Aos Nossos Filhos e o Mito Familiar

Compartilhe este conteúdo:

A canção Aos Nossos Filhos, composta por Ivan Lins e Vitor Martins em 1985 (ano do fim da ditadura instaurada pelos militares) traz inúmeras reflexões a respeito do padrão de funcionamento familiar adequado à época – a saber, o mito familiar – bem como a nova postura adotada pelo eu lírico (possivelmente, a partir de novas reflexões e do modelo de família ter sofrido uma série de mudanças) a ponto de o mesmo pedir perdão. Provavelmente a progenitora é a autora desse pedido. 

As autoras Narvaz & Koller (2004, p. 149) afirmam que:

Cada família tem suas histórias, tem seus romances e seus segredos, que se repetem e são recontados como numa saga, numa história mítica transmitida de geração em geração. São histórias de amor, de dor, de luta, de conflitos, de união, de contradições e sínteses possíveis. São romances que desvelam e encobrem as identidades, ora para o mundo, ora para a própria família e seus membros. Alguns segredos são anedóticos, outros trazem consigo um profundo medo de serem revelados. São histórias de encontros e desencontros, de cumplicidades e conivências, de dominação e submissão. Para conquistar e reconquistar esta saga é preciso socializar esta história. É preciso recontá-la. Muitas vezes, é necessário que haja alteridade no espaço familiar para que este recontar se constitua em fator de promoção de saúde e proteção. Que sejam rompidas as barreiras das repetições doentias e hesitantes para garantir famílias mais resilientes e capazes de superar novos desencontros e avizinhamentos intradomésticos perversos.

Tal perspectiva será tomada como basilar para o desenvolvimento do presente texto. É somente a partir da sua existência do respeito e seu adequado manejo (no caso, respeito à forma de pensar e se comportar da época vigente) que será possível a posterior superação/mudança da estrutura e assim novas histórias familiares/novos estilos de vida passarão a existir. Desta forma, a canção nos traz uma reflexão que será pautada nas ideias de Narvaz & Koller (2004) e Walsh (2005).

Fonte: encurtador.com.br/afGHK

Dessa forma, o primeiro trecho da canção traz a seguinte mensagem:

Perdoem a cara amarrada (pouco envolvimento afetivo)
Perdoem a falta de abraço (pouco contato físico)
Perdoem a falta de espaço (relação autoritária)
Os dias eram assim (conformidade com a época vigente/ditadura militar)

Idealmente, na família tradicional de nossa estrutura social, os processos de submissão e aceitação dos valores e de controle dos pais são naturalmente apresentados como necessários. Ensinando a submissão desde o início da vida, essa forma de relação (leia-se dominação) se transfere para outras esferas da vida. Assim, produz filhos obedientes – futuros cidadãos sem voz, submissos a toda e qualquer autoridade (BORDIEU, 1999; REIS, 1985). Dessa forma, o eu lírico justifica o repasse na maneira de contato, afinal, os dias eram assim.

Fonte: encurtador.com.br/oHTV9

Perdoem por tantos perigos (ausência ou pouca proteção)
Perdoem a falta de abrigo (pouco acolhimento)
Perdoem a falta de amigos (ínfima permissão de contato externo)
Os dias eram assim

A crença predominante no núcleo familiar em questão possivelmente correspondia a um distanciamento físico e emocional, além da imposição de regras incisivas. Walsh (2005) diz que é a partir das crenças compartilhadas no ambiente doméstico que o indivíduo compreende o mundo de forma peculiar e passa a agir sobre o mesmo. Assim, o eu lírico transmite à (o) filha (o) a forma de ensinar, se portar e tocar aprendida.

Perdoem a falta de folhas (a seca pode se referir ao funcionamento familiar insatisfatório)
Perdoem a falta de ar (pouca permissividade de sair)
Perdoem a falta de escolha (pouca possibilidade de escolher, poucas opções)
Os dias eram assim

Walsh (2005, p. 45) afirma: “as profundas raízes sociais e culturais de nossas crenças em geral dificultam sairmos do nosso próprio contexto para observá-lo e tecer comentários sobre ele”. Diante disso, podemos supor que a autora hoje (quando saiu do ambiente que estava inserida) consegue entender que, no processo de criação, poderia ter se comportado de forma mais terna, ter proporcionado um pouco mais de liberdade e ter viabilizado mais possibilidades de operação no mundo.

E quando passarem a limpo (a história pode ser reescrita)
E quando cortarem os laços (os condicionantes podem ser superados)
E quando soltarem os cintos (liberdade de sair de casa, tomar próprias decisões, se libertar da opressão social)
Façam a festa por mim (vivam o que nunca vivi, vocês podem ir além!) 

Os mitos familiares trazem forte influência sobre o atual modo de agir do membro de dada família. À vista disso, entendemos que por mais debilitadora que a crença basilar possa ser, é possível, por meio das vivências ou psicoterapia, trazer ressignificação e, então, ser ativo diante das situações difíceis que a vida nos impõe. O eu lírico talvez não consiga mais viver o que foi reprimido (idade, coragem, possibilidade), mas pede que o filho possa fazê-lo. Tal pedido remete à ideia de o mesmo ser percebido como uma extensão dela.

Walsh (2005) diz:

Os mitos familiares podem ser capacitadores ou debilitadores, dependendo dos temas que os constituem e da sua capacidade de resposta a novas circunstâncias. Os clínicos treinados para buscar influências negativas da família de origem precisam encorajar os clientes a buscar histórias, heróis e legados multigeracionais positivos que possam inspirar esperança ação corajosa diante da adversidade. 

Fonte: encurtador.com.br/aDNU4

E quando largarem a mágoa (não se vinguem da opressão imposta, dê a eles a oportunidade de libertarem a si)
E quando lavarem a alma (quando conseguirem ver a partir de outra perspectiva, festejem/vejam/experienciem por mim)
E quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

O pedido é enfatizado. Apesar de não sabermos o que gerou esse momento de insight – pode ser um evento que a levou a ter a percepção de considerar que não viveu como poderia, arrependimento, remorso etc –, é nítida a observância de mudança na maneira de enxergar. Uma possibilidade que só a reflexão pode ocasionar.

Fonte: encurtador.com.br/hkoBJ

Como bem coloca Walsh (2005, p. 47):

Seja uma catástrofe natural, uma tragédia pessoal ou uma dificuldade persistente, a adversidade gera uma crise de significado e uma destruição potencial da integração potencial. Essa tensão precipita a construção ou reorganização da nossa história de vida e das nossas crenças.

Quando brotarem as flores (crescimento, progresso, conquista)
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim

Digam o gosto pra mim

O eu lírico termina a canção com a reafirmação da súplica inicial. É extremamente instigante a observância do processo explanado. Nos recorda que somos sujeitos vivos, podemos ser ativos diante das possibilidades de existir! Cabe ressaltar que o padrão de dinâmica familiar aprendido com nossa família não é errado, no entanto, o aprendizado dos mesmos não quer dizer que aplicaremos todas as ideias e princípios a nós outorgada.

REFERÊNCIAS:

NARVAZ; M. G. KOLLER, S. H. Famílias, gêneros e violências:  desvelando as tramas da transmissão transgeracional da violência de gênero. Rio Grande do Sul, v. 2, p. 149-176, 2004.

WALSH, F. (2005). Fortalecendo a Resiliência Familiar. São Paulo: Roca.

 

Compartilhe este conteúdo:

A Cabana: você perdoaria?

Compartilhe este conteúdo:

Após perder a sua filha mais nova, Mack Allen Phillips vive atormentado. Além da provável morte trágica, já que houve sinais de que ela teria sido violentada e assassinada, o corpo da menina nunca foi encontrado. Passaram-se anos e a família nunca mais foi a mesma, até que Mack recebe uma carta misteriosa que fará com que ele receba uma lição de vida e tudo muda na vida dele.

Fonte: http://zip.net/bwtKrH

A história de “A Cabana”

A Cabana é um livro escrito em 2007 pelo autor William P. Young. A história fez tanto sucesso que rapidamente se tornou um Best-seller, chegando a vender mais de 18 milhões de cópias. O livro aborda uma questão bastante comum na vida de todos, a existência do mal.

Mack Phillips é um personagem que vive em uma tristeza profunda após perder sua filha de seis anos, Missy (Melissa). A menina foi sequestrada durante um acampamento que ele fazia com seus três filhos em uma reserva na cidade de Joseph, no final de semana. Embora as buscas tenham sido constantes, o corpo da criança nunca foi encontrado.

Porém, a polícia conseguiu encontrar, em uma cabana abandonada nas montanhas, sinais de que Missy havia sido violentada e assassinada. Passado três anos e meio após o acontecimento, Mack e sua família nunca se recuperaram do ocorrido. Em especial Mack, que ficou imerso em uma dor profunda, entregando-se a uma tristeza sem fim. Foi então que o pai recebe uma carta misteriosa que parece ter sido escrita por Deus.

Na carta ele é convidado a voltar para a cabana, onde o personagem tem um encontro especial com Deus. Lá, ele irá encontrar a resposta para a sua dor, assim como também para a questão que tanto o atormenta, ou seja, ele não aceita o fato de que Deus é tão poderoso e tenha deixado a sua pequena Missy morrer cruelmente.

Fonte: http://zip.net/bmtKPj

Deus, Jesus e o Espírito Santo ajudam Mack a compreender os tristes episódios de sua vida, levando-o a ser uma pessoa mais compreensiva, sem rancor e sem tristeza. Após trabalhar esses aspectos na vida de Mack, libertando-o ao perdão, Deus ajuda o pai da menina a encontrar o seu corpo, cumprindo assim a sua última missão, ou seja, de poder enterrar o corpo da filha.

Antes de “voltar” para a casa, Mack tem direito a escolher ficar com Missy ou voltar para a sua família, que tanto precisa de sua ajuda. Ele percebe que, em especial, a sua filha mais velha Kate Phillips é quem mais precisa dele. Isso porque a garota se culpa pela morte da irmã, já que na história, ela quem causa a situação onde o pai se afasta de Missy.

Então, Mack decide voltar para a casa e ajudar a sua família. No caminho ele sofre um acidente. Após o acidente de carro e acorda em um hospital, onde lhe é revelado que ele nunca chegou a voltar à cabana. E tendo certeza de tudo o que lhe aconteceu, ele contacta as autoridades, revelando o seu “sonho” e mostrando o local onde o corpo da criança está. Isso contribuiu para que os policiais conseguissem encontrar também o corpo de outras meninas, mortas pelo mesmo assassino de Missy.

Passado algum tempo, os policiais seguem as pistas encontradas no local onde foi encontrado o corpo da menina e chegam até o assassino de meninas. O pai então vai ao julgamento do “matador de meninas”, onde explica a todos como encontrou o local onde estava o corpo de sua filha, comovendo a todos ali presente.

A história do livro é passada igualmente no filme, que já rendeu mais de 1 milhão de expectadores só no Brasil.

O processo de enlutamento

Podemos dizer que o enlutamento possui 5 fases: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. O personagem Mack Allen Phillips vive exatamente essas fases, onde a negação vem com o não desejar saber e o não aceitar, se isolando e até mesmo não falando sobre a sua dor.

Já a raiva é nitidamente demonstrada por ele diversas vezes, ao entrar em desarmonia psíquica em relação a dor da perda, se recuperando apenas ao final do filme. A negociação podemos ver quando o personagem tenta voltar ao como era antes de tudo acontecer. Depois, podemos sentir o quanto o personagem fica depressivo em várias cenas, devido a falta que sua filha faz e ao fato de não ter “conseguido” protegê-la, se culpando o tempo todo. E a resiliência é quando Phillips consegue aceitar essa nova condição e dar o perdão, libertando-se da culpa e dor que o consumia.

O filme nos mostra o quanto somos levados a incertezas e lutos, nos passando a certeza de que, embora não possamos nos desviar da dor, podemos encontrar o melhor caminho para prosseguir, mesmo com ela.

Curiosidade:

Você sabia que na cidade Joseph, nos Estados Unidos, existe um parque como o narrado no livro e filme “A Cabana”? Estamos falando do Parque Estadual “Wallowa Lake State Park. Ele oferece atividades variadas, com passeios a cavalo, trilhas, passeios de barco, mini-golfe, canoagem, bonde que vai até o topo da montanha, vida selvagem abundante e, é claro, área para campistas.

Fonte: http://zip.net/bbtKP1

Se você tem interesse em conhecer o lugar, não se esqueça de levar o seu guia mundial para campistas, afinal, para experimentar a vida selvagem, você precisa seguir algumas regras e aproveitar algumas dicas.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A CABANA

Diretor: Stuart Hazeldine
Elenco: Sam Worthington, Tim McGraw, Octavia Spencer, Radha Mitchell;
Ano: 2017
País: Estados Unidos
Classificação: 12 anos

Compartilhe este conteúdo:

Pecar e Perdoar – Não existe “inveja branca”

Compartilhe este conteúdo:

“Se quiséssemos apenas ser felizes, seria fácil. Mas queremos ser mais felizes que os outros, então é difícil, pois achamos os outros mais felizes do que realmente são” – Montesquieu

Sucesso de crítica, “Pecar e Perdoar – Deus e o Homem na História” (Editora Nova Fronteira), do professor Leandro Karnal (Unicamp), é de uma clareza e lucidez tocantes. Em 204 páginas e com uma linguagem leve e apropriada, Karnal aproxima do grande público um tema que a priori parece espinhoso, ainda sob a égide da filosofia e da teologia, mas que é pertinente e incrivelmente presente na vida da maior parte das pessoas (os cristãos diriam que está presente em todos, tendo em vista a inclinação básica para “o pecar”). Este tema, que salta aos olhos em relação às demais abordagens do livro, é a famigerada inveja.

Como parte dos clássicos “Sete Pecados Capitais” da Igreja Católica – que delinearam e foram a base moral e ética de toda a civilização Ocidental, tal qual a conhecemos hoje –, a inveja – assim como os demais pecados – é explicada a partir da perspectiva do perdão. Desta forma, como defende Karnal, “o erro nasce com o perdão, ou a explicação pelo erro”.

E o que isso tem a ver com o nosso tempo? Karnal diz que a experiência humana – cujo ápice é a sua própria inserção no mundo real (fenomenológico) – recebe (como já defenderam vários teóricos) grande influência coletiva dos preceitos religiosos. Esta influência estaria incrustada  tanto no inconsciente coletivo quanto na formação psíquica individual.

Em que pese os alertas de que os monoteísmos de forma geral – se houver abordagem exclusivista e teísta-antropomórfica – e a ênfase fundacionista em particular, notadamente quando usadas sem refreio pelas três grandes religiões abraâmicas, geram mais dissabor que inclusão, não se pode “jogar para debaixo do tapete” as influências que tais traições ainda exercem no cotidiano da vida ocidental, seja na política, nas artes, na educação e justiça. E são muitas as boas influências. É este um dos alertas que Karnal faz em seu livro, de forma direta ou indireta. Reverbera, também e complementarmente em suas palestras sobre o tema, um assunto que a professora Rochelle Cysne (Universidade Católica de Brasília) defende com propriedade: a atual “crise existencial” do Ocidente se deve, em parte, às tentativas de execrar o cristianismo da Europa para substituí-lo pelo secularismo com realce ao ateísmo militante (ateísmo antirreligioso). Tanto Karnal – em suas exposições públicas e neste livro em questão – quanto Rochelle dizem que o grande problema é que as artes seculares e a própria ciência – no primeiro caso, uma porta voz “natural” da vontade de imanência, a partir do século “das luzes” – não estariam conseguindo impingir a mesma experiência estética que as tradições religiosas produzem. O resultado: uma sociedade desesperançada, sem conexão com aspectos teleológicos e num autocentrismo estridente. Este autocentrismo não representaria autopoiese. Antes, é uma forma de projetar-se para o mundo sem (re)conhecer a si próprio, numa escalada de “esvaziamento da subjetividade”. Daí a “enxurrada” de transtornos psíquicos supostamente típicos da contemporaneidade. Este é um tema que daria outro texto (portanto, não será aprofundado no momento), e que encontra eco na “Civilização do Espetáculo”, do Nobel de Literatura Mário Vargas Llosa, para quem “o declínio da linguagem”, que passou a sofrer com a proeminência imagética, desembocou em tal estado de coisas.

Sobre o processo de resignificação do pecado – que passa de algo execrável para tolerável, no sentido e uso comum –, a inveja também é apresentada por Karnal como algo sutil e venenoso, por isso não haveria “inveja branca”. De acordo com Karnal, que se utiliza de um humor ao mesmo tempo fino e ácido, “invejar é ter dor pela felicidade alheia. O que me incomoda não é, exatamente, o que o outro tem, mas o quanto ele é feliz com isso. Não quero a casa do outro, mas fico incomodado como ele vive bem nela”. Assim, Karnal considera a cobiça menos danosa e, em alguma medida, propulsora da ação. Ao cobiçar algo, o agente se move em direção à conquista. Portanto, o desejo de ter a mesma capacidade e/ou habilidade que outra pessoa configura-se, em súmula, numa grande diferença em relação a inveja. A cobiça, desta forma, seria até essencial para a existência.

Karnal acrescenta que a inveja é uma espécie de “pecado avergonhado”, tendo em vista que boa parte das pessoas pode até admitir publicamente que vive pelo (impulso ao) sexo, pela comida ou mesmo pela vaidade estética. “Mas você já encontrou alguém que diga que é muito invejoso? Já esbarrou com uma pessoa que reconheça que não pode ver a felicidade alheia que já cai em dor mortal como todo invejoso? Acho que não”, provoca o professor da Unicamp. E isto ocorre, segundo Karnal, porque

A inveja nunca é boa, ou usando uma expressão duvidosa, nunca é “branca”. A inveja é sempre destrutiva, sempre terrível e sempre “ruim”. Não existe inveja boa. O que pode ser menos danoso é um tipo de cobiça muito especial. (KARNAL, 2015, p. 68)

Desta forma, a existência de uma “cobiça branca” no tecido social é algo desejável. Age de modo semelhante ao estado dionisíaco executado por tempo determinado e observado de perto. Esta cobiça pode ser propulsora de boas mudanças e geradora de progresso.

A inveja, prosseguindo, é algo corrosivo, pois quem inveja não consegue perceber o esforço que o interlocutor fez para chegar a tal patamar. Esta assertiva leva a outros desdobramentos, como o fato de que o período pós-moderno pode acabar por influenciar reações de inveja, já que exorta os indivíduos a saírem do âmbito do privado para se projetarem, incessantemente, no ambiente do público, sobretudo através da comunicação por redes. Ainda assim, diriam os existencialistas, há uma vontade-base que depende exclusivamente de quem inveja. Em outras palavras, o invejoso tem condições de, por si só, decidir parar de invejar.

Karnal diz que ao optar pela inveja, o invejoso torna-se um cego espiritual (e aqui ele não se refere a “cego religioso”), num frenético jogo de comparações com o mundo externo. Desta forma,

O centro do olhar do invejoso é o outro. Em linguagem moderna, falta psicanálise ao invejoso; ele não tem senso crítico sobre si e nem conhecimento das suas limitações. Em linguagem filosófica, o invejoso não cumpre o mandamento socrático de conhecer a si mesmo. (KARNAL, 2015, p. 69)

Leandro Karnal aponta para as prováveis raízes da dor causada pela inveja. “Ela dói porque ela me reconhece menos. O que o outro parece conseguir de forma tão fácil, eu não consigo ou não tenho” (KARNAL, 2015). Há, portanto, uma pressão psicológica provocada pela falsa ideia de que o invejoso foi “excluído dos eleitos”, num desgaste interno que é lento e ressentido. Isso leva a outra investida, não menos danosa: a de “querermos nos parecer bem e felizes sempre”, para pelo menos de forma superficial – através de “likes” em postagens, por exemplo –, ter o prazer de receber o feedback e a aprovação do mundo. Esta é uma dinâmica que poderia ser a causa de algo ainda mais sério, o narcisismo patológico. Zizek já apontou para este caminho em um de seus últimos escritos.

Por fim e em resumo, a inveja aponta para um duplo caminho. Se por um lado ela age como uma “entorpecedora” da alma, ao obstruir os próprios referenciais – em decorrência da aflição com a condição do outro -, por outro lado ela desencadeia uma quase patológica necessidade de se apresentar para o mundo de forma superficial e aparentemente impecável. E haja energia para manter tantas “máscaras”! Sobre tema semelhante, certa vez Jung já advertiu que “quem olha para fora, sonha; que olha para dentro, desperta”.

No fundo, Leandro Karnal tenta, através de “Pecar e Perdoar”, despertar o máximo de pessoas de uma suposta letargia contagiante que ronda o contemporâneo. Trata-se de um livro atual e instigante.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

PECAR E PERDOAR – DEUS E O HOMEM NA HISTÓRIA

Autor: Leandro Karnal (Unicamp)
Publicação: Editora Nova Fronteira
Páginas: 204
Temas: História, Teologia, Filosofia, Vida Cristã

REFERÊNCIAS:

KARNAL, Leandro. Pecar e perdoar – Deus e o Homem na História. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura; tradução Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

ZIZEK, Slavoj. Problema no paraíso: do fim da história ao fim do capitalismo; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

Compartilhe este conteúdo:

A arte de perdoar

Compartilhe este conteúdo:

O perdão como fonte de sabedoria, humildade e grandeza, é o resultado do tema trabalhado pelo autor Maurício Zágari: Perdão Total – Um livro para quem não se perdoa e para quem não consegue perdoar – Editora Mundo Cristão, 192 páginas.

O livro trata que, além do desgaste espiritual, a falta de perdão pode acarretar até mesmo prejuízos à saúde física. Segundo uma pesquisa feita pela Universidade da Califórnia, em San Diego, pessoas que deixam a raiva de lado são menos propensas a sofrer mudanças na pressão arterial. A pesquisa publicada no Journal of Biobehavioural Medicines sugeriu que o perdão poderia ter menor reatividade a eventos estressantes e menos impacto físico.

O tema perdão é tão debatido, mesmo assim, até hoje é alvo de negação por grande parte da humanidade. Ao longo do livro, o autor fala sobre a dificuldade do ser humano, não apenas de perdoar ao próximo, mas de perdoar a si mesmo. Zágari analisa ainda, casos de pessoas que se arrependeram do erro, mas ainda se sentem perseguidas pelas falhas do passado. E ainda anima quem acha que cometeu algum erro que não pode ser perdoado por alguém.

Maurício Zágari. Foto: Acervo Pessoal

O (En)Cena, entrevistou o autor Maurício Zágari, jornalista e teólogo. Ele recebeu os Prêmios Areté de “Autor Revelação do Ano” e de “Melhor Livro de Ficção/Romance” pelo livro O Enigma da Bíblia de Gutemberg. É autor também dos livros A Verdadeira Vitória do Cristão, 7 Enigmas e um Tesouro e O Mistério de Cruz das Almas, pela Editora Mundo Cristão. Escreve regularmente no blog Apenas (http://apenas1.wordpress.com). Membro da Igreja Cristã Nova Vida em Copacabana-Rio de Janeiro, RJ.

En(Cena) – Por que o senhor resolveu escrever sobre o perdão?

Maurício Zágari – O livro surgiu da percepção de que as pessoas têm vivido muito pouco o perdão. E isso ocorre justamente pela carência de conhecimento sobre o que a falta de perdão pode gerar de mal e do que o perdão pode gerar de bom. A falta de perdão é um câncer, que corrói a alma, as emoções e influencia até a saúde física. Porém, as pessoas não estão se dando conta disso. Diante desse quadro, “Perdão Total” nasceu com o objetivo de tentar conduzir o leitor a entender a dinâmica bíblica de erro-perdão-restauração, mostrando os males da falta de perdão e expondo que perdoar é um caminho para viver uma vida feliz, pacífica, alegre e graciosa.

En(Cena) – Os fundamentos do perdão encontram-se somente na Bíblia ou outros escritos de civilizações mais antigas pregam o perdão?

Maurício Zágari – O perdão como é concebido pelo cristianismo não encontra paralelo em nenhuma outra civilização, que é o conceito de “perdoar setenta vezes sete”, ou seja,  infinitamente, segundo a cultura da época. Mesmo entre o povo hebreu, de onde veio o fundador do cristianismo, Jesus, o conceito de perdão era diferente, com base na lei mosaica registrada na Torá. No judaísmo de 1.500 antes de Cristo exigia-se sacrifícios e atitudes propiciatórias. O cristianismo é a única visão filosófico-religiosa da história que considera um perdão concedido não por mérito próprio, mas como fruto da ação graciosa do ente divino, isto é, entregue como um presente imerecido, uma dádiva.

En(Cena) – A falta do perdão sendo até prejudicial a saúde, de que forma isso pode afetar, e que área da saúde o ser humano pode sofrer prejuízos?

Maurício Zágari – Não perdoar quem nos fez mal gera ressentimento. Não perdoar a si mesmo gera culpa. Ressentimento e culpa promovem um estado emocional sobrecarregado, propício para o desenvolvimento de doenças psicossomáticas. É fácil imaginar que uma pessoa sobrecarregada, por exemplo, pela culpa possa ter crises de ansiedade e até picos de pressão alta gerados por seu estado emocional.

En(Cena) – Precisa-se perdoar diversas vezes com a intenção de aprender a perdoar ou o perdão não é considerado treinamento?

Maurício Zágari – Embora o conceito de perdão possa ser ensinado a uma criança (como quando ensinamos nossos filhos a desculpar o coleguinha que o mordeu na creche), a prática certamente torna mais fácil. Ou seja: a decisão de perdoar nos ensina de modo pragmático o caminho das pedras para perdoar novamente em um evento futuro.

En(Cena) – Quando uma pessoa perdoa o próximo e não consegue se aproximar do perdoado como antes, isso é um perdão consumado?

Maurício Zágari – Sim. Há um duplo aspecto do perdão: o interior e o exterior. Se um assassino mata um parente meu, posso perdoá-lo em meu coração, isto é, cancelando uma dívida pessoal dele comigo, mas isso não eximirá o homicida de cumprir pena como consequência pragmática e externa de seus atos. Outro exemplo: se um vizinho molesta sexualmente uma criança da minha família, posso perdoá-lo, mas não quer dizer que vou voltar a deixá-lo trancado em um quarto novamente com a criança.

En(Cena) – O perdão deve ser dirigido pessoalmente ou pode ser somente em oração espiritual?

Maurício Zágari – Pode ser a partir de uma mera disposição interior, sem que seja necessário um contato pessoal. Há casos em que, por exemplo, é preciso perdoar uma pessoa que já morreu. O ofendido pode perdoar em seu coração a ofensa sofrida, mas não tem como fazê-lo pessoalmente, por motivos óbvios. É válido, pois perdoar faz muito bem a quem perdoa.

En(Cena) – O que é primordial para uma sociedade viver em harmonia, amar ou perdoar ao próximo?

Maurício Zágari – Amor verdadeiro pressupõe a capacidade de perdoar. Assim, esses dois conceitos são indissociáveis. A sociedade harmônica pressupõe um amor que se exprime, entre outras maneiras, no perdão.

Maurício Zágari. Foto: Acervo Pessoal

En(Cena) – A pessoa que não aceita perdoar, pode prejudicar o arrependido?

Maurício Zágari – Faz bem ouvir de alguém que ofendemos que ele nos perdoa. Mas, se pedimos perdão e não o recebemos, fizemos nossa parte. Nesse caso, não há prejuízo, se existe esse entendimento.

En(Cena) – Essa dificuldade de perdoar, é uma característica secular do ser humano, existe uma explicação espiritual?

Maurício Zágari – Se você considera o conceito da religião judaico-cristã, entende-se que a falta de disposição de perdoar vem da maldade que entrou na humanidade desde sua origem. Em termos teológicos, é culpa do pecado inerente a todos nós.

En(Cena) – Qual a história de perdão que o senhor mais se emocionou?

Maurício Zágari – Quando eu fui perdoado por uma pessoa muito querida por ter errado com ela. Ofendi essa pessoa e ela me perdoou. Então sei pessoalmente o que isso significa.

En(Cena) – Que mensagem o senhor passaria para o leitor que encontra-se em dificuldade para o perdão?

Maurício Zágari – Pense em quanto você é imperfeito e erra. Traga à memória quantas pessoas você mesmo já ofendeu. Se fizer esse exercício, perceberá que ninguém é melhor do que ninguém e que você não perdoar é assumir uma postura de soberba que não vai levá-lo a lugar algum. Já se perdoar estará sendo magnânimo e, portanto, um ser humano melhor.

 

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

PERDÃO TOTAL

Editora Mundo Cristão
Autor:
 Maurício Zagari
ISBN: 978-85-433-0036-8
Páginas: 192

Preço: R$ 19,90?

Compartilhe este conteúdo:
Em nome de Deus

Em nome de Deus

Compartilhe este conteúdo:

Reflexão sobre o filme “The Magdalene Sisters” (Em nome de Deus)

E Jesus disse “quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. E, um a um, os homens foram se retirando, a começar pelos mais velhos. Então, Jesus perguntou “onde estão os homens que te condenavam?”.

Na década de 1960, período retratado pelo filme, ocorria, entre outras situações, a liberação sexual e a discussão sobre os direitos das mulheres.  Em meio a um país extremamente católico e assustado com a estranha mudança de valores que se instalava no mundo, tradicionais famílias irlandesas, tentavam no silêncio e na força de dogmas, manter a estabilidade e o equilíbrio que a falta de domínio e o excesso de perguntas podem provocar. Isso porque vivemos em pequenos mundos repletos de ignorâncias bem elaboradas, protegidos por frágeis e místicas rotinas.

O medo do homem e a sua necessidade de manter-se alienado em consistentes universos de estupidez são, muitas vezes, a causa que o leva a cometer as mais variadas formas de atrocidades. O filme retrata de maneira clara o quanto o homem tenta separar o mundo em duas vertentes bem definidas, o bem e o mal. Um bem e um mal interpretado segundo determinadas regras de grupos que sustentam as verdades tidas como absolutas naquele espaço e tempo. É interessante observar que, nesse ínterim, a vida na terra tem pouca importância diante de um céu ou de um inferno eternos. Em nome dessa eternidade é que a vida passa a ter um significado menor e o sofrimento passa a ser um fator relevante no alcance do etéreo.

No filme, o pecado está no mais fraco. Ou seja, numa sociedade de homens, a mulher direta ou indiretamente, é culpada pelos atos de fraquezas que contradizem as regras de um Deus produzido e consumido por toda a comunidade. Se a mulher é culpada a priori e se os fatos reais não podem ser considerados em seu favor, dada a existência do ato que a tornou impura e pecadora, então só lhe resta uma vida inteira de sofrimentos na busca de uma remissão divina.  Essa é a verdade que imperava naquela época, naquele lugar (e em muitos outros), então, como em outras situações ocorridas na história, a maioria prefere seguir um Deus e uma religião que apresenta verdades duras, mas simples e claras, do que suportar a incerteza e a insegurança de interpretar o mundo segundo sua própria ótica e princípios.

Tudo é irônico no filme. Desde o título até a denominação da congregação das freiras (irmãs da Misericórdia). Nisso é interessante observar o quanto as palavras perdem o sentido, ou, o quanto toda uma sociedade pode aceitar absurdos cruéis como verdades incontestáveis. Jesus, nesse contexto, talvez tenha sido, para os articuladores de muitas religiões e seitas, o mais paradoxal dos profetas. Isso porque sua vida é indubitavelmente um exemplo de misericórdia, perdão e amor ao próximo. Um próximo que é refletido a partir de uma fé baseada no respeito à vida e ao individuo. É essa misericórdia que não existe nas freiras do filme, que choram ao relembrar de um filme visto na infância, e são totalmente apáticas perante o sofrimento real do próximo. Mas, a explicação para esse fato recai invariavelmente no fator da “vantagem interpretativa”. Isso porque o próximo é um igual. Para Hitler e o povo alemão, por exemplo, os judeus não eram humanos, logo não eram próximos. Para as freiras, as mulheres que foram enviadas para o seu “lar Madalena” não eram mulheres dignas de Cristo, eram mulheres que precisavam do sofrimento para alcançar a salvação e suportar ver a face misericordiosa de um Deus que se alimentava da dor.

Outro ponto importante no filme é a forma como as mulheres vão ressaltando alguns traços de sua personalidade na medida em que o desespero e o sofrimento aumentam. No entanto, é complexo e um tanto estúpido afirmar que a bela é má porque roubou o colar “telefone” da moça que tinha distúrbios mentais, que desejar a morte da serviçal da casa é monstruoso, dado o fato que esta só cumpria com seus deveres, que a freira teve uma vida repleta de regras e absurdos e, assim, em nome da instituição pela qual ela vivia, perdeu a capacidade de discernimento sobre o bem e o mal. Ou seja, em certos aspectos, justifico a passividade do povo alemão diante do genocídio que ocorreu em seu país, defendo teses sobre a obscura submissão do povo judeu no período histórico em que eles quase foram dizimados, passo a acreditar que misericórdia é atirar a primeira pedra, sem a vergonha de ser o último a acreditar em um Deus que seja contrário a vida na terra. Enfim, a falta de empatia, o desejo doentio pelo poder e o medo podem reduzir ao absurdo as instituições sociais e religiosas e levar a refutação dos nossos maiores valores: a vida e a liberdade.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

EM NOME DE DEUS

Título Original: The Magdalene Sisters
Diretor: Peter Mullan
Roteiro: Peter Mullan
Elenco: Geraldine McEwan, Anne-Marie Duff, Nora-Jane Noone, Dorothy Dufft;
Ano: 2002
País: Reino Unido/ Irlanda
Gênero: Drama

Compartilhe este conteúdo: