Relações humanas contidas no seriado “The Big Bang Theory”

Compartilhe este conteúdo:

As relações humanas são o tecido que compõe a complexa tapeçaria da vida social. Elas são a essência da nossa existência, moldando quem somos e como interagimos com o mundo ao nosso redor. Essas interações variam desde os laços familiares mais íntimos até as conexões fugazes que estabelecemos com estranhos em nossa rotina diária. Neste sentido, temos vários tipos de aprendizagens através de nossa cultura e nada mais cultural na atualidade que filmes e séries televisivas. Para esta reflexão, nos centramos no seriado de humor norte americano de grande audiência no Brasil The Big Bang Theory.

The Big Bang Theory é uma sitcom americana que foi ao ar entre 2007 e 2019. Criada por Chuck Lorre e Bill Prady, a série segue um grupo de amigos detentores de altos títulos acadêmicos, mas desajustados socialmente. A trama começa com os dois amigos, Físicos, Leonard Hofstadter e Sheldon Cooper que vivem em um apartamento em Passadena na Flórida. Eles trabalham em uma Universidade, a Caltech e são apaixonados pela cultura nerd. O grupo de amigos é completado por Howard Wolowitz, um engenheiro aeroespacial e Rajesh Hoothrappali, um astrofísico indiano que não consegue falar com mulheres a menos que tenha consumido álcool.

A vida do grupo começa a mudar quando Penny, uma aspirante a atriz que trabalha como garçonete, se muda para o apartamento vizinho de Sheldon e Leonard. Logo Leonard desenvolve uma paixão por ela, o que cria uma dinâmica cômica entre eles devido às suas personalidades opostas. Sheldon, por sua vez, se desagrada pela nova vizinha que de certa forma veio “mudar” a rotina do prédio, uma vez que ele é avesso a mudanças, mas ao longo da história os dois desenvolvem uma bela relação de amizade. Futuramente, se juntam ao grupo mais duas personagens: Bernadette Rostenkowski que se tornará par romântico de Howard e Amy Farrah Fowler que desenvolverá uma relação com Sheldon.

Antes de tocarmos no foco principal deste texto: as relações contidas na série é necessário conhecer um pouco os principais personagens e entender a complexidade que foi atribuída a cada um deles

Sheldon Cooper é um dos personagens principais da série, é uma figura icônica conhecida por suas peculiaridades, inteligência excepcional e falta de habilidades sociais. Sheldon é um gênio em Física teórica, com um QI extremamente alto. Seu conhecimento é vasto e frequentemente desdenha aqueles que ele considera menos inteligentes. O personagem é muito ligado a rotinas e rituais, ele tem uma programação meticulosamente planejada, desde os horários para refeições até os momentos específicos para realizar certas atividades. Qualquer desvio de sua rotina pode causar desconforto e ansiedade para ele. Outra característica marcante é sua dificuldade em compreender e participar de interações sociais. Ele muitas vezes não entende sarcasmo, ironia e nuances nas conversas. Seu estilo de comunicação é muito direto e muitas vezes inapropriado. Sheldon muitas vezes coloca suas próprias necessidades e desejos acima dos outros, exibindo um grau limitado de empatia em relação aos sentimentos dos outros. Embora não seja explicitamente mencionado na série, muitos fãs e especialistas especularam que Sheldon pode ter características do Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), devido às suas características de personalidade e comportamento.

Leonard Hofstadter é outro personagem principal da série. Ele é um Físico experimental altamente inteligente e o melhor amigo de Sheldon e assim como seu amigo, Leonard é um cientista brilhante, com doutorado em Física experimental, trabalhando como pesquisador em uma a Universidade e lida com experimentos e estudos práticos, em contraste com a abordagem teórica do colega. Diferente de Sheldon, Leonard é mais sociável e tem um comportamento mais empático, ele é conhecido por ser um bom amigo, alguém disposto a ajudar os outros e fazer concessões para manter a harmonia no grupo. Leonard compartilha muitos dos interesses nerds do grupo, como quadrinhos, ficção científica e jogos de vídeo. Ele é um membro ativo dos encontros semanais de quadrinhos e jogos.

Howard é conhecido por suas excentricidades, estilo de vida peculiar e seu trabalho como engenheiro aeroespacial talentoso trabalhando na mesma Universidade que os colegas Leonard e Sheldon, sua especialidade é em sistemas de navegação e é alvo constante de piadas sobre ser Engenheiro e não possuir doutorado. Seu estilo de se vestir de modo considerado chamativo e muitas vezes extravagante combina com sua personalidade extrovertida. Outra característica marcante de Howard é seu flerte constante e suas tentativas de se apresentar como um “homem das senhoras”. Ele frequentemente faz comentários ousados e piadas de teor sexual, o que muitas vezes resulta em situações cômicas, uma vez que, para os atuais padrões de beleza masculina, ele não é considerado um modelo de beleza.

Rajesh Koothrappali, também conhecido como Raj, completa o quarteto de amigos da série. Raj é um astrofísico e trabalha no mesmo departamento da Caltech que seus amigos Leonard, Sheldon e Howard. Ele é conhecido por suas dificuldades em se comunicar com mulheres, especialmente quando está sóbrio, sofrendo de uma forma de mutismo seletivo que o impede de conversar com mulheres, exceto quando está sob a influência de álcool. Isso leva a situações cômicas e momentos constrangedores ao longo da série. Raj é frequentemente retratado como um indivíduo sensível e gentil. Ele valoriza a amizade e se preocupa com os outros, muitas vezes oferecendo apoio emocional a seus amigos em momentos difíceis. Se destacando, também, sua vida religiosa, pois Raj é de origem indiana, e sua cultura e religião são abordadas em vários episódios, isso inclui suas relações com sua família na Índia e como ele navega entre as expectativas culturais e a vida nos Estados Unidos. Assim como os outros personagens, Raj compartilha interesses nerds, como quadrinhos, ficção científica e videogames. Ele também tem um gosto pela moda e pelo luxo, muitas vezes exibindo roupas extravagantes e caras.

Sendo a primeira personagem feminina da série, Penny é uma garçonete aspirante à atriz e se torna vizinha de porta de Leonard e Sheldon. Ela é conhecida por sua personalidade extrovertida, carisma natural e senso de humor. Penny é amigável, acessível e em muitas ocasiões serve como uma figura de equilíbrio entre os personagens mais nerds e introvertidos.  Ela é uma personagem crucial para equilibrar a comédia da série, proporcionando um contraste entre o mundo acadêmico e a vida cotidiana. Sua jornada e interações adicionam camadas de humor e emoção à trama. Penny passa por uma jornada de autodescoberta e amadurecimento ao longo da série enfrentando desafios em sua carreira e vida pessoal, mas também desenvolve uma maior confiança em si mesma e toma decisões significativas em relação ao seu futuro.

Bernadette é introduzida na série como a namorada de Howard, eventualmente se tornando sua esposa. Ela é uma Microbiologista e é conhecida por sua voz aguda e aparência delicada. Bernadette é em muitas ocasiões subestimada devido à sua aparência fofa, mas ela frequentemente revela uma personalidade forte e assertiva. Mesmo sendo conhecida por sua doçura, também tem um lado sarcástico e até mesmo explosivo. Ao longo das temporadas, Bernadette passa por mudanças pessoais e profissionais, avançando em sua carreira, enfrentando desafios no trabalho e conciliando com a vida doméstica e a maternidade.

A última personagem fixa anexada à série, Amy é uma Neurobióloga que se torna amiga próxima do grupo de nerds. Sua profissão a coloca em um campo relacionado ao dos outros personagens e ela frequentemente se envolve em conversas acadêmicas com eles, sendo conhecida por sua personalidade peculiar e às vezes excêntrica. Inicialmente aparece como alguém com dificuldades em entender e expressar emoções, mas ao longo da série, ela se desenvolve emocionalmente e se torna mais conectada com seus sentimentos e com as pessoas ao seu redor. Amy passa por um notável desenvolvimento pessoal, aprendendo a expressar suas emoções e a se tornar mais independente. Ela cresce como cientista, amiga e a pessoa que consegue se manter ao lado de Sheldon mesmo em seus momentos mais difíceis.

                                                                                                                                          Warner Bros Company

 Poster de Divulgação: Warner Bros.

            A série conta ainda, com vários personagens secundários que adicionam momentos dramáticos e humorísticos às histórias individuais. As relações de amizades, amores românticos, conjugalidade, maternidade, trabalho, relações parentais. Tudo isso sendo distribuído entre os próprios dramas pessoais.

            As relações de amizades entre os rapazes que, em alguns momentos percebemos amor, mas também hostilidade e agressividade, piadas que envolvem a relação de trabalho, sexismo, etnia e religião foram bastante exploradas durante a história, de modo geral, sempre, ou quase sempre resolvidas através do desenvolvimento de conversas que acrescentaram seriedade à série.

Sheldon e Leonard, por exemplo, são melhores amigos, dividem o mesmo espaço e precisam se adequar um ao outro, sendo o primeiro uma pessoas com poucas habilidades sociais e rigidez em suas rotinas sendo necessário descrever tudo em “acordos escritos” para que nada fuja ao seus padrões de normalidade o que faz com que Leonard tenha que desenvolver cada vez mais sua tolerância. Tolerância essa que aprendeu desde a infância por ter sido criado por uma mãe exigente e nada carinhosa. Durante a história, percebe-se que a carência afeto e afago materno é permanente sendo “resolvido” em uma das últimas cenas do último episódio da série em que o filho finalmente consegue um abraço afetuoso de sua mãe.

            Em se tratando de relações parentais, observa-se que são diversos tipos de construção de maternidade, a mãe de Leonard sendo fria e distante o que se destoa totalmente da mãe de Howard, que mesmo nunca tendo aparecido em pessoa na história, desenvolve uma relação de codependência com o filho sendo justificado pelo fato de ter sido abandonado pelo pai na infância. Mesmo que sua mãe traga elementos de humor para a história é nítido como ela manipula o filho para que sempre fique junto a ela. Já a mãe de Sheldon é uma cristã praticante e também superprotetora que não aceita o fato do filho ser um cientista e não comungar de suas crenças religiosas. A mãe de Amy é a típica “mãe devoradora” que quer dominar a filha. Os pais de Raj não aceitam muito bem o fato de ele ter saído do país e se envolver com mulheres de outra etnia.

            As relações amorosas também são desenvolvidas no decorrer da história com toques de humor e drama mas que nos ensinam sobretudo que estas relações são construídas com base em tolerância e trocas. Algumas situações nos deixam a impressão que um “lado” sai perdendo, mas analisando o contexto geral vemos que existe sim uma relação de trocas. O relacionamento entre Sheldon e Amy é um exemplo disso.

            Sheldon é uma pessoa de padrões rígidos, tem aversão à mudanças, o contato físico é dispensável e relações sexuais são para ele é algo banal e desnecessário. Já Amy, embora tenha sido construída pelo estereótipo da “inteligente e esquisita” é muito mais pessoal, pensa e deseja sexo. Os dois se juntam em relação inicialmente de amizade e trocas científicas e desenvolvem a relação amorosa através do tempo. Amy faz tudo para agradar Sheldon que raramente retribui como ela gostaria, mas retribui como ele mesmo consegue devido às suas limitações. Após anos juntos ele finalmente se rende ao sexo e ao casamento, sem contudo, deixar de ser quem ele é.

            Leonard e Penny formaram o casal menos provável mas de muito carisma. Ele, cientista e sem traquejo social, ela garçonete e extrovertida. Os dois desenvolveram a relação com idas e vindas durante todo o percurso da série provando para o público que duas pessoas tão diferentes conseguem se dar bem em relacionamento amoroso. Ao contrário da união Amy/Sheldon entre Penny e Leonard é ele quem mais tende a ceder no relacionamento, embora tenham um final previsível com a gravidez de Penny que já havia deixado claro ao longo da história não ser um grande sonho.

            Já o relacionamento de Howard e Bernadette foi marcada pelos problemas habituais da conjugalidade. Inicialmente, pela influência da mãe dele, já que mantinham uma relação disfuncional e não queria que o casal vivesse em outra casa. Após, o fato de ela ganhar bem mais que ele e ainda ter que ser a responsável por toda a manutenção das tarefas domésticas, algo que a sobrecarrega. Mesmo assim, ela sempre demonstra admiração pelo marido e sempre estava ao seu lado quando ele sofria com as piadas dos amigos por ser o único que não tinha doutorado.

            Raj foi o único do grupo a não conseguir uma relação duradoura, mostrando que relacionamento amoroso nem sempre fará parte da vida. Ele é um imigrante com uma extrema timidez e tem muitas dificuldades até mesmo para falar com mulheres até chegar a ponto de concordar com um casamento arranjado por seus pais como é costume em sua cultura, algo que não deu certo e Raj terminou a história sozinho.

            Estas histórias nos mostram que relacionamentos são difíceis e necessitam, além de amor, tolerância e o diálogo constantes. Algo que foi mostrado durante o desenvolvimento de todos os relacionamentos contidos no decorrer da história. Em alguns momentos, podemos não concordar com certas atitudes e pensar que um saia ganhando em decorrência do outro, o que não se constitui como uma verdade, já que em todas as ocasiões de conflitos os personagens conseguem dialogar e resolver as questões que geravam estes conflitos.

            Enfim, relações humanas são de extrema dificuldade e esta série nos mostra, com muito humor e sensibilidade que se relacionar com outras pessoas é complexo e que conflitos e desajustes sempre irão ocorrer, e que manter relacionamentos, de qualquer natureza, há uma necessidade de utilizar uma das maiores armas que o ser humanos possui, a comunicação.

Referências:

ANAZ, S. A. L. CERETA, F. M. Ciência e tecnologia no imaginário de The Big Bang Theory: das imagens arquetípicas à atualização de mitos e estereótipos na “Era do Conhecimento”. Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 2, p. 647-674, maio-ago. 2014. Disponível em:  https://www.redalyc.org/pdf/4955/495551016013.pdf. Acesso em: 08/09/2023.

FRANCO OLIVEIRA, A. C. TONUS, M. Bazinga! Uma Análise Neotribal Da Sitcom The Big Bang Theory. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – São Paulo – SP – 12 a 14 de maio de 2011. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2011/resumos/R24-0340-1.pdf. Acesso em: 08/09/2023.

SOUSA, V. d. A Construção da Identidade Feminina no Texto Digital Transmédia de The Big Bang Theory. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v. 9, n. 2, jul./set. 2018 (ISSN 2179-3948 – online). Disponível me: https://run.unl.pt/bitstream/10362/65045/1/5915_Texto_do_artigo_28741_1_10_20181028.pdf. Acesso em: 08/09/2023.

Compartilhe este conteúdo:

A Mulher e a família na contemporaneidade

Compartilhe este conteúdo:

Ao longo da história a mulher tem assumido diferentes papéis no âmbito familiar. Com as diversas configurações socioculturais, o que se entende como “ser” mulher e o que se espera dessa figura, ao mesmo tempo em que influenciam diretamente a dinâmica das relações familiares, são modificadas por ela. Neste texto serão abordados, em um contexto familiar ocidental, os papéis e funções da mulher como são apresentados na contemporaneidade e sua influência na construção psíquica dos indivíduos, bem como um panorama histórico do feminino na instituição de família como conhecemos atualmente.

Entre as teorias de origem da família, enquanto umas se fundamentam em funções biológicas e outras em funções psicossociais, o chamado “vértice evolutivo” é considerado a base para construção de teorias sobre origem e estruturação do que se entende como grupo familiar. Nele considera-se que a família e seus membros devem passar por etapas sucessivas no curso do seu desenvolvimento, como encontramos em distintas culturas no decorrer do processo civilizatório (OSORIO, 1997) [1].

Acredita-se que inicialmente as famílias se organizavam em modelos matriarcais, possivelmente por desconhecer o papel do homem na reprodução; ou em decorrência da vida nômade dos povos primitivos, onde os homens saiam á procura de alimento e os filhos ficavam sobre influência quase que exclusiva da mãe. O desenvolvimento da agricultura, o sedentarismo e a divisão de tarefas teriam sido os responsáveis pela instalação progressiva do patriarcado [1].

Fonte: http://migre.me/wbrJW
Fonte: http://migre.me/wbrJW

Com o desenvolvimento da ideia de propriedade ao longo do processo civilizatório da sociedade ocidental, a família patriarcal passa a adotar a monogamia, onde a fidelidade conjugal é condição para a garantia da legitimidade dos filhos para a transmissão de bens. Seria a família monogâmica, possivelmente, a primeira a ser fundada com base em condições sociais e não naturais, prevalecendo até hoje no mundo ocidental. A noção de propriedade se entendeu para a esposa e o contrato matrimonial passou a assumir as esferas comercial (com os dotes), místico-religiosa e de direitos civis. Porém, a coexistência primeva da composição entre as figuras de pai, mãe, e filhos, não configuraria o que se entende por família [1].

Com os mais variados modelos, as famílias atuais não se enquadram no que o senso comum, em partes, adota como “modelo”, uma vez que as definições de família (que também são variadas) descrevem as relações entre as funções de seus membros, e não quem deve ocupar essas funções. Capitão e Romaro (2012) discorrem sobre uma visão de família entendendo-a como uma referência inter-relacional para seus membros, onde se formam regras, valores e crenças em um sistema ativo em transformação permanente [2]. As mulheres contemporâneas estão inseridas nesse contexto, sendo mães, avós, filhas, tias; elas passam a ocupar “funções” e não “cargos” pré-determinados.

Fonte: http://migre.me/wbrL6
Fonte: http://migre.me/wbrL6

Bilac (2006) atribui ao pensamento feminista o trabalho do conceito de “reprodução” social, que como uma instância, seria a produção social da vida humana, em termos cotidianos e geracionais. Essa reprodução, ligada à família ou não, estaria ligada ás relações de gênero e á divisão sexual do trabalho [3]. A classe social à qual pertence a família, e o modelo familiar que se sucede, estão ligados entre si e ainda ás relações de gênero entre seus membros, influenciando na reprodução.

Dessa forma, para Bilac (2006), a variabilidade histórica da instituição família, desafia qualquer conceito geral, uma vez que o mesmo envolve aspectos econômicos, sociais, culturais, históricos e de gênero. As mudanças na organização familiar estão se dando a partir das mudanças na condição feminina, provocando uma revisão dos demais papéis na família. As diferenças entre os gêneros são socialmente construídas e normatizadas, portanto, a capacidade de (re)negociação de sujeitos individuais em um grupo social, estaria ligada a possibilidade de obliteração das diferenças de poder e desigualdade entre homens e mulheres, afetando os destinos individuais e da família na contemporaneidade [3].

