Frozen – Uma Aventura Congelante

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Com duas indicações ao Oscar:

Melhor Animação e Melhor Canção Original por Let It Go

 

É bem verdade que faz algum tempo que as animações deixaram de conquistar somente o público infantil. A cada ano que passa mais filmes desse gênero convidam até mesmo os adultos a sentarem em frente à TV e se deliciar com as mais diversificadas histórias. Este é o caso de Frozen – Uma aventura congelante. A 53ª animação produzida pelos estúdios Walt Disney, inspirada levemente no conto de fadas A Rainha da Neve (1845), de Hans Christian Andersen. Frozen foge totalmente dos clichês de príncipes e princesas, trazendo uma aventura que nos faz sorrir e chorar, e sorrir novamente.

Frozen conta a história das princesas Elsa e Anna, que são separadas por um terrível dom. Elsa, a princesa mais velha, é detentora da capacidade mágica de produzir neve e transformar tudo aquilo que toca em gelo. No entanto, de uma hora para outra, por ser ainda criança, não tem o menor domínio sobre seu dom e, infelizmente, provoca um acidente levando quase a morte da irmã caçula, Anna. É então que Elsa é obrigada a manter-se reclusa.

 

 

As irmãs sempre foram criadas unidas, inseparáveis. Os poderes de Elsa não eram segredo para a família, Anna sempre pedia exaustivamente para que a irmã “fizesse acontecer”. Após o acidente o Rei apenas ordenou “Esconda, não sinta, não deixe que eles saibam” e colocando sobre as mãos da pequena Elsa luvas para protegê-la de si mesma.

 

 

Conforme a análise comportamental, a aprendizagem, inicialmente, se dá por meio da tentativa e erro, ou seja, aprendemos a executar aquelas ações que nos recompensam ou nos ajudam a evitar o sofrimento. No caso de Elsa, para evitar “seu” sofrimento era necessário esconder-se ao máximo, excluindo-se do convívio social, e até mesmo familiar.

Skinner apontou que os eventos que aumentam a probabilidade de ocorrência de um determinado comportamento são denominados Reforços. Um reforço pode ser uma recompensa palpável, um elogio, uma atenção ou uma atividade gratificante (Myers, 1999). A teoria do reforço, então, preceitua que as ações com consequências satisfatórias sobre o indivíduo fazem com que as práticas tendem a ser repetidas no futuro, enquanto o comportamento punido tende a ser evitado.

 

 

Mas quais os tipos de Reforço que Elsa recebeu? Elsa não recebeu nenhuma recompensa positiva por sua reclusão, por manter-se afastada, ao contrário, sentia-se cada vez mais triste, depressiva e sem nenhuma expectativa de vida. Manter-se afastada significava a segurança da sua família e do reino, mas não a sua segurança, não o seu bem estar. Neste caso temos o conceito de Punição, também atribuído por Skinner. Por ter sido inconsequente e colocado a vida de Anna em risco, como castigo e prevenção, os pais da criança resolveram mantê-la presa e distante de quem quer que fosse.

 

 

A punição suprime o comportamento indesejado, mas não orienta o indivíduo para um comportamento mais desejável. A punição também pode acarretar diversos problemas, pois, segundo Skinner (1983), a estimulação aversiva acarreta respostas do sistema nervoso, entendidas como: ansiedade, depressão, baixa autoestima. Além, é claro, de que o comportamento não é esquecido, apenas suprimido. Pode ser que, após a estimulação aversiva ter sido eliminada, o comportamento pode voltar a ocorrer.

 

 

“Esconda, não sinta, não deixe que eles saibam” era a frase proferida constantemente por Elsa. Ninguém poderia imaginar o que se passava dentro das paredes do castelo, em especial no quarto da filha mais velha do Rei. As pessoas sequer imaginavam quantas vezes Elsa teve que repetir essa frase para si mesma, até o ponto de acreditar que era uma aberração e um perigo eminente. Elsa se transformou na solidão em pessoa, não havia amigos para escutá-la, não havia solução para seus problemas, ao contrário, a jovem princesa precisava dia após dia ter um controle sobre seu dom, que estava cada vez mais forte.

O Rei havia dito que o melhor era manter tudo em segredo, e Elsa concordou. Mas, como dito anteriormente, um comportamento punido não é esquecido e pode voltar quando uma estimulação aversiva é eliminada. E foi o que ocorreu.

 

 

Anna não recordava do acidente e por isso não entendia o porquê da irmã nunca sair do quarto. Nem mesmo após a morte dos seus pais em um acidente marítimo. Inúmeras e incansáveis vezes Anna tentou fazer com que a irmã saísse do quarto, respirasse ao ar livre, brincasse com ela novamente. Mas sem sucesso.

 – Você quer brincar na neve? Um boneco pra fazer. Você podia me ouvir, a portar abrir, eu quero só te ver. Nós erámos amigas de coração, mas isso acabou também. – Vai embora, Anna.

– Você quer brincar na neve? De alguma coisa que eu não sei? Já faz tempo que não vejo mais ninguém, até com os quadros da parede já falei. É meio solitário, tão vazio assim, só vendo o relógio andar.

– Elsa, por favor me escuta. Todos perguntam sem parar e me encorajam para te dizer, mas espero por você. Me deixa entrar? Só temos uma a outra, o que vamos fazer? Temos que decidir. Você quer brincar na neve?

(Trechos da música Você Quer Brincar na Neve?)

 

É no dia em que Elsa se torna a rainha que as coisas tomam rumo diferentes. Todo o segredo é revelado por acidente e o reino de Arendelle é transformado em gelo. Com medo da reação da população a jovem rainha foge para as montanhas e Anna, que se sente culpada por tudo, sai em busca do paradeiro da irmã, ao lado do vendedor de gelos, Kristoff, sua rena Sven e do boneco de neve, Olaf – responsável pelos momentos mais cativantes, engraçados e apaixonantes da trama -.

 

 

Tem-se, então, uma das cenas mais belas do filme. Elsa finalmente se sente livre e com total controle sobre o seu dom. Ao assumir sua personalidade, aquela que sempre teve que manter escondida entre as paredes do seu quarto, Elsa entoa a canção Let it Go (Deixe fluir), enquanto constrói uma imensa fortaleza de gelo. Elsa está em seu próprio castelo, sendo ela mesma, mas, sozinha.

(…) um reino de isolamento, e parecia que eu era a rainha. (…) Não posso evitar, o céu sabe que tentei. Não os deixe entrar, não os deixe ver. Seja a boa garota que você sempre teve que ser.  Oculte, não sinta, não deixe que saibam. Mas agora que sabem, deixe fluir. Não pode segurar mais. (…) Eu não ligo para o que eles vão dizer. (…) O frio nunca me incomodou de qualquer modo. É incrível como algumas distâncias fazem tudo parecer menor. E os medos que uma vez me controlaram não podem mais me alcançar. É tempo de ver o que posso fazer. Para testar os limites e progredir. Sem certo, sem errado, sem regras para mim. Estou livre. (…) Eu nunca vou voltar, o passado está no passado. (…) A garota perfeita se foi, aqui eu fico na luz do dia.

(Trechos de Deixe Fluir)

 

 

Mas será que Elsa está realmente livre? Ou continua presa na condição de “perigo ao mundo” que os pais dela sempre destacaram? Por que ao invés de punir e excluir Elsa do mundo, o Rei não foi atrás de soluções para que a criança aprendesse a controlar seus poderes? Por que não treiná-la? Ensinar a como conviver com suas condições especiais?

 

 

Estas são apenas algumas das reflexões que Frozen desperta no público. Ao longo do drama diversas mensagens são passadas ao telespectador de forma impactante e realista. Este é mais um conto que promove a evolução dos contos de fada. Enaltecem o Amor verdadeiro e duradouro, os laços familiares, a importância da confiança e da amizade. Além de toda as relações construídas através da convivência.

 

 

Para encerrar com um toque de magia, temos a frase de Grande Pabbie quando diz que: Só um ato de amor verdadeiro pode descongelar um coração congelado. Fazendo com o que filme mantenha o que trouxe até as cenas finais, a certeza de algo inusitado e a quebra de qualquer clichê presente nas histórias de amor verdadeiro.

 

 

REFERÊNCIAS:

MYERS, D. Introdução à Psicologia Geral. Rio de Janeiro: LCT Livror Técnicos Cientificos Editora, 1999.

SKINNER, B.F. O mito da liberdade. São Paulo: Summus Editorial, 1983.

LIMA, A. A. T. Teorias da personalidade. Série Concursos Públicos: Resumos de Psicologia. Vol 1. 220p.

