A adaptação esquizofrênica numa sociedade pós-moderna em “Greener Grass”

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Na sociologia clássica funcionalista “papéis sociais” são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação, scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma

Freud acreditava que a civilização cobrava um preço ao indivíduo: o mal-estar, a neurose. Ele e toda a sociologia clássica temiam a “anomia”, o momento em que o mal-estar explodiria contra a civilização. Mas a sátira do filme “Greener Grass” (2019), da dupla de humor de improvisação stand up, Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe, mostra que no mundo pós-moderno paradoxalmente o mal-estar e alienação se tornam ferramentas de adaptação. Em um típico condomínio suburbano de classe média (algo como o sonho americano dos anos 1950 que caiu no Instagram do século XXI) temos uma visão maluca e surreal do tédio da vida suburbana kitsch e brega, vivendo um estilo de vida esquizoide: sentimentos confusos que tentam conciliar interações sociais competitivas com uma polidez politicamente correta neurótica. O resultado é uma sociedade à beira da depressão e, por isso, mais adaptada pela incapacidade de ousar.

Na sociologia clássica funcionalista “papéis sociais” são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação, scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma, cotidianamente, não importando a subjetividade ou necessidades ou carências psíquicas individuais. Por isso, viveríamos no cotidiano verdadeiros “dramas de adaptação” – a tensão entre o script abstrato das colagens de expectativas que entendemos que os outros têm de nós, e a nossa “espontaneidade”: o conjunto de impulsos e demandas íntimas.

Por exemplo, para o sociólogo norte-americano Talcott Parsons (1902-1979), esse ajuste do indivíduo aos papéis é fonte potencial de disfuncionalidade, o choque entre o que queremos e aquilo que a sociedade espera de nós. É o que Parsons chamava de “dupla contingência”: o drama de adaptação do ego ao papel imposto pelo sistema social de expectativas. Mas estamos no século XXI, e esse viés funcionalista da sociedade tornou-se mais complexo com diferentes matizes. Isto é, esse script abstrato que nos informa o que a sociedade espera de nós parece que se tornou tudo, menos “funcional” – ele pode ter se tornado fonte de profunda disfuncionalidade psíquica: esquizofrenia, psicose, indiferença, amoralidade etc.

Por esse motivo, Greener Grass (2019) é uma sátira maravilhosamente estranha na qual através de uma perfeita farsa suburbana e perversa expõe essa disfuncionalidade – uma visão absurda e surreal do sonho americano, na sua versão século XXI.

Dirigida, escrita, produzida e estrelada pela dupla de cineastas independentes Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe, o filme é uma versão estendida do curta-metragem de 2015 do mesmo nome. Nesse longa elas conseguem expandir a visão maluca do tédio da classe média suburbana (aquela que vive em uma vida asséptica de condomínios fechados) e as dolorosas consequências em se adaptar ao status quo. É como se o velho mundo em tons pastéis do sonho americanos da década de 1950 de repente caísse no Instagram.

Como o título nos informa, o argumento parte daquele velho provérbio de que a grama do vizinho sempre parece mais verde. Toda as interações dos personagens de Greener Grass são competitivas, carregadas de inveja e ansiedade. Porém, o paradoxo é que há uma expectativa latente e generalizada de que todos sejam amigáveis, sorridentes, polidos e simpáticos uns com os outros. Resultando numa estranha polidez que chega às raias da neurose, porque tentam conciliar a agonia da superação com uma cortesia neurótica politicamente correta.

A sociedade de Greener Grass acrescenta um requinte perverso aos dramas de adaptação descritos pela sociologia clássica – há uma espécie de armadilha esquizoide na qual os personagens caem quando tentam conciliar o inconciliável: competição e empatia; ansiedade de superação entrando em choque com uma sociedade que prega a igualdade e atitudes eticamente corretas. Um mundo de fluência, lazer, onde todos se locomovem em carrinhos de golfe entre suas casas que mais parecem cenografias de Show de Truman, o campinho de futebol para torcer histericamente pelos filhos e o boliche do shopping.

O Filme

Greener Grass começa com uma estranha sequência: Lisa (Luebbe) e Jill (DeBoer) sentam-se com um grupo de pais em um dia ensolarado (como todos), assistindo seus filhos jogarem futebol. Ambas as mulheres estão imaculadamente vestidas e maquiadas, com aparelhos nos dentes – todos usam aparelhos nos dentes! Jill segura um bebê recém-nascido e Lisa elogia o bebê: “fofo!”, diz.

Jill imediatamente entrega o bebê para Lisa: “Fique com ele… já tenho um menino”. Ninguém parece achar estranho, nem mesmo o marido Jill (Beck Bennett). Afinal, Lisa queria o bebê e seria egoísta não dar para ela… para sempre. Mais tarde, uma vizinha (Mary Holland) expressa ressentimento (na verdade inveja) por Jill não ter dado o bebê para ela. Jill então passa a ter sentimentos confusos sobre o que fez… No entanto, “sentimentos confusos” não são permitidos no mundo de Greener Grass.

O filho remanescente de Jill (Julian Hilliard) é um menino observador e perceptivo, que ao invés de tocar ao piano numa audição escolar uma música patriota executa uma composição própria de vanguarda atonal – um total freak para os pais, um inadaptável que sofrerá uma transfiguração surreal para poder se adaptar às expectativas do papai: ser um jogador profissional de beisebol.

Há uma cena em Greener Grass que é a síntese do paradoxo esquizoide dessa sociedade: quatro famílias em carrinhos de golfe ficam parados em um cruzamento de quatro vias. Todos gesticulam uns para os outros: “Você pode ir!”, “Não, pode ser você, eu insisto!”… E todos ficam sentados no cruzamento para sempre, com sorrisos congelados em seus rostos, em um estranho impasse de cortesia neurótica.

Síndrome de adaptação

Por isso, em Greener Grass ninguém ousa, produzindo uma estranha síndrome de adaptação – diálogos e ações são atravessados pela competição, inveja e ansiedade por superação. Mas ao mesmo tempo todos devem estar sorridentes, positivos, prá cima, alto astral. Que deve ser representado por uma espécie de polidez que se torna neurótica e paralisante. Ser altruísta pode ser também uma competição, especialmente quando os personagens fazem de forma performativa, para chamar a atenção para merecer aprovação dos outros.

Portanto, nesse mundo nivelador de Greener Grass, destacar-se é aterrorizante. Hipocritamente escondem-se num altruísmo neurótico criando uma surpreendente forma de adaptação jamais imaginada pelo funcionalismo de Talcott Parsons: uma adaptação através da disfuncionalidade psíquica. Mas esse mal-estar cobra um preço: um psicopata assassino ronda a vizinhança – alguém que resolveu ao seu jeito essa contradição entre competição/polidez: decidiu matar seus concorrentes sem piedade. A figura do assassino serial que irrompe no meio de um mundo colorido e alegre apenas confirma a espécie de redoma de vidro   sufocante que asfixia todos – por contraste, o assassino apenas reforça o estilo de vida asséptico e hipócrita.

Mesmo quando Jill se deteriora física e psiquicamente, comprova que não há saídas daquele mundo que parece tudo é apenas intercambiável – casas, filhos casais etc. Lisa pega uma bola de futebol, coloca debaixo do vestido e diz que está grávida, para todos participarem do seu “chá de bebê”; casais sem querer trocam seus parceiros e sem perceberem beijam o parceiro do outro; as casas parecem casas de boneca com decoração intercambiável, como se todos estivessem brincando de casinha.

Em suma, a narrativa de Greener Grass é um ótimo estudo de caso de como o mal-estar produzido pela socialização e adaptação pós-moderna (baseada em sentimentos contraditórios que anulam uns aos outros) produz uma estranha disfuncionalidade, não mais explosiva ou anômica. Mas agora, uma disfuncionalidade que anestesia, bloqueia a ousadia sob sintomas de cortesia neurótica, sorrisos nervosos e comportamentos estereotipados.

FICHA TÉCNICA:

Direção: Jocelyn DeBoer, Dawn Luebbe
Elenco: Jocelyn DeBoer, Dawn Luebbe, Beck Benett, Neil Casey, Mary Holland;
Ano: 2019
País: EUA
Gênero: Comédia

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Gênero: questão de aprendizagem?

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A epistemologia inatista acredita que “as possibilidades de adquirir conhecimentos são hereditárias, inatas, predeterminadas.” (Paula et al.) ou seja, já nascemos predispostos/predeterminados com as características que deveremos desenvolver durante a vida. Neste pensamento não é levado em consideração a experiência do individuo, visto que quando houve a experiência ele já sabia o que deveria ser feito ou como deveria reagir. Na psicologia temos Rogers que segue esta linha epistemológica de raciocínio.

A personalidade,  a forma de pensar,  seus  hábitos,  seus  valores,  as  reações  emocionais  e o comportamento são inatos, isto é, nascem com o indivíduo e seu destino já vem pré-determinado.  Os  eventos  que ocorrem após  o nascimento não são essenciais  ou importantes  para o desenvolvimento (QUEIROZ, 1998). 

A epistemologia ambientalista acredita na “experiência como fonte do conhecimento e formação de hábitos, atribuindo um grande poder ao ambiente no desenvolvimento e na constituição das características humanas.” (QUEIROZ, 1998), ou seja, o indivíduo depende das experiências para adquirir novos conhecimentos e repertórios num formato de aprendizagem acumulativa onde esta experiência vai ser direcionada pelos fatores presentes no ambiente, o ambiente é quem determina o formato a ser aprendido. Na psicologia temos Watson que segue esta linha epistemológica de raciocínio.

Fonte: https://bit.ly/2LV5U1H

A epistemologia interacionista acredita que “o organismo e o meio exercem ações recíprocas, ou seja, um influencia o outro acarretando mudanças sobre o indivíduo” (QUEIROZ, 1998), para tanto, o indivíduo e o meio estão relacionados no momento da aprendizagem onde o individuo transforma o meio e é também transformado por ele num formato de construção de novos comportamento e repertórios. Ao falar de interacionismo somos arremetidos à cultura, pois a cultura norteia uma série de condutas do indivíduo e ele está imerso a ela desde o seu nascimento. Na psicologia temos Piaget que segue esta linha epistemológica de raciocínio.

No documentário Paradoxo da Igualdade, do sociólogo Harald Eia, podemos observar argumentos dos pesquisadores que são embasadas nas epistemologias: inatista, ambientalista e interacionistas.

Vemos argumentos inatistas na pesquisa do Trond Diseth, pesquisador do Hospital Nacional, da Anne Campbell, professora do departamento de psicologia em Durham – Inglaterra, e de Simon Baron-Cohen, professor Inglês de Psiquiatria, ambos acreditam que de uma forma ou de outra nascemos geneticamente predispostos a seguir tendências de gênero, exemplificado no documentário como homens terem afinidade com trabalhos que envolvam ciências exatas e mulheres terem afinidade com trabalhos que envolvam se relacionar com pessoas.

Sexismo. Fonte: https://bit.ly/2MvJ16g

Eles comprovam estes fatos baseados em seus estudos, Anne Campbell estuda a evolução e crê que somos fisicamente diferentes exatamente por causa do papel social que representamos desde a pré-história. Trond Disethe Simon Baron-Cohen têm testes feitos em laboratório com crianças ainda na primeira infância que apresentam maior afinidade com brinquedos relacionados ao seu gênero.

Já a teoria ambientalista é representada pelo Dr. Richard Lippa, professor de psicologia na Universidade da Califórnia, que fez pesquisas em 53 países e percebeu que a questão de gênero na hora da escolha do trabalho depende do ambiente em que aquelas pessoas estão inseridas.

Ele explica que uma mulher indiana, por exemplo, que precisa de emprego, se encontrar oportunidade em um serviço que precise operar computador então ela vai operar computador. Se uma mulher no Camboja precisa ter noções de exatas para trabalhar, elas vão desenvolver afinidade com isto. Então os países com liberdade de escolha tendem a ser países mais sexistas nesta questão dos empregos, pois cada um pode escolher o seu emprego de acordo com suas preferencias.

Já o pensamento interacionista é mostrado nos pensamentos dos três noruegueses,Cathrine Egeland (Pesquisadora no Instituto de Pesquisa do Trabalho), Joergen Lorenzten (Pesquisador de gênero no Centro de Estudos interdisciplinares de gênero na Universidade de Oslo) e Martine Aurdal, que negam a teoria inatista uma vez que eles dizem que somos sujeitados às influencias sociais e culturais que recebemos desde o primeiro segundo de vida.

Eles explicam isto dizendo que todas as expectativas de papeis sociais são simplesmente depositadas em nós, uma vez que influenciamos nossas crianças a quererem determinada cor, ou brincadeira, ou brinquedo.

As representações de trabalho que temos são sexistas, como por exemplo, as placas de “obra na pista” são representadas por bonecos homens. Quando vemos um bebe já mudamos a interação que vamos ter com ele dependendo do sexo que ele tiver, se for menina é uma “princesinha, bonitinha” e se for menino é um “rapazinho valente e forte”.

Fonte: https://bit.ly/2lciq1t

Eles creem que todas estas influências determinam papeis a serem desempenhados, e mesmo em uma sociedade igualitária, os papeis sociais determinam o trabalho que você vai escolher, a roupa que você vai vestir, entre outros fatores.

No documentário norueguês conduzido pelo sociólogo Harald Eia, não fica definida uma das epistemologias como verdadeira e absoluta, na verdade o intento do documentário é mostrar como elas visões vem explicar uma série de comportamentos e fatores presentes na nossa sociedade e nenhum deles é determinante para entender todos estes fatores. Fica como reflexão a cerca do paradoxo da igualdade e também fica como uma boa ilustração das epistemologias inatista, ambientalista e interacionistas.

REFERÊNCIAS:

HJERNEVASK (PARADOXO DA IGUALDADE). Direção de Harald Eia. Produção de Ole-martin Ihle. Noruega: Nrk1, 2010. 7 Episódios (40 min.), son., color. Legendado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=G0J9KZVB9FM>. Acesso em: 21 fev. 2017.

QUEIROZ, Elaine Moral. TEORIAS DA APRENDIZAGEM, 1998. Disponível em: <http://www.joinville.udesc.br/portal/professores/tatiana/materiais/apostila___material_extra.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2017.

PAULA, Angela et al. Inatismo ou Apriorismo. 2009. Disponível em: <http://teoriasdaaprendizagem2009.blogspot.com.br/2009/06/inatismo-ou-apriorismo.html>. Acesso em: 22 fev. 2017.

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