença? Com a entrada do capitalismo, com a entrada da obrigação ao trabalho… A loucura tem a ver com o que não serve ao capitalismo, isso historicamente. Hoje ela foi captura e agora serve ao capitalismo.

(En)Cena – De que maneira a Loucura serve ao capitalismo?

Márcio – Quando eu descrevo a loucura como um conjunto de sinais e sintomas, eu consigo colocar ela dentro do diagnóstico que hoje se chama CID 10, ou do DSM IV, eu consigo articular o sintoma com o diagnóstico e ao tratamento. Nesse tratamento geralmente são usados psicotrópicos que são comercializados, também as pessoas quem produziram esse diagnóstico têm interesses na venda desses remédios. Eu vejo a loucura como uma forma de obter lucro, seja com os hospitais psiquiátricos ou até mesmo com os CAPS, que questionam hoje esse processo ao mesmo tempo em que se utilizam desse diagnóstico.  Há uma dificuldade de questionar isso… Mas não podemos negar que o doente mental  tem uma existência, como questionar essa existência?  Eu acho que o caminho mais interessante é a arte.

(En)Cena – Qual o papel dos CAPS nesse processo?

Márcio – Eu acho que os CAPS tem uma importância muito grande nesse processo. Acontece que pela quantidade de pacientes e pelo pensamento de que os CAPS irão substituir os hospitais, corre-se o risco de apenas transferirmos o serviço de um lugar para outro, sem mudar o tratamento. Precisamos que questionar isso… Nós temos que pensar que o contrário do hospital é a rua, é a vida, e tem outras formas mais interessantes de viver, que não se reduzem a uma inserção social, dentro de uma sociedade que, no meu entendimento, está com muitos problemas. É importante também questionarmos a sociedade em que vivemos, essa reflexão pode ser intermediada pela cultura e pela arte.

(En)Cena – O adoecimento mental é fruto do capitalismo?

Márcio – Em uma família, a mãe e o pai trabalham cada vez mais e se tornam ausentes na relação com a criança, não só com a questão do tempo, mas na qualidade. Há uma cobrança cada vez maior para fazer dela um mini-adulto; ela tem que produzir, ela tem que ter nota, tem que fazer vários cursos etc. E aí o déficit de atenção é da criança, a escola naquele molde tradicional via Pink Floyd, The Wall, falando que a gente molda as crianças e deixamos todo mundo igual para servir ao mercado de trabalho. O diagnóstico ele tem sido feito para adaptar a pessoa ao mundo que alguns querem. Eu vejo o adoecimento mental, a depressão, a ansiedade, como sintomas da falência desse mundo normal, não como uma doença em si, fruto de uma fragilidade genética ou de uma alteração bioquímica cerebral, cujo remédio é a solução.

(En)Cena –  Como você percebe a saúde mental hoje no Brasil?

Márcio – Essa pergunta é difícil de responder… O Brasil é muito grande, têm várias características, eu vejo lugares diferentes produzindo coisas diferentes. Não é destituindo o que se tem que você vai construindo uma política boa de saúde mental, é utilizando o que se tem. Na saúde mental o centro da discussão é a construção dos CAPS. Eu, particularmente, penso que a gente não precisa construir CAPS para transformar a realidade, a gente precisa é transformar a sociedade. O CAPS é um instrumento, mas esse papel de responsabilidade com o transtorno mental não pode ser só a saúde, por exemplo: “você vai fazer internação compulsória do cara, você vai obrigar o cara a se tratar, você vai colocar na saúde a responsabilidade sobre o uso de drogas?” É a sociedade que é responsável. Então, como incluir o profissional de saúde nessa discussão? Temos que ter uma política que integre vários elementos na atividade da saúde. Em primeiro lugar, deve-se investir na educação para a população. Sem educação eu não vejo como evoluir esse processo, e educação incluindo a arte do local. Além de estimular a pesquisa, não só na área tecnológica, mas na área humana.

(En)Cena – Márcio, para encerrar, na sua concepção, como superar estigmatização que  se fez da imagem do louco?

Márcio – Eu acho que a gente tem que receber melhor o estranho. Estamos olhando para o nosso próprio umbigo e não estamos valorizando os espaços na rua, por exemplo. Tratar uma pessoa que você não conhece, com mais respeito, com mais carinho, é importante. Continua tratando bem do teu amigo, teu filho, proximidade, mas recebe bem também o estrangeiro, cuida de quem você não conhece. O estranho, a pessoa que está na rua, não é seu inimigo. Estamos recebendo uma quantidade de informações, e buscando nos defender demais do outro. A gente está se perdendo nisso, a maior violência não está na rua, está dentro de casa, é aquela que fazemos contra nós mesmos e contra as pessoas com quem vivemos.


Transcrição: Ruam Pedro Francisco de Assis Pimentel

Edição: Hudson Eygo

Compartilhe este conteúdo: