Uma pitada de pessimismo

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Dentre os muitos debates da atualidade, há um que ocorre nas sombras, sem manchetes, sem concílios religiosos ou discussões acaloradas nos grupos de WhatsApp. Talvez seja apenas mais uma vítima das rolagens furtivas de tela ou mais um item salvo para “ler depois” e nunca revisitado. Trata-se do embate entre o pessimismo e seu rival pós-moderno: o #gratiluz.  

Esse confronto não fará o dólar oscilar vertiginosamente, não levará jovens imberbes a pegarem em armas e tampouco fará a cúpula do G-20 discutir seus impactos na geopolítica. Ainda assim, ele molda nossa forma de encarar a vida. Mesmo diante de infortúnios diários — a porta do elevador que se fecha no momento errado, a etiqueta pinicando no pescoço, a miríade olfativa do transporte público — e de desastres naturais e humanos que destroem vidas em segundos, cresce a ideia de que devemos sempre priorizar o pensamento positivo. Há quem afirme peremptoriamente que os “índices de positividade” cultivados no sistema límbico não apenas influenciam o sucesso, mas determinam seu alcance.  

Essa obsessão pela positividade não é nova. Voltaire já ironizava essa visão com Cândido e Pangloss, e a empáfia do século das luzes fez com que Schopenhauer, no século XIX, tentasse mostrar ao homem, tão orgulhoso de seus feitos, a miséria de sua condição. Hoje, porém, a positividade virou um mercado bilionário. Influencers, blogueirinhas e coaches inundam as redes sociais com discursos recheados de anglicismos, fazendo-nos sentir culpa por nosso “fracasso”, fruto da falta de comprometimento com uma existência “good vibes only”. No mundo corporativo, gestores ostentam bandeiras abstratas como “liderança vulnerável” e “resiliência”, que, no fim, só medem o grau de culpa ecológica dos funcionários ao usarem mais de duas folhas de papel para secarem as lágrimas no banheiro da empresa.  

É preciso reequilibrar esse jogo com uma pitada de pessimismo. Não um pessimismo derrotista, como o da hiena Hardy: “Oh céus, oh vida, oh azar”. Mas também não um otimismo cego que ignora o sofrimento e o desamparo humanos. Tenhamos um pessimismo esclarecido. Saibamos que a vida não é um passeio, mas pode, sim, ter momentos de distração. Como um sábio disse certa vez, “ela esquenta, esfria, aperta e afrouxa, mas o que a vida quer de nós é coragem.” Tenhamos, pois, coragem. Afinal, bons marinheiros não se forjam em mar calmo. Isso, é claro, diante do andar da carruagem, se ainda houver mar… 

Divulgação / Renato Maia

Sobre o autor: Renato Maia é filósofo, diretor audiovisual, escritor e autor do livro “Histórias que um pessimista contaria a seus netos se tivesse decidido ter filhos”

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Positividade tóxica: a busca exacerbada pela felicidade e a negação das emoções

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É fato que a busca incessante pela felicidade tem ganhado espaço nos palcos das palestras através de incentivos ao otimismo e alegria eterna. As redes sociais inundam-se a cada dia de frases e posts que induzem o leitor/seguidor a pensar que estão fora de um padrão criado por este excesso de falas e induções sobre um possível estado de felicidade que em muito lembra negações de certos estados emocionais. É necessário refletirmos sobre o excesso de otimismo e a repressão de sentimentos como angústia, medo, tristeza, frustração ou dor. Não tem nada de mal almejarmos a felicidade, buscarmos situações que nos conduzam a tal estado. O que temos que pensar é se é interessante abandonarmos os nossos sentimentos pautados na justificativa que temos que ser sempre felizes.

Tal fato nos leva a entender que há um menu de opções para a felicidade que não inclui o princípio de realidade básica de sobrevivência e transcendência do ser humano, mas sim apenas o conceito vendido, a preço bastante caro, de que a alegria e pensamento positivo são ingredientes necessários para se alcançar a felicidade. Esse movimento ganhou o nome de “Good vibes Only” que podemos traduzir para “Apenas boas vibrações”. Porém, a psicologia afirma que essa corrente de pensamento deve ser encarada como positividade tóxica.

Fonte: encurtador.com.br/nsBW9

A positividade tóxica deriva de correntes positivas em que o indivíduo é levado a pensar que tudo o que ocorre com ele pode ser mudado se ele pensar positivo e ter uma boa dose de otimismo, o que de acordo com a Psicologia Analítica é necessário que o ser humano sinta e exprima seus sentimentos a fim de que o mesmo caminhe ao encontro da sua sombra aproximando-se assim dos processos transcendentes, fazendo as pazes com a sua alma.

Para Jung (OC, vol.4), devemos partir da consciência do Ego para entender os nossos sentimentos, o ego é uma espécie de espelho no qual a psique pode ver-se a si mesma e tornar-se consciente. Na mesma linha de raciocínio, Jung segue definindo consciência como um campo, uma personalidade empírica em que o ego é o sujeito de todos os atos pessoais da consciência. Nesta perspectiva, observamos que não seriam palavras de motivação que elevariam pessoas a estados de felicidade, mesmo que momentâneo, mas sim a consciência dos sentimentos, e a integração de todas as partes da existência (tanto os fatos bons quanto os ruins). Indo mais adiante, Jung ainda foi cirúrgico quando definiu resumidamente a consciência como aquilo que conhecemos e inconsciência como aquilo que ignoramos.

Fonte: encurtador.com.br/bx146

A busca por receitas prontas e caminhos curtos e rápidos que possivelmente conduziriam à felicidade induz o sujeito a negligenciar sentimentos de tristeza, desalento, desamparo, angústia ou tédio, fazendo-o mais tarde a viver com comparações. No período da pandemia com o alastro desenfreado de lives, palestras sobre otimismo, alegria e entusiasmo, mesmo em meio a dor e tristeza pelas adversidades da tragédia pandêmica causou o efeito positividade tóxica. Ou seja, é aquela que literalmente ignora que nem só de alegria viverá o homem, mas de todas as emoções decorrentes de suas experiências empíricas. Desconsiderar as frustrações e dores é relativizar a nossa própria existência.

É interessante ressaltar que em muitos casos durante a forte exposição dessa positividade tóxica pode ocorrer a erupção de diversos complexos, uma vez que os complexos são capazes de irromper súbita e espontaneamente na consciência e apossando-se do ego do ser. De acordo com Murray (2006), o que se manifesta como total espontaneidade pode entretanto, não ser tão puro assim. Existe com frequência um sutil estímulo disparador que pode ser detectado se observado com atenção um passado recente da pessoa. Neste caso quando o ego é possuído deste modo, acaba assimilado ao complexo e aos propósitos do complexo e o resultado é aquilo que chamamos de acting out que significa passagem ao ato. Nesta situação as pessoas não percebem o que está acontecendo, elas ficam sugestionadas em um estado in the mood, que quer dizer com vontade de fazer. Nesta situação, o psicólogo com suas habilidades em lidarem com as emoções trabalharão no paciente a eclosão dos complexos.

Ratifico que nunca houve e nem há nada de errado em buscar a felicidade, o que de fato existe e é muito incômodo são as enxurradas de promessas sobre como conseguir isso ou aquilo, como transformar seus sentimentos ou até não viver suas emoções, sejam elas de alegria ou de tristeza, relativizando assim os estudos científicos sobre a imensidão da psique humana.

Fonte: encurtador.com.br/kvS79

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Stein, Murray Jung: O mapa da alma, uma introdução. Tradução Álvaro Cabral 5ª ed. São Paulo: Cultrix 2006.

Sites consultados:

https://podcastmais.com.br/perfeitosferrados/ep47-como-a-positividade-toxica-afetaosrelacionamentos

http://www.xamanicos.com/2019/07/30/positividade-toxica/

https://gazetanm.com.br/positividade-toxica-e-o-mergulho-na-depressa

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