Fonte: http://migre.me/wbrLv
Fonte: http://migre.me/wbrLv

Para Sarti (2006), o controle da natalidade permitiu que a mulher que reformulasse seu lugar na esfera privada e participação na esfera pública, e a individualidade (que tem cada vez mais importância na pós-modernidade) teve seu espaço para desenvolvimento, e os familiares se tornaram conflitivos na sua forma tradicional. A autoridade patriarcal e os papéis familiares se modificam, e consequentemente as relações de gênero [4].

As obrigações, direitos e deveres ficam passivos a renegociações. Esse desenvolvimento provoca uma transformação na esfera intima que potencializa o atual modelo social com a valorização da ética pessoal. A execução positiva da requalificação da “autonomia” (como condição de se relacionar com os outros de modo igualitário) possibilitaria a configuração de limites pessoais e a administração bem sucedida dos relacionamentos [4].

Com a crescente participação do feminino no mercado de trabalho e a atuação das correntes do movimento feminista, as mulheres adquirem uma nova posição na estrutura doméstica e nos vínculos com seus familiares. A crescente inclusão da mulher nos domínios públicos e a visão das representações femininas diferentes do que era o estereótipo, redefiniu o papel da mulher na família e sociedade [5]. Essas mudanças, a curto e longo prazo, afetam a sociedade intergeracionalmente, facilitando a igualdade de gêneros, de direitos e a busca pelas liberdades individuais.

Fonte: http://migre.me/wbrLO
Fonte: http://migre.me/wbrLO

Maternidade: a individualidade e os males da família contemporânea

Os aspectos desse tópico poderiam ser tratados independendo de gênero ou da família, porém como visto acima, as circunstâncias do feminino influenciaram e influenciam as dinâmicas pessoais de comportamento ao longo da história, e como citado, na contemporaneidade.

Para Campos (2012) a sociedade pós-moderna tem contribuído para que as pessoas, cada vez mais, se individualizem, assumindo posições narcísicas, e seria o papel da psicologia elucidar esse fato e se fazer presente para evitar que ele ocorra. Com a virada do milênio, as famílias se encontraram situadas em uma confusão de problemas não superados, como a própria existência de seus componentes ao se deparar com a ação do tempo [6].

Em uma adultez fragilizada, os pais cada vez mais egoístas, narcisistas e individualistas se encontram perdidos na tarefa de educar, de modo a manifestar uma negação às funções parentais. Adultos que não são referências para seus filhos impossibilitam que eles experimentam frustrações, de modo a apresentar sempre “infinitas” possibilidades aos filhos em uma busca de auto-superação e compressão de experiências. Filhos que podem fazer o que querem não são livres ou mais amados, uma vez que a construção do “eu” exige orientação e o aprendizado da renuncia [6].

Fonte: http://migre.me/wbrQV
Fonte: http://migre.me/wbrQV

De acordo com Campos (2012), pais e mães na sociedade atual estão influenciados pelas diversas mudanças sociais que contribuem para a procrastinação da formação de uma nova família [6]. Os novos papéis das mulheres e as suas novas funções na sociedade fazem com que elas passem mais tempo fora de casa, dedicando mais tempo aos seus trabalhos (assim como os trabalhadores de modo geral).

 Entre outras, as características de personalidade que foram supracitadas contribuem no aumento da dificuldade amar cumulam em uma ausência constante na criação dos filhos, que por sua vez, recorrem a outros meios de aprendizado, como babás, TV, videogames e internet. A presença e interação positiva dos pais se fazem, portanto, indispensável para a formação da personalidade e caráter [6].

As mulheres devem se dedicar exclusivamente a cuidar da casa e família? As mulheres devem ter liberdade para decidir o rumo de suas vidas, assim como qualquer outra pessoa. Fala-se aqui de pais, não somente mulheres. Pessoas que optam por ter uma família devem se ater ás suas responsabilidades como provedores, visto a importância dessas figuras para o desenvolvimento humano.

Fonte: http://migre.me/wbrSD
Fonte: http://migre.me/wbrSD

A desordem nas relações familiares, para Campos (2012), causa a desordem social. As más resoluções em divórcios, assistência parental e trabalho, são um manifesto do que Bauman definiu como “tempos líquidos”, onde a solidez das relações se desmancha no ar. A ideia de supermães que tem qualidades divinas ainda assombra as mães modernas e a comum ausência de outras figuras de apoio, tornam as relações familiares devoradoras [6].

Segundo Capitão e Romaro (2012) [2], os pais transmitem uma herança de ajustamento de desejo para com a criança, que mesmo antes do nascimento já faz parte de suas fantasias, sendo a maior parte das pressões parentais direcionada para a criança com o intuito de fomentar a cumplicidade para com essas fantasias inconscientes. Dessa maneira, o desejo dos pais desde a concepção já influenciaria no desenvolvimento da criança.

De acordo com Moura (2013) [7], é a pessoa que ocupa a função materna quem escreve o primeiro capítulo da vida da criança, interpretando-a. No que concerne uma visão de si mesmo, a criança precisa do Outro para a construção de um registro imaginário, portanto, o inicio da história de vida da criança se situa no contato com o Outro, no caso, a figura dos pais. É a partir de uma identificação com os pais, que com o abandono dos “pais edípicos”, o ideal de ego se constitui como superego, uma formação intrapsíquica de censura e de auto-observação, que surge ou com o superego deles, que é adotado como modelo, servindo como referência ao ego para apreciar todas as suas realizações afetivas (CAPITÃO E ROMARO, 2012).

Fonte: http://migre.me/wbrVJ
Fonte: http://migre.me/wbrVJ

Os novos papéis e desafios das mulheres contemporâneas, assim como todas as mudanças, causam um impacto na sociedade e no modo como as relações humanas se dão, ultrapassando o conceito de gênero e indo para outro muito mais amplo: humanos. A dinâmica familiar está, portanto, “à mercê” de sua capacidade de redefinição, no âmbito parental, independentemente do estilo familiar.

Em um pensamento igualitário de gêneros e sexualidade somado a uma inexistência de um modelo de família ideal, pensa-se na família como primeiro contato social, onde se projeta a oportunidade de uma mentalidade grupal, e somente nessa modalidade pode-se pensar a igualdade coexistindo com as diferenças, algo fundamental para se definir o conceito de “humanidade”.

REFERÊNCIAS:

[1] OSORIO, L. C. A Família como Grupo Primordial in ZIMERMAN, D. E.; OSORIO, L. C. [et. al]. Como Trabalhamos com Grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p. 51-56.

[2] CAPITÃO, C. G; ROMARO, R. A. Concepção Psicanalítica da Família in BAPTISTA, M; TEODORO, M. Psicologia de Família: Teoria, Avaliação e Intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 27-33.

[3] BILAC, E. D. Família: Algumas Inquietações in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 30-37.

[4] SARTI, C. A. Família e Individualidade: Um Problema Moderno in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 42-46.

[5] ROMANELLI, G. Autoridade e Poder na Família in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 77.

[6] CAMPOS, D. C. “Saudade da família no futuro ou o futuro sem família?” in BAPTISTA, M; TEODORO, M. Psicologia de Família: Teoria, Avaliação e Intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 74-81.

[7] MOURA, D. F. G. Maternidade e poder. Rev. Mal-Estar Subj,  Fortaleza,  v. 13, n. 1-2, pp. 387-404, jun.  2013. Disponível em: <http://www.redalyc.org/pdf/271/27131673015.pdf >.

Compartilhe este conteúdo:

Capitão Fantástico: entre a paixão e a ilusão

Compartilhe este conteúdo:

Com uma indicação ao OSCAR: 

Melhor Ator

Banner Série Oscar 2017

O que seria do mundo sem os revolucionários, capazes de viver e morrer por uma causa?
Que força move uma revolução se não uma grande paixão?
E o que é a paixão senão uma grande ilusão?
Paixão e ilusão, a partir da psicanálise, são fenômenos indissociáveis e radicalmente ligados ao narcisismo primário.[1]

capitaofantastico-cinema

Em Capitão Fantástico, Ben (Viggo Mortensen) e Leslie (Trin Miller) não apenas se apaixonaram, mas decidiram viver uma realidade alternativa, criando seu próprio mundo ideal. Acreditaram que era possível e o fizeram. A história não revela muito do passado de Ben, mas Leslie deixou uma carreira jurídica bem sucedida e seguiu com marido e os filhos para viver uma experiência única, conforme descreveu em uma carta para a mãe:

“O que eu e Ben criamos aqui pode ser único em toda a existência humana. Criamos o Paraíso fora da República de Platão. Nossos filhos serão reis filósofos. Isso me deixa tão indescritivelmente feliz. Eu vou melhorar aqui, sei que vou, porque somos definidos por nossas ações, não palavras.”

Na floresta, longe do contato com a cultura dominante, eles criam os filhos, estabelecem regras e limites próprios, com rituais de passagem, divisão de tarefas, disciplina rígida, educação de alta qualidade direcionada pelos pais, e muita liberdade de expressão. A família é a busca do sonho utópico relatado por Platão em sua obra A República[2], onde as paixões são controladas, o egoísmo superado e as pessoas agem racionalmente.

CapitaoFantastico-florest

A racionalização, aliás, se mostra como o principal mecanismo de defesa dos membros quando os sofrimentos aparecem. É através dela se explica a vida e a morte e se lida com qualquer dificuldade. Mas esse mecanismo mostra falhas quando a realidade externa começa a se impor e toda a dinâmica de funcionamento, até aquele momento voltada para dentro, para o núcleo familiar, precisa se adaptar às relações exteriores. As crianças foram criadas para serem fortes física e emocionalmente, e preparadas intelectualmente para qualquer situação. Entretanto, fora da proteção do lar, situações triviais começam a expor as fragilidades desse sistema e trazer à tona conflitos internos.

kapitan-fantastik

É através dos traumas, das dores e perdas que, passo a passo, a realidade vai se impondo no seio daquela família utópica. A felicidade vivida até então se mostra muito mais um sonho dos pais projetado nos filhos, ou conforme a história vai revelando, muito mais o sonho de um homem sobre seu mundo ideal que encontrou na bipolaridade de sua parceira a possibilidade desrealização.

O posicionamento de Ben revela uma personalidade narcisista, com filhos que se tornam uma extensão dos seus sonhos e de suas crenças. Através de seus próprios dispositivos, Ben e Leslie acreditam estar criando humanos perfeitos em um mundo especialmente formatado para eles, mas na verdade tudo é voltado apenas para si mesmos, realidade com a qual Ben se depara ao “provocar” o acidente de uma filha.

captain-fantastic-review-spicypulp

Durante toda a sequencia de acontecimentos percebemos como as crises são importantes para nos confrontar com nossos erros, mesmo quando o mundo parece estar perfeito. Esta perfeição aliás só existe na cabeça de Ben, desde o início é possível perceber na personalidade de cada filho, alguns traços que podem se mostrar problemáticos para o futuro daquela estrutura familiar.

Um dos adolescentes é revoltado com o pai e a mãe, questiona seus valores e demonstra muita agressividade, algo que se explica no decorrer da história. O mais velho, que parece ter internalizado mais as influências de Ben, vive um conflito interno entre satisfazer os desejos do pai ou se lançar para o mundo. Zaja, uma das menores, demonstra frieza frente a qualquer situação, não parece demonstrar muitas emoções, gosta de desossar animais e expor seus troféus.

 

Imagem4Imagem3Imagem2

Capitão Fantástico é, enfim, um enredo que questiona da sociedade capitalista às utopias libertárias, num confronto constante entre realidades e ilusões que se entrelaçam permanentemente. O filme expõe a dualidade entre o autoritarismo e a liberdade, o bom e o ruim e tantas outras presentes no mundo interno e externo de cada um.

Uma história que exibe as contradições internas individuais, familiares, sociológicas e filosóficas, mostrando que nada é perfeito, nem totalmente ruim, mas que tudo o que acreditamos precisa ser questionado. Mostrando ainda como todas as dores, perdas, crises ou conflitos são necessários para que as transformações ocorram e nos aproximemos do equilíbrio.

REFERÊNCIAS:

[1] ROCHA, Zeferino. O papel da ilusão na psicanálise Freudiana. Ágora (Rio J.), Rio de Janeiro ,  v. 15, n. 2, p. 259-271,  Dez.  2012.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982012000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12  Fev.  2017.

[2] PLATÃO. A república. São Paulo, Martin Claret.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

3200258ab44f4d411d4a87a39ca26454_XL

CAPITÃO FANTÁSTICO

Diretor: Matt Ross
Elenco: Viggo Mortensen, George MacKay, Samantha Isler, Annalise Basso
País: EUA
Ano:2016
Classificação: 14

Compartilhe este conteúdo:

Santa Clarita Diet: estrutura psíquica em Freud

Compartilhe este conteúdo:

Santa Clarita Diet, série original da Netflix, estreada em 03 de fevereiro de 2017, é uma comédia politicamente incorreta. Retrata a vida de um casal, Sheila (Drew Barrymore) e Joel (Timothy Olyphant), ambos corretores de imóveis, que levavam uma vida blasé em Santa Clarita, um populoso subúrbio no condado de Los Angeles.

Porém, logo suas vidas apáticas ganham uma reviravolta radical, quando Sheila adquire um gosto um tanto quanto peculiar: o de comer carne humana. Com a ajuda de sua filha adolescente, Abby (Liv Hewson) e de seu amigo, Eric (Skyler Gisondo), eles descobrem que Sheila se tornou um zumbi, ou, como preferem chamar, morta-viva (por acharem o termo zumbi pejorativo).

Fonte: http://zip.net/bptFmN
Fonte: http://zip.net/bptFmN

A partir disso, o casal entra em uma situação complicada. Sheila necessita de carne humana, pois nenhum outro alimento lhe satisfaz, somente essa dieta do tipo sanguíneo a deixa vívida, feliz e com aspecto super saudável e jovial, mesmo que para isso tenha que matar outras pessoas. Ela encontrou vida após a morte. E, para conseguir esse alimento valioso, seu marido lhe ajuda, dizendo que vão passar por essa situação juntos, como sempre estiveram.

Então, a caça começa. O casal, que no início ainda tentava manter a moralidade intacta, passam a procurar por pessoas “imprestáveis”, que já fizeram ou fazem mal à sociedade. Entretanto, suas buscas são frustradas, uma vez que, ao se depararem com tais pessoas, acabavam por descobrir que, na realidade, não eram más. Sheila chega ao seu ápice, não suportando a fome. Logo, quem cruza seu caminho, acaba “acidentalmente” morto.

Fonte: http://zip.net/bptFmN
Fonte: http://zip.net/bptFmN

Contudo, essa não é a tarefa mais difícil do casal. Com a filha na adolescência, eles têm noção da responsabilidade que possuem, assumindo a necessidade de serem bons pais. Mas, convenhamos, matar pessoas e guardar no freezer para comer mais tarde não é um exemplo louvável. Para suprir a necessidade de Sheila e, ao mesmo tempo, serem bons pais, o casal faz suas coletas escondidos da filha.

É nesse ponto que se torna interessante observar a estrutura psíquica descrita por Sigmund Freud (1933) e bem representada por essa família singular. Sheila, claramente, é o Id, pois, ao se tornar uma morta-viva, seu instinto aflora demasiadamente, fazendo-a seguir sua pulsão de vida (através da morte) sem se preocupar com as consequências que suas ações podem trazer (irracionalidade). Ou seja, Sheila possui os aspectos primitivos que formam a instância inconsciente dos seres humanos, como a necessidade de alimento e de sexo, por exemplo, ambas bem expressadas pela personagem.

Fonte: http://zip.net/bptFmN
Fonte: http://zip.net/bptFmN

Abby, a filha do casal, representa o Superego, pois, é dela que os pais tentam esconder os assassinatos, análogo às convenções sociais e proibições que tal instância psíquica impõe ao indivíduo, principalmente no que tange aos desejos do Id. Também há de notar-se os conflitos gerados entre o Superego e o Id, quando o primeiro descobre o que o segundo está “aprontando”, quando Abby encontra o corpo de um homem dentro do freezer, no depósito da família, e percebe que pedaços dele estavam faltado, concluindo que a mãe estava se alimentando dele, fazendo o contrário do que havia prometido (não comer gente).

E por último, mas não menos importante, há o Ego na série, representado por Joel, marido de Sheila e pai de Abby. Seu papel de mediador fica bem evidente, dado que ele ajuda sua esposa a adquirir seu alimento preferido e, ao mesmo tempo, tenta manter a posição de educador da filha, buscando uma forma dessa não descobrir as artimanhas da mãe, sabendo que haveria conflito se isso ocorresse. Da mesma maneira, o Ego tenta mediar a relação entre o Id e o Superego.

Fonte: http://zip.net/bltC9f
Fonte: http://zip.net/bltC9f

Enfim, uma série divertidíssima e muito interessante, ainda mais ao se notar os aspectos freudianos nela presentes. Mas será que a relação entre esses três amiguinhos da Psicanálise vai se manter saudável até o fim? Será que haverão muitos conflitos? E o mais importante: Será que Sheila encontrará a cura para o vírus zumbizóide que corre em seu corpo, voltando a ser a mulher de antes, que se preocupa em não causar danos sociais? Essas dúvidas só serão sanadas na próxima (2ª) temporada. Fique atento!

REFERÊNCIAS:

SADALA, G. MARTINHO, M. H. A estrutura em psicanálise: uma enunciação desde Freud. Ágora (Rio J.) vol.14 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982011000200006>. Acesso em 08 Fev 17.

FICHA TÉCNICA:

SANTA CLARITA DIET

Fonte: http://zip.net/bjtDB7
Fonte: http://zip.net/bjtDB7

Gênero: Comédia/Terror
Ano: 2017
Elenco: Drew Barrymore, Timothy Olyphant, Liv Hewson
País: EUA
Criação: Victor Fresco

Compartilhe este conteúdo:

Closet Monster: sob a óptica das teorias psicodinâmicas

Compartilhe este conteúdo:

O Monstro no Armário (Closet Monster) é um filme canadense, escrito e dirigido por Stephen Dunn, lançado em 2016. Marcado pelo simbolismo do começo ao fim, o título pode ser confundido com o da animação Monster House (2006). Trata-se de um drama sobre um adolescente que passou por eventos potencialmente traumáticos na infância e que, na sua atual fase, faz descobertas sobre sua homossexualidade. Desse modo, este texto objetiva uma análise do filme de acordo com as teorias psicodinâmicas.

O longa inicia com Oscar (Jack Fulton) na infância, numa família nuclear e sendo filho único. Ele e o pai cultivam uma cumplicidade recheada de criatividade e fantasias, tanto nas brincadeiras quanto nos sonhos que este o presenteava todas as noites. Até dado momento, Oscar aparenta ser uma criança de cotidiano e família comum, mas logo acontecem situações que o abalam de forma veemente.

closet-monster10

Primeiramente, inicia-se o processo de separação entre os pais. Tudo ocorre de forma rápida e confusa. Os mesmos o presenteiam com um hamster como uma atitude compensatória após anunciarem a separação. É possível notar o descaso e falta de empatia dos pais quanto ao aspectos emocionais e psicológicos da criança nessa situação. Agindo de forma egoísta e discutindo continuamente, caracterizam-se numa relação parental conflituosa. Neste contexto, Raposo et al. (2010, p.31) ressalta que:

Relações parentais conflituosas, quando acontece o emaranhamento dos problemas conjugais na relação parental, têm não só efeitos diretos no funcionamento psicológico da criança, mas também efeitos indiretos, dado que interfere na qualidade do comportamento parental.

Nisso, a mãe vai embora de casa, repetindo o seu “sinto muito” (sua frase recorrente em situações difíceis) mesmo diante às tentativas do filho de impedi-la. E esse demonstra o medo do abandono (materno).

Logo em seguida, com apenas oito anos, ele presencia um grupo de garotos da sua escola agredindo brutalmente outro estudante, que teve uma barra de ferro introduzida em seu ânus. Sem entender tal atrocidade e ao ver a notícia na TV que o mesmo ficaria paralisado da cintura para baixo, o protagonista questiona o pai sobre o que teria motivado tal ato, contando-lhe o que tinha visto. “Ele é gay”, respondeu. Desse modo, a resposta do pai associada ao conteúdo presenciado provoca-lhe um trauma psicológico na infância que o perseguirá na seguinte fase da vida, a adolescência.

closet-monster2

Em vista disso, pode-se considerar que os eventos vividos por Oscar na infância foram situações potencialmente traumáticas (ZAVARONI, 2015), as quais são compostas de circunstâncias perturbadoras que expõem a criança a significantes perdas, podendo requerer ou suscitar (re)arranjos vivenciais relevantes. O Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise (ZIMERMAN, 2008, p.419) define que o trauma “[…] está mais diretamente ligado a acontecimentos externos reais, que sobrepujam a capacidade do ego de poder processar a angústia e a dor psíquica que eles lhe provocam”. E ainda, estende-se a essa conjuntura a circunstância de que o trauma repercutido no psiquismo da criança é simétrico ao seu estado de indefesa precoce. Melhor dizendo, é de grande efeito e doloroso.

Stephen Dunn (2016) transparece na sua obra o peso que os caminhos da sexualidade (dicotomia: homossexualidade e heterossexualidade) possuem numa sociedade fálica. Concomitantemente às cenas de Oscar cortando seu cabelo, que estava com um tamanho inadequado para um menino, é apresentado um cenário onde seu pai mostra-se uma figura máscula em vigor cortando madeira para construir uma casa na árvore para ele, o seu querido filho. Assim, uma criança ainda que no seu pouco entendimento sobre sexualidade, de fato percebe que não pode fugir dos padrões da heteronormatividade, pois poderá ser punido, como foi o garoto que era gay.

Fonte: http://zip.net/bjtDp5

Ainda, é válido lembrar que o filme retrata Oscar como uma criança sem amigos e o hamster que ganhou de presente torna-se sua melhor amiga, seu nome é Buffy como a própria se intitula. (Sim, isto mesmo! Durante todo o filme ela dialoga com Oscar). Nas primeiras cenas do filme é apresentado Oscar como um bebê e logo em seguida alguns hamsters recém-nascidos. (Novamente uma característica simbólica). Mais à frente, na adolescência do garoto, ela o explica “Sou o seu espírito animal!”, o que remete a possibilidade do jovem está conversando consigo mesmo, ou seja, está tendo uma alucinação auditiva. No que tange este tema, Maurício Aranha (2004) levanta que:

Conforme a teoria desenvolvida ao longo da obra de Carl G. Jung, na doença mental o inconsciente começa a sobrepor-se à consciência, de tal modo que se rompem as barreiras de contenção do inconsciente e as alucinações apresentam claramente à consciência uma parte do conteúdo ali depositado, o qual passa para seu domínio. Assim sendo, as alucinações (assim como os delírios) não surgiriam de processos conscientes, mas sim, inconscientes, cujos fragmentos brotariam na consciência tal qual no sonho, ou seja, dissociados.

A transição da infância para adolescência de Oscar (a esta altura interpretado por Connor Jessup) é apresentada de relance, ele passa dos oito aos 18 anos. Possui, agora, uma nova amiga (humana), Gemma (Sofia Banzhaf), que juntos compartilham o interesse peculiar por maquiagem de cinema e ela é a modelo que incorpora as produções do amigo. É por meio de fotografias do seu trabalho que Oscar tenta ingressar na faculdade em Nova York. O psicanalista Alfredo Jerusalinsky (2004, p.56), em sua obra “Adolescência e Contemporaneidade”, discorre que a palavra adolescência remete a adoecimento; ao sofrimento típico da perda de proteção indispensável, pois alude à transição entre a proteção (da vida infantil) e à exposição (da vida adulta).

closet-monster40

Além disso, o enredo explicita que a relação de amizade entre pai e filho é rompida, já adolescente o protagonista passa a visualizar o pai como um “monstro”, uma pessoa que sempre afasta aqueles que os amam e que ele não quer se tornar parecido. No que concerne à psicologia do desenvolvimento, Aberastury e Knobel (1981, s/p) teorizam sobre o comportamento do adolescente que “sua hostilidade frente aos pais e ao mundo em geral se manifesta na sua desconfiança, na ideia de não ser compreendido, na sua rejeição da realidade, situação que podem ser ratificadas ou não pela própria realidade”.

O ápice da vida de Oscar acontece quando ele tem uma paixão de verão, que em grande parte da obra transparece ser platônica, mais conhecida no vocabulário contemporâneo dos adolescentes como crush. É no ambiente de trabalho que conhece Wilder (Aliocha Schneider). Este, além de despertar sentimentos e desejos em Oscar e constantemente provocá-lo sexualmente (com frases), lhe proporciona a possibilidade de ter novas experiências e novas perspectivas.

closet-monster5

Há um momento no filme em que Wilder desconstrói a fantasia de Oscar em relação a Buffy, mostrando-o que ela não é fêmea, na verdade trata-se de um hamster macho. Fica evidente o escroto do animal. Mesmo assim, ‘o hamster’ continua com uma voz de fêmea e diz que está numa crise de gênero, depois de tal notícia. Nessa conjuntura, Buffy é utilizada como uma porta-voz dos conteúdos inconscientes do personagem, remetendo à teoria junguiana acerca da alucinação supratranscrita em Marcelo Aranha (2004). Ao modo que, externamente, ele é um garoto introvertido que possui desejos homossexuais reprimidos e sente-se desassistido pelos pais, principalmente pela mãe que possui um novo grupo familiar, que ele não consegue integrar-se.

Num ímpeto de fúria, durante uma discussão com o seu pai, este não aceita que o filho vá à uma festa gay. Mauricio Knobel (1981, s/p) adverte a angústia provocada nos pais quando se deparam com os primeiros traços de conduta genital dos filhos na adolescência. Oscar chuta o pai para dentro do seu armário, que ainda contém roupas de sua mãe, e vai à festa de Wilder com ânsia de novas sensações. Partindo de tal fato surge o questionamento: seria este o monstro no armário, o seu pai? A figura masculina regida pela heteronormatividade que o impedia de se mostrar como realmente era?

Quanto à monstruosidade…

Para começar, o que é um monstro? Já a etimologia da palavra nos reserva uma surpresa um tanto ou quanto assustadora: monstro vem de mostrar. O monstro é o que se mostra, o que se aponta, o que se aponta com o dedo, o que se mostra nas feiras, etc. E quanto mais monstruosa é uma criatura, mais exibida deve ser.  (Tournier, 1986. p.15).

Fonte: http://zip.net/bktDxr

Não! O monstro no armário de Oscar, assim como o simbolismo usado na definição de Tournier, nada mais é do que a não aceitação da sua própria sexualidade, sempre negada e reprimida, que se opõe à figura dos seus semelhantes e necessita expor-se. Ademais, esta não aceitação associa-se ao trauma, cujo é incessantemente alimentado por alucinações, em que uma barra de ferro tenta diversas vezes sair de si mesmo.

Nesse contexto, Aranha (2004, p.38) afirma que os valores culturais atribuídos às relações e os acontecimentos podem atuar de modo significativo na percepção sobre um determinado objeto. Tal como a barra de ferro, neste caso. E acrescenta que a organização perceptual na maioria das vezes espelha os fatores pessoais daquele que está percebendo, como suas necessidades, emoções, atitudes e valores (ibidem, p. 39). Portanto, é justificável que tais alucinações sinestésicas de Oscar relacionavam-se com o evento traumático ocorrido na infância e com sua constelação de afetos e desejos sexuais característicos de sua personalidade e da adolescência.

Fonte: http://zip.net/bjtDp5

Finalmente, durante mais uma crise colérica e alucinógena, seu pai havia matado sua hamster. Oscar consegue tirar a barra de ferro da sua barriga e com as mãos ensanguentadas (fazendo com que o expectador também participe da alucinação) quase agride novamente o pai. É o momento de extravasamento da raiva e da inquietação contidas nele. De tal modo, infere-se que mesmo numa atitude violenta ele mostra ao pai que já detém a força de um adulto, tanto quanto este possuiu outrora, e que já passou da fase em que precisava de proteção. Retomando o conceito supracitado sobre adolescência de Jerusalinsky (2004), agora pode proteger-se sozinho, expondo-se como um adulto.

Ainda, observa-se que ao fim da trama Oscar está concluindo a passagem da adolescência para a fase adulta. Ele consegue se despedir do seu ‘animal espiritual’, Buffy, isto é, simbolicamente representa seu ego infantil. E começa uma vida acadêmica longe dos pais. Ao deparar-se com sua nova realidade rememora o pai quando lhe dava sonhos na infância. Porém, nesta situação, em seu pensamento, ao pedir um sonho de presente, o próprio lhe diz: “Está um pouco tarde para isso. É hora de começar a fazer seus próprios sonhos. Pode ter tudo que quiser neste mundo. Só feche os olhos”. Nisto, ele desperta e enxerga sua realidade atual: a vida adulta, na qual terá autonomia para criar e realizar seus objetivos, deixando seus pais orgulhosos.

Fonte: http://zip.net/bhtDCW

Nesse ínterim, o enredo do filme não elucida se Oscar consentiu ao seu monstro no armário ou não, em outras palavras, se continuou negando ou se aceitou sua homossexualidade. O telespectador, alicerçado na sua percepção, torna-se livre para chegar às suas próprias conclusões.

REFERÊNCIAS:

ARANHA, Maurício. Etiologia das alucinações. Ciênc. cogn.,  Rio de Janeiro ,  v. 2, p. 36-41, jul.  2004. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-58212004000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 27 de janeiro de 2017.

ABERASTURY, A., & KNOBEL, M. Adolescência normal. Porto Alegre: Artmed, 1981.

JERUSALINSKY, Alfredo Nestor. Adolescência e Contemporaneidade. In Conselho regional de Psicologia 7ª Região. Conversando sobre Adolescência e Contemporaneidade. Porto Alegre: Libretos, 2004.

KNOBEL, M. A Síndrome da adolescência normal. In A., ABERASTURY & M., KNOBEL Adolescência Normal. Porto Alegre: Artmed, 1981.

RAPOSO, Hélder Silva et al. Ajustamento da criança à separação ou divórcio dos pais. Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 38, n. 1, p. 29-33,    2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832011000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 29 de janeiro de  2017.

TOURNIER, Michel. O Rei dos Álamos. Lisboa: Dom quixote, 1986.

ZAVARONI, Dione de Medeiros Lula; VIANA, Terezinha Camargo. Trauma e Infância: Considerações sobre uma Vivência de Situações Potencialmente Traumáticas. Psic .: Teor. E Pesq., Brasília, v. 31, n. 3, p. 331-338, setembro de 2015. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722015000300331&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 24 de janeiro de 2017.

ZIMERMAN, David. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2008.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

closet-monster-cartaz

CLOSET MONSTER

Direção e Roteiro:   Stephen Dunn
Elenco:  Connor Jessup, Jack Fulton, Joanne Kelly, Aaron Abrams;
País: Canadá
Gênero: Drama
Duração:  1h30

Compartilhe este conteúdo: