Neurose, Psicose e Perversão: um olhar psicanalítico

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Teoria freudiana tem enorme contribuição para o entendimento acerca da personalidade humana

Segundo a Psicanálise há três possibilidades de constituir-se enquanto sujeito. O sujeito começa a se moldar ao nascer, através das experiências afetivas e depois no entorno de sua vida e através destas relações. Desta forma, o sujeito é neurótico, perverso ou psicótico. Ou seja, de acordo com a Psicanálise existem três modos de o sujeito se constituir e se relacionar com o mundo (Outro).

A perversão acabou sendo atribuída a sexualidade ou ao campo da moral, caracterizada por uma série de desvios em relação àquilo que é esperado e considerado aceitável. Logo é importante diferenciar perversão de perversidade. O termo “perversidade” é compreendido como “caráter de crueldade e malignidade” (ZIMERMAN, 2004, p. 267). Já a ´´perversão“ está diretamente ligada a estrutura psíquica de alguém que se organiza, se defendendo de angústias persecutórias, depressivas e de desamparo. Uma pessoa pode ser perversa, mas necessariamente não ter atitudes de perversidade. Ou seja, a estrutura perversa, não aponta uma conduta e/ou um desvio de caráter, pois trata-se de um modo de estabelecimento de laço com o Outro.

No perverso, o sintoma não causa sofrimento, mas sim satisfação. O sintoma funciona como uma defesa, mas quando o sentimento de ameaça é grande, efeitos indesejados podem surgir. Outro ponto a destacar são os mecanismos de defesa do perverso: a idealização e a recusa. Zimerman (2004) declara que o sujeito perverso apresenta uma ´´compulsão a idealizar“ e impõe aos outros estas ilusões. Já a recusa significa que parte do Eu reconhece a realidade e a outra parte faz de conta que não existe.

Fonte: encurtador.com.br/iAWY1

A perversão pode ser classificada como social ou sexual. Na social se enquadra a psicopatia, toxicomania e o alcoolismo. Na sexual se enquadram o exibicionismo, voyeurismo, sadismo, masoquismo, sadomasoquismo, fetichismo e pedofilia. Em relação as características, é comum se apresentarem como o melhor em tudo que fizer, assim como práticas de manipulação, sedução, mentira, chantagem e transgressão de normas e regras. Além de não apresentarem sentimento de culpa e se auto agredirem através do uso e abuso de substâncias.

Psicose – De acordo com Zimerman (2004), o termo ´´psicose“ não tem uma definição clara. Portanto, com base clínica, se divide em três categorias: psicoses (propriamente ditas); estados psicóticos; e condições psicóticas. A psicose é um processo de degradação do ego, causando sérios prejuízos de contato com a realidade. Um exemplo disso são as esquizofrenias. Já o estado psicótico se refere a preservações de áreas do ego que atendam duas condições. Como exemplo têm-se os borderlines, que apesar de apresentarem psicoses, têm maior adaptação ao mundo exterior, comparados aos esquizofrênicos. Por fim, as condições psicóticas se referem a sujeitos bem adaptados ao mundo exterior, porém, são portadores de condições psíquicas que os caracterizam como psicóticos.

De acordo com Freud (1924), na estrutura da psicose o núcleo estrutural central tem como prevalência o princípio do prazer, ao invés do princípio da realidade. Ou seja, há um distanciamento do ego e uma aproximação do id. Desta forma, há um distanciamento do ego/realidade, e em seguida, com uma tentativa de reparar o dano provocado pelo distanciamento, o sujeito entra em contato com a realidade, mas por meio do id. O que explica os principais sintomas, como: delírios, alucinações, discurso desorganizado, comportamento desorganizado, podendo passar períodos muito agitados ou muito lentos; mudanças bruscas de humor ficando muito feliz num momento e depressivo logo a seguir, confusão mental; etc. (SOARES e MIRÂNDOLA, 1998).

Fonte: encurtador.com.br/rvQZ6

Neurose – É na neurose em que a maior parte da população se enquadra. Dessa forma, os neuróticos são sujeitos que apresentam algum grau de sofrimento ou adaptação, porém conservam uma razoável integração do self, apresenta, boa capacidade de juízo crítico e de adaptação à realidade, “não obstante que, em algum grau, sempre existe em todo neurótico uma parte psicótica da personalidade” (ZIRMERMAN, 2004, apud BION, 1957).

A neurose apresenta várias classificações, como por exemplo, a ´´neurose de angústia“, ´´neurose atual“, ´´fobia“, ´´obsessivo-compulsiva“, ´´histerias“, e ´´depressivas“. De acordo com Zimerman (2004), é difícil encontrar um neurótico puro, ou seja, alguém que os sintomas sejam apenas de uma neurose. Já que é comum a predominância de neuroses mistas.

O neurótico é considerado a parte ´´normal“ da sociedade. No entanto, dependendo do grau de angústia, obsessão, fobia etc., o sujeito pode não conseguir se ajustar ao meio, romper com a realidade, e estar tão adoecido quanto o sujeito portador de psicose e/ou psicopatia. Sendo assim, diante do que foi apresentado, existe alguém “normal”? Fica a reflexão.

Referências
Freud, S. (1996). A dissolução do complexo de Édipo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 189-199). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924)

MARTINHO, M. H. Perversão: um fazer gozar. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

Zimerman, D. (2004), Manual de Técnica Psicanalítica, Editora Artmed, Porto Alegre.

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São Paulo sediará curso sobre o ato analítico em psicanálise

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No dia 19 de maio de 2018, ocorrerá em São Paulo- SP, o curso “O Ato Analítico na Neurose, na Psicose e na Perversão” ministrado pelo psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira. Promovido pelo Centro de Estudos Psicanalíticos, o evento será sediado na Rua Almirante Pereira Guimarães, 378/ Pacaembu, São Paulo-SP.

O curso tem por objetivo discutir as especificidades do ato analítico, a partir da perspectiva da direção do tratamento e do final da análise, nas diferentes configurações clínicas. Seu eixo condutor serão as proposições de Freud e de Lacan sobre o dispositivo analítico, o desejo do analista e suas formas de intervenção.

Mario Eduardo Costa Pereira é psicanalista, psiquiatra, professor titular de Psicopatologia Clínica pela Aix-Marseille Université (França), professor livre-docente em Psicopatologia do Departamento de Psiquiatria pela UNICAMP, onde dirige o Laboratório de Psicopatologia: Sujeito e Singularidade (LaPSuS).

Mais informações podem ser obtidas pelo link.

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O Eu dividido – Três ou quatro apontamentos sobre a existência psicótica

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“A experiência e comportamento que recebem rótulo de Esquizofrenia é uma estratégia
especial que uma pessoa inventa para viver uma situação insuportável”

R.D. Laing

Nesse resumo sucinto discorro algumas das idéias do psiquiatra escocês Ronald D. Laing contidas no livro O Eu dividido (The Divided Self – 1960), a respeito da existência psicótica.

Ronald D. Laing foi, no decorrer da sua vida, bastante criticado por algumas correntes psiquiátricas, principalmente as mais clássicas. De fato, seus estudos diversificados, misturando misticismo, psicanálise e psicopatologia ganharam entoadas diferentes e, por vezes, contraditórias, mas por nenhum momento as críticas puderam retirar-lhe o mérito de ter abordado a psicose de maneira tão afinca e profunda. O existencialismo sartreano muito influenciou as concepções do psiquiatra. Nesse sentido, Laing dizia da psicose como uma tentativa do sujeito em significar a sua própria existência. Ou seja, a psicose em si seria um significado existencial.

Ferrenhamente contrário à linguagem psiquiátrica, Ronald D. Laing objetava tudo o que tinha a função de circunscrever o sujeito, embora ele mesmo tenha criado conceitos para explicar a sua maneira de enxergar a psicose (e o sofrimento, a solidão e o desespero embutidos nela).

Um dos primeiros conceitos apresentados por Laing (e talvez o fundamento de todos os outros) no inicio de seus estudos sobre a psicose é o conceito da Insegurança Ontológica. De acordo com Gabriel e Carvalho Teixeira (2007), a Insegurança Ontológica para Laing seria uma experiência irreal ou uma sensação de não estar vivo, o que conduziria o sujeito a uma preocupação central em sua auto-preservação (ao invés de uma preocupação com a auto-gratificação). Foi a partir desse conceito que o autor introduziu o termo “o eu-dividido”, se referindo à percepção fragmentada que o sujeito psicótico tem de si. Nessa percepção, o sujeito se questiona quanto à sua existência, à sua essência e à sua identidade.

Analisando alguns sinais e sintomas nosológicos da psicose junto aos conceitos introduzidos por Laing, é possível dizer da Insegurança Ontológica como crença mantenedora ou alimentadora do embotamento afetivo e da postura esquiva frente aos relacionamentos interpessoais, já que o psicótico vai se “trancando” dentro de si mesmo, deixando de ser “um para o outro” para ser “um para si”. A noção de ser desintegrado ou dividido, aproxima-se da noção de divórcio entre um eu falso, ou self falso, e um eu verdadeiro, que não se manifesta; fica guardado somente para o sujeito. Nesse eu (que é dividido), há um que é uma casca e pode ser deteriorado, enquanto há o outro intocável, impenetrável, inatingível e inacessível. A partir dessa conceituação Laing defendeu que não há propriedade para se falar de um psicótico quando não se é um. Para o psiquiatra a psicose enquanto agravamento ou doença seria nada mais do que a retirada da casca do falso self, o que comumente chamamos de surto, ou crise.

Na Insegurança Ontológica há três tipos de ansiedade vividas pelas pessoas ditas psicóticas. O primeiro tipo é o Engulfment ou absorção, que seria uma sensação constante de perda de identidade, onde a estratégia de preservação usada é o isolamento; o segundo tipo é aimplosão, que seria uma constante sensação de vazio, onde esse vazio é o próprio sujeito e a realidade é tida como algo perigoso capaz de tomar o lugar do vazio e, por fim, destruí-lo; e apetrificação ou despersonalização como terceiro tipo de ansiedade, seria o medo constante da perda da subjetividade. Frente a essas ansiedades, muitos dos sintomas psicóticos são, na verdade, estratégias protetoras contra a Insegurança Ontológica. Algumas estratégias parecem contraditórias, mas no fundo prezam por uma existência que é, a todo instante, ameaçada.

Em suma, Ronald D. Laing defendeu a psicose como uma maneira diferente do sujeito existir no mundo, propondo uma análise fenomenológica-existencial dos sintomas ditos irracionais ao invés de uma análise neurofisiológica do quadro psicótico. Nas obras posteriores ao “O Eu dividido”, estudou e discorreu a respeito dos fatores sistêmicos relativos à existência psicótica, como vínculos familiares e aspectos culturais (e por vezes místicos) entrelaçados à temática da loucura.

 

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Ilha do Medo: entre traumas e conflitos

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Suspense psicológico é um gênero de filme que traz em seu contexto a união do suspense e dos elementos mentais da psicologia. “Ilha do medo” está em quarto lugar na lista dos 10 Melhores Suspenses Psicológicos1, justamente por manter o espectador desorientado durante toda a passagem da trama.

Baseado no livro homônimo de Dennis Lehane, Ilha do Medo é uma história recheada de suposições e reviravoltas. Martin Scorsese, autor e diretor do filme, conseguiu unir características fundamentais para que a trama pudesse prender o espectador do início ao fim e permitindo que a sensação de desorientação estivesse presente ao longo de toda a história.

O ano é de 1954. Através da nevoa a balsa surge. O navio se aproxima da ilha Shutter, no posto de Boston, sede do Asilo Ashecliffe – uma instituição federal de segurança máxima para criminosos insanos-. A bordo encontram-se Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) com vertigem, molhado e com os olhos vermelhos, repetindo para si mesmo: Controle-se Daniels, controle-se” e Chuck Aule (Mark Rufallo) seu parceiro de trabalho.

Teddy é um agente federal que foi enviado para Ashecliffe para investigar o desaparecimento misterioso da assassina Rachel Solando (Emily Mortimer), presa por assassinar o três filhos e o marido. Durante as investigações os médicos Cawley (Ben Kingsley) e Naechring (Max Von Sydow) mostram-se resistentes e não estão dispostos a fornecer informações sobre a paciente ou como funciona o asilo, o que aumenta a desconfiança do detetive diante do episódio de desaparecimento de Rachel. Apesar das inúmeras tentativas de colher informações que possam ajudar na investigação, bem como levantar hipóteses do que teria acontecido, todas são mal sucedidas e incompletas, deixando sempre uma certeza, para Teddy e para quem o assiste, há algo errado.

Funcionários, seguranças e pacientes parecem agir compactuando com a lei do silêncio, ou com a lei de confundir Teddy e Chuck. Não existem depoimentos coesos ou que se encaixam uns com os outros, alguns pacientes relatam momentos incompreensíveis e que não condizem com a suposta fuga da paciente.

Para conduzir a investigação Teddy conta com a ajuda dos seus “sonhos” com sua esposa Dolores (Michelle Williams) morta em um incêndio que ele julga ter sido causado por um piromaníaco. Além dos seus sonhos também surgem flashbacks da época em que Teddy era um dos soldados que participou dos extermínios nos campos de concentração nazistas, tornando a trama cada vez mais sombria e fazendo com que o personagem não seja visto somente como o herói da história. É possível entender seus conflitos e confusões, mas não a sentimos junto com ele. Suas alucinações são de caráter torturantes e conturbadas, há algo naquele homem que não foi superado, mas também são obscuras, mostrando que por trás do heroísmo que Teddy quer apresentar existem sombras que o escondem.

Durante uma crise de enxaqueca, Teddy necessita tomar remédios para aliviar as dores fortes de cabeça fazendo-o dormir por um bom tempo, nesse intervalo Rachel é encontrada, como se nada tivesse acontecido, sem nenhum ferimento ou sinais de fuga. Ao receber a informação do aparecimento da paciente, Teddy mostra-se desconfiado e confuso (não sabendo se essa confusão era por causa da medicação ou pelo aparecimento súbito de Rachel). As investigações tomam rumos diferentes, o detetive quer saber que segredos a ilha esconde e que não era por Rachel que ele estava lá. A investigação gira em torno das novas descobertas que Teddy fez: os médicos do asilo realizam experiências neurocirúrgicas com os pacientes, envolvendo métodos ilegais e antiéticos, Mas, nesta investigação, o detetive também enfrenta a resistência dos médicos para obter informações que possam ajudar na abertura do processo. Após um furacão que deixa toda a ilha sem comunicação e sem segurança, alguns internos conseguem escapar, tornando o lugar inabitável e mais perigoso do que antes.

O filme traz características que o tornam um suspense conturbado, que possibilita o desconforto e a confusão de saber o que é real e o que é imaginário. No cenário estão; psicologia versuspolítica, traumas pessoais e traumas sociais (históricos), guerra fria, holocausto, tratamento dos doentes mentais na época, alucinações ricas e detalhadas, flashbacks longos – permitindo maiores informações para que possamos entender o que se passa com os personagens-, experimentos com pacientes do asilo, conspirações entre outros aspectos que tornam o filme espesso e carregado de ideias de percepção.

No entanto, as fronteiras instáveis, vivenciadas no início da trama, entre o real e a fantasia, perdem um pouco da força no desenrolar dos acontecimentos, porque o filme começa a trazer por meio dos flashbacks características que deixam evidentes que toda a narrativa está agindo para manter em segredo algo imperceptível ao que ocorre. O espectador pode perceber facilmente as fragilidades do personagem central, um exemplo: as reações de Teddy no campo de concentração em Dachau. Essa quebra de fronteira permite que saibamos o que aconteceu, tornando o final mais próximo antes da hora. Porém, essa “falha” não retira a maestria do suspense e o final ainda é surpreendentemente arrebatador. O filme gira em torno, basicamente, da fragilidade da linha conceitual que separa a sanidade da loucura e o medo é o principal personagem e condutor dessa trama. É, também, um “prato cheio” para apaixonados por psicopatologias, psiquiatria e psicofarmacologia.

Nota:

1http://pipocatv.com.br/top-10/os-10-melhores-suspenses-psicologicos-dos-ultimos-anos/

 

FICHA TÉCNICA

ILHA DO MEDO

Título Original: Shutter Island
Lançamento: 2010
Tempo: 2h 18min
Direção: Martin Scorsese
Elenco Principal: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Bem Kingsley
Gênero: Suspense
Nacionalidade: EUA

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Crise: é muito, mas não é clichê

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Antes de se tentar construir quaisquer notas sobre o que seja uma crise, é necessário, primeiramente, escolher sob quais perspectivas se quer falar sobre o assunto, pois se não houver essa escolha, o conceito de crise ficará sempre submetido a um relativismo infundado ao invés de ser considerado como algo que envolve aspectos complexos, sem os quais não seria possível haver discussão a respeito.

A palavra ‘crise’ pode designar inúmeros significados, assim como podem existir vários tipos de crise, a exemplo: crises econômicas, existenciais, etárias, psicóticas, referentes a catástrofes da natureza etc.

A respeito dessa vastidão de crises e de seus diversos significados, Leonardo Boff  diz que “não se pode falar de crise referindo-se apenas a uma experiência individual e nem a um privilégio apenas de pessoas portadoras de sofrimento psíquico”, pois a crise pode se referir a um contexto global ou a uma circunstância pela qual todas as pessoas estão sujeitas a passar.

E mesmo que a perspectiva abordada nesse texto seja a de crise em Saúde Mental, ainda assim ela não se refere a uma experiência individual de alguém que está sofrendo ‘psiquicamente’, pois existem diversos atravessamentos provindos de outras partes, seja como desencadeantes ou apaziguadores da crise.

Alguns atravessamentos exemplificados referem-se à forma como a sociedade ampara o sujeito com crise, à forma como a família lida com essa crise, à forma como a crise é enxergada e trabalhada pelos profissionais da saúde, dentre outros aspectos que envolvem o sujeito em crise e seu meio ou território.

