Procrastinação: as causas psicológicas camufladas

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A procrastinação, conhecida como adiamento das atividades ao qual devem ser feitas, pode trazer uma sequência de episódios que possuem questões ambientais, cognitivos, comportamentais e pessoais. Se tratando de algo presente no cotidiano de um acadêmico espera-se que seu desempenho seja prejudicado, tanto quanto um misto de sentimentos decorrentes das circunstâncias advindas pelo processo de acúmulo de tarefas que vão só aumentando, tendo relação das tarefas deixadas para depois e dos sentimentos desagradáveis que a pessoa sente concomitantemente. 

Para que fique claro, procrastinar não significa fazer nada, mas fazer algo menos importante que não seja necessário naquele momento. Nem tudo o que parece é; para algumas pessoas pode caracterizar-se somente como um desleixo e falta de zelo, mas por trás desse desinteresse em realizar tarefas do dia a dia, esconde a temida procrastinação. No entanto, o que é procrastinar? Conforme Dicio (2021), procrastinar significa “adiar ou deixar alguma coisa para depois; não fazer o que precisa ou se programou para fazer no tempo estipulado.” 

A prática dessa atitude poderá revelar possíveis transtornos mentais, como a ansiedade, depressão e problemas com baixa autoestima. Segundo Brito e Bakos (2013) é notável o efeito da procrastinação relacionado à qualidade de vida dos indivíduos, afetando assim o bem-estar; provocando apreensão pela busca de conhecimento a respeito dos motivos de estar agindo de tal forma, e, de como deveria tratá-la. 

 

Fonte: Free pick

 

Falta de interesse, desânimo, rotina estressante, desorganização, dificuldade para chegar no horário são alguns aspectos que precisam ser observados com mais atenção.  Aquela olhadinha de mais de uma hora no Instagram, necessidade de abrir a todo o momento o WhatsApp para ver se recebeu algo interessante, em detrimento ao serviço e aos estudos também não podem passar despercebidos, algo que tem se agravado na pandemia, atual situação que estamos passando, devido ao aumento exagerado do uso de dispositivos eletrônicos.

Conforme a professora de psicologia da Universidade do Rio Grande do Sul, Ana Cristina Garcia Dias, o comportamento de procrastinar pode estar associado a inúmeras consequências negativas, como maiores níveis de estresse, depressão, níveis baixos de bem-estar- físico e mental. Segundo ela, a pandemia piorou a situação com o isolamento, bem como o aumento de atividades nos lares tenha provocado maior índice de procrastinação.

 

Fonte: encurtador.com.br/eqtxK

 

Já Marcos Vinícius Santoro (2019), em seu trabalho de conclusão de curso, na Universidade de Brasília (UNB) destaca que a falta de tempo é um dos motivos que leva o indivíduo a ter a procrastinação como comportamento. Segundo ele, a gestão de tempo é uma alavanca propulsora para vencer a procrastinação, tendo como necessidade acabar com a desorganização e estabelecer prioridades para que a pessoa não fique adiando todas as tarefas que tem para fazer.

Para não procrastinar segue algumas dicas com o intuito de ajudar nas atividades do cotidiano: Não tente resolver tudo de uma vez, ao invés disso, faça uma tarefa de cada vez, além disso tenha o hábito de usar uma agenda para gerenciamento de tempo, como mencionado. Vale ressaltar que essas dicas não substitui a importância de procurar um profissional de psicologia, o qual é capacitado para entender melhor o quadro mental de cada indivíduo. Não seja vencido pela procrastinação, procure ajuda.

Referências

Brito, Fernanda de Souza e Bakos, Daniela Di Giorgio Schneider. Procrastinação e terapia cognitivo-comportamental: uma revisão integrativa. Rev. bras. ter. cogn. vol.9 no.1. Rio de Janeiro. jun. 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-56872013000100006 Acesso em: 20 set. 2021.

DIAS, Ana Cristina. Como lidar com a procrastinação?. Departamento de Psicologia e do Desenvolvimento da Personalidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 9 de julho de 2020. Disponível em https://www.ufrgs.br/jornal/como-lidar-com-a-procrastinacao/. Acesso em: 15 set. de 2021.

PROCRASTINAR In.: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2021. Disponível em: https://www.dicio.com.br/procrastinar/ Acesso em: 20/09/2021.

SANTORO, Marcos Vinícius. Relação entre a procrastinação e as dificuldades encontradas pelos alunos de ciências contábeis da Universidade de Brasília na produção do TCC. 2019. Disponível em https://bdm.unb.br/bitstream/10483/24091/1/2019_MarcosViniciusPiresSantoro_tcc.pdf. Acesso em:15 set. de 2021.

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Candy Crush Saga e o Vício da Procrastinação

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Procrastinação vem do latim procrastinatus. O radical pro indica à frente e crastinus traduz-se como amanhã, assim, literalmente, procrastinar significa depois de amanhã – o que pode nomear o hábito tão costumeiro do brasileiro de “deixar pra depois”.

Entretanto, o hábito de procrastinar não é somente uma característica simpática do povo brasileiro, que faz companhia a outras como o famoso “jeitinho brasileiro” e a infame mania de “querer levar vantagem em tudo”. Na verdade, poderia ser chamado até de vício, visto o conjunto de malefícios que ele pode provocar à própria pessoa e até ao convívio social e a possibilidade que existe de nos tornarmos dependentes da prática da procrastinação.

Ao procrastinar podemos não estar somente deixando pra depois uma tarefa chata que temos que realizar. Podemos, também, estar empurrando pra frente uma responsabilidade grande que nos foi passada e da qual talvez fujamos por medo de falhar, por insegurança quanto à sua realização com sucesso ou, pura e simplesmente, por uma grande dose de irresponsabilidade.

Seja qual for o motivo, as consequências da procrastinação podem ser muito graves caso a pessoa não consiga, naquela “ultíssima” hora, dar conta da tarefa tão adiada. A perda do emprego seria somente uma delas, mas podem-se alcançar dimensões muito maiores. Não são poucas as pessoas que acabam se afastando de seus afazeres cotidianos à medida que, por procrastinação, deixam de cumprir não somente suas obrigações profissionais, mas também as ações ligadas ao convívio social. Por terem deixado pra última hora a concretização de suas atividades, acabam deixando de participar deste ou aquele evento social (um futebol de fim de semana, um happy hour com os amigos, uma comemoração com a família) para tentar ao menos não fazer feio perante aqueles com os quais estão comprometidos (o chefe, o cliente, o filho). E esta ausência da vida social normal, aliada à sensação de fracasso pelas tarefas que deixam de ser realizadas com a qualidade habitual, acabam por levar algumas pessoas a uma depressão leve que tende a agravar-se com o tempo, caso a dinâmica da procrastinação não seja interrompida.

O procrastinador contumaz é hábil em justificar suas faltas, inclusive para si mesmo. Uma das desculpas mais comuns está em culpar a atividade A pela protelação da atividade B; e na sequência culpar a atividade B pelo insucesso em concluir a atividade A.  Nesta dinâmica, ele busca convencer-se de que a responsabilidade pela sua falha é externa, o que acaba fugindo de sua competência.

Mas a procrastinação não se dá a troco de nada. Ele surge de uma troca simples entre algo desagradável por algo prazeroso e isso começa desde a infância, quando a tarefa de casa é deixada de lado por uns minutos a mais de brincadeiras com os amigos, e vai sendo “aprimorada” com o tempo: uma atividade é trocada por uma conversa entre amigos; uma tarefa é substituída por um joguinho no computador… Ah! E como os joguinhos de computador sabem ser prazerosos proporcionando aqueles momentos, que se esperam rápidos, de distração. Sim, “se esperam rápidos” porque, de pequenos intervalos “rápidos” chegam-se às horas em que as responsabilidades foram deixadas para depois de “só mais uma jogadinha”, “só mais um nível”, “só esta fase”.

E os jogos disponíveis em redes sociais como o Facebook oferecem vários elementos que acabam tornando o apelo pela procrastinação maior do que qualquer sentimento de responsabilidade: a competição entre os amigos com o ranqueamento das pontuações obtidas; a realização de tarefas simples e intuitivas; as dificuldades em um grau menor no início mas que seguem em um crescente motivador; enfim, tudo que torna os pretensos poucos minutos de jogo mais atraentes que as muitas horas de trabalho (isso se os poucos minutos não fossem se acumulando até tomarem todo o espaço de tempo que deveria ser dedicado às atividades que o mundo real exige).

Dentre estes jogos tem-se como o mais “atraente”, hoje (e com a possibilidade de não sê-lo mais amanhã), o Candy Crush Saga.

O Candy Crush Saga é um jogo simples em sua estrutura, o que atrai os mais variados públicos. Deve-se juntar três doces iguais (com a mesma cor e formato) que serão eliminados aumentando a pontuação do jogador.

Em cada nível do jogo surgem objetivos como, por exemplo, obter certo número de pontos em uma quantidade determinada de movimentos ou em um tempo específico – o não cumprimento do objetivo leva a perda de uma “vida”. São ao todo quatrocentos níveis disponíveis hoje, sendo que o jogador conta com cinco vidas para dar cabo dos objetivos apresentados.

Em uma relação colaborativa, cooperativa e, de certa forma, “viciadora”, à medida que as vidas se vão, podem-se obter novas vidas através de doações dos amigos que compartilham o jogo. Da mesma forma, bônus como maior quantidade de movimentos, ou doces com determinados poderes, podem ser presentados pelos amigos. Caso não receba uma nova vida de um amigo, a cada trinta minutos o jogo restabelece uma vida – tempo esse informado em um cronômetro decrescente que indica quanto falta para poder voltar ao jogo, o que chega a ser angustiante para algumas pessoas.

Há também, e é algo que vem bem a calhar nestes casos, a possibilidade de adquirir (isso mesmo, pagando) novas vidas e alguns bônus, o que leva a casos mais complexos de jogadores que, além de utilizarem-se do jogo como elemento motivador de suas procrastinações, ainda acabam desfazendo-se de muito do seu dinheiro em função do jogo – o que seria conteúdo para um outro texto sobre o Candy Crush e jogos semelhantes.

Como há a possibilidade de jogar até o fim das cinco vidas, muitos jogadores utilizam esta condição como seu limite de tempo de jogo. Outros utilizam como estratégia de gerenciamento de tempo de jogo a passagem por certa quantidade de níveis. Entretanto, a existência do ranqueamento entre os jogadores e também a possibilidade de pedir aos amigos que os presenteiem com vidas e bônus acaba fazendo com que as promessas de limitação de tempo sejam quebradas e, com isso, a procrastinação acaba ocupando seu espaço nas vidas profissionais de muita gente. Para que se possa imaginar o alcance, basta saber que Candy Crush é jogado mais de 600 milhões de vezes por dia por 50 milhões de usuários.

Matéria recente na Globo.com fala ainda da existência do efeito Zeigarnik:

Para o professor de psicologia e ciências cognitivas Tom Stafford, da Universidade de Sheffield, na Grã-Bretanha, o vício em Candy Crush se relaciona a um fenômeno psicológico chamado efeito Zeigarnik. O psicólogo russo Bluma Zeigarnik dizia que os garçons costumam ter uma memória impressionante para lembrar dos pedidos, mas só até que os cumprem. Uma vez que a comida e a bebida são levadas até a mesa, eles se esquecem completamente de algo que sabiam momentos antes. ‘Zeigarnik deu nome a todos os problemas em que uma tarefa incompleta fica fixada na memória. E Candy Crush gera uma tarefa incompleta’, disse Stafford à BBC.

Aliando-se o efeito Zeigarnik à característica natural do brasileiro de deixar tudo para depois, tem-se no Candy Crush Saga um incentivo claro ao vício da procrastinação.

Observação: O autor deste texto procrastinou o quanto pode escrevê-lo pois estava tentando superar o nível 139 do Candy Crush. Ele não conseguiu até o momento em que este texto foi para o site.

Fonte:
Psicologia por trás do sucesso de jogos como ‘Candy Crush’.http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/08/psicologia-por-tras-do-sucesso-de-jogos-como-candy-crush.html

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Preguiça: pecado capital ou ato de rebeldia?

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“São os ociosos que transformam o mundo,
porque os outros não têm tempo algum”.

Albert Camus

“A preguiça é o melhor dos sete pecados,
pois ela te impede de cometer os outros seis”

Autor anônimo

Tenho que confessar: sou um preguiçoso. Tenho preguiça de acordar cedo, de fazer exercícios e até mesmo de comer laranja porque preciso descascá-la. Também tenho preguiça de escrever. E, por causa desta preguiça, fui adiando a escrita desse texto até o último momento, quando já não tinha mais como fugir. Ou seja, além de preguiçoso sou um procrastinador – e você já se deu conta de que a procrastinação é uma espécie de prima-irmã da preguiça? Apesar disso, não me considero uma pessoa improdutiva. Tento me inspirar nos princípios da chamada “procrastinação positiva”. Sim, isso existe! Como aponta o filósofo John Perry, autor do livro “A arte da procrastinação”, em um artigo do jornal New York Times1, “procrastinadores raramente fazem absolutamente nada”. Só não fazem o que deveriam estar fazendo. Portanto, para ser um ‘procrastinador produtivo’ deve-se seguir o princípio de que “qualquer um pode fazer qualquer quantidade de trabalho, desde que não seja o trabalho que pretensamente se deveria estar fazendo naquele momento”. Não é um bom princípio este? Às vezes consigo segui-lo, às vezes não. Neste caso, adiei porque escrever sobre preguiça dá muito trabalho. Aliás, escrever dá muito trabalho. E tudo que dá trabalho, que exige esforço, gera preguiça.

 

Arte: William Tylee Ranney

 

Aliás, preguiça e trabalho quase sempre andaram de mãos dadas. Quem não trabalha ou não quer trabalhar é entendido, até hoje, como vagabundo, preguiçoso, indolente. “Vai trabalhar vagabundo”, diz aquela música do Chico Buarque. O dicionário Aurélio define preguiça, antes de tudo, como “aversão ao trabalho”, mas também como “morosidade, negligência, moleza, indolência”. A própria noção de preguiça como um pecado capital tem relação com este entendimento. Num mundo dominado pela ideologia cristã, uma forma astuta de fazer as pessoas trabalharem – e mais: desejarem trabalhar – foi disseminar as ideias de que a preguiça é algo condenável e de que “o trabalho enobrece o homem”. E isto foi tão difundido no mundo ocidental, especialmente após a Reforma Protestante no século XVI, que se tornou uma espécie de verdade inquestionável. O trabalho nos define de tal maneira na atualidade, que ficar desempregado é como perder uma parte importante de si mesmo. Como diz aquela música do Legião Urbana, “Sem trabalho eu não sou nada/ Não tenho dignidade/ Não sinto o meu valor/ Não tenho identidade”. Isto é tão forte em nossa sociedade que logo que somos apresentados a uma pessoa, a primeira coisa que normalmente fazemos é perguntar “O que você faz?”. E a partir de sua resposta (“Sou psicólogo”, “Sou cozinheiro”, “Sou gari” – e perceba como vinculamos o que fazemos com o que somos) elaboramos uma série de julgamentos que influenciarão de forma significativa a maneira de nos relacionarmos com tal pessoa.

No entanto, anteriormente à ascensão do capitalismo como sistema econômico e social hegemônico, o trabalho foi visto, muitas vezes, de uma forma negativa. A própria Igreja Católica considerou, por um bom tempo, o trabalho como algo que afastava os homens das orações e, logo, de Deus. A preguiça era entendida não como preguiça de trabalhar, mas como preguiça de orar e se dedicar a Deus. Santo Agostinho chamava de “ócio santo” justamente o tempo necessário para se dedicar à contemplação e à oração. Antes disso, os gregos, especialmente os atenienses, valorizavam o ócio muito mais do que o trabalho. Interessante constatar que a palavra escola deriva do grego skole, que significa ócio. Ou seja, as escolas para os gregos eram considerados locais de ócio – de um ócio criativo, como diria muito tempo depois o sociólogo Domenico De Masi. Para os atenienses, os homens sábios deveriam se dedicar às ideias e ao espírito. Desta forma, estar ocioso não significava estar fazendo nada (aliás, o que é estar fazendo nada?), mas sim, “dedicar-se operações de natureza intelectual e espiritual que se traduziam no exercício da contemplação da verdade, do bem e da beleza, de forma não utilitária” (Bacal, 2003). Segundo Paul Lafargue, autor do livro-manifesto “Direito à preguiça”, publicado em 1880, ”os filósofos da antiguidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses”. Importante se atentar que para realizar os trabalhos manuais existiam os escravos. O ócio e a atividade intelectual eram privilégio dos homens livres2.

Arte: Tarsila do Amaral

Esta visão negativa do trabalho está presente na própria origem da palavra trabalho, do latimtripalium, que designa um instrumento de tortura. Da mesma forma, labor, denota sofrimento, dor, fadiga. Tal visão do trabalho enquanto algo sofrido ou penoso aparece até mesmo no Velho testamento, quando Adão e Eva são expulsos do paraíso e condenados ao trabalho árduo como forma de expiar o pecado cometido. “Com o suor do teu rosto comerás teu pão”, teria dito Deus a Adão. Já Eva Deus teria condenado às dores de parto. E não por acaso, todo este doloroso processo é chamado de “trabalho de parto”. Por sua vez, o ócio aparece na Bíblia majoritariamente de uma forma positiva. Por exemplo, após criar o céu, a terra e tudo o mais, Deus teria se permitido, no sétimo dia, um momento de descanso para contemplar sua obra. A recomendação de não se trabalhar aos sábados vem daí. Posteriormente, o filósofo Sêneca apontava para uma divisão entre o otium (ócio) e o negotium (negócio, negação do ócio), na qual o primeiro era associado à contemplação, ao estudo, ao autoconhecimento e à serenidade enquanto o segundo ao trabalho repetitivo e estressante – tal como o trabalho a que Sísifo foi condenado, e que virou sinônimo de uma atividade laboral esgotante e inútil.  Até hoje tal conotação se faz presente em expressões como “escrever dá trabalho” ou “tal tarefa é trabalhosa”. Com tudo isso quero apontar que o ócio (e o trabalho) nem sempre tiveram o sentido que possuem hoje. E, da mesma forma, nem sempre o ócio e a preguiça foram vistos como coisas negativas e o trabalho como algo indispensável para o bem-viver.

Já a noção de preguiça enquanto um pecado capital é quase tão antiga quanto o próprio cristianismo. Diz-se que no final do século VI o papa Gregório Magno, tomando como referência as cartas do apóstolo São Paulo, determinou os pecados capitais (capital vem do latim caput, cabeça, chefe, líder), ou seja, os pecados mais graves – opostos, de certa forma, aos chamados pecados veniais, mais leves e perdoáveis. Sete pecados foram definidos como capitais: a Vaidade, a Avareza, a Gula, a Luxúria, a Inveja, a Ira e a Preguiça. Mas tal lista só teria sido oficializada na Igreja Católica no século XIII, a partir da Suma Teológica, escrita por São Tomás de Aquino. Posteriormente a Igreja definiu as sete virtudes fundamentais, que deveriam servir como uma espécie de antídoto aos pecados capitais. São elas: a Humildade (oposta à vaidade), a Generosidade (oposta à avareza), a Temperança (oposta à Gula), a Castidade (oposta à Luxúria), a Caridade (oposta à inveja), a Paciência (oposta à ira) e, finalmente, a Diligência – entendida como a presteza ou prontidão para a ação, e, portanto, como “remédio” para a preguiça.

 

Arte: Bosch

É possível interpretar a criação e disseminação da noção de pecados capitais (e mesmo de virtudes fundamentais) como uma tentativa de controle de certas questões humanas, demasiada humanas, como diria Nietsche. Em um debate realizado no Brasil, o escritor português e eminente crítico das religiões, José Saramago, disse o seguinte: “Quando a Igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle. Um instrumento de controle dos corpos. Porque aquilo que perturba a igreja católica é o corpo: o corpo com sua liberdade, o corpo com seus apetites, o corpo com suas ansiedades”3(e, poderíamos acrescentar, o corpo com suas preguiças). Concordo com ele. Os pecados são uma tentativa – um tanto quanto infrutífera – de controlar o que há de mais humano em nós mesmos. Afinal quem nunca sentiu inveja e desejou ter a grama tão verde como a do vizinho? Quem nunca foi tomado pela gula quando se sentiu ansioso ou triste? Quem nunca foi avarento, pão duro ou apegado às próprias coisas ou ao dinheiro? Quem nunca foi tomado por uma paixão e desejou uma pessoa de forma luxuriosa? Quem nunca ficou irado quando contrariado ou quando se deparou com uma injustiça? Quem nunca foi tomado pela soberba quando atingiu algum objetivo de vida? E finalmente, quem nunca sentiu vontade de não fazer nada de produtivo, de simplesmente vagabundear? Que jogue a primeira pedra quem nunca fez (ou desejou fazer) como na música Lazy Song, do Bruno Mars: “Hoje eu não estou com vontade de fazer nada/ Só quero ficar deitado na cama/ Não quero atender o telefone/ Então deixe o recado na secretária eletrônica/ Pois juro que hoje eu não quero fazer nada/ Vou ficar com os pés pro alto olhando para o ventilador/ Vou ligar a TV, ficar com as mãos no bolso/ Ninguém vai me dizer que não posso fazer isso/ Porque no meu castelo quem manda sou eu”. Pela lógica da Igreja (e mesmo do mundo do trabalho), o preguiçoso deve se sentir culpado e mesmo ser punido pelo que deixou de fazer.

Esta visão crítica dos pecados como instrumentos de controle se evidencia também no fato de que, por exemplo, a alcunha de “preguiçoso” foi e ainda é utilizada basicamente para se referir aqueles que estão na base da pirâmide social ou a grupos socialmente marginalizados. Durante o período colonial, os índios e os escravos eram considerados “naturalmente” preguiçosos e indolentes. Outro exemplo são os baianos, que até hoje são alvo de piadas por supostamente serem preguiçosos. Para a antropóloga Elisete Zanlorenzi, autora da tese “O mito da preguiça baiana”, tal visão é completamente falsa. Segundo ela, o entendimento do baiano como culturalmente preguiçoso teve início com o intenso movimento migratório de nordestinos (genericamente chamados de “baianos”) para o sul do país, especialmente São Paulo, a partir da década de 40. Predominantemente negros e pobres, se instalaram em precários cortiços e favelas e tiveram grande dificuldade em conseguir emprego. Segundo Elizete, “estas condições contribuíram para que o termo baiano fosse associado a outros como sujo, desorganizado, não produtivo e, finalmente, preguiçoso”4. Além disso, a pesquisadora aponta para a contribuição da indústria do turismo e da imprensa na disseminação da imagem do baiano como preguiçoso. Finalmente, Elizete afirma que os próprios artistas baianos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Dorival Caymmi, têm sua parcela de responsabilidade na popularização desta imagem. “Eles chegavam no eixo Rio-São Paulo afirmando serem preguiçosos. Era como dizer: eu não sou daqui”, aponta a pesquisadora.

Relacionado a esta visão, li certa vez que o compositor baiano Dorival Caymmi, passava várias horas do dia olhando para o mar, contemplando sua beleza. Independente disto ser verdade ou mentira – e sem desejar reforçar o mito da preguiça baiana – gostaria de trazer a discussão para o presente e propor o seguinte questionamento: você consegue imaginar tal comportamento no mundo atual? Num mundo hiperconectado e hiperativo como o nosso, a contemplação (e a preguiça) tem cada vez menos espaço. Cada vez menos olhamos para o mar ou para o céu ou ainda para as pessoas. Tenho observado nas ruas, que o comportamento padrão de muitas pessoas quando estão sentadas esperando o ônibus ou dentro do metrô é ficarem mexendo ininterruptamente no celular ou no tablet. Parecem imersas naquele mundo virtual, como que ignorando o mundo real à sua volta. Cada vez mais olhamos menos para o mundo e para as outras pessoas. Ao mesmo tempo, nunca interagimos tanto, nunca estivemos tão interligados, nunca tivemos tão próximos de pessoas distantes fisicamente de nós. Se perdemos por um lado, ganhamos por outro, obviamente. Mas, de fato, temos perdido, cada vez mais, a capacidade de contemplar o mundo. E isso tem consequências.

Como aponta o jornalista Carl Honoré, autor do livro “Devagar”, atualmente cultuamos o “evangelho do sempre-mais-depressa”. E de acordo com este evangelho, devemos prezar sempre pela velocidade e pela quantidade, em detrimento da calma e da qualidade. Devemos ocupar nosso dia (e das nossas crianças) com o máximo de atividade que pudermos. Devemos manter nossa mente sempre ocupada, afinal, “cabeça vazia é oficina do diabo”. Devemos trabalhar o máximo e dormir o mínimo. Não podemos nos esquecer que “tempo é dinheiro”. Devemos andar depressa, comer depressa, transar depressa, amar depressa. A vida é curta, não há tempo a perder. Devemos viver o máximo, aproveitar o máximo, gozar o máximo. O ócio e a preguiça devem ser evitados a todo custo. O problema é que, como aponta Honoré, “certas coisas não podem nem devem ser apressadas. Elas levam tempo, precisam de lentidão. Quando aceleramos coisas que não devem ser aceleradas, quando esquecemos como é possível moderar o ritmo, sempre pagamos um preço”. E este preço tem sido cada vez mais alto. Estamos cada vez mais ansiosos, mais deprimidos, mais doentes do corpo e da alma. E toda esta velocidade certamente contribui para este mal-estar contemporâneo.

Mas felizmente, como reação a esta brutal apropriação do tempo pelo capitalismo contemporâneo, um contingente cada vez maior de pessoas tem aderido à filosofia Slow e tentado ir mais devagar. Como aponta Honoré, “enquanto o resto do mundo vai em frente vociferando, uma minoria considerável e cada vez maior opta por não fazer tudo com o pé no acelerador. Em todas as esferas de ação humana que você possa imaginar, de sexo, trabalho e exercícios a alimentos, medicina e urbanismo, estes rebeldes vem fazendo o impensável – estão abrindo espaço para a lentidão”. Num mundo que anda com tanta pressa, nada mais revolucionário do que ir devagar. Nada mais rebelde do que ser um pouco preguiçoso. Está lá na Bíblia: “Todo aquele que vive habitualmente no pecado também vive na rebeldia, pois o pecado é rebeldia” (João 3:4). Então, que sejamos rebeldes. Viva o ócio! Viva a vagareza! Viva a preguiça!

 

Foto: Henri Cartier-Bresson

 

Referências:

BACAL, Sarah. Lazer e o universo dos possíveis. Aleph: São Paulo, 2003.

DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Sextante: Rio de Janeiro, 2000.

LAFARGUE, Paul. Direito à preguiça. Hucitec: São Paulo, 2000

HONORÉ, Carl. Devagar: como um movimento mundial está desafiando o culto à velocidade”. Ed. Record: Rio de Janeiro, 2005.

 

Notas:

1http://www.nytimes.com/2013/01/15/science/positive-procrastination-not-an-oxymoron.html?_r=0

Segundo De Masi (2000), para os gregos, “’trabalho’ era tudo o que fazia suar, com exceção do esporte. Quem trabalhava, isto é, suava, ou era um escravo ou era um cidadão de segunda classe. As atividades não-físicas (a política, o estudo, a poesia, a filosofia) eram ‘ociosas’, ou seja, expressões mentais, dignas somente dos cidadãos de primeira classe”.

3 Assista um trecho deste debate neste link: http://www.youtube.com/watch?v=ihnAvfbX4Rk

4http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/cbn/capital_171105.htm

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