Foi em um dia bastante comum que um jovem estava conversando com seus amigos, já era noite e então um deles se levanta e pede ajuda para encontrar alguém legal no Tinder. Um dos amigos se oferece para ajudar e os dois começam a busca.
Foram vários minutos de alguns cliques, arrastavam o dedo e decidiam se davam match ou não. Durante a escolha surgiam risadas, críticas e sugestões para decidir se tal pessoa era legal e se valia a pena conhecer.
Depois de algum tempo eles pararam e um deles que estava apenas observando, perguntou o que tem de tão divertido em procurar pessoas por atacado. O outro riu e disse que achava normal, e que nem sempre as pessoas que procurava no Tinder era pra ter um encontro, algumas vezes era apenas para sair e quem sabe, iniciar uma amizade. Foi então que este amigo, mesmo achando estranho, tentou entender como as pessoas estão cada vez mais adeptas às tecnologias e aproveitando a facilidade de aproximação para então desenvolver novos laços, mesmo que correndo riscos.
No mundo moderno, os relacionamentos virtuais emergiram como uma realidade complexa e multifacetada. Por meio das telas brilhantes dos dispositivos eletrônicos, uma nova forma de conexão humana foi estabelecida, transcendendo fronteiras geográficas e culturais. No entanto, junto com essa nova era de interação digital, surgem desafios e riscos que devem ser enfrentados e compreendidos.
Os relacionamentos virtuais têm o poder de unir pessoas que, de outra forma, talvez nunca se encontrassem. Com apenas alguns cliques, é possível estabelecer amizades, parcerias profissionais e até relacionamentos românticos. A velocidade e facilidade com que essas conexões são feitas são, sem dúvida, vantagens marcantes do mundo virtual.
Neste sentido, as redes sociais têm desempenhado um papel significativo na forma como as pessoas se conectam e se relacionam nos dias de hoje. Pesquisas sobre relacionamentos afetivos que se iniciam em redes sociais exploram como esses encontros online afetam o desenvolvimento e a qualidade dos relacionamentos amorosos.
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De acordo com uma pesquisa desenvolvida pelo Pew Research Center (SMITH, 2016), descobriu-se que 59% dos entrevistados acreditam que aplicativos e sites de namoro são uma boa maneira de conhecer novas pessoas. Além disso, a pesquisa também indicou que os relacionamentos que começam online são tão bons quanto aqueles que se iniciam pessoalmente.
Através das redes sociais, fóruns e aplicativos de mensagens, os relacionamentos virtuais se desenvolvem em um ambiente onde as barreiras físicas não são um obstáculo. Eles proporcionam uma plataforma para expressão livre de ideias e sentimentos, permitindo que as pessoas compartilhem suas experiências e opiniões de maneira aberta e inclusiva.
No entanto, é importante reconhecer que os relacionamentos virtuais também apresentam desafios e limitações significativas. Embora as palavras digitadas possam transmitir emoções e ideias, a comunicação online carece da riqueza da comunicação não verbal. A ausência de expressões faciais, gestos e tom de voz muitas vezes pode levar a mal-entendidos e interpretações equivocadas (VASCONCELOS, 2014)
Outro aspecto crucial dos relacionamentos virtuais é a questão da autenticidade. Nas plataformas digitais, é possível criar personas e identidades falsas, o que leva a uma falta de confiança e transparência. Atrás de uma tela, é mais fácil ocultar a verdadeira identidade, levando a relacionamentos baseados em falsidades e desonestidade.
Além disso, a exposição a comportamentos tóxicos e abusivos é um risco real nos relacionamentos virtuais. O anonimato proporcionado pela internet pode incentivar pessoas a agir de forma agressiva ou prejudicial, sem enfrentar as consequências de suas ações. É fundamental estar ciente desses riscos e estabelecer limites saudáveis para proteger a integridade emocional e psicológica (MORAES; BRANDÃO, 2018)
É importante enfatizar que os relacionamentos virtuais não devem substituir os relacionamentos offline. Eles podem complementar e enriquecer nossas vidas, mas a interação cara a cara continua sendo uma necessidade humana básica. O toque, o contato visual e a conexão física são elementos essenciais para o desenvolvimento saudável das relações (VASCONCELOS, 2014).
As redes sociais oferecem diversas formas de conhecer pessoas, como grupos temáticos, comunidades online, aplicativos de namoro e até mesmo interações casuais em comentários ou mensagens diretas. Essa variedade permite que as pessoas encontrem indivíduos com interesses e valores semelhantes. Neste sentido, é um potencial mecanismo de pertencimento social e ampliação das redes afetivas. Conclui-se que conhecer pessoas no mundo virtual e estabelecer relacionamentos a partir deste contexto não se caracteriza como uma forma melhor ou pior, segura ou perigosa; é, simplesmente, mais uma forma de se conectar com outras pessoas.
REFERÊNCIAS
MORAES, J. G.; BRANDÃO, W. L. Relacionamentos Virtuais: uma Análise Acerca dos Padrões Comportamentais dos “Catfish”. Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas, 19(3), 300-308, 2018.
Há alguns anos venho pensando sobre a importância da intimidade nos relacionamentos interpessoais. Percebo um esfriamento quanto ao respeito, quanto aos vínculos de afeto e de confiança, quanto à bondade no falar, quanto à compaixão pelo outro. A procura exagerada por satisfação, segurança, realização, sucesso, prazer imediato e evitação do sofrimento tem colocado em risco a convivência e a intimidade emocional. Sendo assim, brechas para um estilo de vida narcisista podem ser abertas e, inadvertidamente, se estabelecerem.
O comportamento de deletar tudo e todos que desagradam retira da pessoa a possibilidade de treinar para coexistir, lembrando que sou o que sou a partir do outro.
O que levaria uma pessoa a querer desenvolver a intimidade emocional em seus relacionamentos nos dias de hoje? E será mesmo que o comportamento é diferente de gerações anteriores?
Na atual Sociedade da Transparência, chamada assim pelo filósofo Byung-Chul Han, as ações são operacionais e uniformizadas, todos fazem as mesmas coisas e a comunicação veloz é rasa, o igual responde ao igual. O momento é de superficialidade, de desapego ao outro, de compromissos mantidos até que desagradem a alguém, de distância mantida confortavelmente para que a alteridade não se faça presente.
Recentemente, um documentário apresentado por três repórteres abordou o tema fake news. Viajaram por vários lugares do mundo para entrevistar quem produz fake news. Conversaram com um jovem da Macedônia e chamou a minha atenção quando afirmou: as mentiras são ditas porque tem quem pague por elas; as pessoas querem acreditar no que falamos. Achei que suas afirmações faziam sentido. Os critérios para discernir a verdade encontram-se confusos na Sociedade da Transparência
Com a confiança abalada, pode parecer às pessoas ser retrógrado falar sobre intimidade emocional uma vez que o novo jeito de relacionar-se sugere conforto. Há liberdade para expressar as mais variadas formas de intimidade, inclusive a intimidade sexual que no século passado isso era tabu.
Se as pessoas vivem no mesmo ambiente, passam horas juntas, mas não desenvolvem um relacionamento de intimidade emocional, tudo fica puramente funcional. Tarefas e atividades são executadas para alcançar objetivos; já o relacionamento afetivo pode adoecer. O assunto é instigante, mas quero manter o foco na intimidade emocional de forma mais abrangente.
A matriz de identidade emocional se desenvolve a partir das relações interpessoais, diz o psiquiatra e psicodramatista Moreno, autor da teoria sóciopsicodramática. O primeiro relacionamento se dá, geralmente, com os pais, cuidadores e com a família. É bom lembrar que a convivência pode gerar intimidade, mas conviver não é sinônimo de ter intimidade. O relacionamento de intimidade emocional tem a comunicação como sua principal ferramenta: conversar, dialogar, compartilhar sentimentos e sonhos, fazem parte da relação, assim como a empatia, a confiança, o respeito. Atualmente, o que mais atrai as pessoas é a convivência virtual nas redes sociais. Muitas horas são passadas diante do celular, tablete, computador onde assuntos são alinhavados com opiniões, encontros e confrontos. A exposição é fato e uma vez na nuvem, o privado pode tornar-se público a qualquer momento por descuido ou por algum hacker à espreita.
As gerações Y e Z nasceram a partir dos anos 80, início da era digital. Talvez, essas gerações pensem que a intimidade emocional não faz parte de suas necessidades. Afinal, o número de amigos, seguidores ou de visualizações muitas vezes impressiona. A intimidade digital oferece companhia online 24 horas. Sendo assim, pode-se deduzir que a solidão e a falta de companhia são para quem não tem um smartphone ao alcance. Algo certamente inconcebível para os nascidos na era digital. É possível viver sem um celular, sem estar vinculado a uma rede social? As redes sociais podem contribuir para a melhora da autoestima e confiança em si mesmos? Podemos dizer, sim! Desde que a comunicação entre as pessoas ultrapasse a realidade virtual e passe para o plano de encontro olhos-nos-olhos. Senão, os relacionamentos digitais correrão o risco de desenvolver relações de dependência, de estar continuamente online, imerso em outra realidade onde o outro é construído apenas a partir da subjetividade e da possível ação da família ina, isto é, dopamina, endorfina, serotonina e ocitocina, produzidos no organismo, segundo alguns estudos, por causa da crescente quantidade de likes, por exemplo.
São diversos os atrativos para que as pessoas se mantenham conectadas. Atrás da aparente distração inofensiva e encantadora, ofertas de gratuidade, empresas, usuários e plataformas, vendem dados, apresentam anúncios, propagam ideias específicas e oferecem promoções de serviços que serão cobrados. (Revista SUPERINTERESSANTE- Black Mirror; 2018). Seria opressora essa interferência na vida de redes sociais?
É grande a contribuição da neurociência para a compreensão do que ocorre no organismo humano ao vivenciar determinadas situações. São identificados neurotransmissores e hormônios produzidos. As emoções podem ser alteradas por excesso ou falta de determinado elemento bioquímico. Por exemplo, na depressão ou nos quadros distímicos, a serotonina e a noradrenalina estão num nível abaixo do satisfatório. A pessoa pode apresentar um desinteresse pelo outro e optar por um distanciamento prolongado; pode evitar pessoas e situações prazerosas por não se sentir atraída; pode passar horas e horas ligada nas redes sociais e ter a impressão de estar conectada ao outro. Mas, será mesmo?
Às vezes, sim. Alguns aplicativos são usados como ferramentas virtuais para prestar socorro e apoio quando as pessoas apresentam ansiedade e depressão. O chatbot Woebot, criado pela psicóloga Alison Darcy da Universidade de Stanford, oferece terapia virtual por AI, inteligência artificial. Alison diz: Woebot não é um substituto para um terapeuta em pessoa nem ajudará a encontrar um. Em vez disso, a ferramenta faz parte de uma ampla gama de abordagens para a saúde mental. A experiência do Woebot não mapeia o que sabemos ser uma relação humano-a-computador, e também não mapeia o que sabemos ser uma relação humano-homem. Parece ser algo no meio. O aplicativo servirá de ponte para o retorno à convivência social.
O psicólogo e psiquiatra austríaco Vicktor Frankl, autor da Logoterapia, diz que a essência da vontade humana é a vontade do sentido; e quando ele não é encontrado, o indivíduo torna-se existencialmente frustrado. Em consequência, a depressão, adição e agressão passam a fazer parte da vida. É crescente o número de pessoas que tenta ou comete o suicídio devido à depressão. A vida necessita de sentido. Para a geração i, do smartphone, do iPhone, do iPod, do iPad, ou do eu conectado, o vazio e o isolamento em si mesmo podem significar a falta de sentido existencial. O outro, virtual, não coexiste em sua realidade concreta. Um exemplo recente, que provavelmente será objeto de estudo, foi a polarização de opiniões na última eleição para presidente no Brasil. A cegueira para ver e escutar o outro dominou grande parte dos relacionamentos de intimidade emocional e/ou virtual. Gerou brigas, dissenções e isolamento em bolhas de iguais. As redes sociais podem entorpecer a geração i quanto ao sentir e relacionar com o outro se a imersão for exagerada.
O seriado da Netflix, Black Mirror, retrata de forma impactante os efeitos da vida espelhada na tela escura de um celular. Após cada episódio é preciso um tempo para refletir a realidade de um futuro que faz parte da atualidade em muitos aspectos. O anseio natural do ser humano está presente nas tramas como a busca de relacionamentos significativos, companhia, aceitação e validação. Sem querer dar spoiler de sensações, posso dizer que o final de cada episódio faz o silêncio interior parecer gritante. O ambiente, geralmente sombrio, impressiona, traz sentimento de frustração e estranheza, suscitando perguntas como: eu vivo isso? Meus valores ficaram reduzidos ao que é útil ou não para mim? A aparência vale mais que tudo? Curtidas, interesse em saber quem ou quantos curtiram são relevantes? A fluidez e a banalidade das relações são exemplificadas na maioria dos episódios. Fato é que as redes sociais não fazem as pessoas felizes e mais, podem adoecer quando os relacionamentos de intimidade emocional não estão presentes.
Alguns estudos sobre o comportamento na era digital apontam a interferência das redes sociais sobre a conduta e o sentido de ser. Alguns afirmam que há grande probabilidade de alguém sentir-se isolado após passar duas horas ou mais em redes sociais. A solidão na era digital é uma forma de solidão acompanhada (Filipa Jardim da Silva).
Sem o sol, não há corações aquecidos. Sem intimidade emocional não há laços nem vínculos. O livro O Pequeno Príncipe, lido por muitos na infância, adolescência ou juventude, narra um diálogo entre o Príncipe e a raposa, retratando bem o convite à intimidade. Após as apresentações, a raposa responde ao convite do Príncipe, que se encontra triste, para brincar.
– Eu não posso brincar contigo, não me cativaram ainda.
– Ah! Desculpa – disse o principezinho. Mas, após refletir, acrescentou:
– Que quer dizer cativar?
– Tu não és daqui – disse a raposa. – Que procuras?
– Procuro os homens – disse o pequeno príncipe. – Que quer dizer cativar?
– Os homens – disse a raposa – têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante. Tu procuras galinha?
– Não – disse o príncipe. – Eu procuro amigos. Que quer dizer cativar?
– É algo quase sempre esquecido – disse a raposa. Significa criar laços…
– Criar laços?
– Exatamente – disse a raposa. – Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativares, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo…
A intimidade emocional e a intimidade virtual podem exercer um papel importante, quando a relação conectar a necessidade humana de criar laços. Da necessidade nasce o outro, significativo, único porque foi cativado pelo sentir. Lembra a primeira relação do ser humano – a díade mãe e filho; A interação entre os dois tende a desenvolver o primeiro vínculo afetivo.
Em 1995, Sherry Turkle, professora na área de estudos sociais sobre ciência e tecnologia no MIT (Massachusetts Institute of Technology), publicava um livro que a colocaria na capa da revista Wired: Life on Screen era um retrato positivo do impacto do digital nas nossas vidas. Mais de 15 anos depois, Turkle mudou de opinião e a Wired virou-lhe as costas, quando em 2011 o livro Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other chegou ao mercado. Na obra, a autora escreve que, hoje em dia, o fato de sermos inseguros e ansiosos nas nossas relações e perante o conceito de intimidade, faz com que procuremos na tecnologia formas de viver relações e, ao mesmo tempo, formas de nos proteger delas. O problema da intimidade digital, diz Sherry, é que ela é incompleta: Os laços que formamos através da internet não são, no final, os laços que nos unem.
O interesse nos encontros, nas conversas e no convívio interpessoal fora do ambiente virtual será um desafio constante, hoje na era digital e nas eras seguintes. Não é possível saber o que nos aguarda. Cada vez mais os aparelhos, aplicativos, plataformas como o Facebook e Twitter e outros meios de comunicação virtual atrairão e farão de tudo para ter cativo o usuário. Espero que a vulnerabilidade, o frio na barriga, o desconforto de sair do lugar por causa de um novo encontro pessoal perdurem. Que a opção por desenvolver afeto por uma AI ou um desconhecido das redes não seja vista como a única saída para a sensação de intimidade. Que a aventura da intimidade emocional seja sempre do interesse das pessoas, seguindo na contramão da Sociedade da Transparência. Que o adaptar-se ao pouco tempo disponível para relacionar-se com as pessoas continue a ser precioso no desafio de manter e aprofundar a intimidade emocional. Como tudo em exagero faz mal, estabelecer os limites claros e firmes para o uso da internet é expressão de amor para consigo mesmo e para com o outro. Bem-vindos à era da intimidade emocional de todos os tempos!
“Quando pensamos em alma e ligações de alma, pensamos em intimidade.”(Dora Eli)
The Circle Brasil é um reality show da Netflix que simula o ambiente virtual. Os competidores se comunicam utilizando somente seus perfis, e o objetivo do jogo é tornarem-se os maiores influenciadores, para assim ganharem o prêmio do programa. É claro que, diante desse o objetivo, vale tudo para se tornar influenciador, inclusive mentir sobre quem você é para ganhar o carinho e simpatia dos demais participantes.
O formato do programa é uma clara analogia a era da internet em que vivemos. As redes sociais são o nosso palco, e nós somos os protagonistas performando nele. Desta forma, construímos um espetáculo ao redor da vida cotidiana. E assim como os participantes do reality, nós também buscamos transmitir a “melhor versão” (lê-se a imagem mais agradável) de nós mesmos nas redes sociais, assim como exibir de forma online somente aquilo que nos é conveniente do nosso dia a dia. Carvalho, Magalhães e Samico (2018) ao propor um olhar psicanalítico sobre a exposição da autoimagem no mundo virtual, colocam que:
“No ciberespaço, pode-se ser quem quiser, obter a identidade que desejar. Causa, mesmo que de maneira inconsciente, uma vontade de se obter a mesma admiração e aprovação que quem está sempre postando uma vida fantástica obtém. Ao nos depararmos com uma “vida perfeita”, passamos a comparar a nossa própria vida com aquela exibida à nossa frente” (p. 48).
Assim, entende-se que essa de construir uma imagem polida e atraente de nós mesmos surge de uma necessidade que habita a grande maioria de nós: a ânsia pelo olhar do outro. Queremos que o outro nos observe e nos aprove. É claro que essa busca por validação vem de outras épocas da nossa vida, como por exemplo, na relação que tínhamos com nossos pais, as figuras que mais importantes da nossa vida, na infância; algo que desde então provoca tensões dentro de nós.
Diante da realidade na qual nos encontramos, repleta não só de aparatos disponíveis, mas também de novas figuras e modelos sociais representativos (por exemplo, o surgimento dos influencers digitais), o nosso desamparo encontra “acalento” no contexto virtual. E para conseguir esse olhar do outro, criamos personagens, parecidos conosco, mas que não são exatamente fiéis. Construímos esse personagem querendo ser o objeto de desejo do outro. E como recebemos essas aprovações? Através das múltiplas ações virtuais existentes como curtidas, comentários, visualizações, e tantas outras formas de sentir que o outro está nos validando com o seu click.
Assim como para os participantes do reality The Circle Brasil, um like passa a ser muito mais que um like. É um alimento para o nosso ego. É algo que nos dá a sensação de que fizemos “algo certo” e vibramos, tal como os participantes quando percebem a aceitação dos demais. Essa situação cria em nós um ciclo vicioso de hábitos na nossa vida online, que visam sempre o outro. Carvalho, Magalhães e Samico (2018) constatam essa ideia ao dizer que:
“A maçante apresentação da autoimagem nesses veículos de mídia de certa forma tampona uma ferida narcísica instaurada no sujeito que muitas vezes olha o outro da forma que gostaria de ser. Por desejar mostrar-se ao outro, deseja ao mesmo tempo ser o objeto do desejo alheio a fim de suprir esse desamparo recorrente. Ainda que momentaneamente ele viva o prazer quando recebe o tão esperado “like” em sua foto, é algo efêmero. Algo que é rapidamente superado, criando assim a ânsia de se produzir mais situações onde esse ser possa realizar-se novamente.”
E é por isso que a “rejeição online” torna-se tão dolorosa quanto a offline, pois ela representa a desaprovação, a rejeição, a falta. Diante disso, muitas vezes até abrimos mão da nossa singularidade em busca dessa validação. Sobre esse ciclo, Garzia-Roza faz uma indagação interessante em na obra Freud e o Inconsciente (1984):
“A grande questão que circunda esta forma de se expressar talvez seja: se esta aprovação da vida é completamente suficiente para que o sujeito obtenha a realização que anseia, por qual motivo ele não se sente em plenitude?” (p. 144).
Essa pergunta nos proporciona a uma série de reflexões sobre quem somos e para onde vamos, mas nos atendo aos fatos observados no reality show, percebe-se que ele nos ensina algo sobre isso tudo logo no início. Quando a votação para decidir quem seriam os influenciadores da vez era “limpa”, ou seja, não existiam estratégias e armadilhas que surgem mais adiante no jogo, e de fato se levava em consideração apenas o carisma dos participantes, as pessoas no “topo” eram de fato as mais autênticas e que não mentiam sobre quem eram. Em contrapartida, os “fakes” não tinham o desempenho que acreditavam que teriam. Isso serve como lição para nós. A melhor versão de nós é a versão verdadeira!
Referências:
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1984
CARVALHO, JPST; de Magalhães, PMLS; Samico, FC. Instagram, narcisismo e desamparo: um olhar psicanalítico sobre a exposição da autoimagem no mundo virtual. Revista Mosaico – 2019 Jul/Dez.; 10 (2): 87-93
FICHA TÉCNICA
Nome do programa: The Circle Brasil
Temporada: 1 Episódios: 12 Gênero: Competição País de origem: Brasil Produção: Studio Lambert e Motion Content Group Emissora original: Netflix Apresentadora: Giovanna Ewbank
A resenha desenvolvida a seguir, tem como objetivo principal descrever alguns pontos demarcados como preponderantes, bem como trazer reflexão e ao final fazer um apanhado geral, com base no livro Amor Líquido – Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos, de Zygmunt Bauman. Segundo o sociólogo polonês Bauman, vivemos na era da modernidade líquida, que é uma continuidade ou uma fase posterior a chamada modernidade sólida. A modernidade líquida é uma época de fluidez, incerteza e insegurança, onde os indivíduos não possuem mais lugares pré-estabelecidos para se situar no mundo, e com isso devem lutar por si mesmos para se encaixar numa sociedade que está cada vez mais seletiva e propensa a mudar com rapidez e de forma imprevisível.
Fonte: http://zip.net/bmtMZf
No livro Amor Líquido, o autor expõe suas ideias sobre os efeitos da modernidade líquida nas relações humanas, investigando e procurando esclarecer os sentimentos de insegurança inspirados pelo processo de individualização que acabam levando a fragilidade dos vínculos humanos. O relacionamento é o destaque do livro. As relações amorosas, os vínculos familiares e até mesmo os relacionamentos em “redes”, segundo Bauman, estão se tornando cada vez mais flexíveis e volúveis. Nesta obra, Zygmunt Bauman disserta sobre como o amor se tornou apenas mais um objeto de consumo, tal afirmativa é nitidamente explícita no livro, como o próprio autor mesmo define “o consumo está cada vez mais rápido, fácil e descartável”.
Os seres humanos estão dando mais importância a relacionamentos virtuais, que podem ser desmanchados com muita facilidade e a qualquer momento. Essas conexões que são estabelecidas por seres á distância podem ser rompidas muito antes que se comece a detestá-las. Ao contrário dos relacionamentos “reais”, é fácil entrar e sair dos relacionamentos virtuais, atualmente. Nesse contexto, a relação social, pautada em uma responsabilidade mútua entre as partes que se relacionam é trocada por outro tipo de relação que o autor chama de conexão. Ele tira esta palavra das análises de relacionamentos em sites de encontros. Em suas pesquisas ele percebe que a grande vantagem dos sites de encontros está na facilidade de deixar o outro de lado.
O relacionamento se torna frágil, na modernidade líquida, devido à facilidade de não haver responsabilidade de ambas as partes, em não haver pressão entre os parceiros. Ambos ainda podem, sem o menor remorso, trocar seus companheiros por outros melhores, mais “atualizados”. Em uma entrevista realizada a respeito da crescente popularidade do namoro virtual, um jovem de 28 anos apontou a vantagem de se ter uma relação através da internet: “sempre se pode apertar a tecla de deletar”. Tal declaração reforça a ideia da facilidade que se possui do termo ‘conexão’, ou seja, a qualquer momento você pode simplesmente se desconectar e ter a opção de partir, ou não, para outro relacionamento.
Fonte: http://zip.net/bttNPm
Em geral, os relacionamentos estão sendo tratados como mercadorias. Se existe algum defeito, podem ser trocadas por outra, porém, não existe a garantia de que gostem do novo produto. Não gostou? pode trocar, assim ninguém sofre. A sociedade está atualizando sua forma de se relacionar, onde os seres humanos estão cada vez mais fragilizados e desumanos. A confiança no próximo está cada vez mais frágil e próxima de terminar definitivamente.
Bauman fala sobre a dificuldade da humanidade de amar o próximo. No livro é dito que as pessoas só conseguem amar, quando o outro não difere muito do que se acredita que seja o ideal. Mais difícil ainda é amar o próximo do qual não se pode ver evidências de que tenha consideração, e ter certeza de que quando lhe convier não dirá injúrias e difamação pelas costas. Para que aja esse amor, é preciso que mereça de alguma forma. Amar alguém só pelo que ela é não é conveniente.
O amor próprio entra nessa questão, pois para termos, é preciso que sejamos amados primeiro, e é a partir do amor que é oferecido por outros que se constrói o próprio, diferentemente dos animais que não necessariamente necessitam deste, pois não necessitam dele para ensinar que manter-se vivo é a coisa certa a se fazer. O amor próprio pode ser bom, pois nos estimula a passar pelas adversidades da vida, mas também pode ser traiçoeiro quando se acredita que a vida que leva não é o que julga ser merecida.
Amar o próximo inclui aceitá-lo na sua singularidade. Bauman lembra os refugiados que são expulsos de seus países de origem, e sua entrada é recusada em qualquer outro lugar. As pessoas usam justificativas como as de tomadas de emprego para despejarem seus medos e ansiedades em cima destes. O governo fala em flexibilidade de trabalho, mas é o primeiro a condená-los, os confinando em lugares isolados para não os colocar na vida econômica do país.
Os refugiados que não conseguem se transformar em cidadãos são estereotipados, designados a papeis sociais desagradáveis, sendo vistos sempre como um problema e tratados como tal. Depois do ataque do 11 de setembro o preconceito a estes se solidificaram, agora com a justificativa de supostos terroristas. E é assim que as coisas se dão quando não se sabe lidar com as diferenças, nas quais não dão o trabalho de tentar descobrir e entender o “mundo” do outro.
Fonte: http://zip.net/bvtNvX
A tendência deste mundo líquido é sempre desprezar aquele que pensa e age diferente. A cultura, as crenças e os hábitos do outro não cabem neste território, se ele está aqui, tem que seguir as crenças vigentes e abandonar aquelas que um dia foi dele. Apenas uma verdade é absoluta, e não a do outro que são apenas opiniões. Há uma grande dificuldade de tratar um estranho com humanidade, de ter empatia e entender a situação em que ele se encontra, não apenas falar mais agir de acordo com as palavras.
No livro também fala sobre essa segregação que se faz nas cidades, e ao invés de criar passagens acessíveis e locais de encontro para facilitar a comunicação entre os habitantes, fazem o contrario e dividem, criando a ilusão que precisam defender-se uns dos outros como se fossem adversários. Constroem fortalezas em volta da elite, onde possam apreciar sua independência física e isolamento, longe dos “enclaves extraterritoriais” citado no texto. Portanto segregar fragiliza ainda mais os laços humanos.
Por fim, a partir do sucinto resumo do livro, levando em consideração os pontos mais relevantes a partir do olhar das acadêmicas, e com base em demais artigos lidos para melhor entendimento do tema exposto, é possível adentrar num processo de reflexão mais abrangente e crítico a respeito dessa pós-modernidade denominada por Bauman como Líquida. Possivelmente não seria inusitado que toda essa problemática que o capitalismo trouxe, como por exemplo: a dependência das redes sócias, o consumismo desenfreado, a busca por felicidade insaciável, as propagandas incentivadoras de um corpo ideal, uma vida perfeita, um relacionamento dos sonhos, uma trilha imensa em busca de procurar ser ou ao menos parecer alguém que tanto é colocado como um padrão a seguir.
E isso, é claro causa um efeito devastador e que nem sempre é positivo para a construção e estabilidade emocional de um indivíduo, e que, por conseguinte ocasionaria também impacto na inter-relação dos indivíduos, fomentando também nesse “amor líquido”.A falta/enfraquecimento de autonomia dos indivíduos tem sido causa de grande parte dos conflitos, principalmente ao tocante as relações sociais, pois o indivíduo passa agir de forma impensada, imatura, ou até mesmo influenciada pelas inúmeras contingências ao seu redor, seguindo o que a sociedade coloca como exemplo, atuando diante das situações a partir de um modelo já estereotipado, deixando de lado todo seu contexto histórico e singular.
Fonte: http://zip.net/bntNcw
Redirecionando esse contexto para a psicologia, é possível observar outro lado, que nem sempre esses conflitos vistos como negativos causam dano à vida do indivíduo, pois considera-se que algo só é danoso para determinado indivíduo, quando o mesmo se encontra em estado de sofrimento. Contudo, é de suma importância averiguar sempre o contexto em que as situações ocorrem, para então se respaldar de forma mais plausível e congruente, de forma a compreender a origem de tais comportamentos e assim, poder contribuir ajudando esse indivíduo a encontrar a solução, utilizando-se de estratégias, caso o mesmo esteja sofrendo por essa fluidez líquida.