TDAH – um efeito colateral

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Como vemos empiricamente em nossa vida ao redor e como tem apontado estudiosos das tendências comportamentais do século XXI – como Bauman -, a tendência atual, na criação das crianças, é os pais acompanharem-nas cada vez com menos tempo – uma vez que trabalham o dia todo – e colocarem os filhos cada vez mais cedo nas escolas (isso não é necessariamente indicativo de falta de acompanhamento; no conjunto das características aqui apontadas pode ser); além disso, existe a tendência de entregar a posição central de decisão sobre a forma de criar os filhos cada vez mais ao saber alheio-especializado-médico-psicológico-medicalizado-medicalizante-psicologizado-psicologizante que está tomando conta tanto da iniciativa privada de serviços quanto dos equipamentos públicos de saúde, de educação, forenses e etc.

A especialização do saber possui dois efeitos colaterais: o primeiro é que não permite o trabalhador possuir, por dedicação e intuição, outro saber, ou seja, com dificuldades as pessoas podem aprender a ser pais e mães. Elas primeiramente são trabalhadoras, desde as primeiras horas do dia e, quando cansados e estressados, são pais, no final da noite. O segundo é a morte dos saberes que se propagam exatamente por suas características generalistas, como o saber de ser pai e de ser mãe. O descompasso relacional entre pais e filhos é mais um dos efeitos colaterais de tal sistema. A solução do sistema para seus efeitos colaterais é a produção de mais saberes especializados, mais medicações e mais efeitos colaterais. O TDAH é, antes de ser um diagnóstico, um efeito colateral.

O TDAH, de acordo com estudos sobre o desenvolvimento do conceito, é um diagnóstico médico-psiquiátrico cuja história remete aos estudos de George Still que relacionou as dificuldades de atenção a um suposto déficit neurológico, denominando, o conjunto dos comportamentos apresentados por 43 crianças que estudou, como “defeitos mórbidos de controle moral”. Na década de 40 tal conjunto de comportamentos passou a ser considerado “lesão cerebral mínima” e na década de 60 como “disfunção cerebral mínima” (BOARINI, 2007, p.39).

Um fator que continua na história de tal diagnóstico é a ideia de que é a criança que, no processo diagnóstico, não sabe (saberes e limites) e com dificuldades pode aprender (saberes, limites e/ou ambos). Todavia, as crianças exploram suas antenas, suas linguagens, suas comunicações. Elas fazem questões e, com elas, avançam, independente se o saber a que buscam encaixa-se naquele disponível nas escolas.

Os pais, nesse processo, pela falta de tempo e pela decadência atual da intuição como maneira de produção de saberes, pouco ou quase nenhum conhecimento produzem acerca de seus filhos e de como com eles podem se relacionar. Diante disso, buscam saberes nos profissionais. Esses, por sua vez, dizem tê-los. Contudo, pais, profissionais e professores estagnam-se na impotência diante do fenômeno social chamado TDAH. Por quê?

A busca, em outras pessoas, por respostas aos problemas de saúde (mentais inclusive) que enfrentamos é uma característica congruente à característica gregária do ser humano. Essa busca, atualmente, possui uma tendência a se dar nos seguintes moldes: o saber que resolverá os problemas familiares encontra-se (supostamente) no outro, e somente nele, e, tal saber, quando consultado, continua no outro, ou seja, não é compartilhado, mas prescrito, podendo ser prescrito outras vezes, por tempo indeterminado. Tal saber fundamenta-se na permissão para o uso de determinadas e específicas técnicas em cujo seio não se desenvolve a intuição tão pouco se discute o “relacionar-se”. Desse modo, tanto por parte dos pais quanto por parte dos técnicos, o “relacionar-se” não é colocado em questão. Essa característica social é condição para a estagnação impotente.

O saber que os pais acumulam torna-se descartável e, por troca, compram o saber do especialista para repor aquele que, por fim, descartam, por não serem imediatamente resolutivos. Isso ocorre quando buscamos um médico quando estamos apenas gripados ou um psicólogo quando estamos apenas tristes. Nossa tolerância ao “desenvolver-se” parece que se estreita no passar do tempo. Esse é um efeito do sistema especialista do conhecimento, uma vez que o “desenvolver-se” como ser humano depende da integração de nossos saberes. Outra condição da estagnação impotente.

O saber que se proclama correto sobre o TDAH, como o constante no sítio da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), define-o assim:

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e freqüentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. (http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/o-que-e-o-tdah.html)

Gomes et al (2007) apresentam uma pesquisa (financiada por um dos laboratórios que produzem o metilfenidato no Brasil e apoiada pela ABDA) na qual a existência do TDAH enquanto entidade nosológica é colocada como princípio. Nas palavras dos autores

Como sugerido anteriormente (BEKLE, 2004), embora o auto-relato dos grupos indique consciência acerca da entidade cli´nica TDAH, existem importantes equi´vocos quanto a essa entidade, potencialmente mais graves nos grupos profissionais, uma vez que estes se responsabilizara~o pelo encaminhamento, diagno´stico e tratamento dos portadores. Isso fica especialmente evidente nos educadores, o u´nico grupo profissional no qual parte dos entrevistados (uma parcela expressiva) afirmou que o TDAH na~o e´ uma doença.

Nota-se que em tal pesquisa, a afirmação “o TDAH não é uma doença” é considerado um erro a ser sanado com as informações certas. Vemos isso na conclusão a que chegam os autores acerca da necessidade urgente de capacitação de profissionais que lidam com o TDAH para que o diagnóstico e o tratamento sejam bem sucedidos, concluindo que os profissionais (da saúde e da educação) ainda não sabem fazer o diagnóstico da doença. Para Gomes et al (2007)

É importante que grupos como os educadores reconheçam o cara´ter neurobiológico do TDAH para entender, entre outros aspectos, a ineficácia das punições (Brook e Geva, 2001) e encaminhar corretamente os casos. Os presentes resultados demonstram que, para os educadores brasileiros, o TDAH não se associa a uma disfunção do sistema nervoso central. Estudos futuros devem investigar de que forma a escola se prepara para identificar e acompanhar portadores de TDAH (GOMES et al, 2007, p.100).

Sobre a metodologia da pesquisa de Gomes et al temos que:

As entrevistas foram realizadas da seguinte forma: para a população em geral, realizou-se uma abordagem pessoal dos entrevistados, com aplicação de um questionário estruturado com cerca de 15 minutos de duração. Após a coleta dos dados, em torno de 30% das entrevistas de cada entrevistador foram refeitas pessoalmente ou por telefone para checagem da correção dos dados. Para médicos, psicólogos e educadores, as entrevistas foram realizadas por telefone, tendo-se utilizado um questionário estruturado especiíico para cada grupo. Os questionários utilizados em cada etapa estão disponíveis no endereço eletrônico (www. tdah.org.br) da Associação Brasileira de TDAH. (GOMES et al, 2007, p. 96)

Tal método permite apenas o levantamento de hipóteses sobre o saber e a prática dos profissionais pesquisados uma vez que, por centrar-se em questionários e re-afirmações por telefone, abrange informações bastante simplificadas acerca do que realmente os entrevistados sabem e praticam em torno do TDAH. Além disso, o processo de construção de tais saberes não é nem de longe debatido, deixando de discutir a relevância da medicalização em tal construção. Desse modo, concluo que as conclusões e discussões do artigo são precipitadas e carecem de embasamento nas ciências sociais uma vez que visam analisar a construção de saberes bem como a manutenção de práticas sociais.

Ao passo que um grupo de pesquisadores e profissionais da área tem por princípio que o TDAH é uma entidade nosológica, tal princípio é por outros pesquisadores e profissionais, questionado em sua veracidade.

As psicólogas que fazem uma leitura ampla sobre o tema do TDAH são: Maria Lúcia Boarini (Universidade Estadual de Maringá), Luciana Vieira Caliman (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Soraya da Silva Sena e Luciana Karina de Souza (Univesidade Federal do Espírito Santo). Virgínia Kastrup (UFRJ) estuda e escreve sobre atenção.

Boarini e Borges (2009) iniciam o livro “Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da caixa de Pandora” discutindo o TDAH a partir da ideia de espaço de convivência humana e de vivência da passagem do tempo. Explicitam que vivemos num modo metaforicamente comparado à uma panela de pressão no qual os grãos, no caso os humanos, vivem num espaço curto e em constante agitação. Discutem, ainda, o apostilamento das atividades escolares como maneira de aceleração da formatação das crianças e resgatam a história do uso de psicoestimulantes, como o café, para desacelerar motormente as crianças e acelerá-las na correria informacional da vida contemporânea. O uso da cafeína, usado na pedagogia doméstica, cedeu lugar a partir das décadas de 80 e 90 (do século XX) ao uso do metilfenidato, usado na “pedagogia” ortopédica. Além disso ressaltam o papel da mídia na construção de tal diagnóstico.

Uma das principais questões lançadas com maestria por Caliman (2008) é a seguinte: ao se tratar o TDAH, trata-se “uma patologia da atenção ou busca-se a otimização das habilidades atentivas, requeridas principalmente pelo espaço ocupacional e escolar”? (…) “Até onde estamos tratando de uma patologia, quando estamos buscando a melhora da performance atentiva?” (CALIMAN, 2008, p.564).

Para Gordon e Keiser (1998), as controvérsias em torno do diagnóstico do TDAH nascem primeiramente de sua face interna. Os sintomas que definem o transtorno (desatenção, impulsividade e hiperatividade) são, em menor grau, traços comuns da natureza humana. Todo indivíduo é, em certa medida, um pouco desatento, impulsivo, desorganizado, e nem sempre finaliza as tarefas almejadas, especialmente quando o sujeito em questão é uma criança de 6 ou 7 anos de idade. (CALIMAN, 2008, p. 562)

O questionamento levantado por Caliman é simples, direto e esclarecedor: como quantificar como normal ou doentia uma característica que é de todos e que é totalmente social dependente? Com tais questões, Caliman delineia uma dúvida contundente num suposto exato saber, colocando em xeque toda a parafernália diagnóstico-farmacológica empreendida mundialmente em torno daquilo que se nomeia por TDAH.

Soraya da Silva Sena (2008) aponta uma discussão central acerca do TDAH, a saber: o diagnóstico TDAH leva a quatro grandes ações técnicas, em ordem decrescente de hegemonia: a prescrição medicamentosa, a psicoterapia, a orientação familiar e intervenções nas escolas. Desse modo, Soraya evidencia o quanto o modelo biomédico é hegemônico na rede brasileira de cuidados e ações frente a tal diagnóstico. Mais uma vez vê-se, pela ordem das técnicas empregadas para a resolução do que se chama por TDAH, que o “relacionar-se” não é pauta de discussão.

A hegemonia do tratamento farmacológico para o que se chama de TDAH mostra que as questões envolvidas nesse fenômeno são, hegemonicamente, tratadas em nível bioquímico. Ou seja, a análise sobre as implicações do processo que culmina nos comportamentos que, em conjunto, são associados ao diagnóstico TDAH, é centrada numa simplificada relação existente entre o nível bioquímico do funcionamento neural e o conjunto dos comportamentos emitidos pelas crianças ou adultos diagnosticados. Contudo, o comportamento, mesmo que bioquimicamente composto, é mantido pela interação entre tal nível, o resto do ser e o meio. A análise centrada no “olhar para o corpo da criança, em seu nível bioquímico” é a repetição da centralização de poder em torno do saber científico (classificação outorgada pelos próprios sabedores). Uma análise ampliada revela a complexidade das relações entre pessoas, suas atenções, impulsividades e envolvimentos.

Boarini e Borges (2009) fazem um extenso levantamento das pesquisas referentes ao TDAH e apontam a fragilidade teórica, técnica e ética do aparato que sustenta o diagnóstico e o tratamento. Das pesquisas estudadas pelas autoras, ressalto as de:

1 – Guilherme et all estudaram 628 publicações e 55 artigos e concluíram que a relação entre funcionamento conjugal e TDAH são muito heterogêneas, demandando pesquisas longitudinais sobre o tema.

2 – Tannock, Dupaul, Stoner, Wannmacher ressaltam a falta de objetividade do diagnóstico uma vez que os sintomas possuem um continuum e dependem de julgamento subjetivos.

3 – Raul Gorayeb – psiquiatra e psicanalista – diz que “em quase 35 anos de experiência clínica, eu não me convenci da existência desse distúrbio e nem que ele seja curado com essa droga” (Gorayeb citado por Boarini, p.40)

Percebe-se que as pesquisas apontadas questionam o TDAH enquanto entidade nosológica e apontam questões, antes de enunciarem verdades comprovadas. Evidencia-se, portanto, sobre o TDAH um debate polarizado em dois conjuntos discursivos: um que debate os processos sociais em torno do TDAH e coloca em questão o lugar da verdade dos saberes que sobre ele se debruçam e outro que enuncia uma verdade que, se negada, a negativa, antes de ser uma dúvida, é um erro.

Esse último pólo, o que discute em termos de verdade em oposição a saberes errados (como na catequese para almas errantes), encara o metilfenidato como a principal terapêutica. De acordo com Gomes et al:

De fato, os estudos têm demonstrado que mesmo as abordagens combinadas, por exemplo, medicação e psico-terapia comportamental, não são eficazes em comparação com o uso isolado de medicamentos (BARKLEY, 2004; ROHDE e HALPERN, 2004). (GOMES et al, 2007, p.100)

O princípio ativo da medicação mais usada para os principais sinais do TDAH é o metilfenidato, um estimulante do sistema nervoso central. De acordo com a bula da droga

Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado (grifo meu), mas acredita-se que seu efeito estimulante e´ devido a uma inibição da recaptação de dopamina no estriado, sem disparar aliberação de dopamina. O mecanismo pelo qual ele exerce seus efeitos psi´quicos e comportamentais em crianças não esta´ claramente estabelecido (grifo meu), nem ha´ evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central. (http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/BM/BM%5B26162-1-0%5D.PDF)

Dentre as possíveis reações adversas estão o nervosismo, dificuldade para dormir e perda do apetite. Além dessas, pode também ocorrer:

  • febre alta repentinamente;
  • dor de cabeça grave ou confusão, fraqueza ou paralisia dos membros ou face,
  • dificuldade de falar (sinais de distúrbio dos vasos sanguíneos cerebrais);
  • batimento cardíaco acelerado; dor no peito; movimentos bruscos e incontroláveis (sinal de discinesia);
  • equimose (sinal de púrpura trombocitopénica);
  • espasmos musculares ou tiques;
  • garganta inflamada e febre ou resfriado (sinais de distúrbio no sangue);
  • movimentos contorcidos incontroláveis do membro, face e/ou tronco;
  • alucinações;
  • convulsões;
  • bolhas na pele ou coceiras (sinal de dermatite esfoliativa);
  • manchas vermelhas sobre a pele (sinal de eritema multiforme);
  • deglutição dos lábios ou língua ou dificuldade de respirar (sinais de reação alérgica grave);
  • erupção cutânea ou urticária;
  • febre, transpiração;
  • náusea, vômito, dor no estômago, tontura;
  • dor de cabeça, desânimo, cansaço.
    (http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/BM/BM%5B26162-1-0%5D.PDF)

O aumento do consumo do metilfenidato é significativo:

1 – na HOLANDA: em 2008, 34% das crianças tomavam medicamentos para TDAH;

2- na ARGENTINA: de janeiro a setembro de 2005 houve um aumento de 900% em comparação com as vendas de 1994;

 3 – no BRASIL: em quatro anos, de 2000 a 2004, houve um aumento de 940% no consumo da droga; (Boarini, e Borges, 2009)

4 – na ALEMANHA, em 2004, os números apontavam que cerca de 500 mil crianças e adolescentes tinham o diagnóstico TDAH.

5 – nos ESTADOS UNIDOS: a produção do medicamento aumentou cerca de 700% desde o início da década de 90. Em 1999, os EUA fizeram uso de 85% da produção mundial demetilfenidato para tratamentos médicos (Caliman, 2008);

Em 2004, o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade foi oficialmente reconhecido, através da Resolução 370 (Estados Unidos da América, 2004), como um dos problemas mais graves e importantes da saúde pública americana. De acordo com as estimativas publicadas nesta resolução, o TDAH abrangia de 3 a 7% das crianças e adolescentes americanos em idade escolar (2.000.000) e 4% dos adultos (8.000.000). Devido a esta resolução, o TDAH teve sua entrada nas datas oficiais do país com a proclamação do dia 7 de setembro como o “Dia da Consciência Nacional sobre O TDAH”.  (CALIMAN, 2008, p.560)

O TDAH, atualmente, possui, como principais sinais e sintomas o “comportamento hiperativo e inquietude motora, desatenção marcante, falta de envolvimento persistente nas tarefas e impulsividade” (Lima apud Boarini, 2009, p.20). Pensemos nessa citação e na seguinte questão que dela surge: o que socialmente existe e que é condição de possibilidade ao comportamento hiperativo, à inquietude motora, à desatenção, à falta de envolvimento persistente nas tarefas e à impulsividade?

Para responder a essa questão não precisamos negar a relação existente entre o mundo bioquímico e o comportamental…tão pouco a precisamos simplificar. Para responder a essa questão teríamos e teremos que analisar desde a alimentação a que temos nos habituado, às condições de formação não somente técnica como pessoal, afetiva e corporal, passando pelas condições de trabalho e de governabilidade sobre os problemas que enfrentamos socialmente, pelas divergências que a tecnologia vai inserindo nas relações inter-geracionais até às contruções comuns de nossas escolas-panelas-de-pressão, incluindo a gestão da ética na pesquisa e na aprovação de medicamentos. Uma acurada descrição desses fatores pode nos mostrar que o TDAH, antes de ser um diagnóstico é, antes, um efeito colateral para o qual uma medicação já foi prescrita e que, dificilmente, saíra do cardápio escolar-familiar.

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Medicalização da Educação: a quem interessa?

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O fácil acesso às informações vivido por nossa sociedade, fruto da revolução tecnológica, contribuiu para a melhoria da qualidade de vida de nossa população, principalmente no que diz respeito à saúde.

As consequênciassão várias, por um lado há o prolongamento da vida, mas por outro, essa prática abre espaço ao uso abusivo de medicamentos em nosso século. Em busca do bem estar, aderimos a esse modo de vida, negligenciando por completo uma série de efeitos colaterais vividos no corpo e na sociedade. O que deveria ser considerado normal passa a ser patológico passível de solução por meio dessas drogas lícitas.

A medicalização pode ser entendida como o processo que transforma questões coletivas e sociais em questões individuais e biológicas, mais especificamente, em doença. Diferente da medicação, a medicalização desempenha um papel de controle sobre as pessoas, tornando-as agentes passivos diante dos diversos  questionamentos sobre o processo de adoecimento da sociedade neocontemporânea.