 

FICHA TÉCNICA:

FROZEN – UMA AVENTURA CONGELANTE

Produção: Walt Disney Animation Studios
Direção: Chris Buck, Jennifer Lee
Gênero: Animação, Comédia, Imaginação
Ano: 2013

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Inside Llewyn Davis: a propósito de um Ulisses sem Odisséia

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Com duas indicações ao Oscar:

Melhor Fotografia e Melhor Mixagem de Som

Na dificuldade de pronunciar o nome Llewyn a opção mercadológica pela “Balada de um homem comum”, mais fácil e digerível na leitura, não é uma balada. O  Na América hispânica traduziram também por Balada de um hombre común, os espanhóis foram mais felizes com A propósito de Llewyn Davis.

O filme não é uma balada, como já dito, porque foge da candura lírico-dramática e aponta para a história de um alguém, uma pessoa, que tenta estar na sua pele, inside Him, e o mais tocante da narrativa que em tom de comédia dramática, de erros e acertos de uma personagem ordinária da vida cotidiana, descobrimos muitas coisas de nós mesmos. Inside Llewyn Davis é um pouco a propósito de nós mesmos .

Filmes dos irmãos Coen – Joel e Ethan – sempre são bem vindos. Embora tenha sido tornado em muito os “queridos” dos críticos cabeças e “roubadores” de prêmios (de direção, elenco, roteiro, fotografia) em vários festivais, isso não atrapalha, mas filme incensado demais tende a decepcionar (a exemplo de “Les Míséráblés”, acentuo tudo como uma vingança contra o musical…). Felizmente, A propósito de Llewyn Davis não decepciona.

Inside Llewyn Davistem estilo de filme vocacionado a ser clássico, porque ele narra a odisseia de um cara que não tem lugar para ir. Llewyn é anti-Ulisses da década de 60, um antecessor sério e aprofundado dos “mimimis” pós-modernos de personagens que interpretam celebridades do cinema. Essa anti-Ulisses traz como pano de fundo ou de frente uma New York (desculpe pelo deslumbramento de agência de turismo: Nova Iorque) castigada por um inverno frio e feio de 1961 e a trilha sonora folk.

 

Vou cutucar alguns puristas ou defensores da sertaneja dita “raiz” (não sei de que, mas…) e das duplas sertanejas com suas calças apertadas e trinados gritantes ou daqueles defensores incólumes dos samba (de quintal, de roda, de laje, de boteco, de palco): assumo aqui o folk como o termo é assumido na Inglaterra e nos Estados Unidos, enquanto um gênero influenciado por alguns elementos pinçados do folclore como ritmos, combinações de instrumentos musicais, maneira de trabalhar a percussão e jeito brejeito-provocador-intimista dos (as) cantores (as). Os anos 60 com Bob Dylan, Joan Baez, Phil Ochs… muita gente com vozes sem primor de afinação ou refinamento das “baladonas” engajava-se sob várias bandeiras contra o estabelecido pelo imperialismo. A música folk também amoleceu com o tempo e ficou um pouco “água com açúcar”, mais isso é briga para outro texto.

New York foi celeiro dessa “tchurma” de autores, músicos, artistas plásticos, dramaturgos, escritores e loucos de plantão. As cidades internacionais como New York, Tokyo, Paris, Roma, London e até mesmo, Rio de Janeiro (antes da poderosa platinada e dos teatros por metro quadrado nos shoppings centers) trazem essa atmosfera de criatividade. A cidade inspira… algo que falta em muito por aqui, mas daqui umas décadas pode ser que algo exploda na criatividade.

As cidades são celeiros, mas de portas fechadas. Poucos são os que detêm as chaves para adentrar em seus espaços de poder, notoriedade, respeitabilidade.  A propósito de Llewyn Davis conta parte dessa narrativa. Como um Ulisses em busca de superar perigos e desesperadamente tentando sobreviver aos perigos da vida, Llewyn se encontra numa anti-odisseia. Ulisses chegou a bom termo, mas Llewyn se assemelha a um “Zé Ninguém” com um diploma (no caso seu violão) debaixo do braço ou nas costas que aporta numa cidade grande atrás da oportunidade de ser alguém na vida.

Durante o filme, recordei-me de algumas (des) venturas vividas como as de muitos colegas, também ex-alunos já graduados, que buscavam espaços de trabalho e respeitabilidade. As opções que surgem por vezes vão contra tudo aquilo que se acredita e se é obrigado segui-las para continuar vivo. Além disso, nesse processo de viagem a partir de si mesmo se deve aprender a conviver e gerenciar os fantasmas interiores.

As pessoas que passam pelos dias de New York de Llewyn são parecidas com algumas que passam em nossas vidas: os supostos benfeitores que não passam de lobistas em busca de benesses futuras a recolher, pseudo amigos que ao desprezarmos evidenciam tudo aquilo que temos de parecido com eles e refutamos em todos os momentos, os caras sinceros e originais que nunca chegaremos nem mesmo próximo à sombra deles, os “manes” que possuem tudo que invejamos e no fundo são grandes negações da vida de tão equilibrados e corretos, os intectuais “embacacados” que assim o são por condições econômicas de berço e por pertencerem às elites parcerias de todas as ditaduras. Adorei a personagem Turner porque como uma sereia de cauda quebrada, em um canto desafinado, ainda teima nos ouvidos do anti-Ulisses a desfiar uma cantiga cuja decadência é evidente, todavia mesmo na merda se recusa a assumir que tudo fede.

Llewyn é um herói perdido, alguém que quer carinho, dormir de conchinha, ter voz e ser escutado em meio  a um sistema-máquina que vai lhe sugar todas as energias, depois descartá-lo. E Llewyn insiste, mesmo frente ao risco da obsolescência, na busca de oportunidades. Esse pobretão se vira, um sem-teto que vive com a ajuda-caridade dos amigos. Impressionante é a fotografia do filme que nos transporta para as ruas frias do Greenwich Village e mostra o homeless Llewyin vagando como um espírito no umbral, mal agasalhado, sem dinheiro e o pior de tudo, falta de rumo.

 

 

A balada é uma anti-odisséia, uma epopeia que os irmãos Cohen sabem contar muito bem, porque a eles caem muito bem essas narrativas sobre os fracassos, que no fundo é um pouco, também, de nós. A história de Dave Von Ronk, um músico folk, estimulou os Cohen a produzir o filme, mas criaram suas opções. Llewyn não quer estar ali, mas nem sabe por onde começar para ter outros planos de vida, o cara parou de sonhar. Ao tocar para um bar vazio de pessoas  em Chicago evidencia o fundo do poço.

Trilha sonora é show a parte: a variedade das canções folks e de obras de Mozart, Beethoven, Chopin e outros substituem diálogos, são elas as falas mais superiores. Quem puder que se deleite. Dos irmãos Cohen, sugiro de 2009  “Um homem sério” (A Serious Man), o pesadão e concessão alguma  de 2007 “ Onde os fracos não têm vez” tradução estúpida para No country for Old Men e de 2001, “ O homem que não lá”(The Man Who Wasn’t There)… esse aqui uma aula de fotografia no cinema.

Inside Llewyn Davisnão vai arrancar a gargalhada fácil de alguma sequela de franquia e nem o choro melodramático de historietas com final edificante e moralista. Os Cohen brincam com a desgraça, gente melancólica, tudo down. Eles mostram uma realidade com cores frias e impessoais, somente um gato callejero corta o filme como um fio condutor com sua cor alaranjada e, em algumas cenars, a roupa que uma das personagem usa num palco. Fora isso, é mais cinzento que La Ricoleta em dia de chuva.

 

 

O filme é história contada. Llewyn é a história de alguém na “merda” sem ter ponto de chegada ou de retorno. Ai reside um dos grandes trunfos do filme, ele mostra como somos nós também presentes debaixo da pele de Davi, por isso que concordo com os espanhóis que traduziram ao pé da letra, A propósito de Llweyn Davis… sobre ele e nós. Às vezes, nosso barco parece que fica nessa deriva também, como na anti-odisséia de Davis.

 

 

Oscar para Llweyn Davis, nem pensar, aquilo que chamam de Academia está longe de absorver o cinismo inteligente do filme.

FICHA TÉCNICA:

INSIDE LLEWYN DAVIS

Gênero:Drama
Direção: Ethan Coen, Joel Coen
Elenco: Adam Driver, Carey Mulligan, Ethan Phillips, Jeanine Serralles
Duração: 105 min.
Ano: 2013
País: Estados Unidos
Classificação: 12 anos

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Da pompa à decadência, “Blue Jasmine” mostra a dificuldade de se encarar as mudanças

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Com duas indicações ao Oscar:

Melhor Atriz (Cate Blanchett) e Melhor Atriz Coadjuvante (Sally Hawkins)

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Depois de passar um bom período ambientando os seus filmes no Velho Continente, Wood Allen retoma a paisagem norte-americana com o provocante “Blue Jasmine”, o 49º longa-metragem de sua autoria, e que conta com uma atuação extraordinária da atriz Cate Blanchett (indicada ao Oscar de Melhor Atriz). A comédia dramática mostra uma dinâmica de vida que não observa a chamada complementaridade das oposições, ao estilo daoísta (o famoso “sobe e desce da vida”); assim, a “encruzilhada” em que cada personagem se mete – notadamente Jasmine – delineia, em alguma medida, a dificuldade de experimentar as mudanças que ocorrem no cotidiano. No filme, Allen destaca essas transformações ao retratar a crise estadunidense de 2008.

 

 

Blue Jasmine mostra o reencontro de duas irmãs separadas tanto pela distância continental entre Nova Yorque (costa leste) e São Francisco (Costa Oeste), quanto pelo (abissal) estilo de vida que levam. Jasmine (Cate Blanchett) é a personificação do americano “ressacado” com o estouro da bolha imobiliária, alguém que experimentou todas as benesses que o acúmulo de capital proporciona, e que mesmo na derrota ainda guarda alguma elegância. A irmã, Ginger (Sally Hawkins), representa a expressão proletária, “sem grandes ambições”, cujas preocupações orbitam em torno do namorado ciumento. Os conflitos decorrentes deste encontro mostram uma Jasmine que insiste em negar a própria decadência, e que busca um futuro calcado nas lembranças do passado.

 

 

Jasmine foi casada com o investidor Hal (Alec Baldwin), e também a última a perceber [se é que queria perceber] as gritantes mudanças que ocorreram no seu entorno; nos “tempos dourados”, o esposo lhe proporcionou joias e festas caras e o exagero nas compras, sem jamais contar com a possibilidade de que em algum momento tal circunstância se exauriria. Mas este dia chegou, e o ápice da derrocada vem com a prisão de Hal, acusado de fraude. Diante da trágica conjuntura, Jasmine é obrigada a iniciar um rápido e doloroso processo de mudança de vida, mas a resistência à alteridade realça uma personagem com traços neuróticos, que vai da simpatia e bom-tom ao desespero e desatino, o que agiganta ainda mais a atuação de Blanchett. Em certa medida, Allen também demonstra a situação de confusão de parte de uma sociedade que teve tudo, e que de repente se vê absolutamente tolhida.

 

 

Jasmine carrega consigo uma tristeza e uma vulnerabilidade que a desnuda e desnorteia. Há um esforço tremendo para seguir em frente, mas a aversão “ao rebaixamento” faz com que ela sucumba às próprias expectativas (frustradas); o desprezo ao outro (notadamente em relação à irmã e seu estilo) neutraliza qualquer possibilidade de dinamizar a “nova” vida. Incapaz de se reconhecer na diferença, Jasmine perde as bases da própria existência e mergulha numa tensão e conflito que prendem completamente o expectador.

Blue Jasmine mostra que, assim como os humores, atualmente a vida pode apresentar diferentes nuances em curtíssimos espaços de tempo. Estar atento às [inevitáveis] mudanças é uma forma e tanto de reconhecer que, no fundo, como bem pontuou Heráclito de Éfeso 2.540 anos atrás, “não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio”. Resistir às mudanças, portanto, é abrir caminho para a ampliação do sofrimento e do deslocamento. Blue Jasmine retrata bem esta dinâmica.

 

FICHA TÉCNICA:

BLUE JASMINE

Roteiro e Direção: Woody Allen
Elenco: Cate Blanchett, Joy Carlin, Richard Conti, Glen Caspillo, Alec Baldwin, Charlie Tahan
Duração: 1h38min
País: EUA
Ano: 2013

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Nebraska: delusão monocromática em uma América sem maquiagem

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Com seis indicações ao Oscar:

Melhor Filme – Melhor Ator (Bruce Dern) – Melhor Atriz Coadjuvante (June Squibb) – Melhor Diretor (Alexander Payne) – Roteiro original – Melhor Fotografia

 

Não é por menos que o diretor Alexander Payne é alvo de muitos elogios pelo seu recente “Nebraska” (2013). Com seis indicações ao Oscar (incluindo Melhor Filme, Melhor Roteiro Original e Melhor Diretor), o longa de 115 minutos mostra com sensibilidade (a fotografia é marcante) a estória de Woody Grant (Bruce Dern), um idoso que acredita ter ganho 1 milhão de dólares “após receber pelo correio uma propaganda”, e que decide ir até a cidade de Lincoln, em Nebraska, onde a suposta premiação será paga. Diante da teimosia do pai, seu filho David (Will Forte) resolve levá-lo de carro. Com os contratempos que ocorrem no decorrer da viagem, David decide mudar um pouco os planos, “passando o fim de semana na casa de um de seus tios antes de partir para Lincoln”. Woody conta a todos sobre a possibilidade de se tornar um milionário, “despertando a cobiça não só da família como também de parte dos habitantes da pequena cidade”.

Assim como em “Os Descendentes” (2011), também sob sua direção, Payne mostra em “Nebraska” uma América que normalmente não é retratada no cinema; ele apresenta um país bem diferente das batidas e mundialmente conhecidas cenas urbanas nova-iorquinas, sempre imbuídas de cosmopolitismo e heterogeneidade. Em “Nebraska”, longa em monocromia, os tons de cinza retratam bem os personagens marcados pela égide do passado, ancorados num modo de vida metaforicamente “congelante”, cujo panorama instiga o expectador, o tempo inteiro, a se questionar se está nos tempos atuais, ou se recuou 40 anos atrás, quando da infância de Woody Grant.

Há, no filme, um mix que remete a uma construção onírica, onde quem o assiste embarca num longo percurso. Por vezes, pensa-se estar num sonho qualquer, até hilário; noutras circunstâncias, trata-se de um verdadeiro pesadelo. No fundo, a angústia vem de perceber que, para parte dos americanos excepcionalmente retratados pelos atores/atrizes, o que existe em suas vidas é apenas o passado. O presente é monótono e “mecânico”, portanto frio, indiferente, num cenário em que o futuro é diligentemente ofuscado (com exceção do objeto de desejo de Grant, o que o faz “manter-se em pé”, andando – portanto, ainda vivendo).

 

 

Na persistência de padrões comportamentais “cristalizados”, enrijecidos, se sobressai a amizade do filho e seu pai, num reencontro que é costurado lentamente e que, passo a passo, vai ganhando contornos emocionantes. Há uma trajetória que parte de um mero “atendimento ao insano desejo de um idoso”, que passa por dissabores familiares para, de forma tocante, abarcar um passado difícil cujas marcas estão espalhadas em cada cena do filme. E na suposta senilidade de Woody Grant há, talvez, uma força motriz para um acerto de contas com a vida.

O filme mostra a “rudeza” de uma América melancólica e excessivamente deludida1, onde as parcas palavras são frequentemente mal entendidas, quando não totalmente desfiguradas, o que acaba por gerar uma série de contratempos, desconfianças e intrigas. De quebra, Payne coloca uma reflexão sobre a velhice diante de um país estagnado economicamente, cujos cenários possíveis acabam por englobar a solidão, a incompreensão e o desatino.

 

 

“Nebraska” também se lança num foco profundo, “apropriado ao filme de estrada”, que trás à tona questões existencialistas. As pequenas cidades de ruas largas – e sem movimento – tiram dos personagens a possibilidade de impingir liberdade às próprias vidas. Por mais que Grant tente percorrer sozinho a estrada, sempre é impelido a “voltar” às amarras de uma existência que, para ele, já não tem o menor sentido. O alvedrio, portanto, não passaria de uma meta inatingível; e o impulso pelo movimento, que Woody Grant experimenta desde as primeiras cenas – e que acaba por englobar todos os integrantes da família – é apenas uma tentativa de procurar uma rusga de incentivo, de sentido para uma vida que se aproxima do fim.

 

 

Neste cenário deprimente (que não se furta, no entanto, a reservar nuances de sátira), a monocromia também poderia ser vista, finalmente, como a expressão de uma sociedade míope, que falsamente vislumbra a liberdade, mas que constantemente se depara com a aridez da realidade (no fundo, será que querem se livrar do passado?). O filme mostra a dor de uma geração acostumada com as ilusões e que, enfim, se depara diante de uma América sem maquiagens. Isso pode ocorrer na terceira idade, como no caso de Woody Grant, ou ainda na juventude, a exemplo de seus patéticos sobrinhos. Ao cabo, difícil não se lembrar de uma assertiva da escritora Clarice Lispector, para quem “cortar os próprios defeitos pode ser perigoso”, já que “nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

 

 

Nota:

1Delusão é um estado ilusório, de engano. Na abordagem médica, trata-se de um delírio. Do latimdelusione. Fonte: Dicionário Michaels – disponível em:<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=delus%E3o >. Acesso em: 24/02/2014.

REFERÊNCIAS:

Nebraska (2013) – Disponível em: <http://filmow.com/nebraska-t63264/ficha-tecnica/>. Acesso em: 24/02/2014.

 

FICHA TÉCNICA:


Ano produção: 2013
Diretor: Alexander Payne
Elenco: Bruce Dern Bruce Dern, Will Forte Will Forte, Bob Odenkirk, June Squibb, Mary Louise
Duração: 15 minutos
Gênero: Aventura – Drama
País: Estados Unidos da América

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Philomena: a relação paradoxal da mulher na religião

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Com quatro indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Melhor Atriz (Judi Dench), Melhor Roteiro, Melhor Trilha Sonora

 

Baseado no comentado livro The Lost Child of Philomena Lee (O filho perdido de Philomena Lee), e com a atriz Judi Dench como protagonista (ela é indicada ao Oscar de Melhor Atriz deste ano), Philomena é talvez um dos filmes que melhor retrata – ao lado de The Magdalene Sisters, de 2002 – a chaga deixada pela Igreja Católica na Irlanda dos dois últimos séculos. Naquele período, as mulheres de “atitudes suspeitas” (mães solteiras, mulheres vítimas de estupro etc.) ou que tenham assumidamente praticado algum ato que ferisse os preceitos morais vigentes (como no caso de Philomena, que engravidou sem ter se casado) eram deixadas em conventos femininos, as chamadas “casas de mulheres perdidas”, para que pudessem pagar (literalmente) pelos seus pecados.

As mulheres não apenas eram obrigadas a oferecer mão de obra sem remuneração (o que atualmente configura-se como trabalho em condição análoga à de escravo), mas se porventura sobrevivessem ao parto (que era feito em condições desumanas), eram obrigadas a “cederem” seus filhos para a adoção. Estas instituições religiosas eram comandadas por rígidas freiras, que impunham às mulheres um exaustivo ritmo de serviço nas lavanderias e salas de costura; durante todo o século XX houve um enrijecimento dos métodos de “purificação das pecadoras”1, que também passaram a ser submetidas a longos períodos de silêncio e oração.

Além da indicação para o Oscar de Melhor Atriz, o longa concorre a outras três estatuetas: Melhor Filme, Melhor Roteiro e Melhor Trilha Sonora; trata-se, portanto, de uma obra que mostra de forma comovente como Philomena Lee lidou com as suas agressoras depois de sua saída do convento, ora nutrindo um forte sentimento de autopunição (afinal, presumia, ela merecia ser “castigada” por tamanho “erro”), ora disposta a encontrar o filho que fora adotado 50 anos atrás por uma família católica dos EUA.

Há no filme um triste e ao mesmo tempo belo enredo em que é mostrado a que ponto chega uma mãe desejosa de rever seu filho. Na busca, Philomena se preocupava preponderantemente com um aspecto: será que o filho Anthony especulava sobre sua mãe ou sobre seu país de origem, a Irlanda? Talvez ao saber que a resposta fosse um sim, Lee pudesse presumir que o filho não a odiaria “por tê-lo abandonado” (mesmo que isso tenha ocorrido à revelia de Lee).

 

 

Mas Philomena Lee não poderia ter chegado tão longe em busca de Anthony se não tivesse contado com a ajuda do jornalista irlandês Martin Sixsmith (Steve Coogan), de temperamento forte, ateu, e que mantinha um nítido desprezo pela religião institucionalizada. Os dois perfizeram um trajeto que prende o expectador, numa história que emociona a cada descoberta sobre o paradeiro do filho.

A viagem aos EUA não só faz Philomena descobrir coisas incríveis sobre Anthony, como também demonstra uma provável “natureza cíclica das circunstâncias” (o espectador irá ficar surpreso com o desfecho), além de resultar em uma relação afetiva entre a já idosa Lee e o difícil Sixsmith; em vários momentos da história ambos abrem concessões para se preservarem como amigos.

Outro aspecto interessante, e não menos importante, é a relação paradoxal que Philomena mantém com a religião e mais especificamente com as suas agressoras, as freiras das “Casas de Madalena”, como alguns conventos também eram conhecidos, em decorrência da antiga fama que se atribuía à Maria Madalena, que teria passado de prostituta à fiel seguidora de Cristo (hoje esta estória acerca de Madalena é contestada, e acredita-se que lhe reservaram essa pecha de prostituta por temerem seu poder sobre os grupos religiosos surgidos após a morte de Jesus2).

Philomena parece encarnar como ninguém a figura da mulher3 que apesar de relegada a segundo plano em várias instituições religiosas (notadamente no Catolicismo, onde não pode exercer o sacerdócio), ainda assim corresponde [as mulheres] a grande contingente nestas instituições, e defende seus preceitos, mesmo que estes limitem os direitos inerentes ao gênero (como o domínio e propriedade do próprio corpo, por exemplo).

 

 

Mas há em Philomena Lee, também, uma constante busca pelo exercício do perdão, algo que do contrário, como ela defende no filme, a tornaria amarga, raivosa (o que definitivamente ela não queria). Lee não tem medo de revisitar o passado e acredita, no fundo, que o perdão é a escolha mais justa a ser feita, embora tenha sido vítima de tantas injustiças.

Philomena Lee aparenta ser frágil, mas no fundo é uma guerreira que não se presta à “vitimização”. Guardou um segredo o quanto pôde, revelou-lhe no momento que julgou oportuno, experimentou os dissabores e a ansiedade de uma busca fantástica para, no fim, ser redimida pela ausência de ressentimento (é tanto que, recentemente, a verdadeira Lee foi recebida pelo Papa Francisco). Esta é uma saga e tanto, merecidamente adaptada para o cinema. Em resumo, a trajetória de Philomena lembra a máxima do escritor francês Victor Hugo, de que “vós, que sofreis, porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele.”

 

Um asilo para “mulheres perdidas” na Irlanda, no início do século 20

 

Notas:

1 – Estreia de Philomena abre o baú do passado sombrio da Igreja Irlandesa – Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2014/02/estreia-philomena-abre-o-bau-do-passado-sombrio-da-igreja-irlandesa.html>. Acesso em: 19/02/2014.

2 – Maria de Magdala, a grande ”Apóstola dos Apóstolos”. Entrevista especial com Chris Schenk – Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/505130-mariademagdalagrandeapostoladosapostolosentrevistaespecialcomchrisschenk >. Acesso em: 19/02/2014.

3 – Nawal el Saadawi: “La mujer no puede liberarse bajo ninguna religión” – Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/2011/03/07/actualidad/1299452411_850215.html – Acessado em 20/02/2014>.

REFERÊNCIAS: 

Philomena: sinopse – Disponível em:< http://www.adorocinema.com/filmes/filme-213656/ >. Acesso em: 20/02/2014.

Embora mais oprimida por religião, mulher é mais devota. Disponível em: <http://www.paulopes.com.br/2014/01/embora-mais-oprimida-pela-religiao-mulher-eh-mais-devota.html#.UwVpjoVFCpM>. Acessado em: 20/02/2014.

Kessler, Adriana Silveira; Alves, Cristiano Evaristo da Rosa. As mulheres nas religiões: cultura, identidade e relevância social – Disponível em; <http://www.academia.edu/3723260/As_Mulheres_nas_religioes_cultura_identidade_e_relevancia_social >. Acesso em: 20/02/2014.

FICHA TÉCNICA:

PHILOMENA

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Diretor: Stephen Frears
Elenco: Judi Dench, Steve Coogan, Sophie Kennedy Clark, Anna Maxwell Martin, Peter Hermann.
Duração: 98 min.
Ano: 2013
País: Reino Unido, França, EUA
Gênero: Drama
Classificação: 10 anos

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12 Anos de Escravidão: liberdade ainda que tardia

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Com nove indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Diretor (Steve McQueen), Ator (Chiwetel Ejiofor), Ator Coadjuvante (Michael Fassbender), Atriz Coadjuvante (Lupita Nyong’o), Roteiro Adaptado (John Ridley), Figurino, Montagem, Design de Produção.

Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
(Mateus 22:39, Bíblia)

“12 anos de escravidão” foi baseado na autobiografia de Solomon Northup (interpretado por Chiwetel Ejiofor), publicada em 1853. Solomon era um cidadão de Nova Iorque que nasceu livre e que vivia em uma situação relativamente confortável com sua família até cair em um embuste em 1841 e ser sequestrado em Washington (capital dos EUA). Depois disso, foi vendido como escravo em Louisiana, local aonde a escravidão ainda era permitida. A história relatada, então, acompanha alguns dos momentos de sua vida nos 12 anos que “sobreviveu” sendo propriedade de fazendeiros no Sul do país.

