O movimento do kpop é mais do que uma febre. Para várias pessoas, ele significa vida, alegria, e força para viver mais um dia
Ídolos não são figuras completamente desconhecidas na cultura pop. Eles podem ser encontrados até mesmo em 1954, com o surgimento de Elvis Presley na indústria musical americana. A sociedade não é estranha ao ato de ser fã, de idolizar indivíduos que trazem alegria a certo grupo de pessoas das quais acompanham esse ídolo. Muitos escutam as músicas de seus ídolos em busca de divertimento, para aproveitar um tempo sem preocupações. Cercados de preocupações com vida social, relacionamentos, estudos, trabalho, problemas familiares, o ser humano está em uma constante busca por alívio do peso imposto sobre elas.
O K-pop é um gênero musical que tem seu marco inicial em 1992, com o lançamento da música Nam Arayo de Seo Taiji&Boys que misturou elementos musicais coreanos, hip-hop, coreografias e letras dos quais os ouvintes jovens poderiam se identificar. Conhecido como movimento Hallyu (onda coreana), o gênero musical está se desenvolvendo no mercado musical internacional, constantemente revelando diversas camadas de gêneros e estilos musicais, imagens estéticas, e letras que ressoam com o público que as escuta. A ascensão mundial lenta porém constante se dá desde que Psy abriu as portas com a viralização de Gangnam Style em 2012.
O K-pop veio como um movimento capitalista de comercialização de música e imagem em uma tentativa bem sucedida de melhorar a economia da Coreia. No entanto, essa parte da cultura hallyu que engloba música, produtos de beleza, dramas de TV (conhecidos como doramas ou K-dramas), figuras culturais e vestimenta, se tornou muito mais do que isso para diversas pessoas.
BTS atualmente é o grupo coreano que está na frente do movimento de popularidade da música coreana. Lançado em 2013, o grupo é composto por sete membros que variam de 28 a 23 anos de idade. Cinco anos atrás, o BTS não possuía o reconhecimento que atualmente tem. Mas hoje, oito anos depois do debut (ou seja, lançamento) do grupo, existem poucas pessoas que nunca ouviram falar deles. Há oito anos, o grupo com sete membros luta contra a corrente em indústrias (tanto norte-americana quanto a coreana) que os recusam afirmando que certos membros não têm talento, que não têm beleza o suficiente, não cantam bem o suficiente, e até mesmo o racismo norte-americano desenfreado.
(BTS, grupo coreano composto por sete membros. Fonte: bit.ly/38leF2o)
Recentemente em uma entrevista do site americano Billboard divulgada em 28 de Agosto de 2021 a pessoa responsável por conduzir a entrevista abertamente acusou BTS, os fãs, e a empresa responsável por eles — Hybe Entertainment, de manipulação dos charts da Billboard. Na realidade, o esforço do fandom (fã-clube), é terminantemente mais intenso do que quaisquer outros fandoms por conta dessa barreira de racismo. Tal situação não acontece com artistas de origem americana, pois a viralização de algo americano, em inglês ou não, não é visto com estranheza pela indústria. As portas são conscientemente fechadas para esses artistas por uma clara representação de racismo e desrespeito.
Tal fidelidade, tal foco e amor aos grupos de k-pop e seus membros se dá pelo apoio emocional que muito frequentemente é fornecido aos fãs.
O apoio emocional se caracteriza como a capacidade de oferecer apoio, cuidado, conforto e segurança frente a momentos de estresse. Esse tipo de apoio faz parte de uma dimensão que engloba alguns modelos básicos de apoio social, incluindo autoestima, rede de vínculos e outros elementos que vão desde saber instruir os indivíduos na resolução de problemas a oferecer os recursos necessários para uma assistência concreta (CUTRONA; RUSSELL, 1990). O crescimento emocional está diretamente ligado ao processo de apoio emocional, por este estar diretamente ligado ao fato de que ao adquirir apoio emocional, o indivíduo encontra liberdade de desabafo, expressão das emoções, e crescimento psicológico.
Devido a diversos movimentos de desenvolvimento tecnológico e social do século XXI, foi criada uma subjetividade quanto ao que pode se apresentar como apoio emocional. Pela tecnologia, pessoas de países diferentes podem se unir em apoio e cuidado, utilizando de interesses em comum e vivências similares para dar forças uns aos outros. Tal movimento foi maximizado por conta da pandemia, e houve uma aproximação emocional dentro do distanciamento social.
Muitos fãs e ídolos entram em um processo de apoio emocional que pode até mesmo se apresentar de forma mútua. O apoio emocional por parte dos fãs é uma narrativa constante dentro desse universo, relatos dos quais os fãs afirmam que um grupo salvou a vida delx, que por causa de um grupo elx tem força para viver mais um dia, dentre diversas outras falas. O apoio emocional de fã para fã também é visível, visto que muitos passam por experiências similares de transtornos mentais tais como ansiedade, depressão, e até mesmo ideação suicida.
Grupos de K-pop perceberam a sua voz, o alcance que eles possuem, e começaram a estender a mão para os fãs da melhor forma possível.
Em Setembro de 2018 o grupo BTS entregou o primeiro discurso na câmara da UNICEF, no evento “Youth 2030: The UN Youth Strategy”, do qual tinha o objetivo de debater e levar a frente movimentos de melhoria no futuro dos jovens de todo o mundo. Foi o primeiro discurso de um total de dois (o segundo sendo feito em 2020 de forma remota), e o primeiro grupo do gênero a praticar tal ato. O discurso foi feito para levantar a campanha Love Myself, da qual eles unem forças com a UNICEF para promover doações e vendas dos quais os fundos são utilizados para proteger crianças de violência.
(BTS, grupo composto por 7 membros durante promoção em 2020 da campanha Love Myself. Fonte: https://www.love-myself.org/eng/home/)
No discurso RM, o líder do grupo também conhecido como Namjoon, disse:
“[…] E eu gostaria de começar falando sobre mim mesmo. Eu nasci em Ilsan, uma cidade próxima de Seul, na Coreia do Sul. É um lugar muito bonito, com um lago, montanhas, e até mesmo com um festival anual de flores. Eu tive uma infância muito feliz lá. E eu era apenas um garoto comum. Eu costumava olhar para o céu para pensar, e eu costumava sonhar os sonhos de um garoto. Eu imaginava que eu era um super herói que podia salvar o mundo.
E na introdução de um dos nossos primeiros álbuns, tem uma frase que diz: ‘Meu coração parou quando eu tinha nove ou, talvez, dez anos’. Olhando para trás, acho que foi quando eu comecei a me preocupar sobre o que outras pessoas pensavam de mim, e comecei a me enxergar pelos olhos deles. Eu parei de olhar para o céu à noite e para as estrelas. Eu parei de sonhar acordado.
Ao invés disso, tentei apenas me encaixar nos moldes criados por outras pessoas. Logo, comecei a calar minha própria voz e passei a escutar as vozes dos outros. Ninguém chamava meu nome, nem eu mesmo chamava. Meu coração parou e meus olhos fecharam-se. E é assim, dessa forma, que eu, nós, todos perdemos nossos nomes. Nos tornamos fantasmas.
Mas eu tinha um refúgio, e era a música. Tinha uma pequena voz dentro de mim que dizia: ‘Acorde, cara. E escute a si mesmo!’ Mas demorou um tempo para que eu ouvisse a música chamando meu verdadeiro nome.
[…] E eu posso ter cometido um erro ontem, mas o eu de ontem ainda sou eu. Hoje, eu sou o que sou com todos os meus defeitos e erros. Amanhã, eu posso ser um pouco mais sábio, e isso também será eu. Essas falhas e erros são o que eu sou, compondo as estrelas mais brilhantes da constelação da minha vida. Eu aprendi a me amar pelo o que eu sou, pelo o que eu fui, e pelo o que eu espero me tornar.
Eu gostaria de dizer mais uma última coisa. Depois de lançar a série de álbuns ‘Love Yourself’ e a campanha ‘Love Myself’, eu comecei a escutar histórias impressionantes de nossos fãs pelo mundo, de como nossa mensagem os ajudou a superarem as dificuldades da vida e de como eles passaram a se amar. Essas histórias constantemente nos lembram de nossa responsabilidade.
Então, vamos todos dar mais um passo. Aprendemos a nos amar. Agora, eu insisto que falem por si mesmos. Eu gostaria de perguntar a todos vocês: Quais são seus nomes? O que anima vocês e o que faz seus corações baterem? Me digam suas histórias, eu quero ouvir suas vozes e ouvir suas convicções.
Não importa quem você seja, de onde você venha, sua cor de pele, sua identidade de gênero, apenas fale! Encontre seu nome e sua voz, falando por si próprio.”
O impacto de seu discurso foi tamanho que os fãs desenvolveram um movimento mundial dos quais eles filmavam vídeos curtos, faziam tweets, posts no Facebook e Instagram relatando suas vivências, dizendo seus nomes e suas origens. Por conta disso, houve uma reação em cadeia de apoio emocional e cuidados promovidos pelos próprios fãs pela validação das falas de cada um deles seguidos de respostas de apoio nos comentários desses posts.
Atualmente, a campanha tem um valor arrecadado acumulado de 2,600,000,000 KRW, que fazem cerca de 11 bilhões de reais. A campanha continua em andamento até hoje, e os efeitos sociais de Love Myself permanecem e marcam fãs até hoje.
Siga ligadx no site (En)Cena para a segunda parte.
REFERÊNCIAS
Bhrescya Ayres ABADE; Ana Letícia Guedes PEREIRA. Ídolos e Apoio Emocional: Reflexões Sobre a Dinâmica do Fã Adolescente Contemporâneo. JNT- Facit Business and Technology Journal. QUALIS B1. 2021. Julho. Ed. 28. V. 1. Págs. 74-92.
MADA, Larissa Sumi. A experiência de ser k-popper no brasil – uma visão fenomenológica sobre os armys. Universidade Federal de São Paulo. Santos, 2017.
Kpop como aliado no tratamento de doenças mentais. K4us, 2019. Disponível em <https://k4us.com.br/kpop-como-aliado-no-tratamento-de-doencas-mentais/>. Acesso em 28 de Ago. de 2021.
CRUZ, Caio Amaral da. E precisa falar coreano? Uma análise cultural do K-Pop no Brasil. 104 f. il. 2016. Monografia – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.
BTS Cover Story: Inside the Band’s Business & Future. Billboard, 2021. Disponível em <https://www.billboard.com/articles/news/9618967/bts-billboard-cover-story-2021-interview>. Acesso em 30 de Ago. de 2021.
BTS Struggles & Hardships. Amino, 2017. Disponível em: <https://aminoapps.com/c/btsarmy/page/blog/bts-struggles-hardships-what-can-we-learn-from-this/xpjw_WpXh2uwG56agBwlaG33zkB2PvGjGZN>. Acesso em 29 de Ago. de 2021.
Nietzsche acredita que a nossa natureza é uma só: crescer, aumentar, expandir e se fortalecer. O que faz que tenhamos um objetivo universal e inevitável: a vontade de potência.
Você já se perguntou qual o sentido da sua vida? O que te move? Emoção ou razão? Emoção ou motivação? Qual o teu propósito? Você acredita que cada ser humano contém um propósito individual? Qual o valor da vida? Nietzsche diz que o valor da vida não pode ser avaliado, para isto precisaríamos estar mortos. E como sabemos, nenhum morto pode nos declarar qual o valor da vida, ao menos para os que acreditam em metafísica. Mas isto não nos impede em alguma medida, avaliar a nossa vida, assim como conferir sentido, apreciar, depreciar e interpretar (THOMASS, 2019).
Nietzsche acredita que a nossa natureza é uma só: crescer, aumentar, expandir e se fortalecer. O que faz que tenhamos um objetivo universal e inevitável: a vontade de potência. Assim como Nietzsche, Baba (Mestre espiritual) também acredita que temos um objetivo universal, que ele dá o nome de expansão de consciência e faz uma analogia com a árvore: a semente é o ego, e tem o objetivo de se desenvolver, amadurecer e gerar frutos. A raiz representa nossas memórias, nos mantém de pé. O tronco representa nossos valores e virtudes, quanto mais consolidadas, mais longe poderemos chegar. Os galhos são os desdobramentos de nossas virtudes e dons. As folhas são nosso impulso de vida e capacidade de renovação, e por fim, as flores e os frutos representam o que viemos fazer aqui.
Rogers (1947) diz que o sujeito tem uma Tendência Atualizante, condizente com a teoria de ´´vontade de potência“ de Nietzsche. Para Rogers, “descobrimos, dentro da pessoa, sob certas condições, uma capacidade para a reestruturação e reorganização do self, e, consequentemente, a reorganização do comportamento, o que tem profundas implicações sociais” (Rogers, 1947, p. 368). Ou seja, o indivíduo tem a capacidade se organizar e reestruturar de acordo com as limitações do meio. Ainda sobre a tendência atualizante, Rogers & Kinget (1965/1979) pontuaram:
(…) a tendência à atualização é a mais fundamental do organismo em sua totalidade. Preside o exercício de todas as funções, tanto físicas quanto experienciais. E visa constantemente desenvolver as potencialidades do indivíduo para assegurar sua conservação e seu enriquecimento, levando-se em conta as possibilidades e limites do meio (p. 41).
Fonte: encurtador.com.br/cGPQ4
Se for da nossa natureza a vontade de potência, expansão de consciência e tendência atualizante, o que nos limita? Seria o meio em que vivemos? Afinal influenciamos e somos influenciados pelo meio. Muitos teóricos da psicologia sustentam que a personalidade se fundamentada até os 7 anos de idade, ou seja, crenças instaladas podem permanecer por toda vida. Logo, se reproduzimos ignorância, procriamos ignorância. E muitas vezes as crenças que protegem, são as mesmas que isolam e causam maior distanciamento do ´´verdadeiro eu“ (que Jung chama de Self ou Si-mesmo), o que dificulta a evolução.
De acordo com John Locke o homem é uma tábula rasa, ou seja, se constitui por meio das experiências. Logo, uma criança nasce pura e sem máscaras, e a partir das normativas sociais, ela vai se moldando, se corrompendo ou se desenvolvendo. Desta forma, é preciso iniciar uma reforma pelos adultos, de maneira que estes curem suas mazelas e não transfiram as mesmas para os filhos, sobrinhos, alunos etc., a partir do que Freud chama de projeção narcísica. Antes de ter um filho é preciso ter autorresponsabilidade. Você tem vontade de ter um filho para cumprir um programa social, suprir a própria carência ou é algo que vem do coração? Quem em você quer ter um filho?
Tal cenário resulta em uma sociedade doente, dependente de medicamento e terapia. Afinal, se dinheiro, fama, poder e beleza fossem sinônimos felicidade não teríamos tantos famosos adoecidos mentalmente. Whindersson Nunes, que passou por um processo depressivo se questionou em entrevista ao fantástico: “Eu virei um cara que tenho as minhas coisinhas e tudo mais. Mas você chega naquele momento e fica: e aí? Dinheiro, dinheiro, dinheiro e aí?”.
Fonte: encurtador.com.br/orE36
Ainda para suprir o vazio, acabamos nos tornando carentes do outro, mendigando atenção. Baba diz que não somos carentes de nada, mas crenças nos condicionam e acabamos a achar que somos mendigos de atenção. Logo, muitas vezes fingimos o que não somos, visando receber atenção/carinho. O que resulta em uma vida desperdiçada, baseada na tentativa de forçar o amor do outro. Este estado provoca raiva, e esta raiva volta a si próprio, pois de maneira clara ou não, a pessoa sabe que está a se ´prostituir`. Algumas vezes, para chamar a total atenção de uma pessoa em específico, o indivíduoaz papel de vítima com intuito de conquistar, dominar e manipular o outro. Sendo característica da necessidade de amor exclusivo. Mas de acordo com Sartre: inferno são os outros. Vale ressaltar, também, que se o inferno são os outros, nós também somos o outro (e o inferno) na vida de alguém.
Como você tem agido? De forma racional ou instintiva? Você é uma pessoa que usa a mente para entender o mundo ou apenas para justificar suas opiniões através da emoção? Me atrevo a dizer que pensar no outro, saindo da nossa zona de conforto é uma maneira de praticar sentimento, desta forma, enquanto procuramos a nós mesmos dentro de uma multidão, sigamos a filosofia de Mahatma Gandhi: Seja a mudança que você quer ver no mundo.
Referências
BABA,S. Propósito: a coragem de ser quem somos. Editora Sextante, 1ª edição, 2016.
FREUD, S. [1914]. Sobre o narcisismo: uma introdução. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV, p. 85-119.
Em A Casa que Jack Construiu (2018), de Lars von Trier, o Mal é frio e sistemático – ele não é oposto à Razão, mas figurado como o outro lado da racionalidade, assim como a Arte e a Morte andam juntas na História.
Fonte: encurtador.com.br/krtKQ
Jack é um engenheiro que sonha em ser arquiteto. Quer sair do anonimato dos cálculos matemáticos para o impacto público da produção de ícones. Arte e Morte andam juntas. E para comprovar sua tese Jack se transforma num cruel e paradoxal serial killer que faz de tudo para chamar a atenção da polícia e da imprensa para suas “obras-primas”. Esse é o filme “A Casa Que Jack Construiu” (2018), do controvertido, diretor Lars von Trier, que discute a atual “arte degenerada” que confunde a produção “artística” com a capacidade de produção imagética viral. Tipo de arte que vai encontrar no fenômeno do serial killer o seu paroxismo. Mas, da pior forma possível, Jack vai descobrir que a vaidade é o pecado mais admirado pelo Diabo.
“Criamos os verdadeiros ícones desse planeta. Somos considerados o mal derradeiro. Todos os ícones que tiveram ou terão impacto no mundo”. O protagonista Jack defende a sua tese, fazendo alusão à “arquitetura da destruição” do nazismo, os aviões de bombardeio da força aérea alemã com sirenes no trem de pouso para aterrorizar as cidades bombardeadas ou a famosa foto de crianças nuas queimadas por napalm na Guerra do Vietnã.
O detalhe é que Jack é um serial killer que compara seus assassinatos a “obras de arte”, cuja ápice é a produção de ícones, obras-primas perfeitas que impactam o mundo. Jacky denomina essa arte de “extravagante e nobre putrefação”.
Em A Casa que Jack Construiu (2018), de Lars von Trier, o Mal é frio e sistemático – ele não é oposto à Razão, mas figurado como o outro lado da racionalidade, assim como a Arte e a Morte andam juntas na História. No filme vemos as imagens de líderes totalitários como Hitler e Stalin enquanto Jack discorre sobre a produção de ícones à serviço da guerra. Era aquilo que o pensador francês Jean Baudrillard denominava como “reversibilidade simbólica” no qual a Razão se converte em irracionalidade, representada em filmes como Saló (Pasolini), A Centopeia Humana (Tom Six) ou O Clã (Pablo Trapero) – veja links no final da postagem.
Mas Lars von Trier acrescenta algo a mais. Para quê fazer grandes obras de arte sem conseguir a notoriedade? Quando surge a arte, senão apenas quando é elevada a condição de ícone para alcançar a fama, o sucesso e o reconhecimento? – o “impacto”. De que adianta matar de forma “artística” e sistemática, sem ter visibilidade e reconhecimento?
Ao contrário de um “Jack, o Estripador”, jamais identificado pela polícia numa época vitoriana, Jack de Lars von Trier é o praroxismo do serial killer em busca de visibilidade e ostentação no mundo pós-moderno. E na atualidade, nada mais “icônico” do que ganhar visibilidade por meio da morte e da violência.
Fonte: encurtador.com.br/inGMQ
Assim como Razão e Irracionalidade, Arte e Morte são duas faces de um mesmo movimento, da mesma forma A Casa Que Jack Construiu sugere que o fenômeno do serial killer e a sociedade das imagens seriam os dois lados de uma mesma moeda.
O Filme
Jack (Matt Dillon) é um prodigioso assassino em série. Ele já matou dezenas de pessoas e está a caminho do Inferno literal, acompanhado de Virgílio (Bruno Ganz), numa referência direta ao guia de Dante através dos círculos infernais em “A Divina Comédia”. Na verdade, acompanhamos os diálogos em off dos dois, enquanto Jack descreve e comenta cinco dos seus mais brutais crimes, acompanhando a evolução da sua loucura.
No primeiro “incidente” assistimos a um delicioso meta-humor negro quando Jack encontra na estrada uma mulher com o pneu do seu carro furado. Jack dá uma carona para a ela (Uma Thurman) até a oficina mais próxima, enquanto a mulher fala o tempo inteiro que ele se parece com um serial killer, em um furgão vermelho e sem janelas. Mas, parece fraco demais para ser um assassino. Quando Jack já teve o suficiente, dá um violento golpe no rosto da mulher com o macaco do seu carro. Esse meta-humor negro da primeira sequência vai ditar o tom de toda a narrativa.
Fonte: encurtador.com.br/ikqr9
Os crimes de Jack vão se tornando cada vez mais insanos e violentos, parecendo que não há limites para Lars von Trier – Jack mata uma aposentada na sala de estar; transforma crianças em alvo de tiros de caça esportiva; extirpa os seios de uma mulher a qual chama de “Simples” (Riley Keough) por considera-la muito burra. Isso não sem antes anunciar para “Simples” o que fará, enquanto a mulher acha tudo muito exótico para crer.
Na verdade, Jack o tempo inteiro tenta chamar a atenção da polícia, da imprensa e dos vizinhos para os seus crimes – deixa-se ser visto com a mulher que será assassinada na primeira sequência, arrasta com o furgão pelas ruas o corpo ensanguentado da mulher aposentada, faz “Simples” gritar por socorro na varanda do seu apartamento, desce na rua com a vítima e grita para um policial que já matou 60 pessoas etc.
Jack descaradamente comete seus crimes, muitas vezes voltando à cena para levar de volta os corpos para produzir fotos perfeitas para enviá-las à mídia com a assinatura “Mr. Sophistication”. Jack empilha os corpos em um imenso freezer num frigorífico, ao lado de pilhas de caixas de pizza congelada. O que pretende Jack?
Fonte: encurtador.com.br/abmoQ
A crítica considera o filme como autobiográfico: do caráter obsessivo-compulsivo de Jack (ele sofre de TOC) à forma prazerosamente caprichosa como os movimenta os corpos no freezer de um lado para outro para fotografá-los, como um diretor cinematográfico posicionando os atores em um set de filmagem.
Porém essa leitura psicologizante, muito comum em críticas cinematográficas, acaba limitando o escopo real de Lars von Trier: fazer uma reflexão entre a Arte e a Morte. Principalmente na sociedade do espetáculo, no qual o conceito de “Arte” se iguala às noções de visibilidade e impacto.
Da “Era Trump” ao ascetismo mundano
Em entrevistas, o diretor associa o tema do filme à Era Trump e sua estratégia icônica de chamar a atenção com bravatas e provocações. Uma espécie de Arte, porém “degenerada”, ao confundir a produção “artística” com a capacidade de produção imagética viral.
Fonte: encurtador.com.br/fVX12
Jack, assim como a própria natureza do serial killer atual (atiradores, homens-bomba etc.), teria aquilo que o pesquisador Richard Sennett chamava paradoxalmente de “ascetismo mundano” dentro do quadro geral do “declínio do homem público”.
O “ascetismo mundano” seria derivado da ética protestante tal qual descrita por Weber. Enquanto na ética cristã o ascetismo de um monge é um impulso voltado para o interior (“um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” – SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 406.), ao contrário, na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus (ou ao Diabo, no caso de Jack) mas aos outros a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um merecedor das graças divinas. Isso se insere na cultura narcísica atual como um impulso autoconfessional como uma performance do eu interior diante dos outros nas redes sociais.
Jack é um engenheiro que sonha em se transformar em arquiteto. O engenheiro, com seus cálculos matemáticos e precisão, é um asceta anônimo. Ele sonha em construir uma casa como um arquiteto. Vê a construção como um evento icônico (arte, estilo etc.) como promoção pública de impacto. O arquiteto é um asceta mundano.
Mas fracassa. Só resta conduzir seu narcisismo ferido às mortes espetacularmente cruéis de “Mr. Sophistication”.
Como diz o demônio All Pacino no filme O Advogado do Diabo (Devil’s Advocate, 1997), “a vaidade é o meu pecado favorito!”. E Jack descobrirá da pior maneira possível nos círculos infernais, guiado por Virgílio.
FICHA TÉCNICA DO FILME
A CASA QUE JACK CONSTRUIU
Título original: The House That Jack Built Direção: Lars von Trier Elenco: Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman Ano: 2018 País: Dinamarca Gênero: Drama, Suspense
Compartilhe este conteúdo:
A tragédia como dialética entre os deuses Apolo e Dionísio
A obra a Origem da Tragédia ou Nascimento da Tragédia, Helenismo e Pessimismo, foi a primeira obra de Nietzsche, (CASTRO, 2008). De acordo com Vieira (2012), esta obra de Nietzsche foi publicada em 1872 quando ele ainda era professor universitário no curso de filologia, e é considerada por algum autores uma das principais obras da filosofia moderna. Neste livro, Nietzsche aborda sobre a tragédia que era segundo Vasconsellos (2001) um coro composto por doze homens e era cantada por um ator denominado Hipócritas que representava deuses ou seres legendários vivos ou mortos, sobretudo a tragédia era aberta ao público e o público participava livremente e se comovia com os coros e entravam em uma catarse.
A tragédia de Nietzsche aborda a dialética entre o deus Apolo e o deus Dionísio, onde Apolo representava as artes plásticas, o sonho, perfeição, luz, beleza, razão, sonho e Dionísio representava o vinho, a embriaguez, os prazeres carnais, a falta de limites e regras, pois para Nietzsche (2006) a vida se dava entre essa dialética apolínea e dionisíaca, entre o equilíbrio das duas forças, contrariando as ideias socráticas e discorrendo sobre o helenismo que foi o período onde o apolíneo e o dionisíaco viviam em perfeita harmonia.
O autor também traz a tragédia atica que resgata o dionisíaco e é a manifestação artística, é o equilíbrio do espírito dionisíaco e por meio desse processo o grego consegue manter-se diante da vida rodeado por essas duas forças, na tragédia atica o espírito dionisíaco prevalece. A tragédia nasceria na Grécia a partir do espírito da música e renasceria na modernidade a partir do espírito wagneriano. O nascimento da tragédia proveniente do espírito da música, Nietszche (2008).
Fonte: http://zip.net/bktLfw
É extremamente evidente a maneira como Nietzsche traz a dialética entre o apolíneo e o dionisíaco, quebrando a ideia socrática e rasgando a ilusão na qual os gregos estavam submersos, trazendo de volta o pessimismo, pois os gregos possuíam consciência a respeito das dificuldades e impasses da vida, sobretudo eram otimistas e o espírito dionisíaco visava unir a existência em torno da verdade e criar um elo do homem com a verdade nua e crua, sem a ilusão criada pelo apolíneo de que tudo era belo e perfeito, e Nietzsche (2008, p. 24) descreve da seguinte forma:
E não são só as imagens agradáveis e alegres que experimenta em si com aquela compreensão ilimitada; também o grave, melancólico, triste, sombrio, os repentinos impedimentos, as imposições do acaso, as esperanças angustiosas; enfim, toda a “divina comédia” da vida com o inferno, passam por ele, não só como um jogo de sombras — pois ele vive e sofre com estas cenas — e mesmo assim não sem aquele pensamento, passageiro na aparência; e talvez haja quem se lembre, como eu também me recordo, de ter, de permeio com os perigos e sustos do sonho, exclamando para si encorajadoramente: “É um sonho! Quero continuar a sonhá-lo!” Assim como também dizem existirem pessoas capazes de continuar a causalidade de um mesmo sonho por três e mais noites consecutivas. Fatos que atestam claramente que o nosso ser interior, o fundamento comum de todos nós, recebe o sonho como necessidade prazenteira, e com profunda alegria. Esta necessidade prazenteira do conhecimento do sonho foi exprimida, da mesma forma, pelos gregos mediante o seu Apolo, como deus de todas as formas criativas e, ao mesmo tempo, o deus-adivinho. Ele que, segundo a sua raiz, é o “Brilhante”, a divindade da luz, domina outrossim o belo brilho do mundo-fantasia.
O espírito apolíneo criava ao redor da forma uma cortina estética perfeita e bela, criando também uma ilusão utilizando da arte para os gregos mostrando apenas o lado belo da existência, e o espirito apolíneo foi reforçado pelo cristianismo, pois mantém a ideia de submissão do homem. O espírito apolíneo representa as artes plásticas e o espírito dionisíaco representa a música e Nietzsche (2008), em sua obra busca o equilíbrio das duas forças, visto que os gregos moldavam o mundo com formas e arte: apolíneae dionisíaca, duplo caráter, teatro e música.
E Nietzsche (2008) também retrata sua enorme influência proveniente de Schopenhauer, onde aborda a vida como sendo essencialmente sofrimento e acontecimentos negativos de forma nua e crua, de maneira transparente e fiel a estes relatos de sofrimento e desprazer, rasgando o véu ilusório criado por Sócrates e por Apolo. E Nietzsche (2008) retrata Hegel como o processo de conhecimento do mundo é dialético, tese e antítese, na obra Nietzsche traz uma tese apolínea e um antítese dionisíaca, resultado disso é a tragédia atica.
Fonte: http://zip.net/bqtMct
A função da tragédia era cultural para todo o povo grego e buscava conectar o povo aos deuses e seres legendários por meio de Apolo e Dionísio, sendo segundo Nietzsche (2008), Apolo como deus sol, sonho humano de dar respostas através da razão, frio e distanciado, artes plásticas como tentativa de controle, harmonia controlada e ordem, já em contrapartida temos Dionísio deus do vinho, deus da festa e da embriaguez, intoxicação, selvageria, desordem, descontrole, mistérios e o espírito dionisíaco se desperta na música e como união dos dois estímulos, no final de toda boa tragédia atica há a manifestação do dionisíaco onde traz a ideia de que tentamos vencer a morte por meio da razão, mas no final a morte se manifesta por meio do dionisíaco representado, assim como reforça Castro (2008, s/p):
Em O nascimento da tragédia, se a beleza é Apolo, a verdade é Dionísio. E é precisamente o terror que Schopenhauer diz tomar conta do ser humano quando se rasga o véu da representação que nos aproxima do dionisíaco: a verdade do desejo, ao mesmo tempo aterrorizante e extasiante, que experimentamos na embriaguez. Nietzsche fala das beberagens narcóticas que os povos primitivos cantavam em seus hinos, da Babilônia e suas sáceasorgiásticas que celebravam a união dos homens entre si e com a natureza, da primavera que chega impregnando a atmosfera de alegria.
Todos os exemplos do que é capaz de despertar o “transporte dionisíaco” onde o “subjetivo se esvanece em completo auto-esquecimento”. No estado dionisíaco “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial (Ur-Einen), revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez” (CASTRO, 2008).
Nietzsche (2008) traz a ideia de Schopenhauer acerca do véu da ilusão que é criado em nossas vidas, e por meio da razão o homem se afasta da natureza, o dionisíaco traz de volta essa essência porque o homem é natureza e de acordo com o sábio Sileno trazido por Nietzsche na obra, viver é sofrer, viver é morrer. Para Nietzsche o socratismo, buscar a felicidade por meio do conhecimento é a instauração de um mundo que nos afasta inclusive da nossa identidade naquilo que ela tem de primordial que é a relação com a natureza.
Fonte: http://zip.net/bytLJC
Segundo Nietzsche (2008), Eurípedes era compositor e por meio da razão dava sentido ao que não tem sentido, tentava criar uma tragédia didática onde você aprende e por meio da aprendizagem e você sai do barco, Eurípedes se apropria da proposta socrática de utilizar-se da razão para um etos e desvendar o mundo e tenta fazer isso por meio de suas peças, ele se torna um dragão na medida em que afasta o que é de primordial em suas peças que é a síntese, a dialética, onde se confirma:
Da mesma forma que em meio ao mar enfurecido e ilimitado o barqueiro de um pequenino bote permanece sereno e confiante em sua frágil embarcação – a bela imagem schopenhaueriana de O mundo como vontade e representação, que descreve o homem colhido sob o véu de Maya como aquele que, mergulhado em uma vida de tormentos, encontra calma e apoio no principiumindividuationis e confia na ilusão da representação para poder viver –, Nietzsche nos mostra o artista apolíneo suportando e dignificando a vida em seu mundo fictício de beleza (NIETZSCHE, 2008).
De acordo com o que é trazido e apresentado na obra de Nietzsche, o principiumindividuationis é o processo onde o indivíduo se constrói quanto individuo, uma armadilha da natureza para nos fazer acreditar que somos únicos e podemos vencer a morte e escapar do destino trágico.
Fonte: http://zip.net/bvtLGN
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi mencionado nas laudas anteriores, vimos como Nietzsche aborda a dialética entre as duas forças e espíritos opostos sendo apolíneo e dionisíaco, e como ele afronta os pensamentos socráticos acerca da vida, batendo de frente com as ideias socráticas e se chocando com o helenismo que era alimentado e vivido pelo povo grego na época referida. Nietzsche discorre sobre o tema da tragédia grega de forma sublime ao perpassar pela arte e filosofia, e sendo a sua primeira obra ele já causa uma quebra nas ideias filosóficas que eram impostas e discutidas, criando um novo período filosófico e se solidificando neste universo literário como um dos maiores autores e filósofos.
É notável a maneira como Nietzsche retrata o equilíbrio entre as forças de Apolo de Dionísio sendo essenciais para a vida humana aprender a conviver e a lidar com o pessimismo e com a negatividade e aversão, quebrando a ideia e rasgando o véu ilusório de que tudo se trata apenas do belo e da perfeição, mas fazendo valer o peso do que não é belo e é doloroso também.
REFERÊNCIAS:
CASTRO, M.C. , A inversão da verdade. Notas sobre o nascimento da tragédia 2008: Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732005000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 mai. 2017.
NIETZSCHE, F. A ORIGEM DA TRAGÉDIA. Rio de Janeiro: Cupolo Ed, 2008.
SILVA, L. A. Tragédia2012. Disponível em: <http://www.infoescola.com/artes/tragedia/> Acesso em: 17 mai. 2017.
VIEIRA, M.V. Para ler O nascimento da tragédia de Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2012.
Iremos abordar as principais ideias e estudos do importante filósofo escocês, historiador e empirista David Hume, que nasceu em Edimburgo, no ano de 1711. Hume foi conhecido por aplicar o padrão de que não há ideias inatas e que todo o conhecimento vem da experiência que nos permite saber sobre causa e efeito. Um dos principais objetivos do filósofo é o de encontrar limites do conhecimento humano, que para ele irão se revelar através das experiências, logo, passando a ter lugar central na filosofia do século XVIII.
Hume aponta para um novo cenário de pensamento ao introduzir os métodos experimentais aos fenômenos mentais. Para ele, todo o nosso conhecimento de mundo e o nosso processo de conhecimento se dão pelas percepções ou pelas ideias formadas por elas, baseando parte dos nossos raciocínios em acontecimentos que nossa experiência define como “prováveis”. Assim, ele diz que determinadas conclusões que chegamos sobre o mundo e as coisas não são fundamentadas na razão, mas, fundamentadas numa crença que obtemos pela regularidade com que as nossas experiências se repetem se tornando um hábito, um costume. As percepções são definidas como fenômenos que se dão pela mente através das sensações internas ou externas, garantindo assim a existência do objeto, logo que, ele só é percebido quando existe. Ele as subdivide em duas classes: impressões e ideias.
Fonte: http://zip.net
Segundo Hume (1992) as impressões caracterizam as percepções atuais que temos das coisas, as sensações vividas e fortes advindas de tal experiência. Segundo Hume, as impressões são “nossas percepções mais vividas, sempre que ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou desejamos, ou exercemos nossa vontade”. As ideias são caracterizadas como mais fracas e menos vivas, pois são consideradas cópias das impressões, tendo elas como base e origem. Para o filósofo, essa diferenciação entre impressões e ideias está relacionada entre o sentir e o pensar.
Hume, assim, foi um filósofo que soube explicar os problemas que se referem à natureza e limites do entendimento humano. Suas opiniões exercem influência na atualidade; problemas filosóficos difíceis e de profundidade foram expostos por ele de maneira clara e objetiva, exercendo fascínio, contagiando outros filósofos importantes. O empirismo pregado por Hume (1992) termina por alcançar sua obra, tornando assim uma Filosofia proclamada ceticista; a ciência fundamente-se caprichosamente de certas teorias tais como: o costume, o hábito, a associação de ideias, partindo do pressuposto de que qualquer coisa ou algo seja do jeito que é, por que acreditamos que é assim mesmo; exatamente partindo da ideia do costume e do hábito, das associações das ideias.
Contudo a dimensão ontológica de conceitos como substância e existência, na teoria proposta pela filosofia ceticista de Hume, em análise, ousamos pensar que perderam o sentido evaporando em simples, puras, e meras sensações. Apontando sempre para a razão, como fonte inquietante e agitada, mesmo diante de absurdos e proposições formuladas em qualquer época ou por qualquer Nação.
Fonte: http://zip.net
Para Matos (2007, vol.5, p.5), Hume define uma parte crucial dos processos cognitivos do ser humano em termos da relação deste com o ambiente, no qual, para ele, as crenças causais produzidas pelo hábito possuem um papel na sobrevivência e bem estar de seu portador. Marcondes (1997) sustenta a tese de que por força do hábito, acabamos com regularidade e mesmo por repetição projetando em nossa realidade, algo como se de fato existisse. Portanto, a causalidade seria tão somente uma maneira própria de percebermos o que é real, negando causalidade como parte do que seja naturalmente do mundo.
Era considerado por muitos como cético, porém seu pensamento indica nesse sentido ser descrito como naturalismo, por assim deixar claro que os impulsos humanos naturais, seria apenas uma maneira de descrever o conhecimento e não fundamentá-los; ressaltando ainda que sob essa ótica de Hume, tanto o ceticismo quanto o naturalismo andam de certa forma em compatibilidade, em consonância.
Hume reconheceu que a ciência está repleta de informações sobre o mundo, minunciosamente e detalhadas; para ele, essa mesma ciência está carregada com teorias, contudo nunca produzirá uma “lei da natureza” (HUME, 2011, p. 153). Com isso, o autor apresenta fortes convicções contra o racionalismo, afirmando que é a crença que está no centro de nosso desejo de ter o conhecimento, negando assim a supremacia da razão, e o hábito sim, seria o nosso guia para tais pretensões.
Fonte: http://zip.net
Assim o hábito funciona como um guia, se não existe uma justificativa digamos racional para uma posição indutiva, no caso o hábito poderia ser uma excelente guia, um direcionamento. Nesse ponto, o autor demonstra a sua preocupação ao adquirirmos tal “hábito mental”, sendo que a precaução se torna importante em sua aplicação; considerando-se que ao medirmos a causa e o efeito ocorridos nesses dois eventos, obviamente que a comprovação de sucessivos acontecimentos acorridos outrora, a julgar que são imutáveis e regularmente em sintonia entre os mesmos. Portanto, o hábito como um guia, nada mais é que a previsibilidade de que todo e qualquer acontecimento ocorrido no passado, invariavelmente acontecerá novamente, por outro lado, a causa de um não será necessariamente do outro, ainda que ambos devam estar em contato entre si.
Vejo o sol nascer toda manhã. Adquiro o hábito de esperar o sol nascer toda manhã. Aprimoro isso no julgamento “o sol nasce toda manhã”. O julgamento não pode ser empírico porque não posso observar o nascer futuro do sol. Esse julgamento não pode ser uma verdade de lógica, pois é concebível que o sol não nasça (ainda que altamente improvável). Não tenho fundamento racional para minha crença, mas o hábito me diz que ela é provável. O hábito é o grande guia da vida. (HUME, 2011, p. 151). A filosofia defendida por David Hume assume inquietantes conclusões, posicionando nossas crenças de certa forma niveladas ao pensamento lógico, científico e conseguinte pela própria natureza das coisas do mundo.
Fonte: http://zip.net/bgtHLz
Segundo Matos (2007) o pensamento de Hume se constitui a partir de como a natureza humana se relaciona com outras formas existentes da natureza, com outros humanos em particular, mas no geral com todo o ambiente, não incluindo apenas os seres vivos, mas bem como o próprio meio e suas condições. Essa relação, intermediada pela ultimação que o hábito leva o ser humano a compreender, aparece na forma de uma correspondência, ou harmonia, entre o ambiente e o comportamento do indivíduo que o conhece.
De acordo com Hume, tudo o que conhecemos tem por base as nossas experiências. Por isso, ele afirma que algumas conclusões que chegamos sobre o mundo e as coisas não tem por base a razão, mas o hábito. O hábito no empirismo humano é um princípio que opera sobre a imaginação, que contribui para entender os objetos conforme eles surgem na mente humana para formar ideias vivas e intensas. Portanto, o hábito auxiliará a mente com relação às concepções ao que se pode esperar do futuro. O hábito é uma disposição inata, uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio pode produzir ou evitar. Como é possível observar neste parágrafo:
Este outro princípio que leva a mente a fazer estas inferências causais sem estarem embasadas na observação e na experiência, é o costume (hábito). O hábito é tudo o que vem de uma repetição passada, sem acrescentar novo raciocínio ou conclusão, e nele toda crença humana se origina. Ele é um princípio de associação que não depende do raciocínio, tendo origem em experiências passadas de associação de impressões que tendem a se repetir, é um instinto que a natureza colocou no homem. É devido a este princípio que “a partir da simples sucessão conjugada, nós inferimos o nexo necessário” (COMTE, 2010, p. 220).
O fato de vermos regularmente uma relação entre A e B, por exemplo, faz com que sempre que vemos A, lembremo-nos de B. Além disso, o que é possível conhecer é fundamentado em relações de causa, ou seja, na causalidade; que é a ideia segundo a qual todo efeito deve ter uma causa. Sendo assim, este conhecimento é baseado na crença que adquirimos pela regularidade com que as nossas experiências se repetem, produzindo o hábito. Assim, é possível dizer que para Hume a mente humana mente é um grande acervo de percepções, pois todas as nossas ideias têm origem na impressão sensível; e que não estamos diante de uma conexão necessária na relação entre causa e efeito, mas diante de uma associação baseada na regularidade de eventos que ocorrem na experiência.
Fonte: http://zip.net/bptJrc
O hábito é também visto como um instrumento de sobrevivência, algo que está de acordo com sabedora da natureza e dele derivam os efeitos de causa. Estes efeitos ou inferências causais têm como estrutura instintos advindos da sabedoria da natureza. É necessário agir para sobreviver e ter instintivos para poder agir é fundamental. Sendo assim, evidencia-se que por através do hábito, a natureza impele o homem à ação.
Em sua teoria, Hume ao tratar a indução de maneira filosófica termina por abalar de certa forma, as estruturas do racionalismo, exatamente por ampliar a importância do papel do hábito sobre a crença e sobre a vida de todos nós. Explanando sobre tema controverso, da indução, Hume acaba por influenciar outros pensadores que assim darão continuidade e sustentação da sua teoria: Kant que anunciou um despertar de dogmas, ao ler tais conclusões; e Karl Popper que assume a indução de Hume como uma certeza. Por conseguinte, a crença não poderá ser racionalizada, não será fundamentada, contudo sendo o hábito um bom e grande guia, tornarão prováveis e possíveis às evidências. Para Hume, o homem sábio regula o que acredita com o fundamento, ainda quando improvável.
REFERÊNCIAS:
ARANHA, M. L. de A. e MARTINS, M. H. P. Filosofando – Introdução àFilosofia. São Paulo, Ed. Moderna, 1993.
BERKELEY. G. e HUME, D. Os Pensadores – Tratado sobre os Princípios doConhecimento Humano: Tradução: Antônio Sergio…[et al]. São Paulo, Nova Cultural, 1992.
CABRAL, C. A. Filosofia. São Paulo, Editora Pillares, 2006
MAGEE, B. História da Filosofia. São Paulo, Edições Loyola, 1999.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: Dos pré-socráticos aWittgenstein. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1997.
Qual a relação entre loucura e razão? Elas têm algo em comum ou não? E o desatino por sua vez, trata-se de uma característica da loucura ou pelo contrário, é o caminho para razão? E o delírio e o seu parentesco com o sonho. Como é visto nesse contexto? Qual o novo sentido da loucura no mundo moderno? Existe um novo sentido? É sobre essas questões que o filósofo francês Michel Foucault se desdobrará em sua obra “História da Loucura”, na sua terceira parte. A qual analisaremos nesse trabalho.
Na introdução da terceira parte de “História da Loucura” ele aborda a questão da loucura, do desatino e do delírio. Em seguida abordará a questão do grande medo, depois nos apresentará a nova visão a cerca desse problema, em seguida a questão do bom uso da liberdade, depois falará do nascimento do asilo e por fim do círculo antropológico. Nesse sentido é importante salientar a diferença que o autor fará entre loucura, desatino e delírio. Estes dois últimos é muitas vezes vistos na modernidade como características da loucura. Tanto que quem desatina logo é taxado de louco. Será mesmo?
Fonte: http://zip.net/bstHZV
Segundo Foucault (1978) “é do próprio fundo do desatino que nos podemos interrogar sobre a razão. E está novamente aberta a possibilidade de reconquistar a essência do mundo no torvelinho de um delírio que totaliza, numa ilusão equivalente à verdade, o ser e o não-ser do real”. Logo podemos afirmar que o desatino não é o mesmo que loucura. É preciso, portanto para não cair nesse erro e se libertar das noções patológicas a cerca do deliro do desatino, o que é recorrente na visão positivista da loucura. Foucault, portanto nos apresentará uma nova visão da loucura partindo dos seguintes problemas:
Por que não é possível manter-se na diferença do desatino? Por que será sempre necessário que ele se separe de si mesmo, fascinado no delírio do sensível e encerrado no recuo da loucura? Como foi que ele se tornou a tal ponto privado de linguagem? Qual é, então, esse poder que petrifica os que uma vez encararam-no de frente, e que condena à loucura todos os que tentaram aprovação do Desatino? (Foucault, 1978; 386).
Essas são as questões centrais que o autor abordará e que analisaremos nesse trabalho.
HISTÓRIA DA LOUCURA – TERCEIRA PARTE
O Grande Medo:
O desatino ainda não pode ser totalmente compreendido no século XVIII. Sendo ainda visto não a partir da “interrogação secreta, é apenas o hábito social: as roupas rasgadas, a arrogância em farrapos, a insolência que se suporta e cujos poderes inquietantes são calados através de uma indulgência divertida”. (Foucault, 1978; 387). Dessa deficiência em interpretar o desatino corretamente é que surge o grande medo. Medo que surgi de uma vizinhança estranha que lhes trazem um traço de quase-semelhança e por conseguinte um duplo, onde ao mesmo tempo se reconhece e se anula. O medo se espalha, sobretudo com o aparecimento das casas de internação, sobretudo por que qualquer pessoa está sujeita a ser taxada de louca, já que não há claramente uma distinção se se trata ou não de uma doença, do que é ou não loucura ou desatino.
Fonte: http://zip.net/bytH6j
A falta de conhecimento é um campo aberto para proliferar e espalhar o medo. Foucault (1978) alerta:
Todas essas formas do desatino que haviam ocupado, na geografia do mal, o lugar da lepra e que se havia banido para bem longe das distâncias sociais, tornaram-se agora lepra visível, e exibem suas chagas comidas à promiscuidade dos homens. O desatino está novamente presente, mas agora marcado por um indício imaginário de doença atribuído por seus poderes aterrorizantes.
Percebe-se, portanto que esse grande medo que assola o século XVIII não tem fundamentação na ciência. Não será através da medicina que procuraram resolver as doenças, mas no fantástico, isto é, no não-real. Dessa forma não buscavam saber em que medida o desatino é patológico. Nessa linha Foucault ressalta:
É importante e talvez decisivo para o lugar que a loucura deve ocupar na cultura moderna que o honro medicus não tenha sido convocado para o mundo do internamento como árbitro, para fazer a divisão entre o que era crime e o que era loucura, entre o mal e a doença, mas antes como um guardião, a fim de proteger os outros do perigo confuso que transpirava através dos muros do internamento.
Logo podemos afirmar que a questão da loucura não foi abordada como se deveria, tal como tantas outras questões aonde a repressão vem antes da política. Percebe-se que no século XVIII o que se imperava era um grande medo, de que aquilo contaminasse toda a sociedade e em vez de encarar o problema resolveu-se reprimi-lo, isola-lo, trancafia-lo.
Fonte: http://zip.net/bgtHF2
Segundo Foucault (1978):
Na época clássica, a consciência da loucura e a consciência do desatino não se haviam separado uma da outra. A experiência do desatino que guiara todas as práticas do internamento envolvia a tal ponto a consciência da loucura que a deixava, ou quase, desaparecer, em todo caso arrastava-a por um caminho de regressão onde ela estava prestes a perder o que tinha de mais específico.
É só a partir do final do século XVIII com a publicação de obras de pensadores que tratavam a cerca desse tema que essa realidade foi se modificando e começou-se a perceber que era necessário fazer certas diferenciações – nem todos que eram internados eram de fato loucos.
Fonte: http://zip.net/bwtHcp
A loucura e a liberdade, a loucura mercantil, a loucura, a civilização e a sensibilidade são alguns aspectos que foram analisados. Segundo Foucault (1978) a loucura no século XVII foi descoberta,
na perda da verdade: possibilidade inteiramente negativa na qual a única coisa em questão era essa faculdade de despertar e de atenção no homem, que não é da natureza, mas da liberdade. O fim do século XVIII põe-se a identificar a possibilidade da loucura com a constituição de um meio: a loucura é a natureza perdida, é o sensível desnorteado, o extravio do desejo, o tempo despojado de suas medidas; é a imediatez perdida no infinito das mediações.
No século XIX Foucault ressalta:
a loucura se tornou possível em virtude de tudo aquilo que o meio pôde reprimir, no homem, que dependia da existência anima. A partir de então, a loucura se vê ligada a uma certa forma de devir do homem. Enquanto era sentida como ameaça cósmica ou iminência animal, ela dormitava ao redor do homem ou na noite de seu coração, dotada de uma eterna e imóvel presença. (Foucault, 1978; 409)
A partir dai, logo percebemos o surgimento de uma nova concepção da loucura, que passará a não ser mais a perda absoluta da verdade, mas sim a sua verdade. Essa virada se dá no final do século XVIII.
Do Bom Uso da Liberdade;
Para Foucault a loucura volta a ser devolvida a solidão. Não a solidão que lhe era peculiar até a renascença, mas uma solidão que levava para uma zona neutra e vazia. Assim percebemos portanto que no século XVIII o que desaparece não é a forma desumana como o louco é tratado mas sim a evidência da internação. Foucault (1978) coloca que a era do internamento se encerrou. No entanto permanece apenas uma detenção onde se colocam, lado a lado, criminosos condenados ou possíveis criminosos e os loucos.
Tal fato se deu por que como bem ressalta o autor “Durante muito tempo, o pensamento médico e a prática do internamento haviam permanecido estranhos um ao outro”. Nessa linha apesar dos avanços que ocorreram “se se prescrevia aos pobres válidos a obrigação de trabalhar, se se confiava às famílias o tratamento dos doentes, estava fora de cogitação deixar que os loucos se misturassem à sociedade”. (1978; 466).
Fonte: http://zip.net/bbtHyF
Os loucos são tratados como outros prisioneiros. Nesse contexto percebe-se a farsa do internato. Os interesses do mercado se sobrepõem as questões sociais, logo as saídas apresentada pelo campo da caridade não conseguem responder aos problemas satisfatoriamente. Dai que o internato toma um novo caráter tornando-se,
um espaço de verdade quanto espaço de coação, e só deve ser este para poder ser aquele. Pela primeira vez é formulada essa ideia que tem um peso único na história da psiquiatria até o momento da liberação psicanalítica: a ideia de que a loucura internada encontra nessa coação, nessa vacuidade fechada, nesse “meio”, o elemento privilegiado no qual poderão aflorar as formas essenciais de sua verdade. (1978; 476).
É com o surgimento da psicologia que teremos uma nova abordagem a cerca dessa questão “propondo uma nova descrição das relações do homem com as formas ocultas do desatino”. Foucault ressalta, no entanto que tal psicologia não surgiu a partir de uma preocupação da humanização da justiça, mas sim por uma questão moral – uma espécie de estatização dos costumes. Esta psicologia é, antes de mais nada, a imagem invertida da justiça clássica. (Foucault, 1978; 490).
Segundo Foucault (1978) nesse contexto, a loucura não é mais uma coisa que se teme, ou um tema indefinidamente renovado do ceticismo. Tornou-se objeto. Mas com um estatuto singular. No próprio movimento que a objetiva, ela se torna a primeira das formas objetivastes: é através disso que o homem pode ter uma ascendência objetiva sobre si mesmo. Com isso passa-se a ter uma perspectiva enigmática o que persiste não apenas no século XIX como também na modernidade. A esse respeito Foucault (1978) afirma “para o pensamento do século XIX, para nós ainda, ela tem a condição de uma coisa enigmática: inacessível, de fato e no momento, em sua verdade total, não se duvida, contudo, que ela um dia se abra para um conhecimento que poderá esgotá-la”.
Nascimento do Asilo:
Fonte: http://zip.net/bbtHyL
O retiro é visto como um aparelho fundamental para recuperação dos loucos como também a quebra das correntes. Para isso o positivismo contribuirá ao defender que “todo domínio objetivo sobre a loucura, todo conhecimento, toda verdade formulada sobre ela será a própria razão, a razão recoberta e triunfante, o desenlace da alienação”. Nessa linha o autor ressalta:
as correntes estão se rompendo, o louco é libertado. E, nesse momento, recupera a razão. Ou melhor, não: não é a razão que reaparece em si mesma e por si mesma; são espécies sociais já constituídas que dormitaram durante muito tempo sob a loucura, e que se levantam em bloco, numa conformidade perfeita com aquilo que representam, sem alteração nem caretas. (Foucault, 1978; 521).
Percebemos, portanto que não há triunfo da razão sobre a loucura, pelo contrário, mas sim uma espécie de conformismo, alienação. Logo portanto, o retiro nada mais é do que um espaço de segregação, de dominação da razão sobre a loucura – para tanto a religião contribui de forma significativa. O asilo, no entanto não deixa de gerar medo tal como a internação no século XVIII. Foucault afirma (1978) que vigilância e Julgamento: já se esboça uma nova personagem que será essencial no asilo do século XIX.
Fonte: http://zip.net/bstHZ7
E para Foucault não só a religião cumpre um papel central como também os cientistas positivistas. “À medida que o positivismo se impõe à medicina e à psiquiatria, singularmente essa prática torna-se mais obscura, o poder do psiquiatra mais milagroso e o par médico-doente mergulha ainda mais num mundo estranho”. (1978; 552). Na contramão dessa visão surgi Freud. Para Foucault (1978) Freud desmistificou todas as outras estruturas do asilo: aboliu o silêncio e o olhar, apagou o reconhecimento da loucura por ela mesma no espelho de seu próprio espetáculo, fez com que se calassem as instâncias da condenação.
O Círculo Antropológico
Acerca dessa questão Foucault ressalta que Pinel ou Tuke não deram nenhuma liberdade ao louco, além da que ele já tinha. É por isso que ele afirma que:
E essa liberdade que o internamento, no momento de suprimi-la, apontava com o dedo? Libertando o indivíduo das tarefas infinitas e das consequências, de sua responsabilidade, ele não o coloca, nem de longe, num meio neutralizado, onde tudo seria nivelado na monotonia de um mesmo determinismo. É verdade que muitas vezes se interna para fazer alguém escapar ao julgamento: mas interna-se num mundo onde o que está em jogo é o mal e a punição, a libertinagem e a imoralidade, a penitência e a correção. (1978; 556)
Essa afirmação de Foucault é fundamental para que compreendamos como a questão da loucura é abordada ainda nos dias atuais. Apesar de todos os avanços é inegável que ainda prevalece uma visão moralista a esse respeito. Logo podemos afirmar que há uma enorme carga repressiva nesse processo.
Fonte: http://zip.net/bptJl0
O autor vai destacar portanto a visão antropológica que passa a dominar sobre o tema da liberdade do louco – “A loucura sustenta agora uma linguagem antropológica visando simultaneamente, e num equívoco donde ela retira, para o mundo moderno, seus poderes de inquietação, à verdade do homem e à perda dessa verdade e, por conseguinte, à verdade dessa verdade”. (Foucault, 1978; 560). O que coloca o problema da loucura no campo da linguagem. Mas uma linguagem diferente do que era compreendida no período clássico, apesar de reaproximar delírio e sonho.
O louco se coloca como um objeto de estudo e se transforma portanto em coisa. Percebe-se então no correr do século XIX uma visão dualista a cerca da loucura. Porém vão surgindo ao longo da história diferentes abordagens e perspectivas de como se deve encarar essa questão. Por exemplo, Foucault destaque essas diferentes concepções e os conflitos decorrentes que vai desde o conflito entre uma concepção histórica, sociológica, relativista da loucura; Conflito entre uma teoria espiritualista, que define a loucura como uma alteração da relação do espírito consigo próprio e um esforço materialista para situar a loucura num espaço orgânico diferenciado; Conflito entre a exigência de um juízo médico que mediria a irresponsabilidade do louco pelo grau de determinação dos mecanismos em atuação nele e a apreciação imediata do caráter insensato de seu comportamento; Conflito entre uma concepção humanitária da terapêutica, à maneira de Esquirol, e o uso dos famosos “tratamentos morais” que fazem do internamento o meio maior da submissão e da repressão. (1978; 566 e 567).
Fonte: http://zip.net/bltG8z
Foucault concluirá a terceira parte de sua “História da Loucura” abordando filósofos e artistas famosos que enlouqueceram. Analisando a questão da loucura com a obra desses autores. Nesse sentido ele afirma que “a loucura é ruptura absoluta da obra; ela constitui o momento constitutivo de uma abolição, que fundamenta no tempo a verdade da obra; ela esboça a margem exterior desta, a linha de desabamento, o perfil contra o vazio”. (1978; 583). A obra e a loucura, uma contra a outra, mas uma se alimentando da outra. Dai que não se pode ater a seus traços patológicos, pois elas estão em consonância com o tempo do mundo. Isso, é, são frutos da sociedade. Logo cabe a sociedade o papel de regenerar obra e loucura.
Foucault salienta (1978) “ali onde há obra, não há loucura; e, no entanto a loucura é contemporânea da obra, dado que ela inaugura o tempo de sua verdade. No instante em que, juntas, nascem e se realizam a obra e a loucura, tem-se o começo do tempo em que o mundo se vê determinado por essa obra e responsável por aquilo que existe diante dela”. Cabe, portanto não despreza-la, mas conservar o seu legado, pois tanto uma como a outra não podem ser apagadas da história da humanidade. Isso mostra o triunfo da loucura – e esse triunfo se dá justamente através dessas obras. Dai que para Foucault não é a psicologia que deve se preocupar em avaliar ou julgar a loucura, é o contrário.
Uma análise do conceito foucaultiano no filme “Bicho de Sete Cabeças”
Na terceira parte de seu livro, “A História da Loucura”, Foucault descreve as condições presentes da “loucura” na segunda metade do século XVIII ao início do século XIX. Fazendo um paralelo com o filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), dirigido por Laís Bodanzky, podemos observar algumas ideias em comum.
Fonte: http://zip.net/bdtH9G
Foucault na parte 3 de seu livro descreve a passagem de uma experiência moderna da loucura, objetivando o sujeito louco e interpretando a loucura como uma doença mental, ele não enxerga mais uma ausência do ser, mas uma alteração das faculdades humanas, uma alienação da verdade do homem. Assim como na visão foucaultiana, o filme mostra através de seu protagonista, jovem chamado Neto, um alienado sendo aprisionado, castigado e submetido a mecanismos de remodelação simplesmente por não fazer parte da “normalidade” imposta por aqueles que estão no poder.
O “Bicho de Sete Cabeças” relata um retrato duro e cruel da realidade vivenciada pelos internos de hospitais psiquiátricos. Este filme conta a história de um jovem (Neto) que é internado contra sua vontade pelo pai após ter sido flagrado com cigarro de maconha. Adolescente, vivendo uma fase tão conturbada de sua vida seus pais nem sequer tentam dialogar com o rapaz para entender o que se passa em sua mente e é simplesmente deixado em um manicômio. Internado, Neto é submetido à administração de medicamentos e procedimentos que o reduzem à condição animal sendo tratado de maneira agressiva, impiedosa e desumana. Enfermeiros usavam de violência fazendo uso de camisa de força, quarto “forte” e eletrochoque.
Para justificar a internação, a imposição do padrão de normalidade, assim referida na terceira parte do livro de Foucault “A História da Loucura”, foi utilizada pelos pais. Para seus pais, Neto fugia do padrão da normalidade da sociedade e por isso deveria ser internado. Dessa forma, a família passa a ser responsável pela vigilância do alienado, impedindo que este cometesse desordens. Assim, o louco continua sem liberdade, ele se encontra sob as ordens da família.
No filme, assim como retratado por Foucault na terceira parte de seu livro, a figura do médico é de autoridade competente. Com a psicanálise, o louco agora pode falar, ao contrário do período anterior, mas é tratado como objeto de estudo e não como um ser coberto de razão. O louco continua a ser vigiado e confinado pela razão. Os médicos, serão a autoridade que atua sobre os loucos, ditam o poder da razão em confinar a loucura. O que vemos é a razão exercendo poder sobre a loucura, como se a tudo o que o louco estivesse falando houvesse o julgamento da razão. Superar a autoridade psiquiátrica seria superar a razão.
Pode-se também fazer uma comparação do filme com o período que é abordado no livro em sua terceira parte, em relação ao papel a que se destinavam os hospitais. Na parte 3 do livro, no século XVIII, assim como no filme o hospital se apresenta como um meio de exclusão social, onde se internavam loucos, prostitutas, leprosos, criminosos, entre outros. Lá dentro estas pessoas eram “docilizadas” e disciplinadas, controladas constantemente. Nesse período, o hospital passa a assumir a responsabilidade de uma instituição destinada a promover a cura, diferente da Idade Média que o hospital não era visto como meio de cura. Apesar da coerção física e os maus-tratos contra a loucura estarem mais camuflados e maquiados, o conceito social que trouxe uma relação de dominação à loucura permanece e permeia a nossa sociedade até os dias atuais.
Mesmo após ser liberado da internação Neto ainda sofre sequelas de tudo que viveu ali dentro. Ele não consegue se adaptar ao modelo imposto pela sociedade e pela família, e é novamente encarcerado no hospício. A cada vez que ele é internado ele sofre mais, perde a razão, a liberdade, é degradante. Ele somente consegue sair depois de incendiar a cela em que está, e finalmente chamar a atenção do pai. No final do filme vemos Neto envelhecido pela dor e sofrimento.
Em sua obra, Foucault atentou para as condições de possibilidade para o aparecimento da psicologia, fato cultural que é próprio do mundo ocidental desde o século XIX e produziu o louco do mundo moderno. O filme também revela possibilidades do surgimento da insanidade mental surgida no louco moderno e é representada por Neto. E mesmo que essa “insanidade mental” não tenha partido do interior de Neto o filme aborda todo um envolto psicológico para tratar do assunto. O “Bicho de Sete Cabeças” é um filme que nos faz refletir sobre tudo que Foucault escreveu em sua obra e nos dá subsídio para estudar melhor a psicologia.
Percebemos que em “História da Loucura”, o Filósofo Michel Foucault mostra como a questão da loucura vem sendo abordada ao longo da história. Sendo que nessa terceira parte da sua obra ele falará como esse problema era visto no século XVIII e XIX até chegar à modernidade. A esse respeito é importante ressaltar a confusão que se tinha a cerca da loucura, especialmente no inicio do século XVIII – onde o que predominava era uma visão fantasiosa. O caminho da internação levou ao que ele denominou de o grande medo – que surge justamente da falta de clareza e da perspectiva fantasiosa com que a loucura era vista. Nesse contexto há uma grande confusão entre loucura e desatino, que como vimos que não se trata da mesma coisa. É em fins do século XVIII que surge, portanto uma nova divisão a cerca da loucura.
Fonte: http://zip.net/bttJmw
Segundo Foucault (1978) A loucura encontrou uma pátria que lhe é própria… algo que isola a loucura e começa a torná-la autônoma em relação ao desatino com o qual ela estava confusamente misturada. O que vem com a descoberta de que os internatos de nada serviam, a não ser para repressão e perseguição. Nesse contexto o positivismo acaba influenciando fortemente a cerca de uma nova abordagem a cerca da loucura. Já com a psicologia vemos um retorno à concepção clássica, preocupando-se, ao contrario do positivismo, com questões mais humanistas, não a cerca da justiça, mas da moral – assim investe a concepção clássica. Nesse contexto o autor falará a cerca do surgimento do asilo no século XIX, que surge em contraposição a internação, mas o que se percebe é que os asilos apesar de não haver mais correntes, não dá a liberdade prometida.
Por fim vimos a questão do círculo antropológico, a liberdade do louco, a tentativa de resumir a loucura a questão da linguagem, e as diversas concepções conflitantes que foram surgindo no final do século XVIII e durante o século XIX. Vimos a grande contribuição de Freud desmistificando várias questões a cerca da loucura e por fim vimos à relação entre loucura e a obra de diversos autores. E é nessa relação que percebemos o triunfo da loucura, dai que não adianta a psicologia buscar avalia-la ou justifica-la. As obras estão aí servindo justamente para que a sociedade busque redimir a loucura. Muito esforço foi feito nesse sentido, mas nenhum conseguiu dá uma resposta pronta e acabada. Pelo que vimos será mesmo necessários essa resposta? Uma coisa é fato, não confundindo loucura com desatino, alienação entre outros que a compreenderemos. É claro, se é que ela possa ser compreendida.
REFERÊNCIA:
FOUCAULT, Michael. História da Loucura. Tradução – José Teixeira Coelho Netto. Editora Perspectiva S.A. – São Paulo – Brasil; 1978. Págs. 376 a 584.
A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa.
Michel Foucault
O modo de o homem lidar com a loucura, passou por várias transformações ao longo dos séculos, e a forma como a mesma foi vista pelos olhos da razão também. Foucault descreve a loucura, em sua narrativa desde o Renascimento até a sua consolidação na sociedade. Tendo início com a disseminação da lepra, através das cruzadas. Estas, iam até o Oriente, onde era o foco dominante de contaminação da enfermidade, sendo trazida para a Europa, onde se espalhou rapidamente, atingindo numerosas pessoas.
A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris, chegou a haver 19.000 delas em toda a cristandade. Em todo caso, por volta de 1266, à época em que Luís VIII estabelece, para a França, o regulamento dos leprosários, mais de 2.000 deles encontram-se recenseados. Apenas na Diocese de Paris chegou a haver 43: entre eles Bourg-la-Reine, Corbeil, Saint-Valère e o sinistro Champ-Pourri; e também Charenton (FOUCAULT, 1972, p. 07).
O desaparecimento da lepra não foi efeito de práticas médicas, mas um resultado natural, da consequência do fim das cruzadas, e o rompimento com os focos orientais de infecção. Com a retirada da lepra, os lugares lúgubres que não eram usados para tratá-la, mas sim para fixá-la a uma distância sagrada, se tornam sem utilidade.
A Nau dos Loucos de Hieronymus Bosch. Fonte: http://zip.net/bgtHr3
Existindo para permanecer ainda, muito mais que a lepra, fazendo com o personagem do leproso excluído, fosse esquecido, à margem, retirados do mundo e da visibilidade da comunidade da igreja.
Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão — essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas reintegração espiritual (FOUCAULT, 1972, p.10).
De acordo com Foucault, a lepra foi substituída inicialmente pelas doenças venéreas. De repente, ao final do século XV, elas sucedem a lepra como por direito de herança. Porém as mesmas não terão tamanha importância, como a lepra e a loucura tiveram, sendo depois incorporadas à outras doenças mais comuns. No entanto, as pessoas acometidas pelas doenças venéreas, precisavam ser internadas para ter tratamento, o que os levaram à exclusão, junto aos leprosos e loucos. Eles foram considerados por Foucault, os excluídos da sociedade. Que precisaram desaparecer urgentemente da visibilidade das pessoas. Carregando marcas da exclusão e discriminação.
Quadro de Bosch. Fonte: http://zip.net/bdtHXM
Foucault (1972, p.12) diz que, de fato, a verdadeira herança da lepra tem que ser buscada em um fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Porém, será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que, no entanto, lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.
O que se tinha, nesta fase, é a loucura, imersa nos jogos de semelhanças entre micro e o macrocosmo da Renascença, como espelho da experiência trágica da pequenez do homem diante da infinitude do universo, em sua proximidade constante com a morte. É o que ilustram os quadros de Bosch, de Brueghel, de Thierry Bouts e Dûrer ao mostrarem, não só a loucura, mas a própria realidade do mundo, absorvida no universo de imagens fantásticas, atravessado pela ameaça da fome, da tentação, da fatalidade e das guerras (SILVEIRA & SIMANKE, 2008 p. 27).
A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).
A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).
Segundo Foucault (1972, p.88), “a Igreja católica, bem como para os países protestantes, a internação representa, sob a forma de um modelo autoritário, o mito da felicidade social: uma polícia cuja ordem seria inteiramente transparente aos princípios da religião, e uma religião cujas exigências seriam satisfeitas, sem restrições, nas regras da polícia e nas coações com que se pode armar”.
Fonte: http://zip.net/brtHsL
Ainda de acordo com Foucault (1972, p.89),
A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido. Nasceu uma sensibilidade, que traçou uma linha, determinou um limiar, e que procede a uma escolha, a fim de banir. O espaço concreto da sociedade clássica reserva uma região de neutralidade, uma página em branco onde a vida real da cidade se vê em suspenso: nela, a ordem não mais enfrenta livremente a desordem, a razão não mais tenta abrir por si só seu caminho por entre tudo aquilo que pode evitá-la ou que tenta recusá-la. Ela impera em estado puro num triunfo que lhe é antecipadamente preparado sobre um desatino desenfreado. Com isso a loucura é arrancada a essa liberdade imaginária que a fazia florescer ainda nos céus da Renascença. Não há muito tempo, ela se debatia em plena luz do dia: é o Rei Lear, era Dom Quixote. Mas em menos de meio século ela se viu reclusa e, na fortaleza do internamento, ligada à Razão, às regras da moral e a suas noites monótonas.
“Do outro lado desses muros do internamento não se encontram apenas a pobreza e a loucura, mas rostos, bem mais variados e silhuetas cuja estatura comum nem sempre é fácil de reconhecer” (FOUCAULT, 1972, p. 90). Com isso, é evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude.
Daí a supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, há apenas um passo. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos “a-sociais”; a era clássica teria neutralizado, com segura eficácia — tanto mais segura quanto cega — aqueles que, não sem hesitação, nem perigo, distribuímos entre as prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas. (FOUCAULT, 1972, p.90).
Assim, o desatino aparece, com todas as significações que o Classicismo nele elaborou, como um campo de experiência, demasiado secreto sem dúvida para ter sido alguma vez formulado em termos claros, demasiado combatido também, da Renascença à era moderna, para receber o direito à expressão, mas bastante importante para ter sustentado não apenas uma instituição como a do internamento, não apenas as concepções e as práticas referentes à loucura, mas todo um reajuste do mundo ético. É a partir dele que se torna necessário compreender a personagem do louco tal como ele surge na época clássica e a maneira pela qual se constitui aquilo que o século XIX acreditará reconhecer, entre as verdades imemoriais de seu positivismo, como a alienação mental.
Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte:http://zip.net/bgtHr5
Nesse campo, a loucura, da qual a Renascença tivera experiências tão diversas a ponto de ter sido simultaneamente não-sabedoria, desordem do mundo, ameaça escatológica e doença, nesse campo a loucura encontra seu equilíbrio e prepara essa unidade que se oferecerá, talvez de modo ilusório, ao conhecimento positivo; a loucura encontrará desse modo, mas através de uma interpretação moral, esse distanciamento que autoriza o saber objetivo, essa culpabilidade que explica a queda na natureza, essa condenação moral que designa o determinismo do coração, de seus desejos e paixões.
Anexando ao domínio do desatino, ao lado da loucura, as proibições sexuais, os interditos religiosos, as liberdades do pensamento e do coração, o Classicismo formava uma experiência moral do desatino que serve, no fundo, de 122 solo para nosso conhecimento “científico” da doença mental. Através desse distanciamento, através dessa dessacralização, a loucura atinge uma aparência de neutralidade já comprometida, dado que só é alcançada nos propósitos iniciais de uma condenação. (FOUCAULT, 1972, p.121).
Nosso saber positivo nos deixa incapazes para decidir se se trata de vítimas ou doentes, de criminosos ou loucos: estavam todos ligados a um mesmo modo de existência, que podia levar eventualmente tanto à doença quanto ao crime, mas que não lhes pertencia desde o início. É desse tipo de existência que dependiam os libertinos, devassos, dissipadores, blasfemadores, loucos. Em todos eles, havia apenas uma certa maneira, bastante pessoal e variada em cada indivíduo, de modelar uma experiência comum: a que consiste em experimentar o desatino. Nós, os modernos, começamos a nos dar conta de que, sob a loucura, sob a neurose, sob o crime, sob as inadaptações sociais, corre uma espécie de experiência comum da angústia. Talvez, para o mundo clássico, também houvesse uma economia do mal, uma experiência geral do desatino. E, nesse caso, ela é que serviria de horizonte para aquilo que foi a loucura durante os cento e cinquenta anos que separam a grande Internação da “liberação” de Pinel e Tuke (FOUCAULT, 1972, p.122).
“Em todo caso, é dessa liberação que data o momento em que o homem europeu deixa de experimentar e compreender o que é o desatino — que é também a época em que ele não mais apreende a evidência das leis do internamento.” (FOUCAULT, 1972, p.123).
Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtw
Foucault vê que seria falso considerar que o internamento dos insanos nos séculos XVII e XVIII seja uma medida de polícia que não se coloca problemas, ou que pelo menos manifesta uma insensibilidade uniforme ao caráter patológico da alienação. Mesmo na prática monótona do internamento, a loucura tem uma função variada. Ela já periclita no interior desse mundo do desatino que a envolve em seus muros e a obseda com sua universalidade. Pois se é fato que, em certos hospitais, os loucos têm lugar reservado, o que lhes assegura uma condição quase médica, a maior parte deles reside em casas de internamento, nelas levando praticamente uma existência de correcionais.
De fato, essa ausência de cuidados médicos, exceção feita à visita prescrita, põe o Hospital Geral quase na mesma situação de uma prisão. As regras nele impostas são em suma aquelas que a ordenação criminal de 1670 prescreve para a boa ordem de todas as casas de detenção; se há um médico no Hospital Geral, não é porque se tem consciência de que aí são internados doentes, é porque se teme a doença naqueles que já estão internados. Teme-se a famosa “febre das prisões”. Na Inglaterra, gostavam de citar o caso de prisioneiros que tinham contaminado seus juízes durante as sessões do tribunal; lembrava-se que os internos, após a libertação, haviam transmitido a suas famílias o mal contraído nas prisões (FOUCAULT, 1972, p.128).
O internamento não é um primeiro esforço na direção da hospitalização da loucura, sob seus variados aspectos mórbidos. Constitui antes uma homologação dos alienados aos outros correcionais, como demonstram essas estranhas fórmulas jurídicas que não entregam os insanos aos cuidados do hospital, mas os condenam a uma temporada neles (FOUCAULT, 1972, p. 129).
Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtx
O essencial, portanto, é saber se a loucura é real e qual o seu grau: quanto mais profunda for, mais a vontade do indivíduo será considerada inocente. Pelo contrário, no mundo do internamento pouco importa saber se a razão está de fato atingida; caso esteja, e seu uso está com isso impedido, é sobretudo por uma flexão da vontade que não pode ser inteiramente inocente, pois não pertence à esfera das consequências.
O fato de pôr-se em causa a vontade na experiência da loucura tal como é denunciada pelo internamento não está evidentemente explícito nos textos conservados, mas transparece através das motivações e dos modos de internamento. Aquilo de que se trata é todo um obscuro relacionamento entre a loucura e o mal, relacionamento que não mais é considerado, como na época da Renascença, como relacionado com todos os poderes ocultos do mundo, mas com esse poder individual do homem que é sua vontade. Assim, a loucura lança raízes no mundo moral (FOUCAULT, 1972, p.156).
A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa. Por conseguinte, a passagem de uma para outra será fácil, e admite-se facilmente que alguém se torna louco pelo simples fato de ter desejado ser um louco (FOUCAULT, 1972, p. 156).
Nisso consiste, sem dúvida, o paradoxo maior da experiência clássica da loucura; ela é retomada e envolvida na experiência moral de um desatino que o século XVII proscreveu através do internamento; mas ela está ligada também à experiência de um desatino animal que forma o limite absoluto da razão encarnada e o escândalo da condição humana.
Colocada sob o signo de todos os desatinos menores, a loucura se vê ligada a uma experiência ética e a uma valorização moral da razão; mas, ligada ao mundo animal e a seu desatino maior, ela toca em sua inocência monstruosa. Experiência contraditória, se se quiser, e bastante distanciada das definições jurídicas da loucura, que procuram estabelecer a divisão entre a responsabilidade e o determinismo, entre a falta e a inocência. Distanciada também dessas análises médicas que, na mesma época, prosseguem em sua análise da loucura como um fenômeno da natureza.
Fonte: http://zip.net/bntHt9
No entanto, na prática e na consciência concreta do Classicismo existe esta experiência singular da loucura, percorrendo num átimo toda a distância do desatino; baseada numa escolha ética e, ao mesmo tempo, inclinada para o furor animal. Dessa ambiguidade o positivismo não conseguirá sair, ainda que de fato ele a tenha simplificado: retomou o tema da loucura animal e sua inocência numa teoria da alienação mental como mecanismo patológico da natureza (FOUCAULT, 1972, p.180).
E mantendo o louco nessa situação de internamento que a era clássica havia inventado, ele o manterá, de modo obscuro e sem o admitir, no aparelho da coação moral e do desatino dominado. 181 A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conhecimentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica, mas contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.180).
A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conheci-. mentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica mas, contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.181).
Para Silveira (2008, p.34), a loucura é fragmentação da articulação corpo-ama, afetada pelas paixões descontroladas, no desequilíbrio das causalidades mecânicas, na contrução da conduta irracional e de um campo de irrealidade.
Fonte: http://zip.net/bxtJkL
Segundo López (2006):
A loucura num sentido trágico não pode pertencer à razão, ao discurso. O ato de nomeá-la suporia tê-la posto no espaço e no tempo da razão e da história. A loucura, num sentido trágico, é portanto, um fundo de sem-sentido a partir do qual se estabelece qualquer sentido, mas que sempre permanece inacessível a este e por isso o ameaça radicalmente. A obra da história, da razão, da linguagem só é possível sobre um fundo caótico. Trata-se de um espaço de sem-sentido que percorre a história por baixo, ameaçando-a, e que se renova a cada instante, com cada palavra e com cada novo gesto da razão, mas que é ao mesmo tempo o segredo de seu devir.
A loucura é para Foucault, “barulho surdo debaixo da história, o murmuro obstinado de uma linguagem que falaria sozinha –sem sujeito falante e sem interlocutor” (FOCAULT, 1961/1999a: 144). A loucura é linguagem, mas não discurso. É o ponto cego da linguagem, é isso que sempre escapa à linguagem, mas que faz parte de seu próprio devir, “raiz calcinada do sentido” dirá Foucault (1961/1999ª: 144). Não se trata então de fazer a história de um conhecimento, mas a arqueologia de uma experiência, nada menos de uma experiência que conduz até o fogo primordial onde se forja o sentido. Não estamos frente à história de um saber, mas à arqueologia de uma experiência do pensar (LÓPEZ, 2006).
REFERÊNCIAS:
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Éditions Gallimard, 1972.
LÓPEZ, Maximiliano Valerio: “A ‘FILOSOFIA COM CRIANÇAS’ DESDE UMA PERSPECTIVA TRÁGICA”. (Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Estado de Rio de Janeiro. Orientador: Walter Omar Kohan). Rio de Janeiro, 2006.
SILVEIRA, Fernando de Almeida. A Psicologia em História da Loucura de Michel Foucault. – Disponível em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/118/283> Acesso em 13 de março de 2017.
Compartilhe este conteúdo:
Jean-Jacques Rousseau: a razão ameaçando a inocência e a liberdade
Jean-Jacques Rousseau foi um homem a frente de seu tempo, precursor das ideias do Romantismo em um tempo Iluminista, sendo até mesmo considerado um opositor ao iluminismo. As ideias do seu período eram fundamentadas na razão, e ele pregou a emoção e o natural como fundamental, transformando esta racionalização na grande vilã da vida humana. Rousseau acreditava que a natureza humana era boa e gentil, o que a corrompeu foi a sociedade civil, que iniciou o sistema de propriedade, e com ele vieram leis que afetam a todos com a finalidade de beneficiar apenas alguns poucos, gerando o maior problema dos homens, a desigualdade, baseada em um preceito de injustiça.
Em uma declaração no início de sua mais importante obra, o autor afirma em desafio a sociedade que “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se acorrentado”, segundo ele fato demostrado desde Adão e Eva quando adquiriram o conhecimento, passando assim a uma vida infeliz e egoísta, que os levou a uma escravização, e até hoje isto é passado de geração em geração através da educação, das ciências e das artes. As duas principais obras lançados pelo filosofo suíço em 1762 (O Contrato Social e Emilio), não só apresentam a sua visão dos problemas da humanidade, mas também a possível solução para eles, que seria uma mudança radical no sistema de governo, com fundamentos da democracia, na qual todos os cidadãos interferem na formulação das leis.
Anos após a morte de Rousseau sua filosofia de livramento de correntes, por assim dizer, serviu de apoio para a Nova República Francesa, que tinha como lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, o eternizando na história. Jean Jacques Rousseau (1712-1778) vê o homem como um ser naturalmente bom e essa bondade foi corrompida pela sociedade. Acreditava ainda que o estado da humanidade é inocente, feliz e independente e o homem nasce livre. E que as pessoas são dotadas de virtudes inatas como compaixão e empatia, porém quando a razão diferencia o homem da natureza, as pessoas se afastam de suas virtudes (BURNHAM, BUCKINGHAM, 2011).
Ferrari (s/d) acrescenta que, para Rousseau, uma das falhas da civilização em atingir o bem comum, é a desigualdade, que pode ser dividida em dois tipos: a que se deve às características individuais de cada ser humano e aquela causada por circunstâncias sociais. Para ele:
A imposição da sociedade civil sobre o estado de natureza resulta de um afastamento da virtude em direção ao vicio – e da felicidade idílica em direção a miséria. A sociedade impõe leis injustas, feitas para proteger a propriedade e infligidas aos pobres pelos ricos. O deslocamento de um estado natural para um estado civilizado ocasionaria deslocamento da Inocência e da liberdade para a injustiça e a escravização. A humanidade é corrompida pela humanidade e embora o homem nasça livre, as leis impostas pela sociedade condenam-no a uma vida “acorrentada” (BURNHAM, BUCKINGHAM, 2011, p.158).
Ferrari (s/d) corrobora com Burnham e Buckingham e acrescenta que para Rousseau, o homem, ao renunciar à liberdade, abre mão do que o define como humano e para recuperar sua liberdade perdida através das imposições da sociedade, o filósofo sugere um aprofundamento interior rumo ao autoconhecimento, que se dá por meio da emoção, com uma entrega sensorial à natureza.
Criador do Mito do Bom Selvagem, de forma geral, Rousseau defendia a prioridade da emoção e afirmava que o corpo social havia afastado o ser humano da felicidade; pregava a experiência direta, a simplicidade e a intuição em lugar da erudição; rejeitava o racionalismo ateu e recomendava a religião natural, pela qual cada um deve buscar Deus em si mesmo e na natureza (FERRARI, s/d). Suas principais obras são: O contrato social e Emílio (1762). Em o contrato social explicou sua concepção de sociedade civil alternativa, governada pelos cidadãos, que participariam da formulação das leis, ou seja, em sua visão os cidadãos operariam como uma unidade prescrevendo leis de acordo com a vontade geral.
Fonte: http://carinzoca.tumblr.com/page/2
Para Rousseau, a realização do eu comum e da vontade geral implicam um contrato social, uma livre associação de pessoas, que resolvem formar certo tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência. Esse contrato social seria a única base legítima para uma comunidade que deseja viver de acordo com os pressupostos da liberdade humana (CHAUÍ, 1997). As leis proviriam de todos e se aplicariam a todos a partir de um princípio de igualdade, pois ele acreditava que a participação no processo legislativo levaria a uma eliminação da desigualdade e da injustiça e promoveria um sentimento de participação (BURNHAM, BUCKINGHAM, 2011).
De acordo com Chauí (1997), para Rousseau, a lei, vista como ato da vontade geral e expressão da soberania, é indispensável, pois determina o destino do Estado e dessa forma, os legisladores têm um papel importante no Contrato Social, é deles que o cidadão “recebe, de certa forma, sua vida e seu ser” e transforma-se superando a existência independente, que usufrui no estado natural, e para uma vida moral como um ser comunitário. Na obra Emílio, ou da educação, segundo Ferrari (s/d), Rousseau explicou que a educação era responsável por corromper o estado de natureza e propagar os males da sociedade moderna.
Não há escola em Emílio, mas a descrição, em forma vaga de romance, dos primeiros anos de vida de um personagem fictício, filho de um homem rico, entregue a um preceptor para que obtenha uma educação ideal. O jovem Emílio é educado no convívio com a natureza, resguardado ao máximo das coerções sociais. O objetivo de Rousseau, revolucionário para seu tempo, é não só planejar uma educação com vistas à formação futura, na idade adulta, mas também com a intenção de propiciar felicidade à criança enquanto ela ainda é criança (FERRARI, S/D, p. 02).
Para Rousseau, a criança devia ser educada em liberdade e viver cada fase da infância na totalidade de seus sentidos. Ele também preconizava que a educação tinha que se preocupar com a formação moral e política (FERRARI, s/d).
De acordo com BURNHAM e BUCKINGHAM (2011) Rousseau está ligado à Revolução Francesa, pois sua ideia de um contrato social no qual a vontade do corpo controlaria o processo legislativo ofereceu aos revolucionários uma alternativa viável ao sistema vigente. Além disso, sua influencia também se estendeu a filosofia, tendo maior alcance no século XIX. Corrobora com essa afirmação Ferrari (s/d) ao afirmar que não foi por acaso que Rousseau publicou simultaneamente, em 1762, suas duas principais obras, Do Contrato Social em que expõe sua concepção de ordem política e Emílio, tratado sobre educação, no qual prescreve a formação de um jovem do nascimento aos 25 anos.
Em todas as suas obras, os processos educativos e as relações sociais são vistos a partir do ponto de vista da liberdade, que ele vê como direito e dever. Ele afirmou a liberdade como direito inalienável e exigência para a vida, principalmente, espiritual do homem. Assim, Rousseau se distancia do individualismo, pois propõe uma coletividade e o valor do individuo enquanto indivíduo. Ele postula a consciência da dignidade do homem em geral e valoriza a personalidade humana, que se traduz na universalidade do amor de si. O amor de si constitui a interioridade, é a ponte que liga o eu individual ao eu comum, a vontade particular à vontade geral. Dessa forma, todos os cidadãos poderão chegar a identificar-se com o Todo maior, sentir-se membros da pátria e amá-la (CHAUÍ, 1997).
Nota-se que em suas obras prevalece a ideia de que a razão ameaça a inocência, a liberdade e a felicidade humana e que para ele, liberdade não significa a realização de seus impulsos e desejos, mas uma dependência das coisas. Assim, em vista dos aspectos observados conclui-se que se Rousseau acreditava que o homem nasce livre, mas através das exigências coletivas, sua é bondade degradada. No entanto, para ele é possível readquirir essa autonomia através de uma investigação interior em direção ao conhecimento de si próprio, que acontece por intermédio da emoção, com uma rendição sensível à natureza.
REFERÊNCIAS:
BURNHAM, Douglas; BUCKINGHAM, Will.O Livro Da filosofia.Globo Editora, 2011.
CHAUÍ, Marilene. ROUSSEAU:Vida e Obra. Círculo do Livro LTDA, 1997.
FERRARI, Márcio.Jean-Jacques Rousseau, o filósofo da liberdade como valor supremo. Disponível em< http://novaescola.org.br/formacao/filosofo-liberdade-como-valor-supremo-423134.shtml>. Acesso em: 24 ago 2016.