Melhor filme, Melhor Diretor,Melhor Roteiro original, Melhor Fotografia, Melhor Trilha sonora original, Melhores Efeitos Visuais, Melhor Direção de arte, Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição de som, Melhor Maquiagem e Penteado
O guerreiro é aquele que sabe quando precisa recuar e em momentos críticos consegue contornar a situação, sempre de olho em como atingir seu objetivo.
O longa acompanha dois jovens soldados britânicos, Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman), em uma missão com grande risco de morte. Eles são encarregados de entregar aos aliados uma ordem de abortar um ataque contra tropas alemãs, evitando que 1.600 combatentes caiam em uma armadilha. Então eles cruzam o território inimigo para que esse aviso chegue ao destino.
Texto contém spoilers!!
O filme, apesar de ser em um ambiente de guerra, não é sobre a guerra, inclusive a missão faz com que eles precisem evitar qualquer batalha. A imersão que o filme provoca, faz com que percamos o fôlego em diversos momentos. Mesmo quando existe uma calmaria, permanece uma tensão no ar que nos leva a pensar no que ocorrerá a seguir.
Mesmo após a morte de Blake, o seu companheiro Schofield continua sua missão de uma forma quase inabalável. Isso remete ao arquétipo do guerreiro, onde ele nos convida a avançar com sabedoria, assertividade e com passos firmes. E fica bem claro essas características durante o filme, ele reconhece sua energia masculina e feminina, obtendo um equilíbrio entre as duas, onde seu coração é corajoso ao mesmo tempo que expressa alguma amorosidade.
Moore e Gillette (1993) que são estudiosos posteriores a Jung, caracterizam o arquétipo do guerreiro pela clareza de pensamento, precisão, força e habilidade de ficar sempre em alerta. Mas o guerreiro é aquele que sabe quando precisa recuar e em momentos críticos consegue contornar a situação, sempre de olho em como atingir seu objetivo.
Fonte: encurtador.com.br/gpyFI
Possui uma capacidade de suportar a dor e viver na iminência da morte. Encara os desafios sem temer, com responsabilidade, autodisciplina, distanciamento emocional dos problemas e de questões da vida pessoal. Weber (2004) descreve esse tipo de reação como uma ação orientada pelo sentido, ou seja, é uma reação por reflexo, algo inconsciente que é característica desse arquétipo.
O guerreiro também possui uma tropa, que pode ser interpretado como a família, e no filme ele parece ter medo de retornar para sua família. Mas ele carrega consigo uma caixa que contém fotos da sua esposa e ao que parece, duas filhas pequenas. Assim sendo, ele tem sua tropa e é ela que de certa forma impulsiona o guerreiro a avançar em nível físico, mental, emocional e espiritual.
Dentro do arquétipo existem os desafios e no caso do guerreiro, ele deve usar corretamente essa energia focada para se fortalecer, sendo que durante o filme ele parece sempre atento, por exemplo, quando entra no porão de uma casa para se esconder, mas acaba encontrando uma mulher com um bebê e esta pede para que ele fique. Mas ele logo retoma sua missão mesmo em meio a uma cidade cheia de inimigos.
Outro desafio é que ele mantenha uma comunicação de acordo com a sua verdade, e por mais que surjam oportunidades para o mesmo desistir, ele sempre persiste. Quando ele chega ao seu destino final e precisa entregar a ordem ao General Erinmore, ele escolhe bem suas palavras para que esse o ouvisse. Assim, escolher a forma de se comunicar faz parte do guerreiro, para que este consiga cumprir sua missão.
Fonte: encurtador.com.br/kvwIO
Campbell (1997) fala sobre o papel do guerreiro, onde ele é levado a combater forças opressoras, e durante o filme o personagem não luta apenas contra soldados do exército inimigo que surge pelo caminho. Schofield luta contra si mesmo, contra suas próprias limitações e as diversas possibilidades de desistir.
FICHA TÉCNICA:
1917
Diretor: Sam Mendes Elenco: George MacKay, Dean-Charles Chapman, Richard Madden, Benedict Cumberbatch; Gênero: Drama, Guerra País: EUA Ano: 2019
REFERÊNCIAS:
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. – São Paulo: Cultrix/ Pensamento, 1997.
MOORE, Robert; GILLETTE, Douglas. Rei, guerreiro, mago, amante: a redescoberta dos arquétipos do masculino. Rio de Janeiro: Campus, 1993.
WEBER, Max. Economia e Sociedade – Vol. 1. Brasília: UnB, 2004.
O quiproquó de premissas nos transmite essencialmente a beleza da trama. O espírito natalino não está em uma magia que irrompe as pessoas em um dia do ano, mas nas relações construídas entre as personagens.
O filme Klaus, dirigido pelo estreante como diretor, Sergio Pablos, foi lançado em 2019 na plataforma da Netflix consolidando ainda mais o serviço de streaming como digno de produzir conteúdos dignos de Oscar. Com oito filmes indicados esse ano, é provável que a plataforma não leve o prêmio de melhor filme de animação com Klaus, uma vez que o favorito é Toy Story. O que é uma pena, pois a película entrega um resultado cativante e bem humorado, além de demonstrar de maneira leve e delicada a forma como aprendemos os nossos paradigmas pessoais e familiares.
Klaus não é um filme de natal, ou pelo menos, não passa essa impressão. Apesar de ter essa finalidade comercial, a trama foge à regra de um espírito natalino que é sua própria essência, como algo pronto. A película, em diversos momentos brinca divertidamente com a construção do imaginário sobre o Papai Noel e as tradições de Natal.
A partir daqui, o texto contém spoilers
Na gélida Smeerensburg, o soberbo estudante de uma rigorosa academia postal, Jesper, chega como novo carteiro devido a uma tentativa de correção moral pelo seu pai e se surpreende com o clima de destruição e guerra entre famílias na cidade. Ninguém manda cartas em uma cidade em que as mensagens são entregues pela violência explicita. Nessas condições, Jesper vê sua porta de saída ao descobrir que o recluso lenhador Klaus entrega um brinquedo a uma criança da qual recebeu um desenho acidentalmente em um envelope de carta.
A principal premissa de Jesse é que “todo mundo sempre quer algo em troca”, e ele precisa trocar 6000 cartas pela sua liberdade da cidade. Jesse começa então a incentivar as crianças a escrever cartas a Klaus. Porém, nesse encontro, seus paradigmas sofrem um grande impacto.
O espírito natalino é, essencialmente, a gentileza humana
Enquanto seres humanos nossos comportamentos são movidos por crenças, regras de percepção do mundo. Para denominar essa forma como percebemos e atuamos no mundo, usamos consensualmente o termo paradigma. Nossos paradigmas (ou premissas) são resistentes filtros que selecionam dados para nossa percepção, de um modo que acreditamos muitas vezes, que a nossa forma de fazer/ver algo é a única forma “correta” de ter êxito em uma situação (VASCONCELLOS, 2016).
Jesper não era o único a exercitar seus paradigmas na cidade, pois Klaus também era pulsionado por uma forte premissa: “um ato gentil de verdade sempre gera mais gentileza”. Os brinquedos doados suscitaram atos de paz e alegria entre as crianças, e as mensagens agora eram de harmonia e mais gentileza. Essa reação em cadeia faz com que os inocentes descendentes das famílias arquirrivais Krum e Elingboe brinquem juntos.
Nem sempre conseguimos lembrar quando foi que aprendemos nossas premissas, mas as pequenas crianças são levadas ao hall do ódio entre suas famílias, relembrando séculos de conflitos, dos quais nem suas famílias lembram como começou. Talvez essa seja a grande questão que a película deixa como provocação ao espectador: como aprendemos a acreditar que deveríamos nos manter dentro de um determinado paradigma? O que nos leva a seguir rigidamente nossas premissas?
Para as famílias Krum e Elingboe o paradigma do ódio foi tão rígido que se transformou em um paradoxo, pois, precisaram “se unir em paz para acabar com a paz”. Nesse sentido, Jesper e Klaus e seus aliados precisaram ser corajosos para cumprir a ideia de distribuir presentes na véspera de natal. Para difundir um novo paradigma é necessário que haja confiança e fé nas novas ideias, pois isso representa um novo jeito de fazer as coisas, implicando em resistência (VASCONCELLOS, 2016). Desse modo, para que Jesper siga sua jornada, a flexibilização de paradigmas faz-se necessária. O jovem deve confiar e ter fé na premissa da gentileza para cumprir sua missão e desfrutar do amor de seus amigos.
Esse quiproquó de premissas nos transmite essencialmente a beleza da trama. O espírito natalino não está em uma magia que irrompe as pessoas em um dia do ano, mas nas relações construídas entre as personagens, no esforço para seguir a premissa da gentileza apesar dos sofrimentos da vida, e no amor que é construído a partir da união por um propósito. Propósito é, definitivamente o que não falta em Klaus.
FICHA TÉCNICA:
KLAUS
Direção: Sérgio Pablos Elenco: Jason Schwartzman, J. K. Simmons, Rashida Jones; Ano: 2019 País: Espanha Gênero: Animação, aventura, comédia;
REFERÊNCIA:
VASCONCELLOS, Maria José Esteves. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 10 ed. Papirus Editora, 2016.
Compartilhe este conteúdo:
“Coringa”: cultura cosplay e copycat gerou o Palhaço do Crime
Melhor Filme, Ator, Fotografia, Figurino, Direção, Edição, Cabelo e Maquiagem, Trilha Sonora Original, Edição de Som, Mixagem de Som e Roteiro Adaptado.
Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos.
Para muitos pesquisadores em Sincromisticismo, desde que o Coringa surgiu em 1940 nas HQs, o personagem transformou-se em uma forma-pensamento autônoma, um arquétipo que paira sobre o tempo. Mas como produto da indústria do entretenimento, ele também reflete o espírito de cada época, do Coringa bufão de Cesar Romero nos anos 1960 psicodélicos à inteligência sinistra do Coringa de Heath Ledger. Em “Coringa” (Joker, 2019) o Príncipe Palhaço do Crime ganha uma atualização, dessa vez um “spin off”: as origens do Coringa numa Gotham City vintage, mas que pode muito bem ser o espelho da nossa época. O Coringa de Joaquim Phoenix (numa interpretação assustadora onde, mais uma vez, um ator pagou o preço psíquico para encarnar o personagem) reflete a atual onda de ódio e ressentimento articulados pela Deep Web, fóruns e chans na Internet e pelo populismo de direita. Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual dominada por um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle.
O Palhaço do Crime; O Príncipe Palhaço do Crime; O Flagelo de Gotham; Arlequim do Ódio; O Bobo do Genocídio; O Ás de Valete. Ou simplesmente “Joker” ou Coringa, supervilão criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane e que apareceu pela primeira vez em Batman #1, de abril de 1940.
De acordo com o plano inicial, o Coringa deveria ter morrido na sua primeira aparição, mas foi providencialmente poupado por uma decisão editorial, permitindo que fosse progredindo até se tornar não apenas um palhaço psicopata. Coringa tornou-se o arquétipo do psicopata: no ranking das mais populares formas-pensamento do século XX, ele é praticamente um deus.
Fonte: página oficial do filme
Numa espécie de “top of mind” das marcas dos personagens das HQs feita durante a produção de Batman do diretor Tim Burton, a pesquisa apontou que a bat insígnia ocupava a segunda colocação, logo após a imagem do sorridente rosto do Coringa – hoje o Coringa ocupa o segundo lugar no Top 100 dos vilões das HQs.
Como poderoso arquétipo ou forma-pensamento com forte energia psíquica capaz de influenciar não só as mentes como as próprias ações, o personagem acumula um histórico de estranhos efeitos nos atores que o encarnam, assim como inúmeros relatos de efeitos copycats – ataques e atiradores figurando como cosplayers assassinos na vida real – veja os links ao final.
Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos.
Fonte: página oficial do filme
Coringa (Joker, 2019), do diretor Todd Phillips (Se Beber, Não Case e Escola de Idiotas), é uma incursão ao mesmo tempo vintage e realista, bem diferente das versões cinematográficas do Coringa: sem aspirações artísticas vanguardistas de Jack Nicholson, ou a inteligência cínica e sombria de Heath Ledger, ou ainda a comprometedora versão de Jared Leto, na qual o Coringa parecia mais um tipo de MC ostentação.
O logotipo retro da Warner Bros. que abre o filme indica que estamos em algum lugar entre as décadas de 1970 e 80. Os planos de câmera e a direção de arte que reconstroem a Gotham City emulam a estética do novo realismo Hollywood daqueles tempos em filmes como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982) – filmes protagonizados por anti-heróis perdedores em sociedades duras e violentas.
Coringa é um estudo triste, lento e caótico das origens do icônico vilão das HQs. Alguém que não é visível, anônimo numa cidade em crise econômica e imersa em sacos de lixo causada por uma greve dos serviços públicos.
Enquanto até aqui todas as histórias com o vilão o figuram como um personagem (caricato sempre em tons fortes sem muitas sutilezas), aqui Todd Phillips, ao lado do roteirista Scott Silver, estão mais interessados na composição mental, moral, emocional e física de um homem simples e esquecido e que se tornou o Coringa
Isso exigiu um tour de force do ator Joaquim Phoenix (e, como sempre, o arquétipo do Coringa cobrou-lhe o preço emocional e psíquico para encarná-lo, clique aqui): a atmosfera é sempre acinzentada e os planos de câmera sempre fechados no ator – tanto seu rosto como seu corpo são minuciosamente observados por nós, assim como sua lenta transformação no palhaço do crime.
O filme até aqui provocou críticas divididas em torno do debate de como Coringa representa temas sombrios atuais (principalmente a desigualdade e intolerância ao lado do crescimento do ressentimento e ódio), além de cadeias de cinema nos EUA proibirem a entrada de cosplayers do personagem – clique aqui.
Nesse ponto é que Coringa se torna ainda mais interessante: ficção e realidade se tocam quando o próprio Coringa figurado no filme é um produto da mídia que, afinal, não resiste a um personagem com uma boa storyline e punchline. Tirando do anonimato um perdedor que repentinamente vira um símbolo político de explosão da revolta e ressentimento, criando um gigantesco efeito copycat – aproximando-se da realidade.
Fonte: página oficial do filme
O Filme
Gotham City. Os moradores estão imersos em montes de sacos de lixo na frente de cada porta, sob um céu sempre de cor chumbo. Os tempos são difíceis: há desemprego, pobreza e falta de perspectiva. E um novo candidato a prefeito: o milionário Thomas Wayne (Brett Cullen), que apenas desperta o ressentimento outrora latente.
Alheio a tudo isso, encontramos Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), um cara aparentemente gentil que gosta de fazer as pessoas sorrirem. Ele é um palhaço profissional com uma relação problemática com seus colegas da agência de clowns e um aspirante a comediante de stand-up.
Ele é uma das vítimas de “tempos malucos”. Ele próprio é um ex-interno de um hospital psiquiátrico vivendo à margem da sociedade tentando ter um emprego regular – sobe escadarias sem fim, passa por corredores mofados em uma vida de cortiços sombrios, caixas de correios vazias e elevadores quebrados.
Ele é espancado, zombado e abusado. Não se envolve com o mundo. A vida cotidiana para ele é difícil, pois as regras e os códigos que estruturam a sociedade permanecem desconhecidas para Arthur. Sua condição é de alienação, em grande parte devido a uma condição mental que causa risadas incontroláveis (geralmente nas piores situações) enquanto os olhos estão cheios de dor e tristeza.
“Só não quero mais me sentir tão mal”, sussurra Arthur para a assistente social que o acompanha: ele quer mais remédios, além dos sete prescritos. Logo mais não terá nenhum, com a política de austeridade da prefeitura que está cortando todos os serviços sociais.
É um sistema que agora não tem mais tempo ou recursos para gente como ele. Isso será simplesmente o início da descida do caminho para encontrar o Coringa dentro de si mesmo.
Fonte: página oficial do filme
Mas tudo muda quando, com muita relutância, aceita um revólver de um companheiro de trabalho para se proteger dos assédios de um palhaço que trabalha nas ruas. Em um metrô barulhento, sujo e pichado de grafites pela primeira vez Arthur revida e atira em três jovens yuppies grosseiros de Wall Street – depois do assédio malsucedido em uma mulher, resolvem descontar sua raiva no pobre palhaço.
Após essa primeira explosão de violência brutal, Arthur adquire autoconfiança. Seus movimentos se tornam elegantes, seu corpo magro e arqueado agora é ágil, gracioso. As mortes no metrô ganham as manchetes na TV, desencadeando um gigantesco efeito copycat: centenas de pessoas saem às ruas com máscaras de palhaço para se levantar contra os ricos.
Não era o tipo de reação que Arthur queria… mas é uma reação e ele aceita. Afinal, faz ele saber que existe e que suas ações significam algo para alguém. Cria-se então um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle – manifestantes nas ruas usam a máscara do palhaço, incitando Arthur a dar continuidade a sua nova persona. Aos poucos, Arthur descobre que o seu talento não é o humor, mas a expressão da raiva multiplicada.
No final, humor e explosão da raiva e violência são a mesma coisa: é tudo uma questão de timing.
Fonte: página oficial do filme
O Coringa do nosso tempo
Arthur sonha em sair do anonimato de humilhações da vida de um zé-ninguém, até descobrir que o talk show de Murray Flanklin (Robert de Niro, numa perfeita alusão aos filmes Rei da Comédia e Taxi Driver) apenas o convidou para mais uma vez ser humilhado – um vídeo de um show de stand up bizarramente sem graça de Arthur foi o motivo da produção convida-lo.
O Coringa desse filme definitivamente tem algo a dizer sobre o nosso tempo. O Coringa de Christopher Nolan em O Cavaleiro das Trevas era uma agente do caos que queria provar que no final as pessoas são terríveis e cruéis e escondem tudo isso com hipocrisia. Mas Nolan mostrou que Gotham se recusava à explosão de uns contra os outros.
Mas em Coringa temos o contrário: Arthur é perturbado e violento e todo mundo ao redor dele é cínico e paranoico. Os ricos e as estrelas da mídia são terríveis e as pessoas comuns ainda piores – uma multidão de saqueadores, assassinos que está apenas em busca de um pretexto para entrar na selvageria.
Fonte: página oficial do filme
Cada Coringa refletiu o espírito da sua época: o Coringa de Cesar Romero da década de 1960 era um bufão engraçado e sintonizado com a psicodelia da era hippie. O Coringa de Jack Nicholson aspirava ser um vanguardista que transformava o crime em arte – releitura de Tim Burton associada à estética dark de seus filmes. O coringa de Heath Ledger era cerebral e adulto. Ao contrário de Jared Leto, sintonizado com a cultura jovem contemporânea.
E o Coringa de Joaquim Phoenix reflete a atual onda de ódio e ressentimento bem sucedidamente articulados tanto pelo populismo de direita internacional quanto pela Deep Web, fóruns e chans na Internet: “Incels” (Celibatários Involuntários), “Hominis Sanctus”, PUA (Pick-up Artists), formas violentas de socialização masculina (macho alpha etc.) e uma variedade de pseudociências e conspirações LGBTs e feministas contra os homens.
O príncipe do Crime de Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual – uma máscara ou persona (assim como foi o efeito copycat da máscara do Anonymous nas manifestações de rua) que empodera o ressentimento de uma massa de excluídos da globalização. Só que levados a autodestruição e anomia, bem ao gosto da atual extrema-direita, a “alt-right”.
Se Nolan ainda buscava um fio de resistência humanista em Gothan City contra a pegadinha macabra do Coringa, aqui a dupla Todd Phillips e Scott Silver joga literalmente o Coringa nos braços das massas que reconhecem nele sua própria crueldade e selvageria.
O resultado do filme Coringa é a resposta do porquê o sombrio supervilão bufão é tão fascinante e sedutor quanto Batman: ambos são movidos pelo ódio e ressentimento, porém com os sinais trocados.
FICHA TÉCNICA:
CORINGA
Título original: Joker Direção: Todd Phillips Elenco: Joaquim Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy; Ano: 2019 País: EUA, Canadá Gênero: Drama/Suspense
Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Figurino.
O filme Adoráveis mulheres apresenta de forma sutil o preconceito de gênero no século XIX, e que, infelizmente, continua sendo um tema atual.
Adoráveis mulheres (2019), filme dirigido por Greta Gerwig (anteriormente indicada ao Oscar com Lady Bird – A Hora de Voar), foi baseado no romance de Louisa May Alcott chamado As mulherzinhas, sendo uma autobiografia escrita em 1868. Nesses 150 anos, a história foi traduzida para 55 línguas, virou peça de teatro, ópera, musical, e possui algumas adaptações cinematográficas.
Visto que já teve vários formatos, Greta não deixa a história cair na mesmice, a adaptação mais atual conta com transições entre passado e presente, utilizando diferentes paletas de cores, o passado é composto por cores vibrantes, deixando um sentimento saudosista em quem assiste, enquanto o presente é composto por tons mais frios, carregado de tensão e melancolia, tal alteração de tempo deixa o filme dinâmico e intrigante.
Fonte: encurtador.com.br/xzA14
Enquanto o pai da família March serve na Guerra civil americana no século XIX, suas quatro filhas, sob cuidados da mãe, vivenciam a ausência paterna, dificuldade financeira, preconceito de gênero, embates pessoais como não se sentir pertencente a sociedade e discussões familiares, ao longo da transição da adolescência para a fase adulta. Sendo um leve clichê com sensação de fim de tarde, mas que levanta dilemas sociais atemporais, expõe a interdependência positiva e negativa do sistema familiar, e retrata mulheres que estão longe de serem perfeitas, o que foge do padrão feminino da época em que a história foi escrita.
Jo March (Saoirse Ronan), a que recebe mais foco entre as quatros irmãs (Louisa se representa nela), aspira ser escritora, inicialmente produzindo textos de “sangue e trovão” com protagonistas femininas, contudo, os jornais se recusavam a publicar histórias nas quais as mulheres não se casavam, como disse o chefe da editora: “Moral não vende. Se a personagem principal é moça, ela deve se casar ao final, ou morrer”. Após idas e vindas no decorrer do filme, Jo decide escrever suas histórias e de suas irmãs em um livro, que futuramente se tornou “Adoráveis mulheres”.
Fonte encurtador.com.br/bmT25
“Mulheres têm mentes e almas, além de corações. Temos ambições e talentos, além de só beleza. Cansei de ouvir que uma mulher só serve para o amor. ” – Jo March
Jovem independente e de personalidade marcante, Jo March rompe primeiramente o papel secundário reservado as mulheres ao ser protagonista, ao buscar espaço no mundo editorial predominantemente masculino. Em seguida, ela vive uma crença autolimitante em que para alcançar autonomia é necessário abrir mão do amor romântico, pois sua ideia de liberdade se distancia do habitual feminino pautado na educação de mulheres para condutas “adequadas” para o mundo social da época, como servir somente ao lar.
Tal pensamento é oriundo da associação das conquistas femininas ao homem, considerado o ser possuidor de todos os feitos, assim, criando uma relação dicotômica entre realização profissional e emocional, pois enquanto ela estiver ligada ao amor, seu valor se refere unicamente a isso. Tal joguinho é um clássico da ficção: enquanto a mocinha tem que escolher entre seu sonho e a paixão, os personagens masculinos são heróis e amantes ao mesmo tempo.
Exemplificado em sua irmã mais velha, Meg March (Emma Watson), que desiste de ser atriz, profissão taxada como vulgar, para se unir em matrimônio por amor. Atitude incialmente reprovada por Jo, mas que logo Meg justifica: “Se meus sonhos são diferentes dos seus, não significa que são ruins”. Ou seja, cada uma das irmãs possui perspectiva própria do conceito de liberdade e felicidade.