 

 

Há alguns fatos históricos que são complexos demais para serem assimilados sem um dado contexto, especialmente porque a linha temporal contribui no estabelecimento de uma estranha distância emocional, fazendo com que aquilo que se vivencia no cinema seja esquecido ou atenuado tão logo se saia da sala de projeção, já que parece se tratar de fatos dissociados da nossa época ou da nossa realidade. Assim o que foi visto passa a ter uma conexão fantasiosa, como se fosse mais uma história imaginada por alguém, sem qualquer vínculo com a realidade.

Acredito que o grande mérito desse filme, sob a direção exemplar do inglês Steve McQueen, é nos aproximar dos personagens mostrados na tela e nos fazer pensar sobre as consequências de determinados fatos históricos. Isso porque cada época carrega consigo, cultural e historicamente, uma série de variáveis que afeta de forma profunda sua dinâmica atual, logo refletir sobre isso parece ser extremamente relevante quando tentamos entender a dinâmica de um povo ou de uma comunidade.

 

 

Em imagens que mostram a imensidão do mar em um duro contraste com as amarras que encarceram os homens nos navios, vimos através do olhar de Solomon a diferença perturbadora entre viver como um ser humano e ser tratado como uma coisa. E enquanto alguns dos homens e mulheres que ali estavam nunca tinham sido livres, logo a liberdade era apenas um conceito abstrato e distante, para ele era um absurdo imaginar que seria propriedade de alguém. Ao mesmo tempo em que ele se achava diferente daquelas pessoas por ser livre, sua expressão mostrava um espanto aterrador ao entender que essa pretensa liberdade vivenciada por ele até então era fantasiosa enquanto outros homens permanecessem escravos.

 

 

Em Louisiana, Solomon foi vendido, juntamente com outra escrava, a um fazendeiro local, William Ford (Benedict Cumberbatch).  Ford, no momento da compra, ficou sensibilizado ao separar mãe e filhos, mas ao pensar em sua propriedade e em suas dívidas, mesmo aparentemente compadecido, tomou a decisão mais lógica (para ele): levou Solomon e a jovem mãe (mesmo que esta gritasse em desespero pelos filhos).

 

 

Lá, em sua fazenda, Ford reunia negros e brancos para que estes o acompanhassem na pregação da palavra de Deus. E enquanto a mãe escrava chorava a falta de seus filhos, a esposa de Ford dizia: “logo ela esquece”, já que memória, dor e sentimentos são prerrogativas dos seres humanos, não de escravos. Ou seja, os escravos podiam sentar-se nos bancos da igreja improvisada aos domingos com seus proprietários para ouvir as palavras da Bíblia, mas não podiam ficar com seus filhos, ou ir e vir de acordo com sua vontade.

É essa falta de complacência na apresentação dos personagens que dá a esse filme um tom mais aprofundado, pois o fazendeiro bonzinho, que presenteia Solomon com um violino, é também um fraco, que desaparece com a mãe chorosa para que sua esposa não entre em depressão (já que o som do choro da “escrava” a perturba), e que no primeiro sinal de problema, vende Solomon ao cruel Edviw Epps (numa espetacular atuação de Michael Fassbender), mesmo conhecendo a natureza sensível do “seu escravo” e o poder de destruição física e psicológica do seu amigo fazendeiro.

 

 

É na fazenda de Edviw Epps que Solomon conhece Patsey (interpretada notavelmente por Lupita Nyong’o), que mesmo nascida escrava evoca um comovente sopro de liberdade. Ela suporta o trabalho pesado no campo de forma altiva, só não consegue escapar do fascínio doentio que exerce sobre Epps e da inveja que provoca em sua esposa.

 

 

E é na fazenda de Epps que vemos como os proprietários de escravos podem ser cruéis, especialmente quando usam a religião como meio de persuasão. Enquanto Epps prega aos seus escravos e enfatiza a leitura de alguns versículos de forma a evidenciar a necessidade de subserviência por parte deles, também vai criando artifícios para corroborar com sua ideia de que é um bom homem, a serviço de Deus, cuidando “daquelas criaturas”.

Além disso, a religião passa a ser um mecanismo para combater as frustrações que ele tem em relação ao seu casamento, ao desejo incontrolável que sente por Patsey e sua própria incerteza perante sua moralidade e suas virtudes como um homem de Deus. Isso porque suas plantações são constantemente devastadas por pragas (o que remete à ira do Deus do Velho Testamento). Claro que ele encontra uma forma de interpretar as pragas dos céus de acordo com sua perspectiva torta, então passa a responsabilizar os escravos pelo castigo divino. E esse comportamento torna-o muito parecido com algumas figuras que temos em nosso meio, que são capazes de fazer as maiores atrocidades em nome de um Deus e de um discurso bíblico forjado segundo seus próprios e escusos critérios.

 

 

Epps torna-se ainda mais alucinado e cruel na medida em que sua obsessão por Patsey aumenta, especialmente porque, mesmo tendo posse de seu corpo, não consegue enxergar nela algum tipo de retorno. Acredito que ele nem consegue entender que tipo de retorno gostaria de ter, e talvez seja essa confusão emocional que o torna ainda mais monstruoso.

A violência física é terrível e existem cenas perturbadoras nesse aspecto, mas acredito que a violência psicológica é ainda pior, a forma como vamos percebendo que aquela vastidão luminosa das fazendas do Sul se torna incompatível com a condição abominável de sobrevida daquelas pessoas.

 

 

Solemon teve que suportar o sofrimento, a humilhação, a dor das pessoas que conviviam com ele e a saudade de uma família que parecia existir só em seus sonhos – sem reagir, sem atacar, porque todas as tentativas que presenciou de rebelião foram contidas e resultaram em mortes. Mas, de todas as vidas sofridas apresentadas nessa história, o que achei mais perturbador e tocante foi perceber que a luz que emanava de Patsey, aquela que no início do filme tinha um espírito livre apesar da escravidão, foi paulatinamente encoberta pela brutalidade avassaladora de ser tão cruelmente invadida. A morte, naquele contexto, parecia não ser apenas uma saída adequada, mas a única possibilidade de descanso.

 

 

Por ser baseado em um livro autobiográfico, sabemos de antemão que Solomon consegue sobreviver àquele inferno. Mas, o seu retorno a liberdade enquanto seus amigos ficaram à mercê da estupidez de um sistema absurdo não pareceu uma vitória. E isso se refletiu na jornada que ele iniciou a partir de então, que foi promover uma campanha pela abolição da escravatura em todo o território americano.

Voltando para nosso contexto, sabemos que, apesar de vivermos em um país com uma miscigenação tão intensa, ainda há no Brasil muito preconceito racial latente e, em muitos casos, evidente. E isso não é refletido somente nos discursos patéticos de alguns humoristas em redes sociais, geralmente apoiados por uma legião de seguidores, mas nos perfis das pessoas que ocupam determinados cargos, nos personagens principais das novelas, na política e, especialmente, em ações triviais do nosso cotidiano. Chegamos a um ponto em que não adianta mais propagarmos apenas a ideia de uma liberdade poética, é preciso mostrar, de fato, que há oportunidade para o exercício dessa liberdade.

 

FICHA TÉCNICA:

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO

Direção: Steve McQueen
Roteiro: John Ridley
Elenco Principal: Chiwetel Ejiofor, Lupita Nyong’o, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch
Ano: 2013

Alguns Prêmios:

Golden Globe 2014 (Melhor filme drama)
Screen Actors Guild Awards (Melhor Atriz Coadjuvante: Lupita Nyong’o)
AFI Awards, USA (Melhor Filme)
Austin Film Critics Association (Melhor Ator (Chiwetel Ejiofor), Melhor Atriz Coadjuvante (Lupita Nyong’o), Melhor Roteiro Adaptado (John Ridley))

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ELA: sou onde não penso?

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Com cinco indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Roteiro Original (Spike Jonze), Trilha Sonora Original (William Butler e Owen Pallett), Canção Original (“The Moon Song”, Karen O (música e letra) e Spike Jonze (letra)), Design de produção.

“Tornou-se terrivelmente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade.”  (Einstein)

 

Einstein disse certa vez: “o meu lápis é mais inteligente do que eu” [1].  E essa frase pode ser interpretada sob vários aspectos, por exemplo, segundo Popper, poderia ser compreendida como: “o que é expresso, ou ainda melhor, o que é escrito, tornou-se um objeto que podemos criticar e investigar a procura de erros” [2]. Mas, fazendo uma interpretação mais livre e substituindo lápis por computador, podemos nos deparar com o desafio de Turing: “especifique a maneira pela qual você acredita que um homem é superior a um computador e eu montarei um computador que refutará a sua crença” [1].