Esse fenômeno tem sido alvo de grande preocupação e debates coletivos, tanto da sociedade civil, quanto no poder público e da academia. Pensando nesses questionamentos, um grupo de cientistas contrários à medicalização da vida organizou o “Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade”. Por reflexo disso, o Conselho Federal de Psicologia lançou uma Campanha Nacional “Não à medicalização da Vida”, chamando atenção de todos para um posicionamento crítico ante o tema. As reflexões encontradas nesse texto são fruto, principalmente, de reflexões a partir da leitura destes  dois documentos.

De acordo com as informações constantes no documento, indústrias de vitaminas, medicamentos fitoterápicos, medicamentos alopáticos e medicamentos homeopáticos cresceram vertiginosamente no mundo inteiro. É conhecimento comum o fato de que a Indústria Farmacêutica é a segunda maior em faturamento do planeta, perdendo apenas para a Indústria Bélica.

A medicalização vem ocorrendo no mundo todo, em escala crescente e em todas as instâncias da vida, uma das áreas que mais tem sofrido esse processo é a educação. Resultado de um movimento recente em justificar os problemas educacionais com explicações de cunho neurológico, o que chamamos de Medicalização da Educação. Entre os defensores da medicalização na educação está o argumento de que ela tende a acalmar o conflito, um dos motivos pelos quais ela se dissemina tão facilmente.

É importante frisar que essa preocupação com a patologização e medicação da vida em todas as suas esferas, especialmente na esfera da educação, vem despertando o interesse de  profissionais da área da saúde do mundo inteiro. Isso pode ser verificado atráves dos fórunsFórumadd e do Coletivo Pasde0deConduit, dois grandes eventos internacionais cujas preocupações são especificamente em relação a essa temática.

Na maioria dos casos, os encaminhamentos das crianças vêm da escola e as queixas sempre são: problema na aprendizagem, agitado demais, agressividade. Mas a questão que fica é: Quais os efeitos e danos da medicação infantil? Auxilia, orienta ou rotula?

Por trás do rótulo diagnóstico e da alta demanda de crianças medicadas, há o interesse sociocomercial que ao inserir a criança no contexto escolhe ter por objetivo principal seu preparo para servir às exigências do mundo capitalista, o qual exige maior produção em menor tempo. Sendo assim, não é levado em consideração que cada indivíduo produz de acordo com o seu tempo cronológico e mental, os quais nem sempre estão conectados.

O alto índice de diagnóstico ignora o fato de que cada indivíduo é único em seu jeito de ser e de se desenvolver, sendo assim, o seu peculiar ritmo de produzir, quando não equiparado aos demais, é considerado como alienado ao mundo dito normal. Mundo esse que foi construído socialmente por todos nós, mas vem ganhando hegemonia através da medicina e da indústria farmacêutica.

O nosso processo de desenvolvimento é complexo, e quando algo não está de acordo com as expectativas e exigências da sociedade dominante, é reduzido à uma visão biologista. Nela, o discurso social moderno medicamentoso tem submetido às crianças de nossa sociedade a um modelo de educação, priorizando o controle e a disciplina.

O movimento antipsiquiátrico teve um importante papel ao questionar o poder do discurso médico sobre a doença e o sujeito. E este discurso científico que surge a partir do século XX, contribuiu tanto para um discurso pedagógico normalizador quanto para a validação de um saber especializado, como, psicologia, fonoaudiologia, psicopedagogia, psiquiatria etc.