No entanto, ao pesquisar sobre a origem da palavra crise e sua evolução no decorrer da história, sabe-se que a ela foi apropriada uma conotação negativa que fez com que a mesma fosse genericamente entendida como uma situação que precisa ser remediada.

Esse aspecto por muito tempo regeu (e ainda rege algumas) intervenções em Saúde Mental, e as formas de lidar com esse evento chamado crise, ao longo do tempo, além de terem trazido repercussões como: categorizações, ideais de adaptação, noções de equilíbrio, de sanidade, de homeostase, interferiram no que é considerado “ideal” e aceitável para uma sociedade. Essas repercussões – ao serem consolidadas socialmente – fizeram no âmbito da Saúde Mental com que uma crise fosse percebida basicamente como um estado de anormalidade, de sofrimento, de periculosidade e de ruptura com as relações sociais, referentes apenas ao indivíduo, de maneira isolada.

Assim, ao tomar a Saúde Mental como parâmetro para se falar de crise, entende-se que todo o constructo conceitual consolidado a respeito dela (principalmente quando se trata de crise psicótica) dificultou aquilo que hoje a Atenção Psicossocial propõe e preconiza, que é enxergá-la como um possível momento para o aparecimento de novos sentidos para o sujeito, o que pode resultar, por fim, em um maior entendimento sobre si mesmo e sobre o seu momento, fazendo com que esse sujeito não só ressignifique o momento pelo qual está passando como também saiba lidar com os afetos que este momento, porventura, traz.

Referente a essa ressignificação e à característica que as crises têm de fazer emergir aspectos singulares do sujeito, os quais antes eram desconhecidos para si e para os outros, considera-se que os sentimentos que as pessoas em crise apresentam são particulares e relativos, o quê uma vez mais afasta a crise da noção de intervenções pré-estabelecidas (além de considerar que as manifestações de uma crise são de diversidades ímpares). Essa visão sobre crise, a qual tenta abandonar a conotação negativa a ela imposta, é fruto de premissas e ideais que fundamentam a Reforma Psiquiátrica e é nesse sentido que Foucault (1978) diz que o conceito de crise é construído histórica e culturalmente, de acordo com a contingência social do contexto em que uma sociedade está vivendo.

Dessa forma, a crise em Saúde Mental pode, muitas vezes, se deparar com um paradoxo conceitual, uma vez que há vários profissionais inseridos no contexto de produção de cuidado àquele que está em crise, cada qual com vertentes que muitas vezes não se comunicam de forma tão consoante. Como exemplo, o conceito de intervenção em crise de um enfermeiro pode, a princípio, divergir significantemente do conceito que um psicólogo tem, assim como um psicanalista pode entender a crise de uma maneira diferente da de um psiquiatra, mas, embora isso, as premissas ditas anteriormente (sobre a Reforma Psiquiátrica e sobre a proposta de Atenção Psicossocial) fazem com que não se dê tanta importância a uma possível conceituação de crise quando, em contrapartida, é preciso que se dê importância ao significado que ela pode ter de abrir ao sujeito um espaço de contorno e manobra contra os círculos viciosos de reprodução de seu próprio sofrimento. É nesse sentido que as intervenções em crise, na Saúde Mental, se encontram (ou poderiam e deveriam se encontrar), como mediadoras ou pontes entre o paciente, sua realidade e seu bem-estar.

Dessa forma, a crise em Saúde Mental pode ser amplamente entendida como um momento em que os afetos, sentimentos, gestos e comportamentos surgem de forma expressiva e em graus variados quanto a sua intensidade e manifestação, sabendo que esse momento também afeta a vida das pessoas que convivem com o sujeito. Ao ser entendida dessa forma, a crise afasta-se das tradicionais intervenções que tentam impor hábitos morais sobre os sujeitos, substituindo a ênfase nas incapacidades e nas impossibilidades pela ênfase nas potencialidades no sentido de proporcionar ao sujeito aquilo que tanto se fala em Saúde Mental: promoção de saúde, de autonomia, de cidadania, de reinserção ao convívio social.

Em suma, uma crise pode ser entendida em um contexto ao se analisar a atenção, o cuidado e a intervenção que as pessoas envolvidas prestam e recebem, pois esses mecanismos são desenvolvidos a partir de uma noção social e culturalmente consistente do que é uma crise.

Nota: Este texto foi produzido como requisito da disciplina Intervenção em situações de crise do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, ministrada pelo professor Mardônio Parente de Menezes, no período de 2010/2.