Fonte: encurtador.com.br/sENV5
A terceira irmã, Beth (Eliza Scalen), era considerada a melhor das irmãs March, por ser gentil, amável, sendo também a mais introvertida. Seu contentamento se encontrava em tocar piano, a liberdade mais peculiar. Beth tem um destino óbvio após adoecer, em vista disso, mesmo com menos tempo de tela, ela exerce o papel propulsor da personagem principal, demonstrando como o todo é maior que a soma das partes.
Fica a cargo da caçula, Amy March (Florence Pug) salvar a condição financeira da família se casando com um homem rico. Com isso, Amy coloca em segundo plano sua aspiração a pintura, e mesmo sabendo que o casamento é um tratado econômico para as mulheres, pois seu dinheiro e filhos pertenceriam ao seu esposo, ela se dispõe a aceitá-lo. Ao meu ver, Amy é uma das personagens mais cativantes de todo o filme devido sua postura imprevisível com adição de um quê de vilã, a rixa na adolescência com Jo depois se torna um triângulo amoroso na vida adulta, sendo resolvido ao colocar a irmandade em primeiro lugar.
Fonte: encurtador.com.br/bil58
“Quando as mulheres são aceitas no clube dos gênios, de qualquer forma? ” – Theodore ‘Laurie‘ Laurence
Os meios midiáticos são uma forma acessível de propagar reflexões sobre a ética e a moral. O filme Adoráveis mulheres apresenta de forma sutil o preconceito de gênero no século XIX, e que, infelizmente, continua sendo um tema atual, mostrando os diferentes impactos em uma única família. A escritora, Louisa May Alcott, após anos escrevendo essa história relata: “Foi agradável fazê-lo. Estou cansada de fornecer papinha moral aos jovens”, e, ironicamente, o fim das “mulherzinhas” foi o clichê que criticou durante toda a obra.
FICHA TÉCNICA:
Fonte: encurtador.com.br/yGHR0
Título original: Little Woman Direção: Greta Gerwig Elenco: Saoirse Ronan, Emma Watson, Florence Pugh, Eliza Scanlen, Meryl Streep, Timothée Chalamet Ano: 2019 País: EUA Gênero: Romance/Drama
Compartilhe este conteúdo:
“Malévola: Dona do Mal” em uma interpretação analítica
Percurso heroico faz protagonista sofrer grande mudanças internas em busca da integração dos opostos
Malévola é um filme de drama e fantasia dirigido por Robert Stromberg, que dá uma nova roupagem a Bela Adormecida, chamada Aurora; entretanto, tudo é contado através da vida e nuances psicológicas de Malévola, nos fazendo entender que, na verdade, ela não é tão má assim, e tem lá suas motivações para manter-se na defensiva. Sabendo disso, o filme Malévola 2: Dona do mal, reinicia sua trama pautado em questões ainda não superadas.
Existem inúmeras maneiras de se interpretar a obra cinematográfica, e uma dessas, é sob inspiração da Psicologia Analítica. “A dona do mal”, Malévola, é assim conhecida pelos humanos, através de boatos e histórias passadas de geração em geração, cujo motivo de tanto medo, nem se quer se passa pela consciência destes indivíduos. Talvez estejam imbuídos de uma espécie de contágio psíquico, ou mesmo sob a influência de imagens arquetípicas presentes no inconsciente coletivo. No filme, também fica claro que a Rainha Ingrith é manipuladora e deseja destruir Malévola para obter mais poder, além de visar as terras dos seres mágicos.
encurtador.com.br/ptuM8
Traída por Stefan (ainda no primeiro filme) em uma paixão juvenil, Malévola teve suas asas cortadas pela ganância. Por muito tempo teve de se afastar de um elemento tão crucial que é o ar, que trazia a ela as inúmeras tentativas de se afastar dos sentimentos que a aborreciam, por isso, a nova notícia de que Aurora se casaria com o príncipe do reino humano fez com que ela se deparasse com grande fúria.
Ela de fato não havia superado suas más lembranças, e desejava proteger Aurora de qualquer mal. Entretanto, a jovem sempre foi a ponte para seu vaso alquímico, e desde o seu nascimento trás para perto as relações humanas que tanto evitava. Malévola então cede de sua vontade, para a felicidade de Aurora, e vai ao encontro do rei e da rainha, para o pedido oficial do casamento.
https://url.gratis/ZQLGx
Mais uma vez, ela tinha motivos para manter distância, pois a rainha Ingrith colocou em ação seu plano de forjar um feitiço para o rei, e de acusar Malévola de ter o feito, para que assim, tivesse controle total das futuras ações, e pudesse por fim, matá-la. Enfurecida, Malévola sai do castelo e leva um tiro de metal (metal é seu ponto fraco), sendo este elemento do ponto de vista alquímico, referente à razão, e que em muito está ligado à dimensão do masculino.
https://url.gratis/xQXsc
Resgatada por Conall, ela é levada para um distante lugar, ao qual ainda muito machucada, percebe que ali estava acontecendo uma reunião de seres de sua mesma espécie. Naquele local, começa seu processo de busca por sua individuação, onde ela deixa para trás seu mundo ideal, o reino e o lar dos seres mágicos (numa jornada heroica) para se integrar às novas possibilidades daquele coletivo; mas, em grande medida, estava sempre recuando, voltando a si, para o encontro de um paraíso perdido metafórico, numa ação paradoxal, individuando-se sem sair do todo, na sua vivência em comunidade.
https://url.gratis/Jj0DE
Conall é a representação de sua contraparte psíquica, uma figura externa do sexo oposto, que a ajuda de forma participativa na obtenção do ouro alquímico, ao passo que, todos ali desejavam vingança dos humanos, assim como Malévola que muito sofreu durante sua vida; mas Conall persistia na ideia de que a violência não era a melhor saída. Dentro dessa aventura, Malévola pôde descobrir a origem de seus poderes, e seu destino de proteger a magia, sendo herdeira direta da Fênix.
Em uma das festas da comunidade em que Malévola se encontrava, ela teve súbita sensação de desconforto, que advinha do pressentimento de que sua terra —o reino mágico — estava em apuros. Conall, percebendo que ela iria até lá, a seguiu, e viu junto a ela, a destruição e a colheita violadora das flores de seu reino; tais flores, na verdade, eram a forma real das fadas depois de sua morte. Percebendo sua presença, os soldados a atacaram com balas de ferro, e Conall ao visualizar a situação, sacrificou sua vida em defesa de Malévola. Tal desfecho trouxe ainda mais revolta para mente da protagonista.
Decididos a iniciar a guerra contra o reino dos humanos, em busca do fim da extinção da sua espécie, Malévola se direciona para uma grande matança, ao passo que Aurora também está em apuros depois de descobrir a farsa da rainha Ingrith.
https://url.gratis/ZNVWT
Houve muitas mortes, já que todo exército humano estava preparado para matar “A Dona do Mal”. Aurora, em perigo contra a rainha foi salva pelo amor de Malévola, que a protegeu contra seu ataque, causando sua triste morte. Pondo-se a chorar sobre suas cinzas, a água de Aurora simbolicamente trouxe à tona afetos e, através disso, a fez renascer. Malévola, descobriu ser a própria Fênix da profecia, voltando a vida, e conseguindo a quintessência.
Pôde-se notar que a protagonista vivenciou uma alteração de consciência, em uma perspectiva da psicologia Analítica e, sobretudo, Transpessoal. A qual há uma inefabilidade no ocorrido, sendo esta, algo que passa das relações neuronais, transcendendo a relação física. Percebe-se que existe uma ausência do medo da morte, e finalmente ela encontra o Logus, o sentido, pois sua verdade transparece a partir da sua mudança de postura, podendo viver o fim da guerra através da ponte existente entre o mundo humano e mágico, com a dialética, situação simbolizada pela união da rainha Aurora e o príncipe Phillip. Ela pôde por fim, superar seu nigredo, na transposição do ódio e da resistência aos humanos.
FICHA TÉCNICA:
MALÉVOLA: DONA DO MAL
Título Original: Maleficent: Mistress of Evil Direção: Joachim Rønning Elenco: Angelina Jolie, Elle Fanning, Sam Riley, Juno Temple; Gênero: Drama, Aventura País: EUA Ano: 2019
Compartilhe este conteúdo:
Todos os afetos de um país cronicamente inviável no documentário “Democracia em Vertigem”
Com estreia mundial no Festival de Cinema de Sundance desse ano e aclamado pelo New York Times como um dos melhores filmes do ano, esse não é um documentário comum.