Há ainda o papel da mídia que, de uma forma totalmente errônea, fazendo com que aumente a disseminação de supostos diagnósticos por pessoas leigas, rotulam crianças de uma forma banalizada, faz com que a sociedade transforme sintomas cotidianos em transtornos mentais e criam uma demanda cada vez maior por medicamentos. O que reverbera em ganhos financeiros para as empresas. Assim, uma criança pode ser considerada saudável ou doente segundo o observador. O fórum sobre medicalização da educação e da sociedade de 13 de novembro de 2010 em São Paulo aponta que:

A aprendizagem e os modos de ser e agir – campos de grande complexidade e diversidade – têm sido alvos preferenciais da medicalização. Cabe destacar que, historicamente, é a partir de insatisfações e questionamentos que se constituem possibilidades de mudança nas formas de ordenação social e de superação de preconceitos e desigualdades. O estigma da “doença” faz uma segunda exclusão dos já excluídos – social, afetiva, educacionalmente – protegida por discursos de inclusão.

A medicalização naturaliza todos os processos e relações socialmente constituídos e, em decorrência, destrói direitos humanos. A discriminação é um efeito que desmotiva o aluno a frequentar a escola, a criança diagnosticada com Transtorno de Déficit de Atenção (TDA) vai se sentir culpado e discriminado pelos colegas. A escola, por sua vez, não procura outros meios para entender quais são os problemas que estão acontecendo com este aluno no contexto familiar, com o método de ensino do professor, os recursos pedagógicos da instituição etc.

A medicalização tem assim cumprido o papel de controlar e subverter as pessoas, destituindo-as de autonomia, transformando essas pessoas em portadores de distúrbios de comportamento e de aprendizagem. O problema não nasce na escola. Questões de cunho sociais e econômicas estão ligadas a medicalização da educação, em uma esfera macro. Está claro que a escola não tem clareza sobre os riscos de tal prática, e se tem, parece não dar importância ao fato. Despreparada para lidar com a diversidade dos indivíduos, principalmente no contexto escolar, e na tentativa de isentar-se do seu papel, ela busca uma solução imediata, credita no diagnóstico médico e na medicalização a solução para o insucesso de sua prática pedagógica. Tomar certas drogas passa a ser pré-requisito para que a criança possa assistir à aula, por exemplo.

A medicalização em si designa um esforço para conceber a patologia mental a partir da ótica organicista, tendo-se como um de seus pilares teóricos implícitos o pragmatismo, entende a verdade em termos das consequências práticas. Já no fundamento filosófico da clínica psicológica, seu foco é a restituição do bem-estar ao paciente, objetivando diminuir o sofrimento subjetivo a um baixo preço e em um tempo curto.

Ligada intrinsecamente à busca de adaptação às normas sociais está à necessidade de um controle cada vez maior sobre o bom funcionamento psíquico dos sujeitos. A partir do momento que a medicalização pretende situar-se na dimensão da cientificidade, o artigo aborda que o cientificismo é um dos pressupostos teóricos da mesma, demonstrando a insuficiência do dispositivo medicalizante.Nesse contexto, para os alunos a escola passa a ser um lugar de ordens rígidas e severas, não é lugar de brincar, de dar opinião é lugar de obedecer à ordem rigorosamente; os que não cumprirem as ordens são taxados de crianças problema.

As mudanças que acontecem no mundo atualmente são muito rápidas e constantes, a escola e as famílias deveriam se capacitar para lidar com as novas formas com que crianças e jovens se relacionam com o mundo, em vez de taxá-los de doentes. Torna-se cada vez mais necessário, portanto, um olhar mais criterioso sobre a medicalização, ponderando os benefícios e os malefícios do uso constante e desmedido das drogas potencializadoras da atenção no processo de formação de nossas crianças e adolescentes, assim como da importância da família atuante na escola para a resolução do problema.

 

Referência:

Fórum sobre Medicalização da educação e da sociedade. São Paulo, 13 de Novembro de 2010. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/medicalizacao/manifesto_forum.aspx >. Acesso em 30 Set. 2013.

 


Nota – O texto foi elaborado em grupo, a partir de um debate com a turma de psicofarmacologia do curso de psicologia do CEULP/ULBRA em 2013/2, sob supervisão do Prof. M.Sc. Domingos Oliveira.

 

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