A democracia está em crise?

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Quando falamos em democracia pensamos em conceitos como voto, direito de votar, direito de expressão, de ir e vir etc., enfim, são os mais variados conceitos e ideias que nos causa dúvida sobre seu real significado.

Na teoria contemporânea da Democracia, afirma Bobbio (1998), confluem três grandes tradições do pensamento político: a) clássica, segundo a qual a Democracia figura como o Governo do povo, de todos os cidadãos, se distingue da monarquia, como Governo de um só, e da aristocracia, como Governo de poucos; b) medieval, na base da qual há a contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção descendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o inferior; c) moderna, segundo a qual as formas históricas de Governo são essencialmente duas: a monarquia e a república, e a antiga Democracia nada mais é que uma forma de república, onde se origina o intercâmbio característico do período pré-revolucionário entre ideais democráticos e ideais republicanos e o Governo genuinamente popular é chamado, em vez de Democracia, de república.

Por sua vez, a ideia de representação começa a ganhar forma na modernidade onde, de acordo com Vieira (apud MEDEIROS, 2017, s/p), tem origem a passagem do princípio da soberania monárquica para a soberania popular, protagonizada pela luta da burguesia contra o poder dos reis visando obter privilégios que só poderiam ser conseguidos interferindo na ação do Estado absolutista. “É, neste contexto, que um novo significado de representação adquire um papel essencial no esboço de reestruturação do espaço do político, devidamente adequado às novas exigências imposta pela forma de reprodução social da modernidade”.

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Uma vez instituída a soberania popular em oposição à soberania monárquica e diante da impossibilidade de uma democracia direta, “a opção pelo sistema representativo moderno apresentar-se-ia como uma solução para esta dificuldade [do ideal de uma democracia direta]” (id., ibidem, s/p). Nesta perspectiva ainda Bonavides (2006, p. 294) destaca que “A soberania popular, o sufrágio universal, a observância constitucional, o princípio da separação dos poderes, a igualdade de todos perante a lei, a manifesta adesão ao princípio da fraternidade social”.

Para Manfredini (2008) o que tem se vivenciado no Brasil é a crise desse modelo representativo. Os representantes já não representam o povo; este, por sua vez, já não se interessa pelos assuntos políticos. O número de partidos cresce, mas as ideologias continuam as mesmas, e, o poder legislativo ainda não logrou sua independência, continua a operar com preponderância do executivo.

Ao dialogar sobre o seu livro “A Era do imprevisto: a grande transição do século XXI”, Sérgio Abranches (2017), sociólogo, cientista político e escritor, discute o distanciamento entre a sociedade e a política e consequentemente a crise deste modelo representativo. Para o pensador, esse distanciamento e crise tem relação com as grandes mudanças que ocorreram na sociedade (tecnologia de comunicação) e na economia (globalização e mercado financeiro hegemônico), de maneira muito mais rápida do que na política.  Segundo o autor, as pessoas não se sentem representadas no campo político, por figuras que ainda representam uma face/vertente tradicional e conservadora (analógica) do modo de ser e viver a política.

Abranches (2017) destaca também na entrevista, que esse tensionamento/crise/descolamento entre sociedade e política tem consequências severas e as apresenta em duas vertentes: de um lado uma alienação, com um total desinteresse das pessoas pela política e suas dimensões; por outra lado, a radicalização, com a ideia de que o modelo vigente está completamente errado e o caminho é encontrar novas formas, o que geralmente leva à todos pela estrema direita.

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A perda de confiança da população no modelo representativo tem sido motivada por vários fatores, segundo Vieira (2006) e eles pairam entre o descrédito nos partidos, as inúmeras denúncias sobre corrupção, o mau uso dos recursos públicos, além da falta de soluções para resolver os problemas públicos que atingem direta e indiretamente a sociedade.

De acordo ainda com Moura (2016, p. 209), “A crise das instituições políticas encarregadas de processar as decisões coletivas na sociedade atual, é, ao mesmo tempo, causa e efeito dos deslocamentos de poder provocados pelo impacto das novas tecnologias e das transformações por elas geradas”. Atualmente, essas estruturas políticas não cumprem suas funções e o dinheiro público se perde na burocracia e na corrupção, o tipo de liderança baseada no poder burocrático tornou-se inadequado à nova realidade e as instituições políticas também refletem uma forma obsoleta de lidar com o conhecimento.

Mas há, segundo Abranches (2018), um caminho, alternativas que podem representar uma “democracia melhor”. Um deles seria, dentro do próprio jogo democrático, publicizando as demandas e valores no espaço público (ruas), o que poderia fomentar o surgimento de novos partidos, com o viés de representação de fato. De qualquer modo, assevera o pensador (2018), “o caminho da democracia é se digitalizar; ter mais participação das pessoas, via redes sociais, e, formando tipo uma poliesfera digital, na qual as pessoas possam conversar democraticamente […], inclusive fazer escolhas e transmitir isso para o sistema político.

Referências

ABRANCHES, Sérgio. A Crise da Democracia Representativa. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_5Fy4FaxE7s>. Publicado em 18 de maio de 2017. Acessado em 06 de outubro de 2018.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política I. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

_______________. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

MANFREDINI, Karla M. Democracia Representativa Brasileira: O Voto Distrital Puro Em Questão. Florianópolis, 2008.

MEDEIROS, Alexsandro M. Democracia Representativa. Disponível em: <https://www.sabedoriapolitica.com.br/ciber-democracia/democracia-representativa/>. Acessado em 06 de outubro de 2018. 2017.

MOURA, Paulo G. M. de. Organizações e Participação Política e Social no Mundo Contemporâneo. In: Sociedade e Contemporaneidade. Canoas: RS. Universidade Luterana do Brasil, 2016.

SELL, Carlos Eduardo. Introdução à sociologia política: política e sociedade na modernidade tardia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

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Para Rita Almeida, não é possível separar a Psicologia da dimensão política

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No último dia 20 de abril, às 17h, o prof. do curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra, Sonielson Luciano Sousa, bateu um papo com a psicóloga mineira e doutora em Educação, Rita Almeida, com o tema “Psicologia no Contexto das Políticas Públicas em tempos de Pandemia”. A ação ocorreu dentro do projeto extensionista PsicoLive, na plataforma digital Instagram.

Rita Almeida também é psicanalista e conselheira do CRP-4 MG, e tem uma forte presença nas redes sociais, a partir de produção de textos e comentários sobre os diversos cenários em que a Psicologia dialoga, com especial atenção para a política. A live contou com aproximadamente 100 expectadores. A seguir, confiram a íntegra do bate-papo/entrevista.

(En)Cena: Qual o papel da Psicologia dentro das políticas públicas de saúde coletiva? E especificadamente em relação a pandemia, o que podemos fazer enquanto profissionais?

Rita Almeida: Bom, toda ciência, especialmente as ciências humanas, faz uma escolha política. O que quero dizer com ‘escolha política?’. É no sentido de quem ela vai servir? Quem vai acolher? Que olhar ele vai ter? O fato de ser uma ciência, não escolhe isto de antemão, é definido a partir da diretriz, da qual eu penso nesta ciência. A psicologia nasce com um olhar adaptativo, no sentido que nasce junto com o capitalismo no Brasil, com as indústrias, tendo uma função de selecionar as pessoas para o trabalho, em termo de adaptar o sujeito a uma sociedade capitalista, que é um tipo de vertente política, sendo uma ciência que vai atender um determinado tipo de poder. O que a psicologia faz nesse percurso? Ela vai mudando a sua orientação e escolha política, na perspectiva do conselho, pois existem ciências na psicologia que ainda servem determinado tipo de visão dos “poderosos”.

(En)Cena: Alinhada ao Liberalismo, né?

Rita Almeida: É alinhada ao liberalismo, a um tipo de autoritarismo. Já o conselho (sistema conselhos em Psicologia) vem direcionando no sentido de atender aquela população que está de certa forma submetida a esse tipo de poder, uma psicologia que tem pretensão transformadora, cujo nosso jargão é: Psicologia e Compromisso Social, compromisso com a sociedade, com a coletividade. A psicologia fez um redirecionamento, que eu considero que seja muito importante, e foi daí que caímos, obviamente, nas políticas públicas — para que se tenha uma noção, o maior empregador de psicólogos são as políticas do SUS e do SUAS — a psicologia está profundamente enlaçada as políticas públicas.

Hoje você não pensa Política de Saúde Mental brasileira sem psicólogos, tendo um papel potente, protagonista na reforma psiquiátrica brasileira, na criação dos CAPS, que são os dispositivos que substituem o modelo manicomial. Não conseguimos pensar as políticas tanto do SUS quanto do SUAS, sem escutar sobre a psicologia, nos tornamos atores muito importantes. E hoje, com essa situação da pandemia, os psicólogos continuam atuando, pois são considerados de prioridade neste momento, pois as questões de saúde mental permanecem, e podem até se agonizar, claro que com mecanismos diferentes, para garantia da questão do cuidado.

(En)Cena: Inclusive esses dias vi uma nota do Conselho Federal de Psicologia, que foi também replicado pelos conselhos regionais, sobre os cuidados que os profissionais deveriam ter com aqueles grupos que são considerados mais vulneráveis, as mulheres, as crianças, os negros, e eu imagino que o sistema conselhos tenha um olhar especial para esses públicos, que historicamente são marginalizados, que em uma situação como essas, a situação se agrava.

Rita Almeida: É. E é exatamente esse olhar, esse viés político que te falei, nosso olhar é para quem? É para a população que naturalmente sofre mais, com as questões da sociedade, por isso tem sua saúde mental mais fragilizada, ou então faremos uma psicologia ao qual as pessoas vão simplesmente se adaptar a um tipo e modo de funcionamento. Então é exatamente esse o cuidado que a psicologia tem que atender, a população mais frágil, tanto nos termos de sofrimento, como você disse: O racismo, o machismo, a homofobia, são questões que adoecem as pessoas, e as questões econômicas de vulnerabilidade… A psicologia entra de modo que não é só cuidar do tratamento, é inclusive, promover uma sociedade que seja menos racista, menos machista, menos homofóbica. Pois se a gente entender que não basta só tratar, mas precisamos cuidar também para que a sociedade seja menos adoecedora; que é o compromisso social que a psicologia tem quando se coloca nessa perspectiva.

(En)Cena: Perfeito. Rita, eu queria que você falasse um pouquinho da perspectiva do Código de Ética do profissional de psicologia. Porque é algo prescrito, não é uma invenção sua, isso é fruto de um amplo processo de debate em rede nacional, ouvindo todos os psicólogos e todas as vertentes.

Rita Almeida: Isso, todo nosso código de ética, normativas, nossas diretrizes são construídas com categorias, temos eventos, atividades políticas, técnicas, estudos, temos o CREPOP, que é o Centro de Pesquisa de Políticas Públicas, por exemplo. Então assim… tudo isso foi uma construção, como você falou, um processo histórico que faz a nossa ciência ter uma diretriz, uma direção, uma forma de olhar para as coisas, tem sua perspectiva ética, e todas elas construídas junto com a categoria.

(En)Cena: Nesse sentido gostaria de reforçar o que você falou, no início. Às vezes eu escuto alunos, colegas que criticam posicionamentos políticos dos psicólogos, como se fosse a visão do “jornalismo imparcial”, como se de fato existisse imparcialidade. Em comunicação, nós estudamos isso: O mito da imparcialidade. É impossível haver uma imparcialidade completa. Eu vejo que de um modo geral a psicologia é baseada no humanismo filosófico, e nos direitos humanos. Ao que parece, é muito claro isso, a psicologia defende os princípios democráticos, para que ela possa inclusive existir enquanto profissão. Sempre que a democracia está em risco, a psicologia é uma dessas profissões que se levantam em defesa da democracia; isso parece que é particularmente importante hoje, já que estamos em um cenário político de extrema direita. Como você avalia atualmente a situação do Brasil?

Rita Almeida: Então, isso que você falou é muito importante, a gente escuta muito sim… as pessoas confundem muito posicionamento político com partido político, e não é isso. Nós temos uma direção que é nosso eixo, nossa coluna vertebral são os direitos humanos, pois se eu não tenho uma perspectiva em que o humano é colocado como agente de direitos, e que essa garantia de direitos é garantia de saúde mental, que psicologia que eu posso fazer? É contraditório! Então assim, é meio óbvio termos que discutir um tipo de coisa dessas. Se eu parto do pressuposto de que eu posso torturar alguém, para que a pessoa seja do jeito que eu gostaria, que psicologia é essa que eu defendo? Não é possível existir uma psicologia sem direitos humanos e democracia, ela não existe! Existem outras coisas, dogmatismo, imposição de crença, lavagem cerebral, tortura, mas isso não é psicologia. Por que a psicologia é fundamental na transformação do manicômio, por exemplo? O que a psicologia tem a oferecer em um lugar que a pessoa está trancada, sendo violada diariamente em seus direitos, tanto de cidadania, e direitos humanos, sofrendo violência, abandono, fome, mortes, que psicologia é essa que permite esse tipo de diretriz? Então isso não é psicologia, é qualquer outra coisa, isso é conivência. Então um psicólogo que está dentro de um serviço institucional, onde ele assiste violação de direitos, paciente passando frio, fome, se ele não atua politicamente nesta perspectiva, que psicologia ele vai fazer? Então qualquer proposta de política que ataque os direitos humanos e a democracia, ela não pode ser sustentada! Independente de qual partido. Nós temos um conflito de perspectiva de extrema direita, economicamente se diz liberal, mas não é bem isso que a gente vê, mas, um governo que declaradamente é contra direitos humanos, isso não é velado, é dito com todas as letras.

(En)Cena: É uma posição institucionalizada?

Rita Almeida: Isso, é falado pelo presidente, ele não finge que fala, ele fala mesmo! Na época da campanha dele, disse que o psicólogo na época dele era um porrete, esse eram os direitos humanos dele, um porrete. Então é uma pessoa que defende a tortura, não só pessoalmente, temos um governo nessa perspectiva. Então a psicologia que pretende ser minimamente responsável por si mesmo, pela sua própria sobrevivência, não pode apoiar esse tipo de pessoa.

Tivemos recentemente a posição do ministro da Saúde, que foi Mandetta, que saiu agora, apesar de compor esse mesmo governo, ele dentro do SUS, tem uma defesa impecável do SUS, ele mesmo não tinha esse histórico, sendo a favor da saúde privada, tendo um histórico que não combina com o SUS, mas que diante da pandemia, e tendo o SUS como seu aliado, ele foi impecável, usando diretrizes da ciência, da OMS, se submeteu as diretrizes, entendeu sua grandeza e defendeu o que deveria, tanto que foi demitido pelo mesmo governo. O conselho, apesar de ser contra a linha do Bolsonaro, foi totalmente favorável as diretrizes do Ministério da Saúde, não por causa do partido, mas que dentro desta perspectiva ele estava tomando uma decisão que condizia. A gente até brincava (risos), não somos nós que estamos concordando com ele, é ele que está concordando conosco. Trazendo uma visão que não era de perspectiva individual. Numa noção exata do que seria a ideia de saúde coletiva, tendo a visão de que não adianta eu estar saudável, se a outra pessoa não está, precisamos cuidar disso coletivamente, cuidando do outro.

Quando eu uso máscara eu não estou protegendo a mim, estou protegendo a outra pessoa, então é um modo de pensar em saúde muito interessante e, muito novo, e que condiz com o que a psicologia sempre disse: O modo como eu falo e lido com o outro interfere na saúde mental dele, então se eu for machista, se eu for racista, se eu sou preconceituosa, rígida com meus princípios eu vou estar ferindo o outro, sendo irresponsável com minha relação, violento. Nós da psicologia já sabíamos como a minha presença, a forma como falo e ajo interferem no outro, e agora o coronavírus vem ensinar isso para todo mundo, a psicologia tem muito a oferecer, a gente sabe que é assim.

(En)Cena: É, isso faz parte do cotidiano profissional de psicologia, não é, Rita? E você falando isso, me lembra muito a Resolução 1/2018 emitida pelo CRP, que preconiza um posicionamento efetivo das psicólogas e psicólogos, sobre uma situação de preconceito, violência, discriminação, ou seja, não basta só concordar com tais princípios. Nós somos convidados a nos colocarmos diante da sociedade defendendo esses princípios, e não permanecendo na minha casa, no meu consultório… tenho de ter uma atitude ativa, no sentido de fazer com que essas informações cheguem ao máximo de pessoas que eu conseguir atingir.

Rita Almeida: Fazer política nesse sentido é isso. É você fazer da sua prática uma ação em um determinado sentido, pensando em quem você quer ajudar, para promover a saúde mental

(En)Cena: Um acadêmico, o Bruno, está perguntando “por que o governo é considerado de extrema direita e não apenas de direita”?

Rita Almeida: Bom, vou tentar ser breve. Um governo de direita é um governo mais da perspectiva liberal, entender que o estado teria que ter se reduzido, para que o mercado pudesse se autorregular, que cabe em uma corrente política de direita. Não é bem o caso do Brasil.

(En)Cena: Que comporta diversidade? Um liberalismo puro comporta esse pensamento aberto…

Rita Almeida: Inclusive ele é mais radical ainda, em termos de “liberdades individuais”, entendendo que cada um pode ser o que quiser. Inclusive o liberalismo é extremamente permissivo com a questão das liberdades sexuais, uso de drogas, então assim… são liberais mesmo. O indivíduo é responsável pelas escolhas que quer ter, o estado não se mete nas questões, não se importa com questões de aborto, se quer ser usuário de droga, se quer ter uma orientação sexual, se quer ou não se casar. No liberalismo mesmo, o estado não se mete na vida do indivíduo nem para cuidados das vulnerabilidades. É aí que entra a necessidade do cuidado, as necessidades específicas, especialmente em países onde existe uma injustiça social muito grande, como é o caso do Brasil, então é preciso sim que o estado intervenha para que minimize essa distância entre os mais vulneráveis e os poderosos. E o que a gente vê no governo Bolsonaro não é esse liberalismo, é uma perspectiva de extrema direita, são os chamados governos de orientação fascista.

Falando na minha opinião, que tenho estudado isso, de como seria a perspectiva de um governo fascista, é onde a grande questão de gestão de governo tem a ação de redução do estado, de privatização, sucateamento das políticas públicas, privatizando-as, mas não com a ideia de libertar o sujeito das amarras do estado, mas no sentido de fazer com que a população se vulnerabilize cada vez mais. Ao qual só consegue governar plantando caos o tempo todo, afetando as pessoas emocionalmente, o governo gerencia esses afetos, o poder deles é centrado nos afetos ruins, sendo eles mesmos os maiores produtores.

(En)Cena: Rita, o fascismo nesse sentido é uma política de constante enfrentamento e de constante construção de inimigos, se movendo a partir disso. Ele não quer costurar uma rede consensual, sim?

Rita Almeida: Não, inclusive ao contrário, tentam o tempo todo provocar a divisão. São dois afetos em que precisam estar fomentando constantemente: O medo e o ódio. O tempo todo a sociedade está com medo, ele se oferece como ajuda, como aquele que vai cuidar, mas que na verdade não cuida pois precisa continuar provocando esses afetos ruins, com promessas nunca cumpridas. Se você pensar isso, em uma perspectiva de uma sociedade democrática, que imaginávamos até o momento, com suas instituições funcionando, os três poderes, o Senado, a Câmara dos Deputados, qual seria o papel de um presidente? É fazer uma liderança política. As instituições existem, as leis, a Constituição, já estão em andamento, como falei o SUS, SUAS, assim como todo o sistema judiciário, o que se espera de um presidente? É que minimamente, se não esperamos nada, que não fizesse nada! Que mude nada, deixasse como está, e não piorar. Numa situação dessas se espera que ele transmita uma segurança para a população, para acalmar, mas o que vemos, é o tempo todo ele só se apresenta para divisão, ódio, inimizades, com essa posição paranoica, de que tem alguém o seguindo. Na verdade, ele foi eleito com essa perseguição, aos chamados “comunistas”, que até agora nós não entendemos quem são. É nessa perspectiva que se faz o governo de extrema direita.

(En)Cena: Do ponto de vista global, parece que na Inglaterra há o exemplo de um governo que elege a direita, não a extrema direita, com um sistema público de Saúde que é exaltado pelo próprio primeiro ministro, mas ao mesmo tempo, no campo econômico tem políticas liberais, e também é liberal nos costumes. O que pontua bem a extrema direita brasileira é um excesso de conservadorismo moral.

Rita Almeida: Depois do coronavírus, nenhum governo no mundo sustentou o liberalismo, nenhum… todos eles recuaram, até os Estados Unidos, inventando até uma renda mínima, que é uma proposta, por não terem o que se tem na Inglaterra, na França. Todos os países deram um passo atrás, que nesse momento de vulnerabilidade o estado tem sim que participar da vida pública, pois não há liberdade se não tiver vida.

(En)Cena: É uma falsa dicotomia, preservação da vida, preservação da economia… A acadêmica Monique perguntou aqui: “Na sua opinião, de que modo a psicologia pode se posicionar diante do contexto pandêmico? Nas práxis mesmo”.

Rita Almeida: A gente não pode generalizar, vai depender do que cada serviço vai obedecer ao município em que ele trabalha. Então por exemplo se um psicólogo está no CAPS, que é um serviço para pessoas com transtorno mental grave, nesse contexto de pandemia, no meu município, as atividades ao público geral estão suspensas, então tem atendido de emergência. Nesse contexto o psicólogo, por exemplo, não estará com a agenda aberta, nesse momento o mais importante é evitar a exposição das pessoas, mas pode sim, manter contato com o paciente, usar as ferramentas virtuais, criar formas para que de algum modo esteja olhando, observando este paciente. Que é algo que a gente já fazia, não é algo novo. Um telefone, uma vídeo chamada com o paciente era algo que se usava em determinadas situações. Nós não trabalhamos com a pessoa com coronavírus, a não ser em um contexto hospitalar. Mas o trabalhador da saúde pública no geral não está ligado ao trabalho com a pessoa com o corona, mas pode ter um trabalho preventivo de orientação, de monitoramento com suas famílias.

(En)Cena: Uma atuação que se respalda no apoio… sem estar na linha de frente como o médico, mas que dá suporte. O Beto fez um comentário, disse: “O estado neoliberal é preconceituoso, homofóbico, classicista, misógino”… E o Iuri perguntou: “Qual sua opinião em relação a contribuição que a psicanálise da para a construção de novos arranjos a partir da pandemia?”

Rita Almeida: Eu acho que é uma pergunta que estamos nos fazendo: “que novos laços iremos criar a partir da pandemia? Que novas subjetividades?”. As vezes existe uma visão otimista, de que iremos mudar nossa forma de olhar, e pensar nas questões solidárias, na medida que o coronavírus nos coloca confrontados com a questão da coletividade, ao qual o cuidado de si é o cuidado do outro também. Alguns acreditam que a partir daí as pessoas pensem diferente. E existe outra perspectiva que diz que não, que é nessas situações que o homem mostra o quão ruim é, mostrando que não somos solidários.  Acredito que venha um pouco de casa coisa, que vem da subjetividade de cada um. Acredito que as pessoas que já tinham um olhar, um direcionamento político mais solidário, de entendimento, foram mais ainda em direção a isso, e as pessoas que não tinham isso como perspectiva, que tinha a coisa da competitividade, mergulharam ainda mais nesse mecanismo.

 Em uma situação de ameaça, temos dois mecanismos de defesa: Uma é o medo, a fobia, que a pessoa entra em um padrão excessivo, e uma outra que é a negação, que crê que nada está acontecendo, é uma invenção. Duas posições extremas, sendo que nenhuma é interessante, em uma o sujeito se encontra paralisado, na outra coloca a si e os outros em risco, que é o que está havendo. Algumas pessoas, diante disso, se encontram impossibilitadas de entender que a anterior forma de lidar com o mundo, não funciona com o coronavírus. Não adianta colocar o dinheiro em primeiro lugar.

(En)Cena: Bem Rita, temos outras questões, mas estamos chegando ao final, estamos próximos de uma hora. Vou fazer uma rápida consideração. Antes, gostaria de comentar o que a Elizete, uma estudante da Ulbra que está passando uma temporada na Itália, país que esteve no centro da pandemia… ela falou se existe o psicólogo de urgência do Samu. Se eu não me engano o psicólogo não está inserido no serviço de urgência.

Rita Almeida: Não, pelo menos aqui no Brasil não.

(En)Cena: Mas seria uma boa em alguns contextos, não é Elizete? Enfim, Rita, gostaria de te agradecer imensamente por ter tirado parte do seu tempo. Você já participa do (En)Cena, a revista eletrônica do curso de psicologia, com vários textos seus publicados lá. Gostaria de te agradecer.

Rita Almeida: Eu que agradeço a oportunidade.

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‘Além da sala de aula’ e a educação cidadã

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A ação pedagógica deveria ser voltada para garantir a todos o saber e as capacidades necessárias a um domínio de todos os campos da atividade humana.

A história se passa em 1987 e apresenta uma jovem professora, mãe de dois filhos e grávida do terceiro, recentemente formada na faculdade, que acaba lecionando para crianças de rua em uma escola de abrigo sem um nome. Aos poucos vamos acompanhando a evolução e a mudança social que Stacey provoca nos alunos e naquela comunidade de pessoas sem teto. Ao chegar à escola ela se depara com um grande galpão, cheio de buracos e rachaduras, sem o mínimo de material necessário para lecionar e crianças e pais completamente desinteressados no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que só frequentam o lugar para receber abrigo e comida.

Um dos desafios relevantes que Stacey enfrente é a evasão, pois aquele é um lugar de passagem, as pessoas vêm e vão. Numa mesma sala de aula ela precisa manejar várias crianças de idades diferentes e que estão desniveladas em relação aos saberes que são esperados para a idade escolar que deveriam se encontrar. Além disso a falta de recursos é limitante para se fazer um trabalho de qualidade no local, temos como exemplo a cena em que a professora tenta aplicar uma prova na classe, mas as crianças não têm nem lápis para responder.

Quanto às variáveis familiares que mais influenciam a evasão e a repetência, nosso estudo de revisão apontou os seguintes componentes: nível socioeconômico dos pais, situação habitacional, número de filhos e o grau educacional dos pais. Deve-se ressaltar que o nível de escolarização dos pais é preditor do nível de escolarização dos filhos, ou seja, é possível prever, com considerável exatidão, a evasão escolar através da história educacional dos pais, como ressaltou Brandão (1982). Outra variável familiar de importância neste problema é a mobilidade de emprego dos pais, que mudam e rematriculam a criança em diferentes escolas, várias vezes por ano. (WECHSLER, 2008, p.149)

Fonte: encurtador.com.br/bIJT6

A relação com a família das crianças também é um problema, pois nem os pais receberam educação, para eles frequentar escola não é algo relevante e por vezes tiram as crianças da sala de aula por razões aleatórias. Stacey se vê de mãos atadas, pois sem a colaboração dos pais ela não consegue conduzir o processo. Frustrada com a situação, porém motivada pela vontade de não desistir das crianças, ela decide provocar mudanças na escola a fim de melhorar as condições de trabalho e consequentemente o aprendizado das crianças.

A instituição escolar, por sua vez, […] carece, muitas vezes, de condições mínimas para a estimulação da aprendizagem. Este fato fica bem real ao visitarmos as escolas das periferias, onde há falta de cadeiras e carteiras, vidros quebrados, água potável nem sempre acessível, inexistência de bibliotecas ou demais materiais escolares, mostrando-nos quão difícil se torna a motivação para aprender em tais condições. (WECHSLER, 2008, p.149)

Stacey passa a tirar do próprio bolso recursos financeiros para investir em materiais didáticos para a escola, se utilizando de seu tempo de folga para limpar, pintar e cuidar de sua sala de aula. Comovidos pelo interesse da professora, os demais usuários do abrigo, trabalhadores e familiares das crianças passam a colaborar com os planos de Stacey. Um senhor idoso e morador de rua passa a ser assistente de aula dela e ensina às crianças desenho, cores, pintura e arte.

Os pais passam a ser ativos no processo e ajudam as crianças com o dever de casa ao invés de passar tempo na televisão. Conforme as mudanças ocorrem, Stacey consegue chamar a atenção do representante do distrito escolar que passa e fornecer recursos para aquela escola. O filme termina com a conquista da lei “Mckinney-Vento homeless assistance” de 1987 que garante acesso a educação para crianças de rua nos Estados Unidos.

Fonte: encurtador.com.br/eioS1

Wechsler (2008) afirma que “as características e as necessidades emocionais do aluno necessitam de atenção por parte do professor e compõem a relação professor-aluno, positiva ou negativa, influenciando assim, o clima da sala de aula”; podemos entender isso a partir da relação que Stacey estabelece com os alunos da Ana, Maria e Danny. Maria passa de aluna novata à aluna assistente da professora; Ana, que tinha medo de contato físico devido a agressões que sofria, passa a ter autoconfiança, melhora sua autoestima e seus relacionamentos interpessoais, e Danny assume papel de líder na sala de aula, estimulando e incentivando os demais alunos a serem acolhedores e participarem das atividades propostas na escola. Essas mudanças refletiram também no relacionamento com os pais dos alunos, uma vez que os pais de Ana, Maria e Danny conseguiram se sentir assistidos pelas mudanças provocadas pela professora na vida das crianças.

O termo meio social, empregado pela Psicologia, restringe-se ao ambiente onde se dá o processo de socialização, ou seja, o ambiente é o ponto de chegada, e não o ponto de partida. A sociedade determina as condições de educabilidade da criança, pois ela já é socializada desde que nasce. As ações educativas, portanto, como são provenientes do meio social, impõem à criança propósitos e tarefas que não são, necessariamente, correspondentes ao desenvolvimento espontâneo da natureza humana individual. A educação é uma atividade de fora, externa à criança. Ela é, de certa forma, uma atividade forçada, que intervém no curso do desenvolvimento do indivíduo. Ao provocar a socialização entre os alunos e a comunidade com feiras de ciência e exposição dos trabalhos das crianças, Stacey estende o meio social das crianças.

A ação pedagógica deveria ser voltada para garantir a todos o saber e as capacidades necessárias a um domínio de todos os campos da atividade humana, como condição para a redução das desigualdades de origem social. Ela deve partir das condições concretas da vida da criança, considerando que a busca de saber deve ser espontânea, por um processo de descoberta. Além disso, deve haver uma Pedagogia Social que entende que há saberes universais que devem ser constantemente reavaliados face às realidades sociais, através de um processo de transmissão-assimilação-reavaliação crítica. Ao ter o primeiro contato com a sala de aula Stacey fala sobre realidades muito distantes da que as crianças vivem com familiares presos e sem recursos para terem férias de verão, por exemplo.

Conforme Libâneo (1984) é fundamental que o professor aprenda a adaptar-se ao aluno para que consiga aproximar-se do interesse, compreensão e linguagem do mesmo, sem ter que sacrificar o ato de ensinar. Posteriormente é necessário que o psicólogo trabalhe com o supervisor escolar (orientador), uma vez que este tem o papel de auxiliar o professor no seu fazer de sala de aula, por isso é necessário que ele consiga dar assistência em problemas de aprendizagem bem como adequar a proposta de conteúdos e métodos as condições socioculturais e psicológicas das crianças.

Fonte: encurtador.com.br/xyCMN

Em relação ao ensino de psicologia no contexto escolar, Libâneo (1984) destaca que, primeiramente, é necessário articular os princípios e explicações com a prática do cotidiano do professor, onde ele mesmo irá transformar seus métodos de acordo com as suas demandas. As principais problemáticas reais relacionadas ao seu dia a dia são: classes lotadas, condições desiguais de base de aprendizagem dos alunos, desmotivação, desinteresse, classes sociais diversas, problemas de comunicação, problemas de indisciplina e inadequação de programas de ensino-aprendizagem.

A visão de Freire (2001) sobre as relações entre educação e responsabilidade se inicia quando este define que ser responsável no desenvolvimento é a soma do cumprimento de deveres com o exercício de direitos. Propõe ainda que existe a necessidade de haver transformações sociais e políticas, para que estas viabilizem cada vez mais a educação voltada para a responsabilidade.

Ele define a responsabilidade como “a prática educativa progressista, libertadora, exige de seus sujeitos tem uma eticidade que falta à responsabilidade da prática educativa autoritária, dominadora”, ou seja, a educação autoritária leva em consideração apenas os aspectos éticos e interesses de determinado grupo social, não respeitando assim a individualidade de cada sujeito, suas potencialidades e o bem coletivo que a educação responsável propõe.

Logo, Freire (2001) destaca que “o educador progressista é leal à radical vocação do ser humano para a autonomia e se entrega aberto e crítico à compreensão da importância da posição de classe, de sexo e de raça para a luta de libertação”. No filme de Bleckner (2011) fica claro o papel social da professora Stacey, mesmo que muitas vezes ela tenha levado questões de sala de aula e das condições sociais dos moradores de rua para dentro de casa, ela exerceu papel de agente transformadora daquele contexto.

Fonte: encurtador.com.br/dilV0

Stacey Bess é uma autora e educadora, mais conhecida pelo livro “Nobody Don’t Love Nobody” que originou o filme; atualmente trabalha como oradora pública, defendendo os direitos educacionais das crianças carentes.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Além Da Sala De Aula
Título Original: Beyond The Blackboard
Direção: Jeff Bleckner
Elenco: Emily Vancamp, Steve Talley, Timothy Busfield 
País:  Eua
Ano: 2011
Gênero: Drama

Referências

FREIRE, P. Política e educação: ensaios. 5. ed – São Paulo, Cortez, 2001.

LIBÂNEO, J.C. (1984). Psicologia Educacional:Uma Avaliação Crítica. In: Psicologia Social: O Homem Em Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984. 220 p.

WECHSLER, Solange Muglia. Criatividade: descobrindo e encorajando. 3. ed. [s. L.]: Lamp Wechsler, 2008. 354 p.

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