Guardiões da Galáxia: a jornada do herói

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Com duas indicações ao OSCAR:
Melhores Efeitos Especiais e Melhor Maquiagem e Cabelo

O filme conta a história de um herói atípico, Peter Quill. E é ao redor dessa figura que a análise será feita. Peter quando criança perde sua mãe e após isso é sequestrado por um grupo de piratas espaciais. Ele se torna então um fora da lei e mercenário se auto-intitulando: Senhor das Estrelas.

 

No começo do filme ele rouba uma esfera metálica para um cliente e é interceptado pelo vilão Ronan, que envia ao encalço do rapaz a assassina Gamora. É bastante comum nos contos e mitos a orfandade do herói. Isso significa que simbolicamente a mãe boa morreu e o rapaz deve deixar a casa materna para desenvolver sua masculinidade.

 

Quill como disse anteriormente não é um herói típico – ele é um ladrão! Ele pode então ser associado a um representante humano do deus grego Hermes. Deus traquinas, que adorava pregar peças nos outros. Deus da inteligência, sagacidade, da negociação e padroeiro dos ladrões. Roubou o rebanho de Admeto, guardado por seu irmão Apolo. E ainda fabricou a lira, com as tripas das novilhas sacrificadas e a carapaça de uma tartaruga. Mostrando que também está associado à música.

Sobre isso é interessante notar que Quill herda de sua mãe um toca fitas o qual nunca abandona e ouve suas músicas favoritas. Em alguns contos de fadas é comum após a morte da mãe a heroína ou o herói herdarem algo da mãe. São objetos que representam uma espécie de fetiche onde permanece o espírito da mãe. E a música torna Quill mais hermético e mais leve e divertido ainda. A música mostra a sua essência.

 

Peter é então perseguido por Gamora, uma guerreira assassina que na verdade tem a pretensão de trair Ronan, pois não quer deixá-lo usar o poder do orbe preso na esfera metálica para destruir planetas inteiros como Xandar. Ela apresenta uma personalidade bastante forte e uma ética profunda. Ele também conhece o guaxinim geneticamente modificado Rockete a árvore humanóide Groot.

 

 

Esse grupo é levado à prisão de segurança máxima Kyln. Lá eles se unem ao grandalhão Drax, que perdeu sua família em um ataque de Ronan. E assim o grupo que irá destruir o inimigo e se tornar os guardiões da galáxia está formado. Quill, que era mulherengo e não se apegava a ninguém, começa a se envolver com Gamora e a desenvolver sentimentos por ela. Esse relacionamento traz uma nova dimensão de Quill, ainda desconhecida. Gamora começa questiona a ética do herói fazendo-o olhar para si mesmo e se aprofundar e questionar o que vem fazendo. Ela possui uma função sentimento bastante desenvolvida.

Gamora pode, do ponto de vista de Quill, ser uma representação de sua anima. No processo de individuação é no contato com a anima/animus, projetados em relacionamentos amorosos, que passamos a ter um conhecimento mais profundo de nós mesmos, uma vez que essas são figuras arquetípicas que fazem a ponte entre a consciência e o Self. No filme Gamora coloca Quil no caminho de sua individuação e ele passa a seguir o caminho o qual estava destinado a seguir.

As outras figuras que o acompanham também são muito interessantes. O guaxinim que fala. Mais uma vez vemos que o herói vem sempre acompanhado de um animal “mágico” que o auxilia. O guaxinim é um animal ligado ao bom humor, inteligência, mas também ao roub, e. Rocket assim como Quill, é uma figura bastante inteligente e fora da lei.

 

Os animais que se ligam ao herói nos contos de fadas representam instintos que pertencem aquele sujeito. O instinto de roubo e inteligência de Quill agora passa a auxiliá-lo em sua jornada para salvar um planeta da devastação. Há aqui um paradoxo: o roubo e astucia características negativas agora se tornam eficientes e positivas. Mostrando que o inconsciente é amoral e que nossa vida é cheia de contradições. Vivemos cercados pelos opostos e as vezes aquilo que é ruim pode ser bom e o que é bom pode ser muito ruim.

 

A árvore Groot é retratada como um ser extremamente boçal, que diz apenas uma frase e que serve como força bruta a Rocket. Entretanto ela se faz extremamente importante para a missão, pois em determinado momento ela se sacrifica para proteger o grupo. A árvore na psicologia analítica é um símbolo do processo de individuação, pois para crescer e alcançar os céus, sua raiz deve crescer proporcionalmente até o inferno. Ou seja, para crescermos e nos expandirmos precisamos conhecer nossas sombras mais profundas, nossos medos e infernos pessoais.

A árvore também apresenta um aspecto hermafrodita, uma vez que possui um aspecto fálico ela também possui a seiva da vida e é uma dispensadora de alimentos, sendo então um símbolo da totalidade. Ela protege o grupo mostrando que juntos eles estão no caminho da inteireza e totalidade.

 

 

O grandalhão Drax pode ser interpretado como um aspecto de Quill reprimido. Ele é a força bruta, que o herói, não possui projetada, pois Quill tem desenvolvida a habilidade de pensar e negociar. Pode ser um aspecto sombrio de Quill que agora funciona em seu auxilio. É muito comum que jovens mais voltados para a intelectualidade possuírem amigos fortes e voltados a exercícios físicos, é como se um compensasse o outro.

E o grupo consegue o seu intento, destruindo Ronan e salvando o planeta Xandar da destruição. E assim eles se tornam Os Guardiões da Galáxia. Os mitos, histórias e contos que traz uma jornada do herói nos apresenta o processo de individuação. Claro que o herói é uma figura arquetípica e que não iremos sair por ai salvando galáxias em nosso processo de individuação. No entanto, os heróis nos mostram caminhos os quais podemos nos inspirar em nossa vida diária.

Nos mostram como seguir nossos instintos, como o relacionamento com o sexo oposto nos leva a dimensões mais profundas de nós mesmos e como sempre precisamos encarar nossa sombra projetada em inimigos exteriores para aprendermos mais sobre nós mesmos. E além de tudo, como é importante seguirmos nossos dons e o nosso próprio caminho e colocarmos, com a nossa própria individualidade, a serviço do coletivo.

 

Trailer:

https://www.youtube.com/watch?v=qD2KI5S0TxQ

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

GUARDIÕES DA GALÁXIA

Título Original (EUA): Into the Woods
Direção: Rob Marshall
Música composta por: Stephen Sondheim
Produção: Callum McDougall, Rob Marshall, John DeLuca, Marc E. Platt
Duração: 124 minutos
Ano: 2014

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Amor e entrelaçamento quântico no filme “Interestelar”

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Com 5 indicações ao Oscar 2015:

Melhor design de produção; Melhores efeitos visuais; Melhor trilha sonora; Melhor edição de som; e Melhor mixagem de som.

Depois de desafiar os espectadores com desconstruções narrativas como “Amnésia” e articular sucessivas camadas de mundos oníricos em “A Origem”, agora Christopher Nolan em “Interestelar” (Interstellar, 2014) nos desafia com os paradoxos da mecânica quântica e relatividade.  Aqui não há mais heróis tentando salvar a Terra, mas pessoas que se sacrificam na procura de um caminho para a humanidade abandonar um planeta agonizante. E a única saída será através de buracos negros e “buracos de minhoca” cósmicos. Porém, as equações falham em tentar conciliar a dimensão quântica e a relatividade. Qual a solução proposta por Nolan? Amor e Comunicação, os únicos elementos que atravessam os diferentes espaços-tempos e que resolveriam o enigma do chamado “entrelaçamento quântico”. Tudo com muitas alusões gnósticas e religiosas, criando uma poderosa atmosfera mística.

John Smith trabalha como projetista em um cinema nos EUA. John fez um curioso relato no início desse mês: ao receber a cópia do filme Interestelar percebeu que ela veio embrulhada e rotulada como “Flora’s Letter” – The Hollywood Reporter, 22/10/2014.

Já é bem conhecida essa estratégia onde os filmes são distribuídos ou mesmo produzidos com títulos falsos a fim de dificultar a pirataria ou roubo.

Mas também é conhecido que muitos produtores não resistem à tentação de deixar nesses falsos rótulos pistas inteligentes e sugestões. É o exemplo de filmes anteriores de Nolan que foram distribuídos dessa maneira, com intrigantes pistas: “Backbreaker” para o filme Batman – O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008) e “Be Kind, Rewind” para Amnésia (Memento, 2000).

Ora, Flora’s Letter oficialmente seria uma alusão a uma das quatro filhas de Nolan, Flora. Mas também poderia ser uma sincrônica referencia a “Carta para Flora” ou “Epístola para Flora”, texto gnóstico atribuído a Ptolomeu, discípulo do professor gnóstico Valentino no cristianismo primitivo, onde assume que Jesus fora enviado não para destruir a Lei Mosaica (materializada nos Dez Mandamentos), mas para completa-la. Por ser obra não de Deus mas de um Demiurgo, a Lei era imperfeita e necessitava ser completada.

 

Simbolismos religiosos

Coincidência ou Sincronismo? O fato é que Interestelar de Nolan lida com os paradoxos das leis da Mecânica Quântica e da Teoria da Relatividade. Passamos as quase duas primeiras horas do filme acompanhando todo o esforço de um projeto que tenta salvar a raça humana da extinção baseado nas equações do Professor Brand (Michael Caine). Porém, as equações do professor falham por não encontrar a solução para aquilo que toda a Física até agora não conseguiu: achar o chamado “Campo Unificado” que conciliaria a relatividade com a dimensão quântica.

Porém, assim como no texto gnóstico Carta para Flora, um Salvador deve chegar para completar a Lei imperfeita, acrescentar o componente que falta na equação. E para Nolan, aquilo que ultrapassaria o Tempo e o Espaço, conciliando as dimensões relativísticas e quânticas, seria o Amor – Jesus?.

Assim como essa sincrônica referencia gnóstica, Interestelar possui uma série de simbolismos religiosos: os doze apóstolos (Dr. Brand teria enviado anteriormente através do buraco de minhoca cósmico “doze bravas almas” que lá estariam à espera do salvador da humanidade); lá existe uma espécie de Arca de Noé; o primeiro planeta com ondas gigantescas (dilúvio bíblico?); há um anjo caído (Dr. Mann que vira um demônio em uma espécie de Jardim do Éden invertido); todo o projeto secreto da NASA se chama “Lázaro” (referência ao personagem bíblico que ressuscitou dos mortos); a heroína salva a humanidade aos 33 anos de idade (a idade de Jesus).

Nolan parece espalhar esses simbolismos na narrativa para fazer a delícia dos críticos de cinema. Porém, o filme vai mais além do que essa lista de simbolismos mais evidentes: Interestelar lida com o tema do amor de uma forma bem peculiar – como o elemento mais importante da equação, capaz de atravessar o contínuo tempo/espaço, ir além da atração gravitacional. Para tanto, veremos como Nolan introduz o conceito de entrelaçamento quântico, conceito que curiosamente Jim Jarmusch também introduz no seu último filme Amantes Eternos.

 

O Filme

A maioria dos filmes de Hollywood baseia-se em narrativas sobre o amor romântico ou sexo. Mas Interestelar quase não tem casais para se obter o tradicional par romântico que salvará o mundo. Ao invés disso, vemos diferente formas de amor, de geração em geração, ao longo do tempo e espaço.

O filme começa em uma fazenda onde vemos o amor do avô Donald (John Lithgow) pelo seus netos e o amor dos filhos pelo pai viúvo e astronauta aposentado da NASA Cooper (Matthew McConaughey). Eles estão metidos em uma crise ambiental global onde os alimentos desaparecem e tempestades de areia arrasam com plantações.

Por meio de uma estranha anomalia gravitacional que a filha Murph (Jessica Chastain) descobre em um cômodo da casa (ela pensa que há algum fantasma derrubando livros da estante) , eles descobrem coordenadas que levam a um laboratório subterrâneo e secreto onde a NASA planeja uma forma de salvar não o planeta, mas a humanidade: Dr. Brand desenvolve equações para solucionar problemas relativísticos e quânticos para levar a humanidade para um novo planeta do outro lado do Universo por meio de um “buraco de minhoca” (wormhole) encontrado nas cercanias de Saturno. E tudo leva a crer que esse buraco cósmico foi uma criação artificial de alguma outra civilização disposta a nos ajudar.

Cooper é convocado para o Projeto Lazaro para ser o piloto de uma espaçonave que atravessará o “buraco de minhoca” em busca de uma nova Terra. Com isso, a narrativa passa a ser movida pelo amor mesclado com raiva da filha Murph, ressentida pelo pai abandonar a família por décadas. Para ela, o pai abandonou a família em um planeta à beira da extinção.

Há ainda outra forma de amor: doze “apóstolos” ou astronautas saíram sozinhos na vanguarda do Projeto Lázaro, sacrificando suas vidas para serem congelados e renascerem em algum lugar do outro lado do Universo.

Parece que o tempo inteiro Nolan quer nos mostrar a força magnética que liga pessoas que estão distantes; como pessoas separadas por longas distâncias no Universo podem ainda exercer uma força gravitacional. Todos no filme anseiam por reencontros, assim como no outro filme do diretor, A Origem (Inception, 2010), o protagonista Cobb tentava retornar para casa.

E assim como em A Origem, Nolan lida com camadas de realidades no tempo e espaço que funcionam em diferentes cronologias. Quando o protagonista Cooper vai para o espaço deixa para trás os paradigmas da vida terrena para entrar nos paradoxos da mecânica quântica e relatividade: a gravidade torna-se variável em diferentes planetas, o espaço dobra sobre si mesmo, astronautas voam por buracos de minhocas que conectam um ponto a outro distante no Universo e naves ganham impulsos gravitacionais em horizontes de eventos de um buraco negro.

 

O entrelaçamento quântico

 

Com isso, Nolan introduz o conceito de entrelaçamento quântico: como duas partículas que se interagem, ao serem separadas continuam a ter estranhos padrões como se ainda estivessem conectados a distâncias imensas. Interestelar mostra como pessoas que se amam adquirem alguns desses mesmos recursos e reagem da mesma forma, ao mesmo tempo para as mesmas coisas.

Baseado nas ideias do físico Kip Thorne, Insterestelar mostra como Ciência e emoção podem se misturar criando uma poderosa atmosfera mística. De início, Nolan opta por um pressuposto narrativo gnóstico: a ideia de uma Terra seca e devastada da qual o homem deve fugir, assim como Dorothy no filme clássico O Mágico De Oz, é a metáfora da condição humana no Gnosticismo – prisioneiro em um cosmos imperfeito e decadente do qual somente poderá escapar por meio da gnose, a busca da iluminação interior – sobre esse tema em O Mágico de Oz clique aqui.

E no filme essa gnose é a descoberta de que vivemos em um Universo onde o entrelaçamento quântico faz tudo parecer emergente e interligado. A vida parece menos como uma máquina e mais com padrões infinitamente complexos de ondas e partículas.

Em Interestelar, os personagens estão frequentemente experimentando transversais e conexões místicas que transcendem o tempo e o espaço. Parece que tanto Nolan como Jarmusch em Amantes Eternos parecem ter se inspirado na obra-prima My Bright Abyss do poeta norte-americano Christian Wiman:

“Se o entrelaçamento quântico for verdade, se as partículas relacionadas reagem de maneiras semelhantes ou opostas, mesmo separadas por distâncias enormes, então é óbvio que o mundo inteiro está vivo e se comunica por diversas maneiras que não compreendemos totalmente. E nós somos parte dessa vida, dessa comunicação” WIMAN, Christian. My Bright Abyss – Meditation of a Modern Believer).

 

A solução do entrelaçamento quântico: amor e comunicação (spoilers à frente)

Levamos quase duas horas do filme para compreendermos qual o elemento que falta para a equação do professor Brand unificar relatividade e mecânica quântica, o que possibilitaria trazer Cooper de volta para casa dobrando o tempo-espaço no sentido inverso: amor e comunicação, aquilo que resolveria o enigma do entrelaçamento quântico.

Numa alusão ao filme 2001 de Kubrick, ao entrar no buraco negro Cooper descobre que seres da quinta dimensão prepararam para ele um espaço tridimensional de onde observa o quarto da casa na Terra onde está a filha Murph em tempo-espaço simultâneos na infância e na atual vida adulta. O presente dobra-se no passado: através de quantuns de energia em código morse, Cooper se comunica com Murph simultaneamente no passado e presente.

O suposto fantasma da estante na infância era o próprio pai no futuro tentando se comunicar, trazendo a solução que retirará a humanidade de um planeta agonizante.

Nessa sequência final, Nolan faz também uma curiosa alusão às comunicações dos espíritos do início do Espiritismo do século XIX com os fenômenos de batidas no chão e mesas girantes como formas de comunicação tiptológica dos mortos com os vivos.

Seriam os espíritos não apenas pessoas que já morreram, mas na verdade seres interdimensionais tentando se comunicar conosco através de diferentes tempo-espaços? Seriam seres do futuro ou do passado? Assim como os seres da quinta dimensão que, por algum motivo misterioso, tentam ajudar a humanidade em Interestelar, os espíritos também tentam se comunicar conosco?

Será que assim como os seres da quinta dimensão, é o amor por nós que move os espíritos a tentarem a comunicação?

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

INTERESTELAR

Diretor: Christopher Nolan
Roteiro: Jonathan Nolan, Christopher Nolan
Elenco: Matthew McConaughey, Anne Hathaway, Jessica Chastain, Michael Caine, John Lithgow
Produção: Legendary Pictures
Distribuição: Warner Bros South (Brasil)
Ano: 2014
País: EUA

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Para Sempre Alice: Alzheimer e a arte de perder

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Indicado ao Oscar de Melhor Atriz: Julianne Moore

Vencedor do Globo de Ouro de Melhor Atriz – Filme Categoria Drama (Julianne Moore)

“Meus ontens estão desaparecendo e meus amanhãs são incertos. Então, para que eu vivo? Vivo para cada dia. Vivo o presente… Esquecerei o hoje, mas isso não significa que o hoje não tem importância.”  Para Sempre Alice, Lisa Genova

O filme é baseado no livro homônimo da neurocientista e escritora Lisa Genova e tem como personagem principal Alice (Julianne Moore), uma mulher de 50 anos, bonita, bem sucedida na carreira (como professora de Linguística na Universidade de Columbia) e na vida pessoal (três filhos crescidos, um marido atencioso), convidada constantemente para eventos científicos para apresentação das ideias defendidas em seu livro “De Neurônios a Pronomes”. No universo de Alice, o entendimento das palavras e de como elas ganham sentido e significado em nosso cérebro compõe a base de toda a sua trajetória como pesquisadora. Assim, ao começar esquecê-las, mesmo que aparentemente em forma de simples lapsos de memória, a sua vida, antes tão direcionada e objetiva, começa a ser encoberta por um estranho e crescente borrão, tirando-lhe não apenas a coerência, mas a forma.

 

A doença de Alzheimer (DA) é clinicamente dividida em dois subgrupos de acordo com seu o tempo de início. Dado antes dos 65 anos (DA de início precoce), se caracteriza por um declínio rápido das funções cognitivas. Esses casos são mais raros, correspondendo a 10% do total, e observa-se um acometimento familiar em sucessivas gerações diretamente relacionado a um padrão de transmissão autossômico dominante ligado aos cromossomos 1, 14 e 21 (SENI, 1996; ENGELHARDT et al., 1998 apud TRUZZI & LAKS, 2005).

 

Alice foi fazer os exames temendo deparar-se como uma doença como o Câncer, então, depois de algumas consultas e acompanhada pelo marido (a pedido do seu médico), recebe o diagnóstico devastador: tinha Alzheimer e, como estava no subgrupo de portadores da doença “antes dos 65 anos”, teve que dolorosamente concluir que suas funções cognitivas seriam afetadas rapidamente. Além disso, havia, também, uma grande possibilidade de seus filhos virem a ter os mesmos sintomas no futuro, pois nessas situações a doença é transmitida geneticamente.

Ironicamente, a inteligência de Alice e sua vida dedicada à produção de conhecimento contribuíram para atrasar o diagnóstico, já que ela foi capaz de pregar peças em seu cérebro e encontrar artifícios para mascarar sua doença, sustentando a efetividade dos processos mentais por mais tempo. Assim, quando o problema veio à tona, a estabilização tornou-se menos efetiva e a deterioração cognitiva mais rápida.

 

“Eu sempre fui muito guiada pelo meu intelecto, pelo meu modo de falar, pela minha articulação. E agora vejo as palavras na minha frente e não consigo me expressar. Não sei quem sou, não sei o que mais vou esquecer.” (Alice)

O devastador entendimento de que aquilo que a define é o que lhe será bruscamente tirado marca o início da complexa jornada de Alice. O rápido progresso da doença e suas consequências para a família é retratada de forma sensível e direta. Vimos como alguns tentam se esquivar de responsabilidades, como outros tentam manter a esperança em uma possível cura e há aqueles (como Lydia, sua filha mais nova, interpretada por Kristen Stewart) que escolhem permanecer por perto e aceitar que ainda há uma Alice, mesmo que as lembranças de quem ela fora não reflitam a pessoa que ela é.

 

“Sou uma pessoa vivendo no estágio inicial de Alzheimer. E, assim sendo, estou aprendendo a arte de perder todos os dias.” (Alice)

 

O que há de mais especial no filme é a interpretação de Julianne Moore, pois através das suas expressões, especialmente do seu olhar, e o tom da sua voz, vimos Alice pouco a pouco desaparecendo ou, quem sabe, abrigando-se em algum universo ainda não explorado de sua mente. Com ela, iniciamos o processo de esquecimento, a estranha arte de perder, vimos suas tentativas de manter as palavras na memória a partir do uso de jogos em seu smartphone, de suportar entender a brevidade da vida ao lembrar-se das histórias que ouvia de sua mãe:

“Quando eu era bem nova, na segunda série, minha professora falou que borboletas não vivem muito, algo em torno de um mês, e fiquei tão chateada. Fui para casa e contei para a mamãe. E ela disse: ‘É verdade. Mas elas têm uma linda vida’. E isso me faz pensar na vida da minha mãe, na da minha irmã. E, de certa forma, na minha vida.” (Alice)

E tudo isso é, por vezes, devastador porque a coloca frente a frente com o estágio mais latente da fragilidade humana: a inevitável constatação de que somos breves, frágeis e vivemos cercados por medo. Há um constante desamparo em Alice, ou melhor, em todos nós, mesmo que nossas habilidades cognitivas tentem criar mecanismos para nos manter firmes em meio a um universo em movimento, sem delimitações claras, talvez um universo indiferente (como diria Carl Sagan).

Abaixo, na íntegra, o discurso de Alice em sua última palestra. Um fato interessante é que ela havia escrito um texto extremamente científico sobre o Alzheimer, mas sua filha a orientou a dizer algo sobre o que, de fato, sentia e não uma mera descrição de sintomas, assim ela o fez:

“A poetisa Elisabeth Bishop escreveu: ‘A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério’. Eu não sou uma poetisa. Sou uma pessoa vivendo no estágio inicial de Alzheimer. E assim sendo, estou aprendendo a arte de perder todos os dias. Perdendo meus modos, perdendo objetos, perdendo sono e, acima de tudo, perdendo memórias.

Toda a minha vida eu acumulei lembranças. Elas se tornaram meus bens mais preciosos. A noite que conheci meu marido, a primeira vez que segurei meu livro em minhas mãos, ter filhos, fazer amigos, viajar pelo mundo. Tudo que acumulei na vida, tudo que trabalhei tanto para conquistar, agora tudo isso está sendo levado embora. Como podem imaginar, ou como vocês sabem, isso é o inferno. Mas fica pior.

Quem nos leva a sério quando estamos tão diferentes do que éramos? Nosso comportamento estranho e fala confusa mudam a percepção que os outros têm de nós e a nossa percepção de nós mesmos. Tornamo-nos ridículos. Incapazes. Cômicos. Mas isso não é quem nós somos. Isso é a nossa doença. E como qualquer doença, tem uma causa, uma progressão, e pode ter uma cura. Meu maior desejo é que meus filhos, nossos filhos, a próxima geração não tenha que enfrentar o que estou enfrentando. Mas, por enquanto, ainda estou viva. Eu sei que estou viva. Tenho pessoas que amo profundamente, tenho coisas que quero fazer com a minha vida. Eu fui dura comigo mesma por não ser capaz de lembrar das coisas. Mas ainda tenho momentos de pura felicidade. E, por favor, não pensem que estou sofrendo. Não estou sofrendo. Estou lutando. Lutando para fazer parte das coisas, para continuar conectada com quem eu fui um dia. 

‘Então, viva o momento’, é o que digo para mim mesma. É tudo que posso fazer. Viver o momento. E me culpar tanto por dominar a arte de perder. Uma coisa que vou tentar guardar é a memória de falar aqui hoje. Irá embora, sei que irá. Talvez possa desaparecer amanhã. Mas significa muito estar falando aqui hoje. Como meu antigo eu, ambicioso, que era tão fascinado em comunicação. Obrigada por essa oportunidade. Significa muito para mim.”  Alice

 

Lydia: O que eu acabei de ler, você gostou?
Alice: O quê?
Lydia: Sobre o que era?
Alice: Amor. Sobre amar.
Lydia: Isso mesmo, mãe. Era sobre o amor.

Em “Para sempre Alice”, vimos como uma pessoa, em um dado contexto, reage à sua própria deterioração, como ela avalia cada fase desse processo (quando ainda tem condições para isso) e observamos as decisões que ela é capaz de tomar quando o futuro é, de fato, totalmente incerto ou certo de uma forma muito ruim. Em algumas das decisões de Alice podemos fazer um paralelo com o filme Amour, em que a morte passa a ser uma possibilidade menos angustiante do que imaginar uma vida na qual você não se reconheça.

Alice aprendeu a ser autossuficiente desde muito cedo, afinal sua mãe e irmã morreram quando ela era bem jovem, e seu pai era um alcóolatra. O pensar a fazia existir. Daí quando sua mente se torna um labirinto e as palavras deixam de formar discursos ou, até mesmo, meras sentenças, quando não há como resgatar lembranças da memória, pois nela esse conceito estava caótico ou totalmente perdido, fica aquela sensação estranha que, talvez, a Alice tenha deixado de existir. Porém, o filme também é sobre esperança, por isso que, ao final, quando vimos uma Alice quase sem voz, balbuciando com dificuldade algumas palavras, mas entendendo (ainda que parcialmente) o significado de um texto recitado por sua filha, tem-se um vislumbre de alguém que ela foi e isso, naquele momento, é tudo.

 

TRUZZI, Annibal; LAKS, Jerson. Doença de Alzheimer esporádica de início precoce.Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 32, n. 1,   2005 .   Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832005000100006&lng=en&nrm=iso. access on  20  Jan.  2015.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832005000100006.

 

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FICHA TÉCNICA DO FILME

PARA SEMPRE ALICE

Título Original: Still Alice
Direção: Richard Glatzer, Wash Westmoreland
Roteiro: Lisa Genova (livro), Richard Glatzer, Wash Westmoreland
Elenco Principal: Julianne Moore, Kristen Stewart, Alec Baldwin, Kate Bosworth
Ano: 2014
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“Caminhos da Floresta” e a psicologia dos contos de fadas

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Com 3 indicações ao Oscar 2015:

Melhor Atriz Coadjuvante (Meryl Streep); Melhor Desenho de Produção (Anna Pinnock eDennis Gassner); e Melhor Figurino.

Caminhos da floresta é uma síntese de vários contos de fadas. No filme encontramos Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, Cinderela e João e o pé de feijão. Todas as histórias desses personagens se entrelaçam ao redor dos personagens principais que são o Padeiro e sua Mulher, que foram amaldiçoados por uma bruxa e por isso não podem ter filhos.

 

É interessante observar que o nome do casal não é mencionado. Sobre isso podemos explorar algumas coisas. Bem os contos de fadas nos apresentam figuras arquetípicas, como o herói, a bruxa, fadas, ogros, etc. Ou seja, os contos nos apresentam figuras presentes no inconsciente coletivo, mas que não são humanas, mas representam aspectos da psique coletiva.

O Padeiro é o herói da trama e como herói ele representa um ego arquetípico que é edificado pelo Self. Ou seja, um modelo de ego ideal e um modelo de comportamento para a personalidade consciente. É aquele que age em harmonia com seus instintos e com a totalidade psíquica e que vai estabelecer o equilíbrio perdido da consciência coletiva.

 

 

O fato do padeiro não ter nome simboliza um caráter não pessoal e coletivo. Quando nomeamos algo damos forma a ele e trazemos ao nível pessoal. Essa impessoalidade do herói do filme é um pouco problemática, uma vez que não nos ligamos a ele de forma pessoal, em comparação aos outros heróis de contos de fadas, como Aladim, Peter Pan etc. Significando, então, que esse ego ideal ainda não é capaz de ser totalmente assimilado pela consciência humana.

 

 

O herói do filme é chamado pela sua função – a de padeiro. Ele não é um guerreiro, nem um nobre e não é valente. Sua função é sovar massa e assar os pães e doces do reino. O ato de sovar a massa e alimentar as pessoas está ligado a função sensação. Função essa que liga-nos à realidade, aos cinco sentidos e ao aqui e agora.

O fato de ele ser uma pessoa simples se opõe a ideia contemporânea que o homem precisa ser bem sucedido, um guerreiro másculo e viril. E essa figura do padeiro, que alimenta as pessoas e é sensível mostra justamente o que falta na nossa consciência ocidental para uma ampliação de horizontes.

 

E através dessa jornada narrada no filme, o padeiro entra em contato com a intuição (função essa que se opõe a sensação), simbolizada pela floresta e pelos seres que nela habitam. Ele como é visto terá de confiar naquilo que ele não vê. E não pode provar e a força que o impulsiona a isso é sua mulher que deseja ardentemente um filho.

A ação se inicia quando a bruxa – que também não tem nome – revela ao Padeiro e sua esposa que o pai dele roubou hortaliças de seu jardim, para satisfazer o desejo da esposa, e como punição ele teve de entregar a ela sua filha (Rapunzel), que agora vive em uma torre sem portas. Além disso, o pai do herói roubou alguns feijões do jardim da bruxa e a bruxa o puniu jogando um feitiço que deixou toda sua descendência estéril.

Mas a bruxa lhe oferece uma saída. Para reverter o feitiço o padeiro deverá conseguir quatro objetos até a meia noite. São eles: uma vaca branca, uma capa vermelha, um cabelo amarelo e um sapato que brilha como o ouro.

 

 

Bem todos os objetos solicitados pela bruxa pertencem aos personagens de contos de fadas. A vaca pertence a João, a capa a Chapeuzinho, o cabelo a Rapunzel e o sapato a Cinderela. E dessa forma todos esses personagens clássicos se fundem na história do casal e da bruxa.

Não vou entrar aqui nos detalhes da trama e nem de cada personagem de contos de fadas, pois o texto se tornaria longo demais. Os detalhes de Cinderela, Chapeuzinho, João e Rapunzel devem ser esmiuçados em textos diferentes. Vou apenas me ater ao simbolismo de cada um dos artefatos.

 

 

Bem os objetos solicitados pela bruxa são em numero de quatro. O quatro na psicologia analítica simboliza a totalidade. Dessa forma a jornada do herói no filme é em busca a totalidade. Além disso, as cores da vaca, da capa e do cabelo e sapato se referem a estados da alquimia conhecidos como albedo, rubedo e citrino.

O albedo simboliza uma purificação, um renascimento, o clareamento das ideias, a paz e a tranquilidade. É o momento no qual se ressurge das sombras. Mas é um estado impossível de ser mantido, e logo o citrino surge.

O citrino é um estágio intermediário. Nesse estágio há a transformação da prata em ouro. É o despertar do estado paradisíaco do albedo. A alma se volta para as questões mundanas, para a racionalidade.

A rubedo é o fogo, o sangue, o calor. Depois da calmaria do albedo, chegamos à paixão, ao desejo, à ação. É a transmutação através do fogo. É a vontade de agir. Nessa fase não há mais medo.

 

A cor e estado alquímico que falta nesses objetos é o negro da nigredo. Entretanto ela se apresenta simbolizada pela floresta escura, onde os personagens encaram seus medos e temores. Na segunda parte de filme, após os conhecidos finais felizes dos contos clássico terem ocorrido, a nigredo se faz presente.

Após o Padeiro e sua mulher conseguirem os objetos e a bruxa desfazer a maldição, o casal tem seu sonhado filho. E os personagens clássicos encontram seus finais felizes conhecidos. Até a bruxa consegue o que deseja, uma vez que sua intenção não era ajudar o casal, mas se tornar mais jovem e bela para que Rapunzel não tivesse mais vergonha dela.

 

 

Entretanto, um pé de feijão cresce sem o conhecimento dos personagens, e desse pé a esposa do gigante desce buscando vingança contra quem matou seu marido, ou seja, João. E após isso tudo muda, os personagens mostram seus aspectos sombrios, o príncipe, por exemplo, é infiel a Cinderela. E isso vem nos mostrar que na vida real após um final feliz vem sempre um novo desafio, um novo recomeço. A vida é cíclica e não sabemos quais novos desafios e aspectos sombrios nossos iremos encarar logo em seguida.

 

 

O fato de ninguém ter visto o feijão cair mostra que o desafio se formou no inconsciente primeiramente. Ao cair no solo ele é reprimido e pela consciência e se avoluma chegando a alcançar o céu.

Os gigantes nos contos de fadas simbolizam complexos autônomos de forte conteúdo emocional. Eles são representados como lentos e estúpidos. Psicologicamente também representam uma supervalorização de si próprio, mas que por vezes é necessária, pois caso contrário a pessoa não consegue realizar nada e assim sair de um estado que é apenas confortável. Os gigantes então representam certa megalomania do ego e por serem lentos e estúpidos mostram o tamanho do esforço que deve ser feito para sair da zona de conforto.

 

 

A gigante desce do céu, mostrando que um complexo e uma forte emoção atrelada a ele estava apenas no mundo das ideias, sendo racionalizada. Portanto, aquele final feliz escondia um segredo, uma megalomania inflacionaria que estava disfarçada e reprimida.

 

 

O feijão cai no solo e cresce atingindo o céu. Ou seja, esse pé de feijão tem a função de ligar dois mundos com a função de trazer o que há neles para o mundo humano. Na Mitologia o mundo subterrâneo e o céu representado pelo Olimpo não se misturavam. Cada um dos reinos tinha o seu deus regente e em raríssimas exceções eles iam ao reino um do outro. Apenas um deus podia transitar em todos os reinos e no mundo humano, esse deus era Hermes.

Podemos interpretar a vingança da mulher gigante como uma vingança contra a inflação humana. Uma deusa que desce dos céus para punir todos os eu tentam se igualar aos deuses.

 

 

A segunda parte do filme pode ser desconcertante para os mais sensíveis, pois mostra a noite escura da alma humana, a Nigredo. Ela mostra a vaidade, a ambição, a cobiça, a mesquinhez, o adultério, ou seja, toda a parte obscura que nossa sociedade judaico-cristã tenta de forma capenga reprimir.

 

O filme é então uma critica a essa sociedade, que busca finais felizes sem antes olhar suas mazelas, e que transfere para o outro seus aspectos sombrios ,(uma das cenas desconcertantes é quando os personagens tentam encontrar um culpado pela vinda da gigante) sem assumir seus erros e responsabilidades.

 

Enquanto olharmos apenas para a pureza, racionalidade (albedo), iluminação (citrino) e a ação (rubedo), e nos esquecermos e desprezarmos nossa sombra, não prestaremos a devida atenção aquilo que plantamos e sempre seremos pegos por gigantes vingativos. Somente com o enfrentamento dessa sombra podemos nos tornar mais humanos.

 

Trailer

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

CAMINHOS DA FLORESTA

Título Original (EUA): Into the Woods (Original)
Direção: Rob Marshall
Duração: 125 minutos
Classificação: 12 anos
Ano: 2015

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Alan Turing e “O Jogo da Imitação”: o que significa ser humano?

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Com oito indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Morten Tyldum), Melhor Ator (Benedict Cumberbatch), Melhor Atriz Coadjuvante (Keira Knightley), Melhor Roteiro Adaptado (Graham Moore), Melhor Direção de Arte, Melhor Edição e Melhor Trilha Sonora Original.

 

“O que eu sou? Sou uma máquina ou um ser humano? Um herói de guerra ou um criminoso?”

“O Jogo da Imitação” conta a história de um dos mais importantes cientistas do século XX, Alan Turing, responsável por descobertas em áreas que vão desde a computação até a biologia molecular. É o gênio que criou uma máquina, precursora dos computadores, capaz de quebrar o código da máquina alemã Enigma, ajudando os Aliados a vencer a Segunda Guerra Mundial, o que diminuiu de forma significativa muitas tragédias desenhadas em mapas de ataque alemães e, principalmente, segundo alguns historiadores, o tempo de duração da guerra. Com a publicação de vários artigos e os trabalhos realizados na Segunda Guerra, Turing revolucionou o campo da criptografia e seus métodos contribuíram com o desenvolvimento da área de Inteligência Artificial.

 

Alan Turing, Fotografado por Elliott & Fry studio em 29 de Março 1951

 

O herói de guerra e gênio da matemática morreu sozinho em sua casa (aos 41 anos –  1952) em meio às suas invenções, fórmulas e cianureto. Isso depois de ter sua mente e seu corpo destruído por um processo de castração química. Por quê? Por ser homossexual e, assim, não conseguir “controlar” seus desejos tão humanos em uma época e em um país (Inglaterra) que tal conduta era tida como uma conduta criminosa.

Até 1974 as conquistas de Turing durante a Segunda Guerra eram desconhecidas e foi apenas em 2013 que o “perdão” lhe foi concedido pela Rainha da Inglaterra. Nas palavras do ministro da Justiça, Chris Grayling, “Turing merece ser lembrado e reconhecido pela sua fantástica contribuição aos esforços de guerra e por seu legado à ciência. É um tributo apropriado a esse homem excepcional”.

 

 

Segundo o Diretor Morten Tyldum [1], duas grandes questões permeiam o filme: “O que significa estar vivo? O que significa ser humano?”.

Para mim Turing é tanto um filósofo quanto um matemático, porque suas ideias lidam com o que significa pensar. Só porque alguém ou alguma coisa pensa de forma diferente de você, isso não significa que ele(a) não esteja pensando.” (TYLDUM [1])

 “O Jogo da Imitação”, a expressão que deu nome ao filme, é o título de um dos capítulos de um famoso artigo de Turing, publicado na revista Mind [2]. O artigo propõe inicialmente examinar uma questão que permeia toda a sua obra:

‘As máquinas podem pensar?’ Isso deve começar com definições do significado dos termos “máquina” e “pensar”. As definições podem ser enquadradas de forma a refletir tanto quanto possível o uso normal das palavras, mas essa atitude é perigosa, pois se o significado das palavras “máquina” e “pensar” são definidos pela maneira como elas  são comumente usadas é difícil concluir que o entendimento do significado é a resposta para a pergunta… Em vez de tentar uma definição desse tipo, proponho substituir a questão por uma outra… A nova forma do problema pode ser descrita em termos de um jogo que chamamos de ‘jogo de imitação (Turing, [2])

Essa, então, é a proposta: um computador que fosse capaz de fazer o “jogo da imitação” de tal forma que em uma conversa entre um ser humano e uma máquina, uma terceira pessoa (que estivesse participando da conversa em outra sala) não conseguisse distinguir entre a máquina e o humano. Posteriormente, esse jogo foi denominado Teste de Turing.

 

 

O filme é uma adaptação do livro “Alan Turing: The Enigma”, escrito pelo matemático Andrew Hodges. O diretor Tyldum apresenta o filme como um quebra-cabeças formado a partir da junção (não linear) de três fases da vida de Turing:  quando ele estudou na Escola de Sherborne, na adolescência, e conheceu Christopher Morcom; na Segunda Guerra, quando ele liderou um grupo de gênios que desvendou o código da máquina alemã Enigma; e quando foi preso pelo crime de praticar condutas homossexuais.

“Sabe por que as pessoas gostam de violência? É porque faz você se sentir bem. Humanos acham a violência profundamente satisfatória. Mas retire a satisfação e o ato se torna vazio.” (Alan Turing – Filme)

Ao retratar a adolescência de Turing em 1928 (quando ele tinha 16 anos), é apresentado Christopher Morcom, seu único amigo na escola de Sherborne e seu primeiro amor (ainda que platônico), cuja morte prematura em 1930 marcou profundamente os rumos que Turing daria às suas pesquisas. Conforme relatado em [3], Alan tornou-se obcecado em desvendar a natureza da consciência, a sua estrutura e suas origens. Ele desejava entender o que tinha acontecido com Christopher, considerando um aspecto essencial: sua mente. […] E qualquer área do conhecimento que pudesse ter relevância nesse contexto tinha que ser explorada. Assim, ele mergulhou em trabalhos relacionados à biologia, filosofia, metafísica, lógica matemática e, até mesmo, mecânica quântica. Começou a entender, como natural, pensar sobre a mente como uma máquina inteligente, cujos processos podem ser modelados e previstos a partir do uso da lógica matemática.

Christopher Morcom e Alan Turing em 1928

 

Christopher deu a Turing um propósito, ainda que a ideia de um primeiro amor não vivido tenha contribuído ainda mais para amplificar alguns aspectos da sua personalidade, muitas vezes identificados como negativo, como sua arrogância e seu distanciamento das pessoas. Talvez o distanciamento fosse uma forma de sobreviver, já que seus pensamentos poderiam ser considerados complexos demais para a maioria das pessoas e sua homossexualidade era algo abominável no contexto em que vivia.

 

 

A segunda fase da vida de Turing é apresentada no período da Segunda Grande Guerra (1939-1945). Nessa fase, tem-se o encontro de Turing com Joan Clarke (interpretada por Keira Knightley), uma estudante de matemática de Cambridge. Foi a única mulher que trabalhou como criptonalista em sua equipe. De uma família de eruditos, conseguiu, em parte, romper algumas barreiras impostas às mulheres na época. Talvez a proximidade entre ela e Turing tenha relação com o fato de ambos estarem à margem da sociedade da época, como se eles não se enquadrassem no contexto.

Durante os anos que viveram em meio a códigos e a pressão da guerra, tornaram-se grandes amigos, inclusive, como relata Joan Clarke em [4], em uma das viagens que fizeram, Alan, que não era propenso a contatos físicos, beijou-a e a pediu em casamento. Considerando que na época uma mulher tinha que, por obrigação social, casar-se e um homem não podia revelar-se homossexual, a questão do casamento entre amigos pareceu algo coerente a ser feito. Mas Alan não conseguiu levar isso adiante e o noivado foi rompido, mas não a amizade. De certa forma, Joan foi uma das poucas pessoas que Turing deixou se aproximar a ponto de enxergá-lo sem a máscara da genialidade ou da arrogância.

 

“A Guerra se arrastou por mais dois solitários anos. E a cada dia mostrávamos nossos suados cálculos. Todo dia decidíamos quem vivia ou morria. Todo dia ajudávamos os Aliados a vencerem e ninguém sabia… E o povo fala da Guerra como uma batalha épica entre civilizações. Liberdade contra tirania. Democracia contra Nazismo. Exército de milhões sangrando no chão. Frotas de navios afundando no oceano. Aviões lançando bombas do céu. A Guerra não era assim para nós. Éramos só meia dúzia de entusiastas numa vila ao sul da Inglaterra.”(Alan Turing – Filme)

A Segunda Guerra Mundial foi o marco de uma grande mudança: o vencedor não seria o mais forte, mas sim o mais preparado. E estar preparado envolvia a intersecção entre dois universos até então praticamente disjuntos: ciência e tecnologia. O conhecimento científico que antes estava preso aos muros da universidade, na cabeça de alguns pesquisadores, poderia, de fato, ser transformado em tecnologia capaz de mudar os rumos da história. E foi isso que Alan Turing fez. Mostrou que os artigos publicados antes mesmo dele completar 24 anos não eram uma série de linhas imaginárias ou conjuntos puramente abstratos povoando sua complexa mente, suas ideias poderiam ser usadas para criar máquinas ou definir métodos que resultariam, dentre outras coisas, no fim de uma guerra.

A equipe que trabalhou com ele, especialmente Joan Clarke, teve um papel importante em todo o processo mas, sem a máquina criada por Turing, que no filme foi denominada Christopher (em alusão ao seu primeiro amor), possivelmente os códigos da Enigma demorariam ainda mais a serem desvendados, o que prorrogaria a guerra e suas terríveis consequências. Ter nas mãos o quadro estratégico dos ataques alemães também significou ter que tomar decisões complexas. Como disse Turing no filme, “às vezes não podemos fazer o que nos faz sentir bem, nós temos que fazer o que é lógico”.

 

 

A terceira parte do quebra-cabeças é Turing no final da vida, aos 41 anos de idade, com dificuldade em fazer uma palavra-cruzada, com medo de ser afastado daquilo que lhe restou: suas máquinas e seus códigos. Segundo [5], “Turing admitiu abertamente a sua homossexualidade e como castigo o estado ofereceu-lhe uma escolha entre a prisão ou um tratamento hormonal (a castração química). Ele escolheu a segunda opção, que previsivelmente provocou danos em seu corpo e em sua mente. A condenação também custou ao herói de guerra suas habilitações de segurança e o impediram de viajar para os EUA e outros países”.  A interpretação de Benedict Cumberbatch trouxe à tona toda a fragilidade de Turing. De certa forma, sua mente sempre tão dinâmica e repleta de dados, parecia vazia e sem alicerce. Essa tragédia, que elimina um universo único, que é um ser humano, Turing não conseguiu evitar. A ignorância e a intransigência de certas pessoas, baseadas em determinadas leis, foram maiores que sua inteligência e espírito.

 

Alan: Conseguiu o que quis, não foi? Um trabalho, um marido, uma vida normal.

Joan: Ninguém normal poderia ter feito aquilo. Hoje, pela manhã, eu estava em um trem que passou por uma cidade que não existiria se não fosse graças a você. Comprei uma passagem de um homem que, possivelmente, estaria morto, se não fosse graças a você. Li em meu trabalho que todo um campo de investigação científica só existe graças a você. Agora, se você desejava ser normal… Posso te prometer que eu não iria querer isso. O mundo é, precisamente, um lugar infinitamente melhor por você não desejar ser normal.

Joan foi amiga de Turing ao longo de toda a sua breve vida e, também, sua confidente.  A forma como esse relacionamento é conduzido no filme é um dos seus principais méritos. A cena em que vimos um Alan quebrado e confuso, longe de seu habitual orgulho e do controle de suas habilidades cognitivas, questionando se era um inadequado, ou se não era “normal” o suficiente para ser feliz, é um dos momentos mais sensíveis do filme.

Alan Turing aos cinco anos de idade

 

Voltando às duas questões iniciais: “O que significa estar vivo? O que significa ser humano?” Não temos essa resposta no filme, nem creio que dar essas respostas era a pretensão do diretor. As questões levantadas já são suficientes para nos fazer refletir sobre uma parte importante da história, mas especialmente sobre questões relacionadas àquilo que consideramos certo ou errado, humano ou monstruoso, moral ou imoral.

Por muito tempo a Inglaterra relutou em conceder o perdão a Turing, pois dizia que era inapropriado conceder o “perdão” a quem “foi devidamente condenado pelo o que então era um delito”. A palavra “perdão” considerando, nesse contexto, o sujeito que perdoa e aquele que é perdoado carrega em si uma triste ironia. Estão perdoando alguém cujo crime foi ser humano, que buscava se sentir vivo, que usava sua mente complexa para tentar entender como pensamos e, considerando que isso seja algo maravilhoso, como podemos construir máquinas que possam ter a sua própria maneira de pensar.

 

[1] http://www.theguardian.com/science/2014/nov/14/imitation-game-alan-turing-benedict-cumberbatch

[2] Turing, A.M. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59, 433-460. Disponível em: http://www.loebner.net/Prizef/TuringArticle.html

[3] http://www.nndb.com/people/952/000023883/

[4] My Engagement to Alan Turing by Joan Clarke (later Joan Murray). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MB2e9R7bXCk

[5] PICKETT, Brent. Alan Turing, Natural Law & Homosexuality. Dez, 2014. Disponível em: http://www.thecritique.com/articles/decoding-apologies-to-alan-turing-is-post-mortem-pardon-meaningless/

 

Trailer:

 

 Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

FICHA TÉCNICA DO FILME

O JOGO DA IMITAÇÃO

Título Original: The Imitation Game
Direção: Morten Tyldum
Roteiro: Andrew Hodges (book), Graham Moore (screenplay)
Elenco Principal: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode
Ano: 2014
REFERÊNCIAS

[1] http://www.theguardian.com/science/2014/nov/14/imitation-game-alan-turing-benedict-cumberbatch

[2] Turing, A.M. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59, 433-460. Disponível em: http://www.loebner.net/Prizef/TuringArticle.html

[3] http://www.nndb.com/people/952/000023883/

[4] My Engagement to Alan Turing by Joan Clarke (later Joan Murray). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MB2e9R7bXCk

[5] PICKETT, Brent. Alan Turing, Natural Law & Homosexuality. Dez, 2014. Disponível em: http://www.thecritique.com/articles/decoding-apologies-to-alan-turing-is-post-mortem-pardon-meaningless/

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Boyhood – Da Infância à Juventude

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Richard Linklater), Melhor Ator Coadjuvante (Ethan Hawke), Melhor Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette), Melhor Roteiro Original (Richard Linklater) e Melhor Edição. 

“As pessoas viajam para admirar a altura das montanhas, as imensas ondas dos mares, o longo percurso dos rios, o vasto domínio do oceano, o movimento circular das estrelas e, no entanto, elas passam por si mesmas sem se admirarem.”

Santo Agostinho, Confissão X [1]

Boyhood é uma sensível e arriscada experiência realizada por Richard Linklater.  O filme não é sustentado por um enredo com grandes reviravoltas ou espetaculares efeitos, nem tem um final que fecha todas as arestas, na verdade, não é possível identificar quais arestas devem ser fechadas, já que o filme, como a vida, é uma experiência contínua, sem delimitações precisas ou entendimento a priori de quando tudo acaba.

O que acompanhamos na tela são os 12 anos da vida de um garoto (dos 6 aos 18 anos), e as mudanças que o tempo pode provocar na relação dele com as pessoas e na sua percepção dos acontecimentos. O que torna esse filme tão singular é a maneira como Linklater o construiu, filmando as cenas em 12 anos, considerando as mudanças de cada personagem/ator, das mais visíveis, como o crescimento ou envelhecimento natural, até as mais sutis, como o sentido que cada sujeito tem do contexto vivido.

Linklater já tinha lidado com a questão da passagem do tempo na construção de outros filmes, vide a trilogia Before, que conta a história de um casal aos 23 (Antes do Amanhecer), 32 (Antes do Pôr-do-Sol) e aos 40 anos (Antes da Meia-Noite), acompanhando a idade cronológica dos atores. Em outras sagas também vimos os atores crescerem juntamente com os personagens, como é o caso de Harry Potter ou de algumas séries de TV. Mas em nenhuma dessas situações vimos isso acontecer em um espaço tão curto, ou seja, nas 3 horas de duração do filme.  E é a possibilidade de ver esses atores/personagens modificando-se no decorrer da história que a torna tão especial e um dos motivos que fez essa obra de Linklater ser tão aclamada.  Mas não foi só isso…

O tempo é uma das principais variáveis do filme, e para que sua passagem fosse assimilada de forma profunda, Linklater utilizou-se de músicas (Coldplay, Foo Fighter, Lady Gaga, Arcade Fire…), tecnologias (iMac G3, Xbox 360, Wii, Facebook, Facetime…), política (eleição do Obama), cinema/livros (Harry Potter, Toy Story, Star Wars, Homem Aranha…) e, especialmente, um roteiro que tornou o amadurecimento de cada pessoa do filme crível, sem exageros.

Mason: Não existe magia de verdade no mundo, não é?

 

Mason (o excelente Ellar Coltrane) é filho de pais separados (Patricia Arquette e Ethan Hawke, ambos em interpretações marcantes) e tem uma irmã mais velha (Lorelei Linklater). Sua mãe carrega a responsabilidade de criar sozinha duas crianças e ainda ter que fazer uma graduação e tentar uma nova profissão, enquanto isso, o pai dos meninos viaja pelo mundo, sem emprego ou local fixo. A passagem do tempo dá a mãe experiências desastrosas em dois relacionamentos com homens abusivos e alcóolatras, e torna o pai, aos poucos, um homem mais responsável, ainda que menos interessante. Mason é a nossa ligação com essa família e, através dos seus olhos, vamos solidificando a ideia de que a vida é por si só  um acontecimento extraordinário.

Mason: Então de que adianta?
Pai: O quê?
Mason: Não sei, tudo.
Pai: Tudo? De que adianta? Não faço ideia. Ninguém sabe. Estamos só vivendo, sabe? Pelo menos você está sentindo algo. Aproveite, isso passa. Você envelhece e não sente tanto, você cria resistência.

 

Há várias abordagens na psicologia que tenta explicar o desenvolvimento humano. Desde as teorias de Piaget até a vertente sócio-histórica de Vygotsky. O desenvolvimento pode ser equiparado, em um dado nível, a um processo de transformação. Segundo [2], as transformações concernentes à vida de uma pessoa estão relacionadas a um conjunto complexo de fatores: “a etapa da vida em que a pessoa se encontra; as circunstâncias culturais, históricas e sociais nas quais sua existência transcorre; e as experiências particulares privadas de cada um e não generalizáveis a outras pessoas”. É claro que essas experiências são intensificadas na infância e na adolescência, pois é nessa época que ocorrem as transformações físicas mais intensas, o que é refletido nas transformações psicológicas. Por isso, ao vermos as transformações dos pais e dos filhos no filme, verificamos que em um dado ponto, os adultos tornam-se mais presos a um padrão de comportamento, não há mudanças consistentes, enquanto Mason e a irmã estão no auge de intensas transformações.

Mason: Parece que todo mundo está em algum lugar intermediário. Sem realmente vivenciar nada.

O filme inicia-se com Mason, aos seis anos, observando o céu e a sensação que temos no decorrer do tempo é que, para ele, tudo parece ser transitório, mas há um sentido constante de apreciação da beleza da vida. E o desejo de apreender o momento, ainda que pareça que ele sabia que isso seja impossível, o faz iniciar-se na fotografia. Nas palavras de Cartier-Bresson, entendemos que “fotografar é prender a respiração quando todas as faculdades convergem para captar a realidade fugaz”. É essa inconstância da vida e, ao mesmo tempo, a ideia de que as coisas parecem girar em torno de algo incompreensível e, por isso mesmo, sem sentido, que dá um tom de melancolia à história. Diferente de uma ideia niilista, em que tudo tanto faz e ponto, parece permanecer em Mason uma sensação de que mesmo se todos os caminhos, de fato, não levem a nada, ainda é interessante fazer o percurso.

Nicole: Sabe quando dizem ‘aproveite o momento’? Acho que é ao contrário. É como se o momento nos aproveitasse.
Mason: Eu sei, é constante. Os momentos são… Parece que sempre é o agora.

[1] AGOSTINHO, Santo. Confissões, IN-CM, Lisboa, 2001. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/agostinho_de_hipona_confessiones_livros_vii_x_xi.pdf

[2] OLIVEIRA, Marta Kohl de. Ciclos de vida: algumas questões sobre a psicologia do adulto . Educação e Pesquisa, Brasil, v. 30, n. 2, p. 211-229, ago. 2004. ISSN 1678-4634. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ep/article/view/27931/29703>. Acesso em: 12 Jan. 2015. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022004000200002.

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FICHA TÉCNICA DO FILME

BOYHOOD: DA INFÂNCIA À JUVENTUDE

Título Original: Boyhood
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater
Elenco Principal: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Lorelei Linklater and Ethan Hawke
Ano: 2014

Alguns Prêmios:

Golden Globes: Melhor Filme – Drama, Melhor Direção, Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette)
AFI Awards: Filme do ano.
Austin Film Critics Association: Melhor Direção, Melhor Filme, Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette)
Berlin International Film Festival: Urso de Prata (Melhor Direção)
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O Grande Hotel Budapeste: ode à amizade e à resiliência

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Com nove indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Wes Anderson), Melhor Roteiro Original, Melhor Edição, Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte, Melhor Maquiagem e Melhor Trilha Sonora Original. 

 

Precisamos ensinar a juventude a odiar o ódio, porque ele é infértil e destrói o prazer da existência – Stefan Zweig

Baseado na obra de Stefan Zweig (1881 – 1942) e com a brilhante direção de Wes Anderson, “O Grande Hotel Budapeste” é um presente aos amantes da Sétima Arte. O filme, dentre outros aspectos, tem uma estética tocante e é uma síntese do pensamento de Zweig sobre a Europa do entre-guerras, que à época estava marcada pela desconfiança, por violência, pelo tom de superioridade em relação ao resto do mundo, tom este balizado pela falsidade e, em medida análoga, “hipnotizada por antigos rancores e lembranças”. Ralph Fiennes (personagem de M. Gustave), Tony Revolori (Zéro), F. Murray Abraham (Mr. Moustafa), Mathieu Amalric (Serge X.), Adrien Brody (Dmitri), Saoirse Ronan (Agatha) e Willem Dafoe (Jopling) foram alguns dos atores/atrizes que fizeram parte do “time” que deu um brilho a mais para o longa.

O filme conta a estória de um “famoso gerente de um hotel europeu que conhece um jovem empregado” [imigrante], e daí nasce uma grande amizade. Entre as aventuras e desventuras vividas pelos dois, há episódios eletrizantes (até mesmo cômicos) como o roubo de um famoso quadro do Renascimento, além de testemunharem “a batalha pela grande fortuna de uma família e vivenciarem as transformações históricas ocorridas na região”.

Mas sem a engenhosidade do diretor Wes Anderson talvez “O Grande Hotel Budapeste” não teria alcançado seu intento nos cinemas. Wes conseguiu transpor para a grande tela a dinâmica de intrigas testemunhadas por Zweig, desavenças estas que varreram a Europa de aproximadamente 100 anos atrás, uma verdadeira “Babel” onde o idealismo “havia sido corroído” pelo crescente interesse na divisão das fronteiras, que exacerbava a diferença e o nacionalismo. Período em que a variedade estaria longe de se tornar um caldeirão cultural sadio, como sonharam alguns líderes políticos no pós-guerra.

No longa, três aspectos saltam aos olhos: o imigrante como esperança e representação “do novo”, o enfoque na transformação pela amizade e, por fim, a (re)ação por meio da resiliência¹.

 

ESPERANÇA NO ALÉM-FRONTEIRAS

Neste ínterim, a visão de Stefan Zweig sobre o “além-fronteiras” é mantida, já que Zéro é a caricatura, em alguma medida, da solidariedade e da humanidade ainda encontradas no Novo Mundo ou nos países explorados economicamente pela Europa, em sua política de colonização. Zéro, assim, aparece esperançosamente como um “jovem com frescor, que vive para o futuro, não para o passado com suas ideias obsoletas” (ZWEIG, 1936, p. 03).

O desenrolar e amadurecimento da forte amizade entre os principais personagens, mesmo diante de um cenário “encoberto pela névoa venenosa da desconfiança” (ZWEIG, 1936, p. 04), representa o sonho de Zweig, que exortava seus contemporâneos a se privar

 De qualquer palavra que possa aumentar a desconfiança entre pessoas e nações; ao contrário, temos o dever positivo de agarrar a menor oportunidade para julgar as realizações de outras raças, outros povos e países de acordo com o seu mérito (ZWEIG, 1936, p. 06).

 A ação redentora para superar a adversidade e desenvolver a resiliência (tanto do imigrante Zéro quanto do esmerado gerente M. Gustave) seria ancorada na afeição. É através da amizade que os preconceitos se desarmam, e a confiança aos poucos se sobrepõe, dando à vida contornos de autenticidade.

E desta pujante relação fraterna, o longa conseguiu captar parte da percepção de Stefan Zweig, que mesmo desacreditado com o Velho Mundo, impôs na obra a possibilidade de se manter algum grau de idealismo, mesmo na pior das circunstâncias. Isso em oposição à própria barbárie decorrente da expansão do nazismo e do antissemitismo (Zweig era judeu), se colocando aparentemente como uma espécie de “idealismo ético”, em que pese o caráter da ação no campo do particular, por parte dos protagonistas.

ENFOQUE NO SUJEITO QUE NÃO SE VITIMIZA

Zweig imprime nos personagens o início mesmo do enfoque no sujeito (aqui, no sentido filosófico), que apesar de estar embebido na velocidade das transformações histórico-políticas da ocasião, percebe claramente “o seu lugar no mundo”, mantendo a altivez e transformando as circunstâncias em oportunidades de superação. Pena que o próprio Zweig não suportou as atrocidades nazistas, acabando por se suicidar – ele e a esposa – em seu exílio em Petrópolis-RJ.

M. Gustave e Zéro delineiam a “atitude resiliente”, aquela que opta por “minimizar ou superar os efeitos nocivos das adversidades, inclusive saindo fortalecidos dessas situações” (ANGST, p. 254 apud MOTA, BENEVIDES-PEREIRA, GOMES & ARAÚJO [2006, p. 58]). No entanto, como lembra Rosana Angst:

É importante salientar que a resiliência não pode ser considerada um escudo protetor, que fará com que nenhum problema atinja essa pessoa, a tornando rígida e resistente a todas as adversidades. Não existe uma pessoa que É resiliente, mas sim a que ESTÁ resiliente (ANGST, 2009, p. 254).

 M. Gustave e Zéro não ficam imunes aos problemas, eles são transformados por estes contratempos sem se posicionarem como vítimas. No final, estão profundamente impactados. Abraçam as circunstâncias adversas, sempre procurando encontrar soluções, num processo que é enérgico e onde “as influências do ambiente e do indivíduo relacionam-se de maneira recíproca, fazendo com que o indivíduo identifique qual a melhor atitude a ser tomada em determinado contexto” (ANGST, 2009, p. 255 apud PINHEIRO, 2004; ASSIS, PESCE & AVANCI, 2006).

Angst também lembra que “a resiliência não é adquirida, e sim aprendida”. No caso de Zéro e M. Gustave, há a forte influência mútua, decorrente da amizade, onde ambos saem ganhando, num arcabouço de “complementaridade ideal”. Zéro, apesar de jovem, esteve em contato com a guerra (e tudo o que dela resulta, como perseguição, doença e morte); M. Gustave tem a sagacidade de anos como gerente de um hotel que é símbolo da instabilidade regional (embora, no passado, fosse um retrato da opulência europeia).

No ato final, o que se vê é a solidificação da fraternidade, a expressão mesma da amizade, onde se percebe “um relacionamento humano que envolve o conhecimento e a afeição, além de uma lealdade que se confunde com altruísmo”. Como filme impecável, “O Grande Hotel Budapeste” poderia ser resumido num fragmento do “Soneto do amigo”, de Vinícius de Moraes, para quem “[…] depois de tanto erro passado / Tantas retaliações, tanto perigo / Eis que ressurge noutro o velho amigo / Nunca perdido, sempre reencontrado”. E a força dos protagonistas lembra uma tocante frase de outro judeu-austríaco, inventor da Psicanálise. Para Sigmund Freud, “somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro”. O tempo inteiro, em seus 100 minutos, o filme alerta para esta máxima.

O longa ainda lembra uma célebre frase de um grande conterrâneo de Zweig, o também austríaco Franz Kafka, para quem toda obra de arte, como um bom livro ou um bom filme, por exemplo, “tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós”. Ninguém, presume-se, passa incólume ao assistir “O Grande Hotel Budapeste”.

Nota:

¹ – Resilliência é capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças. O termo é emprestado da física, de onde significa a propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica. Fonte: Dicionário Houaiss. Disponível em <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=resili%25C3%25AAncia> – Acesso em 01/01/2015 (somente com senha).

 

 

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FICHA TÉCNICA DO FILME

O GRANDE HOTEL BUDAPESTE

Direção: Wes Anderson
Atores/atrizes: Ralph Fiennes, Tony Revolori, F. Murray Abraham, Mathieu Amalric,  Adrien Brody, Willem Dafoe, Jude Law, Bill Murray, Edward Norton, Saoirse Ronan, Jason Schwartzman e Tilda Swinton, dentre outros;
Gênero: Comédia, Drama, Policial;
Nacionalidade: Reino Unido, Alemanha
Ano: 2014


Curiosidades sobre Stefan Zweig

* Stefan Zweig é de família judia e nasceu em 28 de novembro de 1881, em Viena (até então Império Austro-Húngaro); com o avanço da escalada de violência na Europa, no entre-guerras, e o antissemitismo nazista, resolve sair da região;

* Zweig foi um dos maiores escritores de seu tempo, e até hoje está entre os autores mais publicados e traduzidos da Europa; o filme “O Grande Hotel Budapeste” é baseado em relatos de sua vida, e em partes de sua obra;

* Zweig e sua esposa Lotte empreenderam três viagens ao Brasil. Finalmente se exilaram no país, por considerarem um dos lugares mais fascinantes do mundo. Ele é autor do famoso livro “Brasil, o país do futuro”, frase que virou jargão e representa o símbolo do orgulho nacional;

* Grande divulgador dos ideais pacifistas, em 1942, deprimido com o crescimento da intolerância na Europa e em comum acordo com a esposa, se suicida em Petrópolis;

* A casa onde Stefan Zweig e sua esposa Lotte moraram na região serrana do Rio de Janeiro foi transformada em museu, e também em Memorial do Exílio. Petrópolis ficou mundialmente famosa após o fatídico acontecimento, que “eternizou a ansiedade e o desespero de um mundo em guerra e sem esperança”.

Sinopse de “O Grande Hotel Budapeste”. Disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-207825/> – Acesso em 30/12/2014;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. 4. ed. São Paulo, SP: Editora Manole, 2006;

Amizade. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Amizade> – Acesso em 30/12/2014;

Biografia de Stefan Zweig. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Stefan_Zweig> – Acesso em 30/12/2014;

Angst, ROSANA. Psicologia e Resiliência: Uma revisão de literatura. Disponível em <www2.pucpr.br/reol/index.php/PA?dd1=3252&dd99=pdf> – Acesso em 31/12/2014;

ZWEIG, Stefan. Um ensaio – A Unidade Espiritual do Mundo. São Paulo: Expresso Zahar, 2014;

Site oficial do museu Casa de Stefan Zweig. Disponível em <http://www.casastefanzweig.org> – Acesso em 01/01/2015.

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“Garota Exemplar” e a tragédia como delineadora da vida

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Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Rosamund Pike)

“O homem é lobo do homem, em guerra de todos contra todos”.
Thomas Hobbes

“Garota Exemplar” é um suspense de aproximadamente duas horas e meia que tem a habilidade de mostrar a tênue linha entre a normalidade e a face nebulosa das pessoas (a Sombra de que fala Jung). Baseado no livro homônimo escrito por Gillian Flynn, o filme trata da estória de Amy Dunne (Rosamund Pike), que na infância é tratada pelos pais e por todos à sua volta com extrema excepcionalidade e que, depois de casada, é obrigada a ter uma vida mediana e a morar no interior para acompanhar o marido. Dunne desaparece no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o esposo Nick (Ben Affleck) em apuros. Neste ínterim, Nick torna-se o principal suspeito do desaparecimento, e conta com a ajuda da irmã para tentar provar sua inocência.

O diretor David Fincher (de “Millennium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”) transpôs para as telas, dentre outras coisas, o chamado “fruto tardio do romantismo”, traduzido essencialmente como o que alguns intelectuais chamam de “fracasso afetivo”, tema amplamente debatido pelos filósofos Luiz Felipe Pondé (PUC-SP) e Daniel Omar Perez (Unicamp), e pelo pensador Michael Foley, só para citar alguns. Neste processo, o amante é “incompleto e errante” e, no fundo, procura “um encontro consigo mesmo sem ter a menor ideia do que procura de si no outro” (PEREZ, 2014). No percurso, pode-se descobrir de forma dolorosa que não é nada fácil (re)conhecer o outro (e, de quebra, a si mesmo).

No filme, Nick é o marido que vive à sombra da esposa e que, enquanto tal, a complementa. Dunne, por sua vez, é a mulher perturbada, apenas uma leve lembrança daquela pessoa que um dia teria projetado tantas glórias. De comum entre os dois, no decorrer da trama (e do próprio relacionamento), há apenas a apatia comum nas relações matrimoniais marcadas pela falta de admiração mútua, e pela acomodação que beira ao ressentimento. Tudo muda, no entanto, quando Dunne descobre que o marido – até então apático e aparentemente inofensivo – a trai sistematicamente com uma mulher mais jovem. O filme tem uma guinada quando a protagonista Dunne se apropria, dentre várias leituras possíveis, de elementos da tragédia como alternativa para resignificar sua existência e vingar-se do marido.

Para tanto, Amy Dunne conduz a vida num enredo onde o real e o imaginário se confunde, e a catarse – objeto preponderante na tragédia e elemento de “purificação e transformação” – é um alvo insistentemente perseguido (mesmo que de forma inconsciente). A protagonista encena a própria vida como forma de voltar a ser centro/referencial, já que em dado momento o marido não mais orbita à sua volta. Neste movimento há, também, traços de sobreposição da personagem feminina sobre a representação do masculino (o que, obviamente, seria tema de novo artigo), tendo em vista que para atuar diligentemente como “senhora da própria vida”, é necessário superar o temor de encarar a solidão “do encontro consigo mesmo”, o que poucos conseguem.

Em “Garota Exemplar” há, assim, uma encenação dentro da encenação. Na estória, há o personagem principal (a mulher outrora excepcional), cuja vida é complexa e digna de ser contada a partir de uma linguagem laboriosa e/ou elevada e, por fim, que resulta em arroubos de destruição ou instabilidade, algo próximo da loucura. Há, portanto, uma possibilidade de destino infeliz para a protagonista, situação que é subvertida no longa, tendo em vista que Amy consegue impingir uma espécie de “castigo eterno” ao seu algoz (que é forçosamente redimido pelas circunstâncias e que, então, volta a ser amante), numa dubiedade típica dos bons suspenses.

Amy Dunne encarna a verdadeira protagonista da tragédia ao rejeitar a possibilidade de sucumbir ao destino que aparentemente lhe aguardava (o de ser abandonada pelo marido). Ela é alguém com vontade, ciente de suas atitudes (atitudes estas altamente discutíveis no âmbito da Ética, mas que demonstram uma tenacidade frente a um objetivo), que não vê outra saída senão “aquela determinada pelos acontecimentos que vão se descortinando frente ao protagonista”. No início do filme, esse arquétipo não tem as pompas e o amplo significado emprestado pelos gregos. Trata-se apenas de alguém fruto da instantaneidade e da visibilidade que lhe impingem (algo semelhante à “sua majestade a criança”, de que fala Freud em Introdução ao Narcisismo), que consegue se sustentar apenas pelo valor que lhe atribuem, e não por seus feitos em si. Uma personagem, então, mais inclinada para a definição do que seria um anti-herói ou “herói às avessas”. Lentamente esta realidade ganha novos contornos e se altera, com cada ação milimetricamente pensada (ou readaptada em decorrência das circunstâncias) por Amy.

No âmbito da Psicologia, o comportamento de Ammy se enquadraria perfeitamente numa espécie de “desvio de personalidade” ou enfraquecimento da persona junguiana, quando os papéis sociais perdem o sentido para o indivíduo, que passa a atuar em comunhão com “aquelas tendências, desejos, memórias e experiências que são rejeitadas por serem incompatíveis com a Persona e contrárias aos padrões e ideais sociais”. Essa atitude pode se confundir com a loucura, mas também flerta com a arte. Amy, então, em que pese o valor de suas ações, transforma a sua vida, que é explicitamente trágica, numa espécie de obra de arte, marcada pela originalidade e pelo deleite (no caso do filme, um deleite mórbido) ocasionado pela força do impacto com que se impõe.

Tanto o filme quanto a protagonista, desta forma, são verdadeiras obras primas. Causam um misto de admiração com espanto, graça com repulsa, precisão com desconexão. Estas são características comuns aos grandes artistas, como o espanhol Salvador Dalí.

“Garota Exemplar” é um antagonista dos tempos de “relações líquidas”, como denunciam Pondé e Bauman, onde a possibilidade de se romper os laços é ensejado como uma conquista inalienável. Na personagem interpretada por Rosamund Pike, embora o “descarte” da relação tenha sido inicialmente uma opção almejada, o ponto alto se dá na perpetuação deste (relacionamento), cuja remissão e ressignificação das dores e dos sofrimentos agem como uma espécie de “remédio amargo” e “correção perene” (no caso do filme, para o marido Nick), justamente o oposto do que se espera das atuais relações afetivas, onde a opção por “insistir para concertar ou para evitar a ruptura” não é algo visto com bons olhos.

Em “Garota Exemplar” a engenhosidade resultante de alguém que conduz a própria vida (a qualquer custo, diga-se de passagem) é algo que pulsa, que salta aos olhos e que lembra a “vontade de poder” nietzschiana. Novamente mostra, assim como na arte, que observar estes movimentos pode resultar em contemplação. É algo que vai “contra a corrente”, que é transgressor e que, portanto, pode provocar insights e até mesmo gerar perspectivas estéticas. No entanto, na ficção ou não realidade, ai daqueles que cruzam/desafiam os caminhos de personagens como Amy Dunne. Nesta estrada, apenas uns poucos loucos/trágicos/heróis/artistas têm (e merecem) passagem. Os demais que se arriscarem, como no caso de Nick, podem “naufragar” nas próprias pretensões e, ao final, pagar um alto preço por isso.

 

Referências:

Garota Exemplar: sinopse. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-217882 > – Acesso em 03/12/2014;

A Tragédia (definição concisa). Disponível em < http://pt.wikipedia.org/wiki/Trag%C3%A9dia > – Acesso em 01/12/2014;

Por que Garota Exemplar é um filme extraordinário. Disponível em < http://www.diariodocentrodomundo.com.br/por-que-garota-exemplar-e-um-filme-extraordinario/ > – Acesso em 01/12/2014;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, n99, de outubro/2014.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

A personalidade para Jung. Disponível em < https://www.psicologiamsn.com/2011/12/personalidade-para-jung.html > – Acesso em 30/11/2014;

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, SP: Martin Claret, 2008.

 

Trailer:

https://www.youtube.com/watch?v=qIeMkZ0B_gg

 

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FICHA TÉCNICA DO FILME

GAROTA EXEMPLAR

Diretor: David Fincher
Atores e atrizes: Ben Affleck, Rosamund Pike, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Carrie Coon, Kim Dickens, Patrick Fugit, dentre outros (as).
Roteirista e autora da obra original: Gillian Flynn
Distribuidor brasileiro (Lançamento): FOX Filmes
Gênero: Suspense
Duração: 2h29min
Classificação: 16 anos
Nacionalidade: EUA
Ano: 2014

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“Malévola” e a redenção do feminino ferido

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Indicado ao Oscar  2015 de Melhor Figurino

Podemos dividir o filme Malévola em duas partes. Na primeira o filme nos apresenta dois reinos distintos e em guerra: o reino de Moors, onde vivem criaturas míticas, incluindo a fada Malévola, e o reino dos humanos. Essa divisão representa uma clara divisão entre o inconsciente, onde habitam os arquétipos e a consciência, no reino dos humanos.

Na primeira parte do filme temos as seguintes figuras, o rei velho, Malévola e Stefan, o jovem pelo qual a protagonista se apaixona.

O rei ambicioso que está para morrer precisa escolher um sucessor digno para o trono. Nota-se que no reino dos humanos não há uma figura feminina expressiva. Não vemos rainha e o rei apenas cita a sua filha. Isto demonstra que a atitude da consciência encontra-se extremamente unilateral, desequilibrada.

O rei simbolicamente incorpora o princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação. O rei pode ser considerado um símbolo do Self manifestado na consciência coletiva. E esse símbolo, conforme Von Franz (2005) tem necessidadede renovação constante, de compreensão e contato, pois, de outro modo, corre o perigo de se tornar uma fórmula morta — um sistema e uma doutrina esvaziados de seu significado e tornar-se uma fórmula puramente exterior.

A atitude unilateral, então, desse reino é a ênfase no Logos. Não há feminino, não há Eros, não há relacionamento com o irracional. E onde falta o amor o poder se instala, por isso, deve-se escolher um novo rei para a renovação.

Entre os pretendentes ao trono está Stephan, que foi o amor de Malévola na infância. A ele, a fada entregou seu coração. Entretanto, Stephan a trai. Movido pelo poder e ambição, ele corta suas asas e as entrega ao rei. Garantindo então seu lugar como novo regente. E assim, o elemento feminino ainda não pode ser resgatado, a atitude unilateral permanece.

Essa atitude é comum em muitos homens, que movidos pelo medo de seu inconsciente, “cortam as asas” de sua mulher. Cortando sua independência, seu progresso profissional e até suas amizades. Eles se apresentam de forma amorosa, prometendo amor verdadeiro, mas visam o poder sobre elas.

Dessa forma, assim como Stephan, eles traem sua anima, traem sua própria alma. Malévola que era a protetora de Moor pode ser considerada a protetora do reino do inconsciente. Uma representação da anima.

Conforme Carl Jung, a anima é responsável por fazer a ligação entre o consciente e o inconsciente do homem. Ela é o guia dele, seu psicopompo. É uma figura arquetípica que contém todas as experiências do homem com a mulher através de toda a história da humanidade, e por meio dela o homem pode compreender e a natureza da mulher.

Malévola transitava entre os dois mundos e executava esse papel. O fato de possuir asas é uma clara alusão ao deus grego Hermes, com suas sandálias aladas. Hermes era o deus mensageiro dos gregos. O único que podia transitar entre todos os mundos. Uma imagem arquetípica do psicopompo.

Então, quando Stephan corta suas asas, ela perde essa função de guia e ponte e fica renegada ao inconsciente. Outro símbolo digno de nota são seus chifres. O chifre representa virilidade, força, poder e fertilidade. Ou seja, ela é a responsável pela fecundidade do reino e da consciência.

O aspecto feminino do homem, quando rejeitado, e reprimido acaba se tornando não diferenciado. No inconsciente ela ganha mais força e se volta contra a consciência unilateral, se tornando primitiva, vingativa e amarga. Assim o feminino interior, a anima, que representa o aspecto da vida, agora se volta contra a atitude consciente, como aspecto da morte.

Agora chegamos à segunda parte do filme. E nela temos os seguintes personagens: Stephan como rei, que se casou e teve uma filha, Aurora, as três fadas, o corvo Diavale, e claro, Malévola. Nessa segunda parte agora temos o oposto da primeira. Na primeira, havia um desequilíbrio onde o masculino predominava. Agora o feminino é mais forte. Temos mais figuras femininas representadas pelas fadas, Aurora e Malévola.

A psique sempre busca o equilíbrio compensatório. Mas esse equilíbrio só ocorre por meio da enantiodromia. Esse é um ciclo natural da psique, pois tudo deve se reverter em seu oposto para que haja aprendizado e flexibilidade. E agora vemos uma consciência na fase matriarcal, em compensação a fase anterior patriarcal. E nessa fase o feminino ferido e traído busca sua vingança, mais que isso busca seu lugar de direito.

Mas a atitude consciente coletiva, representada pelo rei Stephan, ainda rejeita esse feminino. Vemos isso em seu comportamento, pois além de ainda querer eliminar Malévola, ele envia sua filha amaldiçoada para longe aos cuidados das três fadas, negando assim sua função paterna de proteção e simplesmente ignora sua esposa que está à beira da morte. Um homem quando rejeita seu feminino é frequentemente tomado por ele. Se tornando mal-humorado, pois ao invés de ajudá-lo a administrar suas emoções a anima o carrega de afetos primitivos e indiferenciados.

Assim como Stephan, o homem se afunda cada vez mais em um humor altamente opressivo, rejeitando seus relacionamentos mais próximos e não tendo consideração por ninguém. Malévola, então, traída e amargurada não é mais uma fada. Ela se tornou uma bruxa. Ela agora é a encarnação da Mãe terrível.

A Mãe Terrível liga-se à morte, ruína, aridez, penúria e esterilidade. Nota-se que ela cria uma barreira de espinho ao redor do reino de Moors. E dessa forma, ninguém mais tem acesso ao inconsciente. E por isso a terra se torna estéril, sem vida. Nos contos de fada, a bruxa, representante da Mãe Terrível, sempre está acompanhada por um animal. Esse que representa o animus terrível dela sempre a ajuda. No caso do filme, ela é auxiliada por um corvo, que se transforma em homem, Diaval.

O corvo é associado à bruxaria, magia, azar, mau presságio, mas também fertilidade, esperança e sabedoria. Ele representa as asas que ela perdeu, sendo uma alusão clara a sua função de animus. Porém, o fato de se transformar ocasionalmente em homem, demonstra uma semente de evolução em Malévola. Seu animus não é totalmente primitivo e por vezes a esclarece e serve de consciência para ela.

Malévola, como Mãe Terrível, então se volta contra a criação do rei (sua filha). E nesse momento a Mãe Terrível exige um sacrifício para aplacar sua ira. Aqui vemos um tema mitológico recorrente: o do sacrifício de uma virgem. O tema do sacrifício, em termos psicológicos, significa que para se alcançar um avanço na consciência, e para uma mudança de atitude, a velha forma deve morrer. Ou seja, para se chegar a um equilíbrio entre masculino e feminino alguém deve ser sacrificado e submetido aos domínios da bruxa.

A princesa Aurora é então a vítima escolhida. A bruxa lhe lança uma maldição do sono da morte. Seu pai a envia para longe como forma de proteção e ela não sabe quem ela é e nem que está sob uma maldição. Ela passa a viver com as três fadas escondida, porém essas são inábeis em seu cuidado e proteção. Logo, devido a sua curiosidade, ela passa a viver em Moor com Malévola.

Como nos contos de fada, a princesa perdeu sua mãe representante da Mãe Boa e agora passa a conviver com a Mãe Terrível. O fato de ir para Moors, o mundo do inconsciente, faz uma alusão ao mito deInanna, que empreende uma descida ao mundo subterrâneo de sua irmã sombria Ereshkigal. E é nesse instante, que Malévola começa a encontrar a redenção, uma vez que ela passa a conhecer o amor verdadeiro na forma da maternidade.

Sua redenção não poderia vir pelo masculino, visto que este a traiu, mas por uma menina que a faz relembrar seu lado amoroso, que a faz recordar de um tempo em que era feliz. É pela compaixão de Aurora que ela volta a ter esperanças e a amar. E assim Malévola consegue resgatar suas asas, voltando a ter a sua função de psicopompo. O rei Stephan encontra o destino de todo aquele que se encontra engessado em uma atitude unilateral enrijecida, a morte. E a consciência coletiva encontrou seu equilíbrio entre os opostos com um quarteto que passa a representar a Alteridade e Totalidade: Aurora e o Príncipe e Malévola e Diaval.

 

Referências:

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

____ O eu e o inconsciente. 21 ed.Vozes. Petrópolis: 2008

NEUWMAN, E. A Grande Mãe.Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. Mitos de Criação. 2 ed.Paulus. São Paulo:2011.

____ A interpretação dos contos de fada. 5 ed.Paulus. São Paulo:2005.

____ A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed.Paulus. São Paulo:2002.

____ Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

 

Sobre contos de fadas, o (En)Cena apresenta uma análise das “Princesas Disney” em: http://ulbra-to.br/encena/categorias/princesas-disney

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

MALÉVOLA

Título Original: Maleficent (EUA)
Gênero: Fantasia
Direção: Robert Stromberg
Roteiro: Linda Woolverton, Paul Dini
Elenco: Angelina Jolie, Brenton Thwaites, Craig Izzard, Elle Fanning, Hannah New, Imelda Staunton, India Eisley, Juno Temple, Kenneth Cranham, Lesley Manville, Miranda Richardson, Sam Riley, Sharlto Copley
Produção: Don Hahn, Joe Roth, Richard D. Zanuck
Fotografia: Dean Semler
Duração: 97 min.
Ano: 2014

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