Os Serviços de Saúde e a produção imaterial do trabalho

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O (En)Cena entrevistou o Professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Ricardo Teixeira. Ele é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985); tem mestrado e doutorado em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atua como médico sanitarista da Universidade de São Paulo, desenvolvendo atividades de assistência, docência e pesquisa junto ao Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa (Butantã). Desde 2007, é consultor da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, coordenando, desde 2008, a Rede Humaniza SUS.

Ricardo Teixeira no I Encontro de Humanização do Tocantins – Foto: Michel Rodrigues

(En)Cena – Ricardo, é possível, hoje, conversar sobre os temas da saúde fugindo da área técnica da saúde?

Ricardo Teixeira – Só o termo “área técnica”, já abre toda uma discussão. Eu entendo o que você quer dizer com isso, mas até poderia colocar essa ideia em questão. Na área da saúde, quando você fala em “área técnica”, a gente logo pensa nas profissões da saúde, em suas intervenções específicas, precípuas, vamos dizer assim; o médico mexe no corpo, o psicólogo mexe na mente, têm toda uma tecnicalidade ligada às finalidades atribuídas ao trabalho do profissional de saúde. Esse trabalho técnico se realiza num contexto relacional de encontro e conversa que, com frequência, é do campo extratécnico, embora também seja passível este ser tomado sob uma perspectiva puramente técnica. Eu mesmo procurei fazer isso quando tentei desmiuçar essa dimensão: trabalho e saúde.

(En)Cena – A discussão em saúde ainda é muito técnica hoje?

Ricardo Teixeira –  Técnica é um termo meio desgastado, no qual se associa uma frieza, uma dureza, um engessamento. Mas isso é uma visão da técnica, se abrirmos essa conversa para além do técnico entendido, como as intervenções para as quais nós somos treinados em nossas áreas de formação, nós daremos vazão para além de uma dimensão imaterial do trabalho. Essa é outra entrada conceitual possível, pensar os trabalhos em saúde como trabalhos imateriais, trabalhos que tem uma dimensão de produção imaterial. Qual o tipo de produção que nós estamos falando? Estamos falando de produção de relação, produção de encontro, produção de afeto, produção de reações emocionais, produção de comunicação.

(En)Cena – Você acredita que a PNH têm contribuído positivamente para essa produção imaterial do trabalho nos Serviços de Saúde?

Ricardo Teixeira – Certamente. Os Sistemas de Saúde são sistemas de atenção e de cuidado. Se conseguirmos integrar essa reflexão, que pode até ser técnica, sobre os sistemas de atenção, chegaremos à outra produção: há outra produção na saúde, ela se dá quer a gente tenha conhecimento dela ou não. Podemos tomar consciência dela se a concebermos como uma dimensão produtiva, sobre a qual preza a qualidade. É o tipo de produção que se dá nos encontros. Afinal, nenhum trabalho em saúde se dá fora dos encontros, nenhum trabalho em saúde está fora da conversa. A psicologia, por exemplo, fez disso seu campo de intervenção, mas se você pensa a técnica do médico ou do enfermeiro, temos intervenções onde essa dimensão não é problematizada, nem sequer na formação. Vejo a Política Nacional de Humanização do SUS (PNH) como uma grande medida, que procura trazer a tona essa dimensão produtiva do trabalho em saúde.

(En)Cena – Para construir a rede de atenção em saúde é necessário trabalhar/gerir essas diferenças de informação na formação?

Ricardo Teixeira – Gerir também. Aliás… É gerir mesmo! Percebo essa questão que você está trazendo, nos mesmo termos da questão anterior, é um trabalho que se dá no encontro, talvez a minha primeira colocação remetesse mais a ideia do encontro entre o cuidador e cuidado, quero dizer, é mais um campo de relações que se abre a partir das relações entre as profissões. É um trabalho em rede, cooperativo… É um trabalho que busca construir um comum nessas diferenças. Agora a ideia de gerir… É cogerir o fato de que todos estão implicados nessa gestão da composição, e no jogo das diferenças.

(En)Cena – A percepção que temos, eu queria saber se isso é uma percepção que existe dentro da visão da PNH, é que o usuário é uma figura que está equidistante da rede. Nessa experiência de cogestão, a rede consegue chegar ao usuário, o usuário consegue se perceber como cogestor do sistema?

Ricardo Teixeira – Não! Muito pouco. Acho que esse é um grande desafio, mas que também cobra de nós outro modo de acolher conceitualmente essa ideia. Acho que a ideia produção de saúde cria algumas brechas possíveis para recolocarmos esse problema.

(En)Cena – Como isso seria possível?

Ricardo Teixeira – Eu falei agora a pouco de “cuidador, cuidado”, e minha cabeça está cheia de reticências quanto a esses termos. Então, eu acho que o jogo da relação, é justamente um jogo que abre uma possibilidade de algo infindável, não é um campo fechado, mas é, justamente, o campo da produção contínua da abertura nas relações. Acho que há um modo de colocar o problema, onde o usuário sempre vai ficar em outra posição. Na Rede Humaniza SUS, por exemplo, que é uma rede onde, fundamentalmente, essa questão que você coloca se expressa, temos uma participação importante de trabalhadores e gestores da saúde, e uma participação mínima de usuários. Quando digo “usuário” me refiro a aquele que só é usuário. Mas uma das coisas que mais chama atenção na experiência das trocas na Rede Humaniza SUS é de como os trabalhadores também se colocam como usuários, costumo dizer: “é meio obvio”, alguns são trabalhadores da saúde, mas TODOS são usuários. Então ali já há uma possibilidade de abertura, já é outro modo de articular.

(En)Cena – Qual o principal público que acessa a Rede Humaniza SUS hoje?

Ricardo Teixeira – Ao mesmo tempo em que são poucos os usuários que participam da experiência da rede, tem uma parte significativa deles que são ou usuários da saúde mental, ou parentes de usuários da saúde mental, significativamente, são esses os usuários mais presentes na Rede Humaniza SUS. Temos alguns companheiros que perderam filhos dentro de hospitais psiquiátricos; que militam na reforma psiquiátrica; que encontraram na Rede Humaniza SUS um espaço. Do outro lado, a outra face dessa moeda é que: esses usuários também são trabalhadores do SUS, eles participam muito mais do que metaforicamente da produção de saúde.

(En)Cena – Você acredita que o trabalho imaterial se tornou a forma hegemônica do trabalho contemporâneo?

Ricardo Teixeira – Não é simplesmente porque a ideia do trabalho é imaterial. Além de atentar para dimensão dessa produção imaterial, inalienável, incontornável no trabalho em saúde, eu posso ignorá-la e ainda assim produzir afeto. Às vezes, mesmo que negativos, eu estou produzindo afetos. Essa produção está presente em qualquer encontro, em qualquer ato técnico da saúde, em qualquer encontro que se de nos espaços da saúde. O trabalho imaterial, que é uma boa categoria para pensar essa dimensão dos trabalhadores formais da saúde, abre uma brecha para a percebermos a produção social hoje. Se o trabalho imaterial se tornou, como diz alguns autores, a forma hegemônica do trabalho contemporâneo, ele integra imediatamente uma forma de trabalho não formal, que está fora do mercado formal de trabalho.

(En)Cena – Na sua visão esse trabalho imaterial, é uma espécie de doação que indivíduos fazem ao sentido coletivo?

Ricardo Teixeira – Eu acho que o mundo do imaterial abre essa possibilidade de pensarmos da ótica de uma “economia da dádiva”. Essa economia, e esse mundo que vivemos sob muitos aspectos, em que tudo tem uma ambivalência, um duplo valor, o trabalho imaterial é a ponta de lança de produção de valor no capital, mas, ao mesmo tempo, ele abre a possibilidade de uma incorporação no processo produtivo, de uma lógica da dádiva, do dom. E, efetivamente, quer dizer, em Marx a gente encontra essa discussão brotando, quer dizer, a ideia dele do General Intelect. Ele previa que, pela evolução das forças produtivas, o saber social total seria o grande ator da produção social. Quem participa dessa construção? Em um texto escrito em Alemão, ele, curiosamente, coloca em inglês, entre parênteses, do lado desse saber social total a ideia desse General Intelect. Particularmente, eu tento aproximar um pouco, talvez um pouco livremente da ideia de uma inteligência coletiva, de um intelecto geral, essa ideia de que o saber social total seria, cada vez mais, o grande ator da produção social.

(En)Cena – Essa integração das forças produtivas ao capital é generalizada?

Ricardo Teixeira – Sim. E ele é, ao mesmo tempo, um trabalho cooperativo. Ele se apropriar de saberes anteriores, e está sempre em ato, produzindo novos conhecimentos. É um trabalho lateralizadamente e imediatamente cooperativo. Eu não tenho como excluir o trabalho da educação, o trabalho da maternidade, o trabalho da mulher, tudo, de certa forma, começa a integrar uma dimensão produtiva. Essa integração generalizada de tudo na dimensão produtiva é o modo como o capital tem corrido atrás de conquistar novos continentes. Abriu-se um campo do ilimitado de novo, Rogerio da Cosa conversando com a gente, diz que a própria exploração do corpo físico é finita, já a exploração da subjetividade é, potencialmente, infinita.

(En)Cena – Tendo por base o livro do Edvaldo Couto “Corpos Mutantes”, a saúde está preparada para lidar com o corpo cybortico?

Ricardo Teixeira – Bom à saúde, ela trabalha efetivamente com o corpo cybortico já algum tempo, mas em múltiplas acepções. Uma delas, um trabalho em saúde que não é visto apenas da ótica técnica das intervenções sobre o corpo, é um trabalho que tenha uma dimensão de produção imaterial, um trabalho que, na verdade, convoca esse saber social total, um trabalho cooperativo. Penso que a complexidade dos desafios que a gente tem pela frente convoca outro corpo, um corpo que não está realmente dado. Vou falar de impressões, porque aqui eu estou entrando no terreno da exploração aberta, sob a influência dos últimos encontros, das ultimas conversas, das ultimas experiências. Nós que construímos uma politica publica como o SUS, que foi uma politica construída na luta e na alegria porque, há vinte anos, a possibilidade de construirmos uma politica publica universal de saúde era improvável… E eu acho que depois de vintes anos, todos que continuam ainda acreditando na possibilidade de uma politica publica, universalista, vivem hoje uma sensação de esgotamento, do campo do possível.

(En)Cena – Como você percebe esse corpo?

Ricardo Teixeira – A sensação que eu capto é de que falta um corpo, está faltando um corpo para isso, há um desafio que reclama outro corpo. Eu tenho muito forte essa sensação de que de fato nós vivemos em uma mutação da espécie, há alguma coisa passando por aqui. Há um desajuste relativo entre o tamanho do desafio ao qual a gente procura responder, e o corpo que dispomos para isso. Então me vem à ideia da construção de um corpo mais composto. Eu gosto muito de um conceito, às vezes um pouco controverso, que é aquele conceito de corpo sem órgãos, que a gente deve construir um corpo coletivo, um corpo que se mede nos fluxos de intensidade que percorrem esse corpo, a ideia de corpo sem órgãos, que é um conceito criado por Deleuze e Guattari.

(En)Cena – Ricardo, vamos chegando ao fim de nossa entrevista, e para finalizar: Esse corpo cibernético hoje, está em constante construção? Eterno Movimento?

Ricardo Teixeira – Eu acho que essa ideia interessante, porque ao mesmo tempo em que a expressão “corpo sem órgãos”, pode ser um pouco equivoca, por remeter a um corpo do qual se retirou os órgãos, curiosamente, e talvez nesse caso fique mais claro, que por vezes, a construção um corpo sem órgãos se dá pela adição de órgãos. Eu pressinto, que para fazer um corpo sem órgãos, nos falta órgãos que produzam outra organização. Um novo órgão redefine o organismo, e é nesse sentido que a gente permanece na luta contra o organismo. Mas não exatamente por um esvaziamento dos órgãos. E esse outro corpo, também não é esse corpo dado a nossa fé perceptiva individuada porque o cyborg, em minha opinião, já aponta para este corpo composto de muitos corpos, de muitos indivíduos. Quando estou falando do cyborg RHS, RHS eu falo do apelido acrônimo de REDE HUMANIZA SUS, que foi uma experiência que começou na WEB.


 

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É Preciso Vida

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É preciso vida, vivência, experiência, experiência de vida… Cada vez mais nos afastamos da vida vívida em prol de uma vida plastificada. Quando leio os artigos ditos “científicos” de nossa época fico estupefato com a neutralidade esterilizada dos posicionamentos políticos – isto quando os autores se arriscam a fazê-lo! -, com a simetria pasteurizada dos conceitos e com a beleza morta e inatingível de uma ética transcendente.

Podemos dizer que a produção de uma vida plastificada, e que está à venda nos sites de compras coletivas, tem como efeito o engendramento dos exitosos, dos vencedores, dos bem sucedidos da sociedade dos valores da decadência. Por outro lado, podemos dizer, também, que a produção de uma vida vívida, e que está à disposição em qualquer vivência no aqui-e-agora, tem como efeito a produção de sentidos, de consistência subjetiva, de novos valores para a existência.

É claro que não se trata de uma dicotomia, ou seja, de um lado a vida plastificada e de outro a vida vívida. Muito menos que ou produzimos nossa existência a partir da vida vívida ou a partir da vida plastificada. Nada disso! Estamos falando de forças que produzem materialidades (valores, jeitos de ser e de viver…), de forças que coexistem entre nós e em nós. É como se houvesse uma superfície contínua, onde de um lado a concentração de forças da vida plastificada fosse maior e de outro a concentração de forças da vida vívida se sobrepusesse. Entre estas extremidades há múltiplas possibilidades, combinações, arranjos; sempre com seu embate, sua luta incessante e, por fim, uma força vencedora.

Como estava dizendo antes, quando leio artigos científicos, quando escuto palestras em congressos, exposições de casos clínicos, etc. É sempre a mesma coisa! Só há, ou melhor, o que aparece, na maioria dos casos, são profissionais exitosos em suas investidas, com resultados promissores, interpretações sagazes; todos com seus olhos de lince e suas bocas de hiena sorridentes. Nestes casos, o olfato mais apurado pode sentir o cheiro de nada, pois são tão perfeitos e irremediavelmente inabaláveis que seus corpos não produzem o odor próprio da vida. Não há envolvimento (é possível isso?!), o que impera é a covardia política travestida de neutralidade, a falácia da necessidade de distanciamento entre pesquisador e seu objeto de pesquisa. Nesta forma de existir os conceitos produzidos são como um adorno que admiramos, tiramos o pó e não deixamos as crianças pegá-los. Em relação à ética, é evidente que se trata de algo que nos diminui, que nos iguala, e que não corresponde ao cotidiano de nossas vidas.

Mas o objetivo deste texto não é dar a impressão de “terra arrasada”, muito menos de disseminar o famoso jargão “está tudo dominado”, pelo contrário, o objetivo que temos aqui é de mostrar que a vida não se deixa enquadrar, a vida mesma é intempestiva, imprevisível.

Quando as forças da vida vívida dominam um determinado corpo, o que ocorre é a produção de valores a partir de experiências vivas. Não há somente vencedores, mas também vencidos, perdedores. Como diria Elisa Lucinda “na vida não tem ensaio, mas tem novas chances”. Quando estamos regidos por estas forças da vida vívida, estamos plenos de nosso eterno inacabamento, cientes de que não controlamos nada ou quase nada, temos a certeza inabalável da incerteza do rumo de nossas vidas, nos responsabilizamos por nossa existência e, sem dúvida alguma, esquecemos…

Estas forças regendo a produção de existência nos possibilitam enxergar que estamos sempre implicados com o que fazemos e que, desta forma, o importante é como estamos implicados nisto ou naquilo. Mais ainda, que nossa implicação diz de uma política de vida, da produção de determinadas formas de existir as quais produzimos ao mesmo tempo que as existencializamos; diz da produção de determinados valores que guiam a vida e são materializados por esta mesma vida. Enfim, dizem da escultura de si, da produção de uma ética, a produção de existência como obra de arte.