Indicado ao Oscar de Melhor Documentário, “Democracia em Vertigem” (2019, disponível na Netflix), dirigido por Petra Costa, não é uma produção comum do gênero. A cronologia dos fatos que levaram o País da ditadura militar aos governos de centro-esquerda de Lula e Dilma é apenas o cenário para outro tema mais profundo: por que a elite de repente se cansou da Democracia e do Estado de Direito e virou o tabuleiro, envenenando corações e mentes com ódio e polarização? A câmera de Petra Costa e sua melancólica narração buscam nas imagens oficiais e de bastidores aquilo que Roland Barthes chamava de “punctum”: detalhes que nos afetam, cortam e ferem.
Pequenos detalhes em imagens (gestos, falas, atitudes, olhares etc.) que, em vários momentos do documentário, parecem expressar secretamente o que estava reservado para o futuro do País. “Democracia em Vertigem” lida principalmente com afetos em um país cronicamente inviável – sob a superfície mutante da política estão personagens que sempre estiveram lá, desde que um golpe militar instituiu a República: a elite financeira, midiática e empresarial. A democracia brasileira foi fundada no esquecimento.
Fonte: https://bit.ly/2NUQPki
O semiólogo Roland Barthes dizia que “o discurso está exausto de tanto produzir sentido”. Por isso, Barthes queria viver o saber com um outro jeito, que ele denominava como “saber com sabor”. Mesmo que esse sabor seja amargo, como no documentário Democracia em Vertigem (2019), dirigido por Petra Costa, sobre como chegamos a atual crise política brasileira, narrando a ascensão e queda dos governos trabalhistas a partir da eleição de Lula em 2003. Com estreia mundial no Festival de Cinema de Sundance desse ano e aclamado pelo New York Times como um dos melhores filmes do ano, esse não é um documentário comum. Seguramente, o documentário de Petra Costa está ao nível do histórico Corações e Mentes (Oscar de melhor documentário de 1975), lançado no momento em que os EUA se ressentiam da ferida aberta da Guerra do Vietnã.
Democracia em Vertigem também é lançado no momento em que a dolorosa ferida da crise brasileira está aberta e exposta para todo o planeta. Porém, vai para além de um documentário político tradicional que busca repostas racionais para explicar processos. O documentário não se limita a fazer uma cronologia dos fatos do breve período de ascensão e queda da democracia brasileira pós-ditadura militar. Estes parecem ser apenas um pano de fundo para outra coisa que Petra Costa busca. Ela quer expressar o sabor amargo, resultante do impacto do fim da breve experiência democrática brasileira, na sua própria vida familiar. E transformar essa experiência numa pequena amostragem da tragédia nacional.
A diretora não pretende ser uma mera editora de imagens e entrevistas com os personagens de uma tragédia política – Petra que imergir no próprio objeto que pretende filmar. Ser uma observadora participante que, assim como nós, sentiu nas próprias relações familiares e de amizades a polarização psíquica e ideológica que transformou a democracia brasileira num pequeno lapso em um país cronicamente inviável.
Fonte: https://bit.ly/36lwXgr
O “punctum” nas imagens históricas
Não sei se a cineasta já leu o livro de Roland Barthes, “A Câmera Clara”, mas o seu documentário parece seguir o método do olhar crítico e semiológico do francês: Democracia em Vertigem evita ser apenas um documentário com imagens montadas para serem preenchidas com moralismo, sentimentalismo ou ideologia – isso seria nada mais do que aquilo que Barthes chamava de studium: imagens para serem sobrecodificadas e que apenas anestesiam o observador.
Pelo contrário, Petra Costa quer atingir o punctum das imagens dos eventos que reporta: aquilo que é pungente, que corta, fere, sensibiliza, alfineta. Em síntese, aquilo que é pungente. Mostrar todos os afetos da tragédia brasileira – no duplo sentido de “afeto”: tanto como “sentimento” como aquilo que nos afeta, atinge, a afecção. Para tanto, a cineasta não podia ser apenas uma observadora imparcial que tudo apenas relata, monta e edita. Petra tinha que também cair de cabeça no drama político. Principalmente porque ela e sua família são ao mesmo tempo sujeitos e objetos do que ela pretendia narrar: os pais, militantes de esquerda em um família conservadora de Minas Gerais – filha de Marília de Andrade, herdeira da Construtora Andrade Gutierrez, cujos financiamentos de campanhas políticas foi o pretexto para a derrubada do PT, que conduziria ao impeachment de 2016 que abriria caminho para a chegada da extrema-direita ao Poder.
O Documentário
Democracia em Vertigem abre e encerra a narrativa com o evento emblemático que selou o destino da democracia brasileira: cercado pela militância e populares no Sindicatos dos Metalúrgicos em São Bernardo/SP que não aceitavam a rendição de Lula e estavam dispostos a resistir até o fim, o líder petista se entregou à imolação pública ao vivo, em rede nacional, para ser levado ao cárcere da Polícia Federal em Curitiba. A questão é: por que tudo acabou ali, daquela maneira, como a fatalidade de algum tipo de destino manifesto brasileiro? Como dois presidentes, Lula que encerrou o mandato com 87% de aprovação e Dilma, que em poucos dias caiu de 57% para 30%, acabaram se tornando alvo de tanto ódio coletivo, fraturando politicamente o País?
Fonte: https://bit.ly/38DWJ1b
Petra Costa começa fazendo uma cronologia de eventos, desde as mortes e torturas na ditadura militar, passando pelas grandes greves do ABC e o surgimento da liderança de Lula até chegar às Diretas Já e a redemocratização. Porém, a cineasta dispara: “a democracia brasileira foi fundada no esquecimento”. No esquecimento de quê? De duas feridas que jamais foram cicatrizadas pela história política brasileira: a escravidão e os crimes praticados pelos militares – até aqui nunca foram punidos. Num país cuja República foi criada a partir de um golpe militar em 1889, jamais a nação teve forças para fazer um acerto de contas consigo mesma.
Por isso, a narrativa em voz over de Petra Costa tem um tom propositalmente triste, melancólico. E não poupa a si mesma: em vários momentos ela destaca que sua família também faz parte desta mesma elite que perpetua a tragédia. A história brasileira cruza com a história de sua própria família. Constantemente os relatos históricos se interpenetram com os depoimentos da sua mãe, vídeos e fotos de família. Por exemplo, de como sua família conservadora se preparava para se mudar para os EUA assustada com as reformas de base propostas por João Goulart. Até sofrer o golpe militar em 1964, fazendo a família permanecer no país e lucrar muito, seja com as obras faraônicas daquele período, seja com a construção das arenas da Copa 2014.
Detalhes que anteviam o futuro
Obras públicas e corrupção sempre foram sinônimas em toda a história brasileira, destaca o documentário. Por isso, a fatalidade nacional manifesta tem que ser buscada no críptico diálogo que o documentário narra: certa vez no Palácio dos Bandeirantes um político vê surpreso um empresário. “Você, por aqui?”, disparou. “Eu sempre estive aqui, vocês políticos é que sempre se mudam”, respondeu o empresário. Os Banqueiros (os credores do Estado), as famílias proprietárias da grande mídia (os defensores do Estado) e as construtoras (responsáveis pelo aço e cimento da infraestrutura do Estado) são aqueles que sempre estiveram ali, bancando a democracia e a república. Mas, como destaca Petra Costa, “às vezes eles se cansam da democracia”. E o tabuleiro tem que ser virado para recolocar as peças nos lugares – os políticos.
Fonte: https://bit.ly/2NUZhjn
As imagens dos bastidores que levaram à derrocada de Dilma e a prisão de Lula são riquíssimas de simbolismos e interpretações: vemos José Eduardo Cardoso, o advogado de Dilma no processo de impeachment, como alguém que parecia apenas querer salvar a própria biografia – tanto a sua defesa no Congresso quanto sua rápida entrevista ao lado de Dilma não passam paixão, envolvimento ou mesmo indignação. Sempre parece distante, apático. Enquanto Dilma tenta manter o olhar altivo diante de verdadeiras hienas sedentas por carniça, no que se transformou o Congresso – a certa altura, vemos em contra luz deputados indo embora após a vitória, no estacionamento do Congresso, gritando, correndo e pulando, como crianças depois de zoar com a campainha do vizinho.
Acompanhamos funcionários do Palácio da Alvorada, nordestinos e negros, limpando o Palácio após o impeachment, com depoimentos em que descrevem o desencanto com a democracia. O mesmo Palácio no qual Temer não conseguiria passar uma semana: sem conseguir dormir, desistiu de morar ali durante o seu curto mandato – os fantasmas da consciência o atormentavam…
A câmera de Petra Costa se detém em duas placas no Palácio da Alvorada, comemorativas das duas grandes restaurações: uma no governo Collor e outra no governo Lula. Em uma diferença de quase duas décadas, estão ali a Andrade Gutierrez e outras mesmas empresas. Sempre estiveram e estão lá no Poder. Embora, para poderem virar o tabuleiro para reorganizar as peças e afastar a esquerda do Poder, tivessem que sacrificar alguns deles na Operação Lava Jato. A voz melancólica de Petra Costa e o paralelo que traça do seu crescimento da infância a vida adulta com a própria trajetória do fracasso da redemocratização são pungentes.
Fonte: https://bit.ly/30MvaA5
Corações e mentes
Mas a principal revelação do documentário (cujo tema está estampado no próprio pôster da produção), foi como a incipiente democracia brasileira foi arruinada pela guerra híbrida dos EUA (cujas origens estão na descoberta da camada do pré-sal, “ao mesmo tempo benção e maldição para o País”), utilizando-se da operação psicológica da polarização de corações e mentes. E como essa polarização impactou a própria família da cineasta – a divisão entre os pais esquerdistas e o restante da família eleitora em Bolsonaro. E a mea-culpa de Lula e do ex-secretário da presidência, Gilberto Carvalho, de não terem feito a Lei dos Meios, a Reforma Política e trocado a militância pela política institucional de coalizão. Quando descobriram isso, já era muito tarde.
Mas essas avaliações sobre os erros políticos do PT é o que menos importam para Petra Costa. São apenas abordados de passagem em poucas cenas. Seu foco está no punctum das imagens históricas, tanto de bastidores como as dos telejornais: como a câmera detalha flagrantes e a voz de Petra salienta detalhes que parece nos alfinetar, afetar de maneira profunda. Como a sequência da primeira posse de Dilma em 2011, de mãos dadas com Lula descendo a rampa do Palácio do Planalto, ladeado por um Temer tenso, mãos crispadas apertando uma na outra. Para depois dar uma volta por trás, para tentar também sair nas fotos que buscavam apenas Lula e Dilma.
Em vários momentos no documentário percebemos que todo o futuro parecia já estar antevisto em detalhes como esses. Essa é a grande virtude de Democracia em Vertigem: os fatos históricos funcionam no documentário apenas como cenários para uma outra questão – como a elite brasileira de repente cansou-se da Democracia e do Estado de Direito e conseguiu virar o tabuleiro envenenando psiquicamente uma nação com o ódio e a divisão de familiares e amigos.
Fonte: https://bit.ly/2RHDtsN
Para terminar com a caixa de Pandora aberta (a eleição de Bolsonaro) e uma pergunta: de onde encontrar forças para começar de novo?
FICHA TÉCNICA:
DEMOCRACIA EM VERTIGEM
Diretor: Petra Costa Roteiro: Petra Costa e Daniela Capelato Elenco: Entrevistas com Dilma, Lula, Gilberto Carvalho, José Eduardo Cardoso, Li An (mãe da diretora); Gênero: Documentário País: Brasil Ano: 2019
A água é uma representação do inconsciente, dessa forma, no filme os personagens se encontram cercados como se não pudessem escapar.
O filme O farol (The lighthouse) conta uma história de Ephraim, que é levado a uma ilha para substituir o ajudante do faroleiro Thomas, em atividades diárias. Sendo que o acesso ao farol fica vetado a Ephraim e isso acaba despertando nele uma enorme curiosidade. O filme foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Fotografia e carrega em si muitos símbolos e referências à mitologia grega.
O longa é uma linha tênue entre a realidade e a loucura, e fica em aberto para a imaginação de quem assiste. Ambos os personagens dividem o espaço da ilha, onde no início Ephraim é submisso a Thomas em uma tentativa de agradar e/ou conquistá-lo, e acaba desempenhando as funções mais pesadas. Mas com o passar do tempo essa relação se torna uma disputa de poder tendo o farol como objeto de disputa. Este símbolo na visão lacaniana é um objeto fálico, e o psicanalista francês (1999) lembra que na antiga Grécia, o falo não tinha um formato do órgão, mas tinha uma representação de desejo e poder.
No início do filme Ephraim tem uma função semelhante ao do Superego, que conforme Freud (1976) atua como um juiz, um órgão psíquico da repressão, particularmente da repressão sexual. Dessa forma, ele estabelece uma censura nos impulsos que a sociedade e a cultura interpretam como errado, impossibilitando o sujeito de se satisfazer plenamente. Então agindo de tal forma ele segue à risca o código do faroleiro, se nega a dar vazão aos seus desejos reprimidos e acaba em seus devaneios.
Já Thomas pode ser encarado como o ID, que no mesmo texto Freud afirma ter a função de descarregar as tensões biológicas e é regido pelo princípio do prazer. Nesse sentido, Thomas afirma ser o próprio código do faroleiro e que as regras que segue são as suas, dando asas aos seus desejos e pulsões, onde faz um grande consumo de bebida alcoólica e nega o acesso ao farol para o seu novo ajudante.
Além de suprimirem seus passados, os dois personagens parecem fugir o tempo todo de quem são, acabam buscando algum tipo de conforto na relação que estabelecem ali na ilha, porém ocorre o contrário, ambos começam a ter um contato com tudo àquilo que estavam negando. Em uma entrevista no site Huffpostbrasil, o diretor Robert Eggers fala sobre um homoerotismo presente no filme e que fica mais evidente na cena da dança, na qual termina em socos, como se em mais de um momento eles negassem seus desejos.
Fonte: encurtador.com.br/ghmL3
Devido a isso, desde o início o filme apresenta uma relação de dominação em que Thomas se refere a Ephraim como cachorro, mas existe um medo de ambas as partes de chegarem a quem são de verdade. Enquanto Thomas tem o prazer de enlouquecer e parece ser culpado pela morte do antigo ajudante, Ephraim diz que era lenhador e está ali fugindo de um acidente de trabalho que mais parece ter sido um assassinato, tanto que está presente em seus devaneios a presença desse colega.
O filme, por ser em preto e branco, luz e sombra, também é a representação de que nenhum indivíduo é totalmente bom ou ruim. Assim como aponta Jung (2011), a sombra é um problema de origem moral e tomar consciência dessa sombra é reconhecer aspectos obscuros da personalidade. Por isso o personagem de Pattinson fica obcecado em alcançar essa luz do farol, que poderia vir a iluminar seus aspectos sombrios que o acompanham desde o início do filme.
Fonte: encurtador.com.br/mtCD1
A água é uma representação do inconsciente, dessa forma, no filme os personagens se encontram cercados como se não pudessem escapar e acabam imergindo em algo que sai do controle. Assim, as defesas do Ego são rompidas aos poucos diante das provocações de um com o outro. Fora que anteriormente ele sonha que entra na água em meio a toras de madeira enquanto mantém fixo o olhar em um corpo que flutua. E é a partir desse momento, no qual o barco não vem buscá-lo, que ele rompe de vez com a realidade, onde no filme parece ser justificado pela bebedeira incessante com Thomas.