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Armadilhas psíquicas e o medo em ‘Psicose’

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De Alfred Hitchcock

Com quatro indicações ao Oscar: Melhor Diretor (Alfred Hitchcock), Melhor Atriz Coadjuvante (Janet Leigh), Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte – Preto e Branco

“Não há terror em um estrondo, apenas na antecipação dele.”
Alfred Hitchcock

Há mais de 50 anos uma cena se tornou um ícone e intensificou uma fobia: o medo de banheiro quando se está sozinho em um quarto de hotel. Existem várias histórias em torno das primeiras exibições do filme Psicose em 1960, entre elas dizem que muitas pessoas desmaiaram na cena do chuveiro, outras vomitaram, além de toda forma de grito que as cordas vocais pudessem produzir.  Hoje, em alguns aspectos, tal cena poderia ter uma conotação ingênua, pois a partir da década de 1980, filmes de terror (e também a realidade mostrada nos noticiários) transformaram uma morte por faca em algo leve, já que a partir daí intensificaram-se os mais bizarros tipos de morte, como cabeças decepadas, braços arrancados, sangue jorrando por todos os poros, vilões com máscaras assustadoras, garras etc. Mas, ao contrário desses filmes, que buscam, no excesso, criar o ambiente necessário para o “susto”, Hitchcock continua conseguindo impressionar justamente por saber manipular o silêncio e intercalá-lo com uma trilha sonora que provoca arrepio e quebra a linha tênue entre o suspense e o horror.

Acho que tudo começou quando eu estava nos braços da minha mãe aos seis meses de idade e ela me disse: ‘boo’ e isso despertou um medo de algo fora de mim.
Alfred Hitchcock, em Entrevista (Robinson, 1960)

Escrito por Joseph Stefano (do romance de Robert Bloch), Psicose, para Sandis (2009), é o mais freudiano de todos os filmes de Hitchcock. Isso pode ser verificado se considerarmos, por exemplo, o que Kusnetzoff (1982) apresenta em seu livro Introdução à Psicopatologia Psicanalítica, no qual ele observa que o mecanismo de cisão do Ego faz ressaltar a heterogeneidade estrutural do Ego e os dois “senhores” aos quais deve obediência: o reconhecimento das exigências da realidade e as exigências de satisfação dos desejos pulsionais. Assim, tem-se que parte do Ego aceita a realidade tal qual ela é constituída, podendo simbolizá-la e, outra parte, a rejeita, criando uma outra “realidade” que pode ir desde o objeto fetiche até um delírio alucinatório. Essa situação (em um formato mais ampliado e, em alguns aspectos, caricatural) pode ser observada no filme a partir das ações de Norman, que parece verdadeiramente acreditar nas palavras que profere, mesmo que suas ações ou, em um dado sentido, a própria realidade as refutem. Um outro ponto é o  paralelo que pode ser feito entre a exploração da casa por Lila Crane em busca de respostas sobre o desaparecimento de sua irmã e a nossa exploração gradual dos vários “quartos” que compõem a personalidade psíquica de Norman Bates.

Acho que estamos todos presos em nossas armadilhas e nenhum de nós consegue sair. Usamos nossas garras e unhas no vazio, umas com as outras. E, por tudo isso, nunca mudamos nosso modo de agir.  (Norman)
Às vezes entramos de propósito nestas armadilhas.  (Marion)
Eu nasci na minha, não me importa mais. (Norman)
Mas deveria, deveria se importar. (Marion)

Marion Crane hospeda-se no Bates Motel depois de tomar uma decisão repentina de roubar 40.000 dólares da empresa em que trabalha. Uma decisão impulsionada pela falta de perspectiva diante da vida, que é refletida no romance às escondidas com um homem casado e em um profundo sentimento de solidão. No diálogo apresentado acima, Norman, em meio a uma aparente animação por ter uma hóspede em seu Motel, inicia uma inocente conversa com Marion, mas suas palavras acabam por traí-lo, revelando muito de sua personalidade, especialmente da parte mais obscura desta. É possível ver a dualidade entre o homem jovem que está consciente de ter diante de si uma bela mulher e o filho obediente, que vive em função da mãe, apontada por ele como alguém fraca e doente, carente de seus cuidados e merecedora de sua atenção.

“O melhor amigo de um homem é a sua mãe.” (Norman)

O mecanismo de defesa “Repressão” e o Complexo de Édipo são dois conceitos freudianos presentes nesse filme. De acordo com Freud (apud Kusnetzoff, 1982), repressão “consiste num ato de despejo do nível consciente da representação ligada à pulsão”, assim, chama-se “repressão” àquela operação psíquica que ocorre consciente, mas cujo destino é alojar a representação no espaço pré-consciente. Geralmente, isso está relacionado às memórias traumáticas, comumente associadas a eventos vividos na infância, que são reprimidas pela mente consciente em uma tentativa de deixar o Ego livre de conflito e tensão. Já o Complexo de Édipo, cuja terminologia remete ao personagem da mitologia grega que, sem saber, mata o pai e se casa com sua mãe, está presente no filme através da relação conturbada entre Norman e sua mãe, especialmente nos estranhos acontecimentos que envolvem a sua suposta morte e a do homem que vivia com ela. Este acontecimento, segundo Sandis (2009), leva a uma perda parcial do ‘eu’ e a um forte sentimento de identificação com a vítima, então, agrega-se a isso o fato da memória reprimida poder ser desencadeadora de episódios neuróticos ou psicóticos, o cenário do filme está construído. Na época de Freud, dizia-se que a neurose consistia numa rejeição do instinto e, simultaneamente, em ficar-se à mercê do mundo exterior; enquanto na psicose é rejeitado o mundo exterior, obedecendo automaticamente o Id; mas, essas afirmações são hoje relativas, desde que as rejeições do mundo exterior “arrastam” igualmente “pedaços” do Ego e do Id.

Marion e Norman são semelhantes, em um dado nível, pelos sentimentos de medo e solidão que vivenciam. Ambos estão presos em armadilhas complexas. Enquanto ela busca um meio de encontrar uma rota para uma Ilha Deserta, de forma a viver sem ter que responder a uma sociedade que a oprime e a rejeita, ele, que já se sente em uma Ilha Deserta, busca conciliar os “eus” que carrega consigo, que talvez sejam piores que qualquer “demônio” que exista do lado de fora. Mas, o que separa um do outro de forma profunda é que Norman, diferentemente de Marion, já não sabe distinguir onde acaba a realidade de fato e inicia o mundo criado apenas na mente dele. Norman já não sabe qual “eu” é o real. Então, o mal se torna um meio de mostrar ao “eu” que está no comando que ele é fiel, que sente culpa e que o ama.

Referências:

SANDIS, Constantine. Hitchcock’s Conscious Use of Freud’s Unconscious. Europe’s Journal of Psychology 3/2009, pp. 56-81.

KUSNETZOFF, Juan Carlos. Introdução à Psicopatologia Psicanalítica. 7ª ed.. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.


FICHA TÉCNICA DO FILME

PSICOSE

Título Original: Psycho
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Joseph Stefano
Elenco Principal: Anthony Perkins, Janet Leigh, Vera Miles, John Gavin, Martin Balsam
Ano: 1960

Prêmio: Globo de Ouro: Melhor Atriz Coadjuvante (Janet Leigh)

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Cisne Negro O Filme

Cisne Negro: a dualidade dos cisnes

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“A vida imita a arte assim como a arte imita a vida”. Este aforismo, nascido do senso comum, talvez explique como nascem idéias que norteiam as escolas artísticas. Seja na literatura, nas artes cênicas ou nas artes plásticas, a intrincada conjunção de fatos reais junto ao imaginário coletivo perfazem um ambiente ideal para a composição de uma obra.

“Garota virgem pura e doce presa no corpo de um cisne. Ela deseja a liberdade, mas apenas o amor verdadeiro poderá desfazer o feitiço. Seu desejo é quase atendido na forma de um príncipe. Mas antes de poderem consumar o amor, a devassa irmã gêmea, o cisne negro, envolve e seduz o príncipe. Devastada, o cisne branco se joga de um penhasco, morre e na morte encontra a liberdade.” Trecho inicial do filme.

Darren Aronofsky em Black Swan (Diretor do filme Cisne Negro, 2010) traça um formidável paralelo entre o enredo clássico do Balé Dramático Lago dos Cisnes de Tchaikowski e a vida de Nina Sayers, protagonista da trama que é alçada à posição de primeira bailarina de uma companhia de dança que irá encenar a obra.

O grande desafio a ser conduzido pelo diretor da montagem é fazer com que a mesma bailarina desempenhe os dois papéis simultaneamente, alternando doçura e agressividade, ternura e sensualidade, simplicidade e arrojo, pureza e sagacidade. Como coadunar as duas vertentes de sentimentos diametralmente opostos em uma mesma dançarina? Mais ainda… Como fazer uma doce bailarina encarnar uma personagem despudorada, sedutora e que se vale de seus dotes físicos e sensuais para conquistar o que deseja?

Nesse paralelo percebe-se uma Nina irrequieta, confusa e duvidosa da própria capacidade. A disciplina marcial imposta por sua formação a impede de transgredir formas, pensamentos e atitudes que passam a ser extremamente necessários para que possa encarnar a personagem. Como deixar de ser o Cisne Branco, doce, meigo, afetuoso para tornar-se o Cisne Negro voluptuoso, sedutor, devasso, envolvente e sensual?

Como pano de fundo, apresentado de forma transversal na trama, está a mãe da protagonista, uma bailarina que teve sua oportunidade de brilhar subitamente furtada exatamente pela gravidez de Nina e que passa a transferir toda sua expectativa para a filha, para que a mesma obtenha o sucesso que não conseguiu. Nasce aí uma descrição sutil e perfeita de uma psicose, uma verdadeira dualidade de pensamentos e de personalidades no íntimo de Nina.

Nina, um Cisne Branco por excelência, a todo custo tenta “matar” o Cisne Negro que há dentro de si arrancando “as penas negras1 ”que nascem às suas costas. Isso a leva a uma dolorosa castração dos seus sentimentos, de sua sensualidade e de seus desejos que a mesma julga serem incompatíveis com o seu ser e com a disciplina imposta por sua mãe e pela sua “arte”. Quando se vê compelida a transgredir modos e atitudes, sente-se culpada e envergonhada.

Para se libertar dessas amarras impostas por anos de segregação de sentimentos, Nina entra em um verdadeiro surto psicótico com alucinações que a fazem supor perseguida e prestes a ter sua posição usurpada. Para evitar que isso aconteça, ela entende, em suas alucinações, que deve transgredir, ultrapassar limites. No momento mais brilhante da trama, Nina mata sua suposta concorrente em um delirante surto para poder, finalmente, encenar de maneira magistral o Cisne Negro. Quando retorna percebe que toda a luta para desferir um golpe mortal em sua concorrente na realidade tinha sido em si mesma. Percebe que tinha desferido um golpe em si mesma.

Esse momento mostra que para o Cisne Negro poder aflorar e ter suas penas nascendo era preciso que o Cisne Branco morresse. Não foi possível para Nina conviver com a dualidade das personagens: para que o Cisne Negro fosse executado, era necessário matar o Cisne Branco que existia. As duas pessoas não podiam conviver ao mesmo tempo. Ao final, em um momento de êxtase, à beira da morte, a protagonista exalta: “Perfeito”. Assim como no drama de Tchaikowski, a morte a libertou.

Quantos, na incessante busca pela perfeição, acabam sufocando uma parte de seu eu para poderem viver e conviver? Quantos que possuem essa dualidade dentro de si e que não conseguem conviver com ela acabam por julgarem-se anormais e se refugiam como loucos dentro de si mesmos ou longe do mundo temerosos de serem descobertos ou serem tomados como devassos ou perversos? Quantos, imbuídos ou impregnados de preceitos ou preconceitos, acham-se dominados por maus espíritos e buscam a cura para uma doença que não possuem?

Esse conto de fadas às avessas retratado por Tchaikowsky em O Lago do Cisnes nos remete a inúmeros outros clássicos da literatura e da dramaturgia como o de Romeu e Julieta. Faz-nos lembrar também de contos infantis como Branca de Neve a espera do Príncipe encantado para despertar do sono eterno ou do príncipe que virou sapo e que necessita de um beijo para voltar a ser Príncipe.

O imaginário, particularmente o feminino, é recheado pela procura incessante da perfeição principesca de um amor duradouro e perfeito, não compatível com sensualidade, com desejos ou com a expressão da linguagem corporal. O Filósofo francês contemporâneo, Luc Ferry, em Aprender a Viver nos descreve em um relato fantástico, a evolução da Filosofia e ao final conclui que a finalidade última da mesma é a busca pela morte perfeita: resumindo, aprender a viver é aprender a morrer.

Passamos uma vida inteira buscando a perfeição e atingir objetivos. Quando nos apercebemos, é no leito de morte que atingimos a tão propalada perfeição; é nesse momento que atingimos uma sublime sapiência.

Darren Aronofsky nos deixa isso muito claro.

Notas:

1 A cena descreve um momento de alucinação da personagem.

O texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

CISNE NEGRO

Título original: Black Swan
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Mark Heyman, Andres Heinz, John McLaughlin;
Elenco: Mila Kunis, Barbara Hershey, Winona Ryder, Vincent Cassel, Natalie Portman
Ano: 2010
País: EUA
Gênero: Suspense

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