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A Sociedade e a Produção da Loucura

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O viver em sociedade impõe ao indivíduo um padrão a ser seguido para que o mesmo seja aceito, e as constantes e rápidas mudanças do mundo não permite a todos os seres individuais a uniformidade de postura, atitudes e capacidades. Dessa forma a sociedade produz a loucura de modo gradativo que tem início numa insatisfação pelos objetivos não alcançados, mergulha na angústia de não se sentir parte de um todo, e se afoga no desequilíbrio, acentuado pela falta de compreensão da sociedade ao redor do indivíduo. Por vezes a loucura não deve ser vista como enfermidade, se considerarmos que sua cura não se dá através de medicamentos, mas pode ser considerada como um estado fora do padrão esperado de sanidade, insensatez ou falta de equilíbrio e controle das faculdades mentais.

Desde os idos mais remotos da humanidade, mesmo nas sociedades mais primitivas, como na Idade Média e Clássica, a loucura era vista com certo preconceito e discriminação, chegando-se ao ponto de afastar o doente mental do convívio social, proibindo-se também a eles o acesso as igrejas como se fazia aos leprosos e portadores de doenças venéreas. Era considerada como desvio da conduta espiritual, similar a um limite, assim como o é a morte.

Mas a loucura não é rigorosamente uma doença, ela pode ser considerada como parte da razão de ser do homem, já que pode coexistir com a lucidez, vinda a serem na mesma medida loucura e razão. De fato, a loucura nunca foi observada a fundo, pois se atribuía, loucura a todo comportamento fora do padrão, desde um “desarranjo costumeiro” até um ato de violência doméstica. Para Foucault não vemos razão no estado de loucura “por havermos conhecido mal a natureza da loucura, permanecendo cegos a seus signos positivos”. E que o modo como a loucura foi tratada nos impediu de julgar corretamente e individualmente cada estado de loucura, tornando-a uma experiência homogênea e ao mesmo tempo cega para a realidade do indivíduo nesse estado.

A sociedade produz a loucura pelo modo como exige um padrão a ser seguido e até respeitado. Esse padrão está na mente das pessoas, é um dilema comum a todos inconscientemente. E não segui-lo, obedecê-lo, gera uma angústia inexplicável de não pertencer, e isso é a loucura tolerável da sociedade contemporânea.

O vazio, a busca pelo sentido da própria existência, a solidão causada pelo modo de vida atual, caracterizado pelas dificuldades de relacionamentos verdadeiros e duradouros e agravado pelas mudanças rápidas e constantes no mundo e pela pressão por assumir posturas para as quais o indivíduo não está preparado, consolida a angústia de modo a levá-lo a inimagináveis soluções ou até mesmo formas paliativa de tratar com seus conflitos interiores. Ora refugiando-se na mais avançada tecnologia em psicofarmacológicos e outras formas elaboradas pela ciência, consideradas eficientes; ora em misticismos e crendices de todo gênero, o que muitas vezes não o impede de mergulhar em fadiga e ansiedade.

O modo de vida atual voltada ao capitalismo e ao consumismo indiscriminado criou uma sociedade sensível e incapaz de assumir seus sofrimentos, e o que antigamente se chamava de “vida dura”, pura e simplesmente, hoje se tornou doença ou algum distúrbio psíquico, tratável com medicamentos, eliminando os sintomas diagnosticados, mas não sua causa. Todo sintoma já está pré-catalogado e as queixas do eventual paciente vão se encaixando em um diagnóstico pronto, resultando em uma receita da felicidade, onde a pílula substitui as atitudes e a decisão de se aceitar como ser individual único e peculiar. Pessoti (2003) apud Ewald et al afirma que “A facilidade e irresponsabilidade com que os diagnósticos são  emitidos,  acentuam o abuso de medicamentos, pois eles são baseados num quadro de sintomas pré- catalogados por algum manual […]”.

O sofrimento que leva ao desequilíbrio psíquico se origina no ideal de vida, criado pelo indivíduo que se coloca diante de tantos anúncios de um modo mágico de vida, em que os problemas são radicalmente resolvidos num ato rápido como as mudanças do mundo, algo que assiste nas propagandas veiculadas pelos meios de comunicação de massa. Seus desejos passam a se guiar por esse ideal. E muitas vezes não chegam a ser realizados por vários motivos, entre eles, a constante evolução tecnológica, a tendência ditada pela moda, as exigências do mercado de trabalho, que essencialmente controlarão sua capacidade de adquirir um bem material e conseqüentemente o impedirão, em algum momento de se adequar àquilo que idealizou inicialmente. Além desses fatores, a percepção por outros indivíduos, de sua condição de não se enquadrar no dito padrão começam a incomodá-lo, ao que a psicnalista Maria Rita Kehl (2003)apud Ewald et al afirma: “ o eu que nos sustenta é uma afirmação fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo”. Essa sensação de não pertencer ao todo, o deixará certamente em estado depressivo, cuja evolução leva a loucura nas suas mais variadas faces, em maior ou menor grau, conforme indicar o “manual”. Também em relação ao sentimento de não pertencer, segundo Ewald et al:

“é parte da ausência de sentidos que deveríamos criar ação que lentamente abandonamos para dispormos de sentidos prontos, vendidos no comércio virtual, nos supermercados, nos shoppings centers ou mesmo dispersos pelos meios de comunicação”.

A produção da loucura pela sociedade ao longo dos séculos e na atualidade se dá pela incompreensão do próprio “eu”, pela não aceitação de si mesmo como ser individual e peculiar, pela convivência mentirosa estabelecida pela vida em sociedade e o não poder expressar o verdadeiro sentimento em relação ao todo e a tudo sem se preocupar com o padrão existente. A loucura nasce da necessidade de ser igual ao que alguém determinou ser normal, quando o normal é que cada um seja como nasceu para ser.  Começam na negação da verdade a respeito de si mesmo em favor dos valores sociais impostos.

A loucura que na Idade Clássica era tratada com isolamento em prisões é hoje tratada com medicamentos e terapias, provavelmente essa foi a maior evolução do tratamento psíquico, pois na sociedade contemporânea  a discriminação é a mesma, mas a exigência em relação ao padrão é mais superficial e menos moral.

Considerações

A loucura e suas formas de tratamento foram evoluindo ao longo dos séculos, tal constatação fica clara ao compararmos o fato de que na Idade Clássica ainda se aprisionava os considerados como insensatos em celas e sem qualquer tratamento médico no sentido de curá-los de sua insanidade; ao fato de haver, atualmente, estudos e medicamentos apropriados a cada tipo de loucura, tratamentos humanos para enfermidades humanas, seja ela através dos meios bioquímicos ou terapias.   Outro fato observado é que a indústria farmacêutica, de certa forma tem se aproveitado do modo de vida atual, colaborando com o ideal de vida anunciado nos meios de comunicação, levando a sociedade a crer que existe uma fórmula mágica para curar suas angústias, decepções pelos desejos não realizados, que não sua própria iniciativa de ir à luta e realizar os desejos reais e não os fictícios criados por uma sociedade consumista e cada vez mais problemática.

Referências

CAMPOS, Regina Helena de Freitas e GUARESCHI, Pedrinho A (org.). Paradigmas em psicologia social: a perspectiva latino-americana. Petrópolis : Vozes, 2000. 222 p. (Coleção psicologia social).

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo : Perspectiva 2002.

EWALD, Ariane P.; OLIVEIRA, Dayse Marie. Sociedade de consumo e fabricação da loucura.Disponível em  http://encipecom.metodista.br acesso em 15 de junho 2011.

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