Outro momento intrigante do filme é quando Ephraim revela que seu nome também é Thomas, num jogo de projeções de mal entendidos. Isso ocorre, em certa medida, porque as personas (JUNG, 2011) vão sendo deslocadas, e determinadas atuações, sobretudo de Ephraim, começam a colapsar, numa clara demonstração, no decorrer do filme, de fragmentação da personalidade.
O filme apresenta muitas outras coisas a se analisar, como a cena em que Ephraim mata Thomas com um machado, assim como provavelmente ele pode ter matado seu ex-colega de trabalho. Podemos pensar na ilha e em todos os integrantes, inclusive os pássaros, também como parte de uma personalidade fragmentada. Isto tudo em meio a uma pessoa em busca de uma iluminação acerca de seus medos e incertezas, movimento metafórico quando, no longa, Ephraim abre o farol e é tomado por aquela luz. Uma luz que é sedutora, redentora… mas, também, perturbadora. Como o próprio filme!
FICHA TÉCNICA:
O FAROL
Título Original: The Lighthouse Direção: Robert Eggers Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe e Valeriia Karaman; Gênero: Drama, Fantasia e Terror País: EUA Ano: 2019
REFERÊNCIAS:
JUNG, C. G. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
FREUD S. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago; 1976.
JACOBS, Matthew. Decodificando o homoerotismo em ‘O Farol’. 2019. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/entry/o-farol_br_5db72026e4b006d49172e589>. Acesso em: 21 jan. 2020.
LACAN J. (1999) O Seminário 5 – As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Compartilhe este conteúdo:
História de um casamento: uma análise psicanalítica
Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Roteiro Original, Melhor Trilha Sonora Original.
A maturidade de cada sujeito é que determina a capacidade de superação, onde devem separar os conflitos internos dos conflitos externos que foram compartilhados
O filme História de um casamento (Marriage Story) problematiza o fim do relacionamento e o processo de separação de um casal e a briga pela guarda do filho. Podemos ver Adam Driver como Charlie e Scarlett Johansson como Nicole dividindo cenas emocionantes de todo esse processo e o desgaste físico e emocional enfrentado pelo casal no decorrer do filme.
Texto contém SPOILERS!!!
Nicole, apesar de aparecer menos durante o filme, é a personagem que permite mais nos aproximar de sua história. Ela vem de uma família neurótica obsessiva que Freud (1907) define como pessoas que realizam algum tipo de ato obsessivo sem compreender o sentido principal ou mesmo sem perceber o que faz. Isso fica evidente na forma como a mãe é imparcial com suas regras, querendo impor sua visão sobre a filha. As duas filhas não ficam muito atrás, ambas têm dificuldade em mudar a forma como operam no mundo, um exemplo disso é quando Nicole pede a sua irmã que entregue o papel da intimação do divórcio ao Charlie, e elas acabam ensaiando a entrega desses documentos, mas acabam sendo interrompidas pela chegada dele na casa.
Ela diz no filme que se apaixonou por Charlie dois segundos após vê-lo e não deixaria de amá-lo mesmo que não fizesse sentido. Roudinesco (2000) fala que o sujeito contemporâneo busca de uma forma desesperada vencer o vazio sem tirar um tempo para refletir sobre a origem dele. E como no filme mostra que Nicole se sentiu bem inicialmente, mas ela passou a viver pelo Charlie, isso pode ser ligado a um medo de um abandono ou ansiedade de separação, que de acordo com a American Psychiatric Association (APA, 2000) essa ansiedade é algo exclusivo da infância e adolescência. É um estado de regressão em que ocorre uma ansiedade excessiva pelo afastamento de pessoas com quem existe um vínculo, ou alguém que represente essa figura.
A mãe de Nicole relata sobre brigas e a separação do marido, na tentativa de dar alguma dica para a filha, mas esta também parece viver um processo de preencher um vazio, pelo fato de manter amizade com ex-namorado da outra filha Cassie. Lemaire (2005) narra que alguns sujeitos buscam desesperadamente um modelo fusional presente nas primeiras etapas da vida, ou seja, manter-se unida as figuras que ocupam o lugar de cuidadores na nossa infância, para assim evita entrar em contato com o luto do rompimento.
Roudinesco (2000) relata também sobre um indivíduo depressivo, que faz de tudo para fugir do seu inconsciente e se preocupa em retirar de si a essência de qualquer conflito. Charlie se comporta assim em quase todo o filme, ele evita falar sobre a família, onde sabemos que existia violência e álcool. Há um comodismo da parte dele, uma zona de conforto que faz com que ele evite entrar em contato com conteúdos conflitantes. E ele dialoga se defendendo que tudo o que está fazendo é pelo bem do filho, enquanto mal houve o que a criança tem a dizer.
Durante o filme fica bem claro essa relação que Charlie tem com o filho, sempre distante, não sabe o que o filho gosta, o que ele quer, tomando decisões precipitadas. Por sua vez a criança apresenta diversas dificuldades, até mesmo a de ir ao banheiro. Mostrando que ele já vem herdando as neuroses familiares e como aponta Corrêa (2000) esses aspectos transgeracionais mostram a importância e o impacto da família na vida dos sujeitos. E de acordo com Granjon (2000) a transmissão psíquica transgeracional é a que apresenta aspectos traumáticos e sintomáticos, onde anteriormente não existiu uma chance de mudança, pois essas situações passadas foram ignoradas pelos pais.
A maioria das cenas em que foca o casal mostra uma distância e um vazio que ambos carregavam em si e o relacionamento aponta que era praticamente uma fonte de escape para isso. A cena em que eles estão conversando no novo apartamento parece ser uma crítica quanto a isso, pois as cores e a complexidade do ambiente são mínimas. O diálogo maior ocorre apenas no final do filme, onde eles saem das sombras de seus advogados e põem para fora tudo o que não colocaram antes, até a tensão do filme parece diminuir após isso.
O filme consegue nos levar para a pele do casal, onde quase sentimos como se vivêssemos uma separação. Além de diversas outras críticas, o filme mostra a importância do diálogo claro e aberto dentro do relacionamento. Segundo Cleavely (1994), a maturidade de cada sujeito é que determina a capacidade de superação, onde devem separar os conflitos internos dos conflitos externos que foram compartilhados.
O término de uma relação demanda uma grande energia psíquica, é como um processo de luto, e como tal deve ser enfrentado. Freud (1917) escreveu que o amor é o que faz os vivos se apegarem a vida, que uma pessoa se torna forte ao se sentir amada. Dessa forma, buscar se conhecer faz parte do processo de amar, pois assim deixamos de amar somente na fantasia para amar também no real. Para finalizar, Erich Fromm (1996) aponta que o amor verdadeiro tem por características o cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento, e somente pessoas maduras conseguem, de fato, amar.
FICHA TÉCNICA:
HISTÓRIA DE UM CASAMENTO
Título original: Marriage Story Direção: Noah Baumbach Elenco: Scarlett Johansson, Adam Driver, Laura Dern, Merritt Wever, Azhy Robertson; Ano: 2019 País: EUA Gênero: Drama
REFERÊNCIAS
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM – IV-TR) (4a ed). Porto Alegre/RS: Artes Médicas, 2000.
CLEAVELY, E. Relationships: interaction, defences, and transformation. In: Ruszczynski, S. (org.). Psychotherapy with couples: theory and practice at the Tavistock Institute of Marital Studies (pp. 55-69). 2ªed. London: Karnac Books, 1994.
CORREA, O. B. R. (Org.). O legado familiar: a tecelagem grupal da transmissão psíquica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.
FREUD, S. (2006). Atos obsessivos e práticas religiosas. Obras completas, ESB, v. IX. Rio de Janeiro: Imago Editora. (Trabalho original publicado em 1907).
_______. Lutoemelancolia. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 1917.
FROMM, Erich. A Arte de Amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 1996.
GRANJON, E. A elaboração do tempo genealógico no espaço do tratamento da terapia familiar psicanalítica. In: O. B. R. Correa (Org.), Os avatares da transmissão psíquica geracional (pp. 17-43). São Paulo: Escuta, 2000.
LEMAIRE, J.-G. Comment faire avec la passion. Paris: Payot & Rivages, 2005.
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
Compartilhe este conteúdo:
A Luta de classes no Capitalismo Cognitivo no filme “Parasita”
Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original, Melhor Filme Internacional, Melhor Montagem, Melhor Direção de Arte.
O pano de fundo de Parasita é o empobrecimento e o acirramento da desigualdade na Coréia do Sul atual – após o desmoronamento de um contrato social confuciano de décadas.
O diretor sul-coreano Joon-ho Bong é um especialista no tema luta de classes. Seus filmes como O “Expresso do Amanhã” e “Okja” são variações sobre um tema cada vez mais aprofundado pelo diretor. Até chegar a “Parasita” (Gisaengchung, 2019), Palma de Ouro em Cannes, sua reflexão mais profunda tomando como cenário o chamado “Capitalismo Cognitivo”: “não-pessoas” com seus celulares e cercados de tutoriais e aplicativos, prontos para subempregos terceirizados – forma avançada de capitalismo na qual os patrões tornam-se invisíveis e a luta de classes oculta em camadas de apps. Desempregados e “uberizados”, a família Kin-taek passa a se interessar pela família Park. Ricos, terceirizam na sua residência todos as necessidades cotidianas. É a chance dos Kin-taek arrumarem um emprego mais estável. Mas uma perturbadora revelação trará consequências catastróficas para todos os envolvidos.
Lá no distante ano de 1982, a filósofa Marilena Chauí dizia em uma matéria na revista Isto É: “não tenho empregada porque não quero levar a luta de classes para dentro de minha casa”. Eram épocas da ascensão do PT após as grandes greves dos metalúrgicos na região do ABC/SP e Lula firmava-se como líder político. O grande tema era a luta de classes decorrente do eixo Capital versus Trabalho e as formas capitalistas de expansão da exploração (a “mais-valia”) e suas expressões políticas, como a própria ditadura militar do período.
Porém, o capitalismo sofisticou-se política e tecnologicamente e o eixo Capital-Trabalho não ficou mais tão exposto. Por assim dizer, a luta de classes se “capilarizou” com o crescimento da “uberização” e os trabalhos mediados por plataformas tecnológicas atrás das quais os patrões tornam-se invisíveis.
Capilarizada, a luta de classes deixa de ser exclusiva do eixo clássico do Capitalismo para se espalhar pela sociedade através terceirização de qualquer atividade: o Capital criou uma elite da alta administração e finanças (CEOs, diretores, altos executivos etc.) com polpudas remunerações e bônus. Da criação dos próprios filhos à prosaica compra num supermercado, tudo se torna objeto de terceirização para essa nova elite: alguém será pago para fazer serviços que, outrora, a própria família dava conta. Daí, o temor da filósofa da USP: trazer a luta de classes para um novo eixo – a própria vida doméstica. Principalmente na atualidade, na qual a uberização e terceirizações generalizadas alargam ainda mais o fosso da desigualdade social.
Esse é o tema do filme sul-coreano Parasita (Gisaengchung, 2019) do diretor Joon-ho Bong. Um especialista em filmes sobre conflitos de classes, incluindo Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013) e Okja (2017). Mas Parasita é o filme mais ousado em sua análise sobre as desigualdades estruturais do capitalismo moderno (Capitalismo Cognitivo) – de como alta tecnologia, a flexibilização das relações trabalhistas e a radicalização da meritocracia empurram o ressentimento social a situações tragicômicas.
O pano de fundo de Parasita é o empobrecimento e o acirramento da desigualdade na Coréia do Sul atual – após o desmoronamento de um contrato social confuciano de décadas (empregos vitalícios e um equilibrado sistema de aposentadorias) provocados pela imposição do pensamento único de um neoliberalismo triunfante, hoje o país convive com 30% das famílias abaixo dos níveis de pobreza.
Tragédias sociais como a transformação de homens e mulheres em “não-pessoas”, cidadão abandonados por falta de lugar na vida social, e a condição extrema de pobreza na qual famílias não conseguem nem recuperar o corpo de um familiar falecido para um velório digno, são cenas comuns na Coréia do Sul.
O Filme
Uma dessas “não-pessoas” é o jovem Kim Ki-taek (Kang-ho Song) e sua família de desempregados que vivem à beira da pobreza. Ganham algum dinheiro em um serviço terceirizado de dobrar caixas de pizza (aprendem a dobrar mais velozmente em tutoriais no YouTube) para uma empresa de entregas por aplicativo, roubam o sinal de wi-fi de um café das proximidades e vivem em uma espécie de porão no fundo de um beco frequentado por bêbados que ali urinam e vomitam.
Infestados de ratos e baratas, aproveitam a fumigação da saúde pública nas ruas para abrir as janelas ao nível da calçada e deixar que a fumaça entre, quase sufocando todos. Mas, exterminando temporariamente as pragas. Mas a sorte da família muda quando um amigo universitário de Kim Ki-woo se oferece para recomendá-lo como um professor de inglês particular para substituí-lo: ele terá que viajar para os EUA – a influência dos EUA é onipresente nas linhas de diálogo de Parasita.
Ele dará aulas particulares para a jovem So-dam Park (Ki-jung Kim), filha da afluente família Park – o pai, Dong-ik Park (Sun-kyun Lee) – CEO de uma grande empresa de tecnologia. Sua família vive numa espaçosa casa planejada por um famoso arquiteto, o Oscar Niemeyer coreano. Kim muda seu nome para Kevin e com a ajuda da irmã falsifica seus diplomas e certificados com um Photoshop em uma Lan House do bairro.
Ao chegar na residência da família e ser aprovado pela ingênua mãe chamada Yeon-kyo Park (Yeon-Jeong Jo), Kevin percebe que todo o cotidiano dos Parks é terceirizado: motorista, governanta, a terapia do pequeno filho hiperativo com tendências artísticas, compras no supermercado etc. Vislumbra, então, a possibilidade de empregar toda a sua família naquela casa – desde que ponha em ação um plano para forçar a demissão de todos e substituí-los pela desempregada família Kim.
O pai torna-se motorista, a mãe governante e a irmã a tutora de arte e terapeuta da pequena pestinha hiperativa, após a demissão forçada dos antigos serviçais terceirizados.
A capilaridade da luta de classes
Tudo vai bem e os Park também parecem felizes e satisfeitos com os novos prestadores de serviços. Porém, a trama acaba ficando fora de controle com uma surpreendente revelação, gerando consequências inesperadas e catastróficas para todos os envolvidos. Os críticos têm considerado Parasita inovador e inclassificável – começa como uma comédia de costumes para evoluir para a sátira, o suspense, o drama do conflito de classes sociais, até atingir o ápice do horror. As variações do tema da luta de classes nos filmes anteriores do diretor, chega ao estado da arte de reflexão, ironia e humor negro em Parasita.
Após ganhar a Palma de Ouro em Cannes, o filme já é um sucesso de bilheteria na Coréia do Sul. Apesar de toda hipérbole e exagero (principalmente na sequência final), Parasita parece expressar de forma realista a tragédia social e econômica do país, fazendo os coreanos rirem de si mesmos – principalmente a periferia que se agarra aos trabalhos uberizados para viverem das sobras das classes altas.
A virtude de Parasita é a de fazer uma sátira do atual estágio do chamado “Capitalismo Cognitivo”: miseráveis munidos de celulares e cercados de tutoriais e aplicativos, prontos para serem uberizados e viverem dos restos pagos pelas classes superiores. O conflito Capital versus Trabalho ainda existe, mas está escamoteado pela tecnologia que torna os patrões invisíveis e relações trabalhistas flexíveis.
Resultado: a luta de classes se capilariza em pequenos dramas cotidianos. Sem qualquer consciência de classe, fragmentados e isolados, as não-pessoas apenas acumulam decepção e ressentimento tornando-se presas fáceis ou do atual populismo de extrema-direita ou da explosão da violência incontida. Como Joon-ho Bong nos mostra no apoteótico final.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
PARASITA
Título original: Parasite Diretor: Bong Joon-ho Elenco: Cho Yeo-jeong, Park So-dam, Choi Woo-shik, Song Kang-ho; Gênero: Suspense, humor. País: Coreia do Sul Ano: 2019