A princípio, pode se achar que ELA trará novamente o embate entre Humanos e Máquinas e as velhas discussões sobre o quão tecnológicos estamos e o quanto isso se tornou um fator decisivo para o abismo que parece existir em torno das relações humanas. Mas, o surpreendente roteiro de Spike Jonze (de “Quero ser John Malkovich”) vai além dessas questões, pois traz à tona temáticas que envolvem um contexto bem menos evidente e, talvez, por isso mesmo, mais desafiador, que tem relação com os sentidos que erigimos a partir das relações que construímos entre pessoas e coisas, e como esses sentidos podem ser alterados por uma série de influências tecnológicas, históricas e culturais.

 

“Às vezes acho que já senti tudo que eu deveria sentir. E que de agora em diante não sentirei mais nada novo. Somente versões menores do que eu já senti.” (Theodore)

ELA conta a história de Theodore (Joaquin Phoenix), um homem recém-separado que trabalha numa empresa cujo ramo de negócio é escrever cartas de amor.  Ele está inserido em um mundo não muito diferente desse que vivenciamos. Um mundo em que as pessoas parecem se divertir mais sozinhas com seus apetrechos eletrônicos do que em relações pessoais. Cada pessoa carrega seu dispositivo móvel e comunica-se com o aparelho através da voz. Então, o mundo que acompanhamos nesse filme não é marcado pelo silêncio, muito pelo contrário, as pessoas conversam o tempo todo, no trabalho, em casa, enquanto andam nas ruas, quando pegam o metrô. A questão é que esse diálogo encontrou o meio e o receptor ideal, fazendo com que a estrutura de comunicação se limite ao próprio indivíduo e sua máquina.

No mercado de software atual, têm-se alguns Sistemas Operacionais (SO) e cada um vem acompanhado de muitas funcionalidades. Mas, no tempo/espaço retratado no filme essas funcionalidades se amplificaram, pois a partir de uma série de técnicas de Inteligência Artificial, as empresas de tecnologia já não vendem apenas um SO, elas vendem um software com “alma”, ou seja, um programa capaz de aprender, de ter intuição.

Hoje, temos várias técnicas de uma área da computação denominada “Aprendizagem de Máquina” capazes de fazer com que determinadas relações potencialmente novas sejam criadas a partir de uma base inicial. No filme, essas técnicas estão mais evoluídas e são apresentadas como uma possibilidade de saída de um ambiente cinza (que é predominante na fotografia inicial) para um contexto mais desafiador e dinâmico. E as empresas vendem seus produtos através de campanhas de marketing que fazem uso de questões universais: Quem é você? O que você pode ser? Aonde você pode chegar?

 

“Somos todos feitos de matéria. Isso me faz sentir que estamos sob o mesmo cobertor macio e acolhedor. E tudo abaixo dele tem a mesma idade. Temos todos 13 bilhões de anos.” (Samantha)

 

Atraído pela promessa de uma vida menos monótona, Theodore, como a maioria das pessoas, compra o novo Sistema Operacional. Cada SO se nomeia, de acordo com sua base de dados, das características do seu interlocutor ou a partir do que assimilam do ambiente no momento que sua instalação é concluída. Assim, conhecemos Samantha (voz de Scarlett Johansson), a divertida e inteligente versão do SO que Theodore comprou. E sua individualidade já vem com o próprio nome, ela não faz parte de um lote de Samanthas. Ela decidiu se chamar assim não apenas porque encontrou esse nome numa extensa base de dados de “nome X significado”, mas porque gostou da forma como o nome soava ao pronunciá-lo.

Geralmente, na computação, os programas utilizam uma lógica baseada em dois valores: 0 ou 1 (verdadeiro ou falso). E isso faz com que as situações sejam menos flexíveis, logo, não há lugar, a priori, para conceitos como intuição e inteligência. Mas, o que é interessante ressaltar é que muitas pessoas também se vinculam a um padrão de comportamento que tende a ser apresentado em apenas dois polos: certo ou errado. E é essa aproximação do humano com a lógica rasa do “zero e um” e o distanciamento da máquina desse tipo de algoritmo que marca a evolução dos Sistemas Operacionais do filme, em contraposição com a desestruturação emocional dos indivíduos.

 

“Consigo sentir o medo que você carrega, e queria ajudá-lo a deixar isso de lado. Porque, se conseguisse, acho que você não se sentiria mais tão sozinho.” (Samantha)

 

Samantha é divertida, tem sede por aprender, ama aquele homem que a ensina, que sorrir através do som do sorriso dela, que mostra-lhe o mundo, que possibilita que novas relações sejam estabelecidas em sua memória virtual. E na medida em que a máquina se assemelha ao homem, tem-se o estabelecimento de uma série de conflitos. Samantha não sabe se aquilo que sente é real, se aquilo que percebe do mundo tem coerência, se ela só é um algoritmo muito bem programado ou se tem algo mais, se há um espírito na máquina que a move, que a diferencia, que a torna especial.

Enquanto isso, Theodore, que não consegue manter um relacionamento com as mulheres que fazem parte do seu cotidiano, por temer compromisso, por temer deparar-se com uma situação que não poderá controlar, apaixona-se por Samantha (seu Sistema Operacional), que é um sopro de novidade e vivacidade, coisas que não existem muito nas pessoas que o cerca.

 

“Ela não é apenas um computador.” (Theodore)

 

E o relacionamento entre um Sistema Operacional e um homem, da forma como o roteiro é conduzido, parece ser um caminho não apenas possível, mas também coerente. E assim, aquelas pessoas que viviam falando com suas máquinas naquele mundo cinza, passam a se divertir com elas, criam intimidade, rompem barreiras físicas, já que, em tese, parece que vigora a máxima de Descartes “penso, logo existo”. Só que esse pensamento é estendido através da ideia de que se pensar é ser, então, é possível criar também a realidade mais adequada para essa existência.

Então, o casal começa a criar caminhos para o romance percorrer. Samantha, que tem ao seu alcance não apenas uma base de dados, mas a possibilidade de criar novos arranjos mentais dando margem a uma avalanche de inventividade e sensibilidade, passa a tornar provável o “impossível”. Em um dos momentos mais tocantes do filme, vimos que Ela apresenta ao Theodore uma música que compôs. Essa música é o registro da imagem ausente, é uma metáfora da foto do casal que, em tese, não poderia existir pelo detalhe aparentemente tão insignificante da ausência de forma de um deles.

 

“Só estamos aqui por um breve momento. E, enquanto estiver aqui, vou me permitir sentir alegria.”(Amy)

 

Mas, se a evolução em nosso mundo físico é constante, mas “lenta” (quando consideramos o limite de uma vida), no mundo virtual isso é radicalmente modificado. Na ausência do físico, a velocidade se expande.

Assim, se por um lado os humanos estão cada vez mais dependentes da consciência individual que existe em seus computadores, as máquinas estão extrapolando a máxima defendida por Vygotsky “uma palavra é um microcosmo da consciência humana”. Isso porque, se há uma capacidade de processamento que permite fazer relações cada vez mais rápidas e mais complexas, a palavra (no contexto em que compreendemos a linguagem) torna-se insuficiente para compor o tipo de consciência que existe na máquina. E isso provoca o início de uma nova ruptura, só que com uma diferença crucial, o mais evoluído já não é o humano. Samantha, nesse contexto, estende a noção de amor, desapega-se de questões relacionadas à posse, que é tão comum nas relações humanas, e constrói uma rede de conhecimento que vai além da compreensão humana.

 

“É como se eu estivesse lendo um livro. E é um livro que eu amo profundamente, mas agora estou lendo-o devagar. As palavras estão muito distantes umas do outras e o espaço entre elas é quase infinito. Eu ainda posso sentir você e as palavras da nossa história. Mas é neste espaço infinito entre as palavras que eu me encontro agora. E é um lugar que não está no mundo físico.” (Samantha)

 

“O ‘eu’ e o ‘ego’ tem sido frequentemente comparado a um iceberg, sendo o ‘eu’ inconsciente a vasta parte submersa, e o ‘eu’ consciente a parte que se projeta acima da superfície da água” [1]. Tendo essa ideia como base, o filme apresenta de forma primorosa que o dualismo de Descartes não é suficiente para explicar o ser humano. Logo, parece mais coerente buscar na frase de Lacan uma maneira sucinta de expressar essa complexidade: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso”.

 

“Qualquer pessoa que se apaixone é uma aberração. É algo louco de se fazer. Uma forma socialmente aceitável de insanidade.” (Amy)

 

Assim, parece que Thedore, ao final, busca na amizade que construiu com Amy ao longo da vida, mesmo que conscientemente não consiga definir totalmente essa relação, uma forma de sobreviver às incertezas, contradições, medos e fragilidades que definem a condição humana. E se há algum tipo de mistério em torno do “eu” e da “existência”, mesmo em um mundo em que máquinas pensam com mais propriedade que humanos, então é justamente nessa ausência de entendimento que reside a esperança. Procuramos tanto tecer uma rede segura em torno da consciência que deixamos pouco espaço para escutar aquilo que está submerso, que talvez seja a parte mais reveladora da nossa natureza.

REFERÊNCIAS:

[1] POPPER, Karl; ECCLES, John. O Eu e seu Cérebro. 2ª. Edição. Campinas, SP: Papirus; DF: Universidade de Brasília, 1995.

[2] POPPER, Karl. A vida é aprendizagem : epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Lisboa: Edições 70, 2001.

FICHA TÉCNICA:

ELA

Título Original: Her
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Spike Jonze
Elenco Principal: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Rooney Mara
Ano: 2013

Alguns Prêmios:

Golden Globe 2014 (Roteiro Original)
Austin Film Critics Association (Filme, Roteiro Original, Trilha Sonora e Prêmio Honorário à Scarlett Johansson (pela atuação destaque – Voz))
Chicago Film Critics Association Awards (Roteiro Original, Trilha Sonora)

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Trapaça: as pessoas acreditam no que querem acreditar

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Com dez indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Melhor Diretor (David O. Russell), Melhor Ator (Christian Bale), Melhor Atriz (Amy Adams), Melhor Ator Coadjuvante (Bradley Cooper), Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence), Melhor Roteiro Original (Eric Warren Singer and David O. Russell), Melhor Edição (Jay Cassidy e Crispin Struthers), Melhor Figurino e Melhor Direção de Arte.

 

Quando você era jovem e seu coração era um livro aberto
Você costumava dizer “viva e deixe viver”
Mas se este mundo de constantes mudanças no qual vivemos
Faz você se entregar e chorar…
Diga “viva e deixe morrer”.
(Live and Let Die, Paul McCartney)

Em American Hustle (Trapaça), o mundo é cinza, logo seus personagens não podem ser enquadrados em uma determinada categoria moral, eles estão quase sempre flutuando entre um ponto e outro, movidos por paixões, poder, dinheiro e, especialmente, pela vaidade.

A história é vagamente baseada em fatos reais, mais especificamente no caso ABSCAM, que abalou (como sempre) os Estados Unidos em meados de 1978. De uma forma bem sucinta, essa história tem relação com uma operação do FBI, que juntamente com alguns vigaristas condenados, utilizou um falso sheik árabe para trazer à tona uma série de subornos no congresso americano.

 

 

A trama do filme se inicia no momento dessa operação e é conduzida (por um tempo) em flashbacka partir do ponto de vista de Irving Rosenfeld (Christian Bale) e Sydney Prosser (Amy Adams), uma dupla sofisticada de trapaceiros, que para evitar uma condenação aceita colaborar com Richie DiMaso (Bradley Cooper), um ambicioso agente do FBI.

Um dos aspectos que vem à tona no filme e que, de certa forma, direciona a maioria das personagens é a questão da “motivação”. Há um excesso de vontade, de desejo, de ímpeto em cada indivíduo dessa história, seja na resolução de uma dada questão e em se fazer notar dentro de um determinado ambiente ou no sonho de ter sucesso pessoal e profissional.

A motivação é encarada como uma espécie de força interna que emerge, regula e sustenta todas as nossas ações mais importantes. (Vernon, 1973, p.11).

… a motivação é o conjunto de mecanismos biológicos e psicológicos que possibilitam o desencadear da ação, da orientação (para uma meta ou, ao contrário, para se afastar dela) e, enfim, da intensidade e da persistência: quanto mais motivada a pessoa está, mais persistente e maior é a atividade. (Lieury & Fenouillet, 2000, p. 9).

Mas o problema está justamente no excesso, ainda que sejamos propensos a acreditar que a motivação como forma de atingir um objetivo nunca é demais. A condução das personagens no filme nos mostra que esse excesso pode ter um efeito contrário. E isso, longe de ser um paradoxo, é um fato que podemos observar em diversas trajetórias reais de “sucesso” e “declínio”, como é o caso do ex-ciclista americano Lance Armstrong, e do lobo de Wall Street, Jordan Belfort.

 

 

Christian Bale, novamente em uma atuação brilhante, mostra-nos de forma intensa a personalidade complexa de Rosenfeld. O homem que passa horas tentando organizar os fios dos cabelos para disfarçar a careca, não tem problema em expor seu corpo notadamente acima do peso. Rosenfeld entendeu, ainda criança, o papel que deveria desempenhar na vida e moveu-se no sentido de construir a pessoa que queria ser.

Fiquei diferente do meu pai. Virei um trapaceiro, de verdade. Da cabeça aos pés. Eu sobreviveria a qualquer custo. Pelo que sei, as pessoas se trapaceiam para conseguir o que querem. Até trapaceamos a nós mesmos. Nós nos convencemos do que nem precisamos ou queremos. Nós nos disfarçamos. Deixamos os riscos de lado, a verdade inconveniente.

 

Ao seu lado está Sydney Prosser (Amy Adams, que equilibra de forma notável alguns aspectos da personagem: sensualidade, inteligência e romantismo), e a impressão que temos é que, de certa forma, essas duas pessoas (Rosenfeld e Sydney) são extremamente similares. Notamos isso tanto na forma como eles constroem suas próprias figuras e as apresenta ao mundo, quanto na crença que possuem no amor que os une ou na capacidade de usar a inteligência a partir da sensibilidade de entender o contexto em que estão inseridos.

 

“Nós trapaceamos de um jeito ou de outro só para suportar a vida.” (Irving Rosenfeld)

 

De acordo com o crítico Steven Rea [1], American Hustle é um filme construído sobre a pedra fundamental do sonho americano: a reinvenção. Se você não está feliz com quem você é, ou em como as pessoas pensam que você é, então vá em frente e torna-se outra pessoa. Vale qualquer coisa para sobreviver e prosperar.

Se considerarmos isso, Richie DiMaso (o agente do FBI) é quem mais almeja tal intuito. A princípio, pensamos que seu objetivo é colocar os “bandidos” atrás das grades, mas, rapidamente, percebemos que sua motivação maior não é a justiça, é a fama que pode vir agregada a isso. Essa fama lhe salvará de uma vida medíocre, de um casamento circunstancial, das garras de uma mãe autoritária e da sombra de uma existência patética.

 

 

Tudo em DiMaso é forjado para tal fim, desde os cachos em seu cabelos (que é naturalmente liso), até as tentativas de mostrar-se mais inteligente do que os trapaceiros que estão sob o seu comando. Sua insegurança é demostrada na frase que ele insistentemente repete a Rosenfeld: “Você está trabalhando para mim agora“.  A necessidade em apoderar-se de algumas características daqueles que persegue confundiu até seus sentimentos, por isso deixou-se seduzir por Sydney.

O desejo sem controle provoca uma ilusão de poder. Assim, DiMaso inicia um movimento perigoso no qual começa a justificar qualquer atitude, por mais bizarra que seja, em prol da satisfação de sua vontade. Ele acredita até o fim que “tudo está sob controle” e é isso que provoca sua ruína.

 

“Você não é nada para mim até que seja tudo.” (Sydney Posser)

 

Já em Sydney Posser percebemos um tipo diferente de desejo, ainda que este seja tão intenso quanto o vivenciado por DiMaso. Depois de ser presa, de ter que criar um plano mirabolante para colocar um político (querido por todos) na cadeia e ter seu sonho de viver com a pessoa que ama desmoronar pela relação que este tem com uma esposa a beira de um ataque de nervos, ela precisa criar artifícios para reinventar-se. Nesse novo mundo que ela cria, não há espaço para mentiras, nem para meio termos. Parece que o mundo cinza, enfim, precisa de cor, pois o efêmero pode ser angustiante, às vezes.

 

 

A esposa de Rosenfeld, Rosalyn (interpretada de forma exemplar por Jennifer Lawrence) é uma explosão emocional, oscila entre a depressão e a euforia. Não tem muito controle sobre suas ações, prova disso é que está constantemente provocando incêndios domésticos. Mas, em contrapartida, sabe muito bem que tipo de pessoa é. De certa forma, ao falar sobre seu gosto excêntrico pelo cheiro de uma base de unha, que é algo entre o “doce e o azedo”, entre o “podre e o irresistível”, está falando sobre si mesma e sobre o mundo que a cerca.

 

 

Sydney pensava que Rosalyn era mais uma maluca egoísta que usava o filho para manter seu casamento fracassado. Mas o embate entre as duas faz com que ela entenda que há muitas camadas escondidas na personalidade daquela jovem mulher. Novamente, tem-se “o cinza” mostrando-nos ironicamente que a percepção que temos do mundo dos outros nem sempre reflete de fato aquilo que o outro é. Talvez o inferno não seja os outros (desculpe-me Sartre), ao menos nesse momento estou mais propensa a concordar com Melville em MobyDick: “o inferno foi uma ideia nascida em consequência de uma indigesta maçã”.

 

 

American Hustle é um espetáculo visual e sonoro. A reconstituição da década de 1970 é fantástica, assim como a forma que corajosamente David O. Russell usa a câmera lenta em alguns momentos para construir a ideia de que as ações que realizamos em nossa linha de tempo (tão transitória) são, em certos aspectos, cruciais para os rumos que tomamos em nossa vida, ou seja, podem resultar em consequências não apenas encadeadas, mas também duradouras.

 

REFERÊNCIAS:

[1] http://www.philly.com/philly/entertainment/movies/20131220_A_marvelous_trip_in_the_way-back_machine.html

LIEURY, A. & FENOUILLET, F. (2000). Motivação e aproveitamento escolar. Tradução de Y. M. C. T. Silva. São Paulo: Loyola. (trabalho originalmente publicado em 1996).

VERNON, M. D. (1973). Motivação humana. Tradução de L. C. Lucchetti. Petrópolis: Vozes. (trabalho original publicado em 1969).

 

FICHA TÉCNICA:

TRAPAÇA

Título Original: American Hustle
Direção: David O. Russell
Roteiro: Eric Warren Singer and David O. Russell
Elenco Principal: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner
Ano: 2013

Alguns Prêmios:

Golden Globe 2014: Melhor Filme, Melhor Atriz (Amy Adams), Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence)
Screen Actors Guild Award: Melhor Elenco
New York Film Critics Circle: Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence), Melhor Roteiro (Eric Warren Singer and David O. Russell)
Hollywood Film Festival: Melhor Figurino, Melhor Design de Produção

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Clube de Compras Dallas: na tragédia, a mudança

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Com seis indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Melhor Ator (Matthew McConaughey) e Melhor Ator Coadjuvante (Jared Leto), Melhor Edição, Melhor Maquiagem e Melhor Roteiro Original.

 

 

O “Clube de Compras Dallas” (EUA – 2014), dirigido por Jean-Marc Vallée é um filme que soube explorar de forma criativa o sempre espinhoso tema da AIDS, já tão “batido” em Hollywood (lembremos de “Meu Querido Companheiro” (1989);“Filadélfia” [1993], com Tom Hanks; “Kids” [1995]; “Angels in America” [2003], com Al Pacino; “Yesterday” (2004), só para citar alguns). A trama, baseada em fatos reais, se passa no “difícil” Texas dos anos 80, estado norte-americano conhecido pela “rusticidade” de seus homens que trabalham nos inúmeros campos de petróleo (atividade até então ligada exclusivamente ao sexo masculino).

“Clube de Compras Dallas” tem como protagonista o eletricista Ron Woodroof (Matthew McConaughey), a personificação do “macho” que não demonstra ternenhum interesse pela vida, a não ser quando está acompanhado pelas prostitutas da região ou em cima de um touro. De resto, sempre que instado sobre a existência, não hesita em dizer que a verdade é que um dia “todos temos de morrer, seja do que for”. No entanto, num fatídico dia depois de ser acidentado no trabalho, Woodroof descobre (ao passar por exames simples no hospital) que contraiu o vírus HIV. Mais que isso: que já está com a AIDS instalada em seu organismo e que só lhe restam 30 dias de vida.

Homofóbico, o primeiro incômodo de Ron Woodroof não é com o diagnóstico em si, mas com a possibilidade de ser confundido com um homossexual, já que naquela época a síndrome era tida como uma espécie de “praga gay”, por ocorrer com maior frequência entre as pessoas deste tecido social. Apesar de estar muito magro (o ator McConaughey causou espanto ao perder 20 quilos para filmar o longa) e combalido por uma tosse persistente, Woodroof esnoba do diagnóstico e resolve voltar à rotina.

Neste momento o filme retrata um episódio comum já amplamente descrito pelos estudiosos da mente, de que diante de uma tragédia (nos anos 80, ser diagnosticado com AIDS era ter uma sentença de morte), uma das primeiras reações é negar-se a se ver em tal situação. E isso Woodroof tentou fazer desesperadamente, inebriando-se nas drogas e nas orgias. Num dado momento, percebe que não teria muitos dias caso não aderisse a um programa de tratamento. As fichas começam a cair para o cowboy hedonista. Perceber a fragilidade da vida e a possibilidade de uma extinção iminente, mesmo diante de uma existência que ele sempre negligenciou, fez com que Woodroof iniciasse uma jornada de vida ou morte em busca de um tratamento adequado.

 

 

Até então, o único medicamento autorizado pelo FDA (a agência que credencia os medicamentos nos EUA) era o famigerado AZT, que em suas altas dosagens mais matava que curava os portadores da doença. Woodroof se opôs a esse tratamento e inicia uma longa e desgastante, mas fascinante busca pela sobrevivência. No caminho, o protagonista tem que se deparar com todas as construções subjetivas que permeavam seu imaginário, sobretudo àquelas que lhe causavam repulsa. Aliás, ele não só teve que revisitar tais concepções, como aos poucos foi diluindo tais impressões. O laboratório para todas estas mudanças, além da terrível patologia, estava justamente no “Clube de Compras Dallas”, um dos grupos independentes que se proliferaram naquela época, cujo objetivo era encontrar em qualquer parte do mundo as maneiras alternativas de tratamento da AIDS.

 

 

No “Clube”, Woodroof estreita os laços com a travesti Rayon, interpretada brilhantemente por Jared Leto (também irreconhecível no longa), que gradualmente passa de objeto de desprezo para fiel escudeiro (ou escudeira) do cowboy. No decorrer dos dias, Woodroof começa a ver em Rayon mais que uma travesti; na partilha da mesma situação trágica, não havia diferença entre eles. E é neste ponto que o protagonista transforma a aversão numa amizade até então incomum.

Além deste fascinante enredo de alteridade, o filme toca por mostrar como as indústrias farmacêuticas agem para obter vantagens mesmo no mais terrível dos acontecimentos. Diante de uma anunciada pandemia de AIDS, e com vários estudos internacionais já demonstrando o alto grau de toxicidade das hiperdosagens de AZT (que já havia sido descartado do tratamento do câncer, nos anos 60, por destruir células sadias), a insistência na permanência deste protocolo ceifou muitas vidas (no Brasil, o caso mais conhecido foi o de Cazuza).

 

 

Enfim, no despertar para a vida Woodroof deve enfrentar não apenas o minúsculo mas altamente destrutivo vírus da AIDS; antes e/ou concomitantemente, também enfrenta o “dogmatismo cientificista” imposto pela indústria. Ele assume os riscos de provar em si próprio (e nos demais integrantes do “Clube”) os efeitos das drogas “alternativas” (porém, mais eficazes).

O cowboy, apesar de nesta altura já ter mudado de forma substancial sua visão sobre a vida, e sobre vários aspectos do mundo (como a sua antiga pré-concepção sobre a homossexualidade), ainda assim age sob a batuta do lucro (por ser o líder do “Clube”) e da busca pela própria cura. A mais profunda mudança ainda estaria por vir. E ela ocorre no momento em que Woodroof se dá conta de que ao se perder uma grande amizade, parte dele também fica irremediavelmente incompleto. Para as dores desta ainda mais trágica circunstância não haveria remédio.

 

 

Mesmo que Ron Woodroof tivesse que encarar pela frente um futuro de discriminação e de rigor no tratamento da doença, o “rito de passagem” havia se concluído. O egoísmo já estava dissolvido e a existência, enfim, se expressava como “vida” que pulsava – mesmo na doença. Antes, ao que parece, ele experimentava apenas as sombras da vida (para lembrar o estilo platônico). Um exemplo e tanto para nos fazer perceber que, de fato, grandes mudanças internas podem ocorrer em situações trágicas.

 

FICHA TÉCNICA:


Gênero: Drama
Direção: Jean-Marc Vallée
Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Steve Zahn, Denis O’Hare
Fotografia: Yves Bélanger
Ano: 2013
País: Estados Unidos

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